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Entrevista João Lúcio Farias, presidente da Cogerh
by O POVO
ENTREVISTA
JOÃO LÚCIO FARIAS - PRESIDENTE “NÃO HÁ NO BRASIL UM MODELO QUE SE DESENVOLVEU COMO O DO CEARÁ”
Na Cogerh desde 1994, o diretor presidente João Lúcio Farias fala sobre a criação da entidade e os desafios de implantar um modelo de trabalho que viria a ser referência no Brasil. João Lúcio destaca ainda os desafios da realidade do semiárido e a importância do pioneirismo em um panorama dos primeiros 25 anos.
Como foi o começo na Cogerh? Eu conheci a Cogerh, basicamente, quando eu entrei porque essa questão dos Recursos Hídricos, de gestão no Brasil, é muito recente. A questão do gerenciamento começa dos anos 1980 para os anos 1990. Com essa discussão vão surgindo novos conceitos da área como gerenciamento, necessidade de gestão, participação social no modelo de gestão, lei de recursos hídricos, sistema de recursos hídricos, usos múltiplos da água. A França tem um modelo de gestão bem mais antigo. Inglaterra, Espanha, já têm uma tradição de gerenciamento, mas o Brasil não tinha. E o Ceará é um estado que vinha fazendo algumas discussões novas sobre essa questão da água. É tanto que uma das primeiras leis é a nossa, do Ceará, e a lei de São Paulo. E o primeiro plano de recursos hídricos é daqui do Ceará, o Plano Estadual de Recursos Hídricos. Posteriormente, a criação do Sistema de Recursos Hídricos, a criação e a vinda da Funceme para o Sistema de Recursos Hídricos, a criação da Sohidra e, posteriormente, a criação da Cogerh. Não há no Brasil um modelo que se desenvolveu como o do Ceará. A Cogerh nasce de uma necessidade.
JOÃO LÚCIO FARIAS
E como foi sua entrada? Em 1993, nós fizemos o primeiro concurso e ainda um pouco sem saber o que seria gestão de Recursos Hídricos. Tivemos que estudar, conhecer outras experiências. No Brasil, já tínhamos uma pequena experiência no Rio Grande do Sul, nos deslocamos para conhecer. São Paulo já tinha também uma lei de recursos hídricos e estava iniciando a gestão. Não havia muita referência no Brasil. Fomos montando um modelo quase exclusivo, sui generis. Havia uma estrutura institucional, um quadro técnico novo, recém-passado no concurso da Cogerh. Alguns com experiência em recursos hídricos e outros não, mas com experiência em outras áreas do Estado. Eu era funcionário do Estado, vinha de 11 anos de experiência no serviço público.
E como essa falta de referência influenciou na implantação da Cogerh? Nós tivemos que ver alguma coisa no Brasil. Havia no Rio Grande do Sul a experiência de um ou dois comitês de bacias, mas o Estado muito ausente. Em São Paulo, o estado era presente, mas a sociedade se envolvia pouco no modelo de gerenciamento. Nós começamos a pensar como seria esse modelo de gerenciamento no semiárido. As experiências no Sul e Sudeste eram com rios perenes, totalmente diferente da nossa realidade do semiárido, onde a reserva depende de açudes, tem intervalo de chuva, com reservatórios que dependem de quatro meses de chuvas. Buscamos ver o que a gente poderia desenvolver aqui, dentro da nossa realidade no semiárido, e tivemos um primeiro desafio. Quando chegamos, havia um grande conflito por água no Estado, que foi a transferência de água dos açudes Orós e Banabuiú para ajudar o Sistema Metropolitano e a construção do Canal do Trabalhador. Era uma crise hídrica no Estado e nós tivemos que iniciar o processo de gerenciamento já negociando grandes conflitos. Havia o risco de a Região Metropolitana de Fortaleza entrar em colapso e o Canal, por determinação do governador na época, Ciro Gomes, foi feito em três meses para transferir água dos vales do Jaguaribe e do Banabuiú para a Região Metropolitana de Fortaleza. Isso aí gera um conflito porque lá eles sentiram que se estava tirando a água da sua região, da sua bacia,
