1968 REVISTO EM 1998 na quarentena de 2021

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AS PAGINAS AMA RELAS Cadernos do Olhar

Claudio Ferlauto

1968 REVISTO EM 1998


PÁGINAS AMARELAS

de Cadernos do Olhar

Outono 2021 Editor/Texto Claudio Ferlauto Publicado em 1998 na revista Aplauso, P Alegre RS. Tipografias Syntax/Hans Eduard Meier/Copyright 1968. Optima/Herman Zapf/Copyright 1950. Futura/Herbert Renner/Copyright 1927–29.

Contato clauf4455@gmail.com Outras publicações disponíveis em issuu.com/olhargrafico

Ideia e design C Ferlauto, anos 1970.


Já escrevemos uma vez que «falar dos anos 1960 no Brasil (e mais ainda em Porto Alegre) significa falar de Tropicália, Ato Institucional nº 5 e dos primeiros anos da década de 1970». Agora, escrever sobre 1968 trinta anos depois, além de torturar nossa parca memória, pode se transformar num exercício de ficção no qual o que realmente aconteceu periga ser descrito da maneira como gostaríamos que tivesse acontecido. ¶ Procuramos e não encontramos as imagens que produzimos naquela época [para enriquecer essa narrativa] como também não encontramos resposta para pergunta feita ao telefone: — Porque Porto Alegre estava tão atualizada e movimentada no final dos sessenta? Desta forma vamos nos valer apenas de pequenos retalhos levantados pela memória, recordações, lembranças, sensações [o que não é pouco, nem é desprezível]. São traços e manchas desbotadas das imagens de um velho caderno de notas: ‘memorabilia’ [fatos ou



coisas dignos de memória ou que se guardam como lembrança] modelo anos setenta, meio artísti-

co, meio bicho grilo, onde estão colados selos, fotos desbotadas, bilhetes, cartas estrangeiras, mapas, tíquetes de metrô, filipetas, embalagens de papel Colomy, slides fungados, fotos três por quatro de várias décadas e vários personagens. ¶ Naqueles anos todos queriam mudar o mundo. Menos John Cage: «Não tente mudar o mundo, você pode piorá-lo», dizia. Ou diziam que ele dizia. Não imaginávamos mudança ou revolução que não começasse em nós. Dentro da gente. Muitos ficaram com os cabelos um pouco mais compridos, fumavam outro cigarro, vestiam outras roupas, ouviam outras músicas. Outros, com outras ideias, outra sensibilidade, novos objetivos, um jeito diferente de viver. ¶ Mas todos transgredíamos agredindo e nos divertindo, fazendo campanhas políticas nos diretórios


Publicação independente do grupo Achtung Não contém cultura



Liverpool Sound and Sons


acadêmicos com projetos visuais inesperados e surpreendentes, também fechamos para balanço a Faculdade de Arquitetura com o movimento de protesto Nosso Ensino é uma Farsa, montamos shows de rock como o Liverpool Sound and Sons fazendo a banda cantar o sucesso Para Pedro em inglês — Stop Peter, stop… Também montamos o primeiro espetáculo gaúcho em multimídia com o Alice na TV. Alguém lembra disso? Detonamos um happening no Congresso Brasileiro de Arquitetura com a apresentação da farsa IABatman, construímos geodésicas, participamos da criação do jornal Zero Hora Dominical, fomos parte dos criadores o jornal Pato Macho, ajudamos a realizar os dois ArquiSamba e o Festival Universitário de MPB — o primeiro do Brasil. ¶ Éramos mal vistos pela esquerda ortodoxa [Partidão] e pela direita assanhada filha do golpe de 1964. Mas fazíamos e acontecíamos, não no formato previsível dos jargões políticos, mas por meio de



ações e atitudes [quase sempre] inspiradas no refrão underground de sexo-drogas-e-rock-a-roll… Bebíamos as lições antropofágicas de Oswald de Andrade com Décio Pignatari. Descobrimos Ferdinand de Saussure e depois Charles Sanders Peirce e Marshall McLuhan. Seguíamos as charadas de Regina Silveira e Julio Plaza, misturando Marcel Duchamp com Robert Crumb. Estávamos bem informados pelos jornais alternativos de Londres e Nova York — Friendz, It, Oz Magazine, Ink, Los Angeles Free Press (este da California), The Fifth State, Panteras Negras, Rock, Rolling Stone. Acompanhávamos a semana inglesa pelo Time Out. ¶ Como tudo na vida, não tínhamos a intenção de influenciar ou fazer história, era o nosso dia a dia, algo a ser feito com satisfação e competência mas desafiando o que estivesse pré-estabelecido. Mas chegou o momento em que a festa acabou: começou em 13 de dezem-


Luis Fernando Verissimo


bro de 1968. Apagaram-se as luzes, fecharam-se as portas, gradearam as janelas e desligaram o ar. Era hora de ir embora. ¶ Fomos para São Paulo com os olhos no futuro [que nunca chegou]. Não voltamos a viver em Porto Alegre, e como disse o Luis Fernando [Verissimo], «ficaram as dívidas e um gosto amargo na boca.» Para nós, restaram dúvidas e doces lembranças. Ainda trabalhamos, de vez em quando em jornal, no Caderno 2 de O Estado de S Paulo, editamos já por longos anos uma seção — Olhar Gráfico — sobre design na revista Abigraf. Hoje prefiro Bach e Schumann ao rock and roll e aos velhos e novos baianos. Agora está tudo como o diabo gosta, até show de rock parece festa de gado e boiadeiro. Cage tinha razão: mudamos para pior. São Paulo, abril de 1998.

Publicado originalmente na revista Aplauso, de Porto Alegre pela editora Paula Ramos.


Beth Wallig, Antonio Aiello, A.Contursi, reunião do Pato Macho


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