CRÉDITO: FÁBIO LIMA/ O POVO dos seus reservatórios para trazer água para outra região. Havia um clima tenso na região e nós fomos mediar como poderiamos continuar fazendo essa transferência de água, embora de uma forma mais negociada e com uma base mais técnica. Isso foi o que a Cogerh começou a fazer no Vale do Jaguaribe. Nós iniciamos o que chamamos na época de “metodologia da alocação negociada de água”, que se faz hoje no Estado todo, mas começamos no Jaguaribe. Na época não existiam comitês de bacias, hoje existem 12 no Ceará, que são entes reconhecidos na lei estadual, consultivos e deliberativos. Na época nós criamos uma comissão permanente de usuários do Vale do Jaguaribe formada pela sociedade civil, pelo poder municipal, pelos órgãos estaduais e federais que tinham atuação na Bacia. Foi o começo de um processo de gerenciamento compartilhado, com participação social. Era um grande momento de negociar a alocação da água. Essa experiência hoje é um dos grandes diferenciais. Eu diria que é uma inovação técnica.
É um trabalho técnico muito atrelado às realidades locais? Essa experiência do Jaguaribe serviu como referência para a gente avançar. Depois veio a experiência no Vale do Curu. As pessoas não acreditavam muito que o Estado ia chegar lá e negociar. Era uma desconfiança. Começamos a organizar a comissão de usuários do Vale do Curu, foi a segunda comissão constituída dentro dessa mesma premissa. É um debate aberto. E os acordos firmados com as comissões tinham de ser cumpridos. Se era pra liberar um tanto de água para determinados usos, nós fazíamos todo um trabalho de acompanhamento, de ir lá medir as vazões em trechos do rio, saber se aquela água estava chegando em cada comunidade, nos usuários. Passou a ser uma prática da Cogerh. E quando eles (membros dos comitês) queriam ir junto, eles podiam acompanhar. Isso criou uma cultura interessante que os usuários ligavam pra Cogerh. Falavam: “Olha, a água tá sendo consumida por alguém porque não tá chegando aqui”. Então o pessoal passou a ser fiscal do uso da água. Criamos uma relação de confiança com a sociedade, com os poderes locais, com os órgãos que atuam dentro daquela área, sejam eles estaduais, federais. Essa cultura
foi crescendo. Essas experiências se estenderam para os açudes, os reservatórios mais isolados.
O fato de o Ceará só ter um rio (Poti) dividido com outro estado e os demais serem locais facilitou a criação dos comitês? Sim. Tanto que os que a gente demorou mais são hoje as bacias do Sertões de Crateús e Serra da Ibiapaba, porque era para ser federal e a gente tinha essa limitação. Se o Governo Federal iria tomar alguma iniciativa de criar um grande comitê da bacia do Parnaíba, que hoje tá criado. Então ficou nessa dúvida e a gente demorou a fazer o gerenciamento local dos reservatórios e não avançava na gestão da bacia em função dessa limitação. De certa forma, as bacias estaduais foram mais rápidas do ponto de vista de organizar o gerenciamento e portanto a gestão dos recursos hídricos. A partir da experiência das comissões começou a se trabalhar a ideia dos comitês de bacias. Superou-se problemas históricos da bacia dentro do contexto de negociação. A partir daí começaram a surgir os comitês. O primeiro comitê surgiu na bacia do Curu, de 1997. As pessoas não entendiam direito o que era isso de comitê, essa divisão geopolítica da bacia, não é uma divisão clássica nossa nem no semiárido nem no estado do Ceará. Para as pessoas irem assimilando essa nova realidade não foi fácil também, eram coisas novas, os municípios não se comunicam muito uns com os outros, não se tinha muita experiência de consórcios, então se trabalhava muito isolado. E a bacia não, né? Tem bacia que congrega 23, 24 municípios. Você passou também a conhecer a realidade de cada município, realidades que eram bem diferentes para eles.
Qual é a importância dessa iniciativa pioneira ser no Ceará, no semiárido? A Cogerh nasce com essa inspiração da gestão. E no Brasil essa questão da gestão sempre foi relegada a segundo plano, o mais importante era fazer a obra, construir… Mas a gestão, como é o planejamento, nunca conseguiu. Mas o Estado em 1992 fez o primeiro Plano de Águas do Estado, então fora do contexto da realidade brasileira. Nós não tínhamos essa característica de planejar o que nós vamos fazer daqui a 20, 30 anos ou mais. No entanto, vários governos vieram e seguiram atualizando o plano. Uma instituição que não consegue ter esse nível de relacionamento com a sociedade vai se tornando cada vez mais tecnocrática e burocrática e há uma tendência de ela se retrair. Se você consegue manter esse relacionamento entre Estado e sociedade, você pode consolidar um trabalho e até crescer.
É possível pensar que Cogerh foi criada em um bom momento? Pensando que se fosse depois teríamos tido problemas muito mais graves de segurança hídrica. Eu acredito que sim. Não diria só a Cogerh, mas o próprio Sistema Estadual de Recursos Hídricos. A Cogerh nasce dentro de uma crise, com possibilidade de colapso na Região Metropolitana de Fortaleza, e também de crise hídrica no Estado como um todo. E buscar essa parceria entre Estado e sociedade, entre o técnico e o conhecimento local, foi muito importante para que se pudesse ir aprimorando a gestão de recursos hídricos. Já tinha o Dnocs que vinha construindo obras e já pensando nessa questão de gerenciamento. Os órgãos federais começam a ter muitas dificuldades e os estados começam a montar suas estruturas, se fortalecer. O Dnocs poderia ter crescido do ponto de vista do gerenciamento, da gestão, mas ele se focou muito em obras e isso foi perdendo força. E, nesse momento, o Estado decidiu politicamente que a gestão era fundamental. Essa é uma decisão política importante: a água é fundamental e precisava de uma instituição para fazer o gerenciamento. Do meu ponto de vista, não se tivesse criado o sistema de recursos hídricos do Ceará nós poderíamos ter enfrentado crises muito maiores, porque enfrentamos secas de três, quatro anos. E agora nós estamos numa seca de quase sete anos. E o Estado vem respondendo no seu modelo de gestão. A Cogerh tem conseguido trabalhar essa questão do controle do uso da água, a conservação, a consciência do uso racional da água, a economia da água e isso junto com a sociedade.
A gestão de recursos hídricos no Estado saiu de um primeiro momento de acudir a falta de água pra hoje trabalhar mais a lógica de gerenciamento, da projeção. Hoje se consegue olhar mais adiante? Percebemos desses 25 anos de experiência que a quantidade (de água) continua sendo basilar. Saímos da água superficial e estamos trabalhando muito na água subterrânea, estudando qual é a reserva que nós temos nos nossos aquíferos. A partir daí as pessoas começam a ver até onde aquele aquífero pode ir, o que pode ser tirado, de forma sustentável, dos principais aquíferos do Estado do Ceará. O que a gente percebe hoje é que as pessoas começam a olhar também para a qualidade, para a questão ambiental, a preservação dos mananciais.
É possível enxergar mais os cenários hoje? Isso. Nós tivemos experiências importantes, como o Plano Estadual de Recursos Hídricos, que olha para a frente. Nós tivemos experiência do pacto das águas, coordenado pela Assembleia, que pensa a água olhando 50 anos pra frente. É um plano estratégico que o sistema de recursos hídricos adotou como uma perspectiva de futuro. Recentemente nós também fizemos um plano estratégico de água do setor de recursos hídricos trabalhando numa perspectiva de 30 anos em sintonia com o pacto das águas, pesquisando no plano estadual, nos planos de bacias hidrográficas. Pensar o que vamos fazer daqui a 50 anos eu diria que é uma grande preocupação. Pensar nas gerações futuras, em como fazer essa gestão, investimentos, como aprimorar os processos de gestão de recursos hídricos, como integrar com outros setores. Temos que ter uma ação direta com o setor de saneamento. Como podemos reduzir perdas. Como podemos ter uma política agrícola que possa utilizar tecnologias mais econômicas e culturas que se adaptem melhor à nossa realidade do semiárido usando menos água.
Técnicas que não se apeguem só aos reservatórios? Exato. Hoje nós temos uma Câmara de Água e Desenvolvimento, pensando nossas técnicas que utilizem menos água no setor produtivo. Temos uma câmara técnica só pensando nisso, temos os comitês de bacia que estão pensando nisso e temos também a questão do planejamento. Tanto que o Ceará parte na frente na questão de novas alternativas de água. Estamos num processo bem avançado de licitação para uma usina de dessalinização. Estamos bem avançados num projeto de reuso de água. Então, como melhorar o uso da água subterrânea? Como explorar melhor? Como integrar essas águas subterrâneas e superficiais? Estamos estudando todos os aquíferos do Ceará. Agora estamos estudando Jericoacoara, Iguatu, já estudamos todo o Apodi e a região do Araripe. Esses dados estão sendo monitorados. Pensar em novas alternativas e essa integração é algo para o futuro. Além, da transposição do São Francisco que vai ser muito importante do Estado.
Como a Cogerh se relaciona com as outras instituições do sistema hídrico? No Ceará temos um sistema de recursos hídricos, coordenado pela da Secretaria dos Recursos Hídricos e um conselho estadual de águas. A Cogerh está vinculada à SRH junto com
CRÉDITO: MATEUS DANTAS / O POVO
a Funceme e a Sohidra. Dentro desse sistema temos os comitês de bacia e as comissões gestoras de água. É um sistema bem complexo mas que funciona numa velocidade que nenhum estado consegue. O Conselho se reúne quase que mensalmente. O debate da água no Ceará é muito grande. A Cogerh acompanha todos os debates que ocorrem sobre bacias hidrográficas, não temos menos que 50 eventos debatendo água no Ceará por mês. Tem mês que chega a quase 100 eventos da sociedade, seja com a participação do comitê ou das comissões gestoras. O debate do uso da água faz parte do dia a dia das pessoas. Para além disso, mantemos boa interlocução com órgãos os federais.
Quais são as principais ações da Cogerh nesses 25 anos e quais os legados dela? O que se mantém e o que se desenha pra frente? A primeira coisa foi construir uma metodologia que levasse em consideração a participação da sociedade, dos usuários, dos poderes locais nos uso da água, que é a locação negociada de água. Essa é a grande experiência para o estado do Ceará, que outros estados já adotam. A outra é fazer o planejamento da gestão. O Estado evoluiu muito. O outro é a organização dos comitês de bacia, do conselho estadual, de cada comissão gestora. Essa relação mais transparente entre Estado e sociedade é fundamental para que você possa consolidar qualquer sistema institucional, e hoje nós temos uma rede de mais de mil instituições que trabalham de forma mais harmônica com o objetivo de melhorar o gerenciamento de recursos hídricos do Ceará. Isso não é algo trivial. E hoje temos um bom conhecimento do que temos de oferta de água no Ceará.
E quais são os desafios? Diria que nós precisamos avançar muito na gestão da demanda. Como podemos conhecer melhor os usos da água, como trabalhar essa questão nos diversos setores para que a gente possa orientar um uso mais racional e mais conservativo da água. Para que a gente possa trabalhar políticas de reuso, eficiência do uso da água. A outra é como se comunicar melhor com a sociedade e a educação para o uso da água no semiárido, com as crianças, com as escolas, com as organizações da sociedade. Uma pedagogia do uso da água no semiárido. Você vê muito nas áreas rurais as pessoas tendo um cuidado grande com a água, enquanto nas áreas urbanas você vê pessoas lavando calçadas, com práticas de desperdício no uso doméstico e em outras atividades também.