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Deserto e a Fuga do Mundo no Ascetismo Cristão
Fr+ Christian Kanne
Caros leitores, nas linhas seguintes tentarei explicar-vos sobre o deserto como escolha espiritual no cristianismo, a sua importância na perfeição do ser e os vestígios históricos que esta materialização do conceito de fuga mundi (“fuga do mundo” em latim).
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Para entender isso, é preciso explicar que a prática do ascetismo (do grego “askein”, que significa “exercitar”) era corriqueira no mundo antigo, principalmente na prática militar. Já entre os gregos era assimilado como um exercício de virtude, e em ambientes pagãos também era comum uma espécie de ascetismo, que incluía a abstinência sexual e alimentar como meio de atingir a apatia, que é a liberação total das emoções.
Tanto o termo como a prática encontraram terreno fértil no cristianismo, pois responderam a esta necessidade de imitar Cristo recolhida no Evangelho de São Marcos: “Então Jesus, olhando para ele, o amou e disse-lhe: Falta-te uma coisa: vai , vende tudo quanto tens, e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, segue-me, tomando a tua cruz”.
Em sua concepção cristã, o ascetismo supunha, entre outras coisas, a abstinência sexual e a renúncia aos bens materiais, bem como a prática do jejum, da oração, da pregação e das obras de caridade.
Nas primeiras comunidades cristãs, o ascetismo era comum e praticado principalmente na reclusão da casa da família. O devoto que desejasse observar esta prática de forma muito mais radical poderia decidir separar-se definitivamente de sua comunidade e família. Daí vem o termo “monge” (do grego “monachos”, “somente”), sendo utilizado para designar qualquer cristão devoto que decide viver sua experiência religiosa e espiritual na eschatia, ou seja, aquele espaço fora do limites da vida urbana ou civilizada.
Vida monástica
A maior fonte de informação sobre a ascese monástica cristã encontra-se principalmente na compilação de experiências vividas pelos peregrinos a estes lugares sagrados. Por exemplo, a História Lausíaca, dedicada ao camareiro de Teodósio II Lauso pelo monge Palladio; ou os Ditos dos pais do deserto, que foram traduzidos para várias línguas e onde são narradas a vida e os ensinamentos dos chamados pais do deserto.
As histórias recolhidas em quase todas estas obras irão descrever as vicissitudes do monge e o seu progresso espiritual, marcado pelo seu afastamento do meio urbano e civilizado após uma vida de luxo e conforto. Eles buscaram for- jar a virtude por meio da sobrevivência em um ambiente hostil, não apenas por causa da dureza de seu ambiente, mas também porque o deserto era o lar de deuses pagãos, agora transformados em entidades malignas.
Inicialmente, bastou testar a força da fé através da repressão destas tentações provocadas pelas memórias do seu passado e das comodidades perdidas neste ambiente hostil e solitário, que serão captadas no imaginário da Idade Média através de pinturas como Tentações de Santo Hilarion, de O. Tassaert (1857), ou Tentações de Santo Antônio, de J. Cock (1646).
Considera-se que o primeiro monaquismo cristão surgiu no Egito, tendo como fundador Santo Antônio Abade. Mas já seu biógrafo, Santo Atanásio Bispo de Alexandria, descreveu como Santo Antônio aprendeu com outros eremitas (do grego “eremos”, “deserto”), ou seja, aqueles monges que decidiram viver na eschatia, que no caso do Egito correspondia ao deserto.
Podemos ler nesta biografia como Santo Antônio Abad teria derrotado as forças do mal graças ao seu ascetismo - no sentido mais etimológico da palavra - com um treinamento rigoroso de suas necessidades corporais. O seu empenho nesta ascese anda de mãos dadas com o seu aperfeiçoamento espiritual e o seu afastamento da sociedade (a fuga mundi), que o leva às profundezas do deserto (os paneremos).
Desta forma, podemos ver que o deserto é o local onde esses devotos vão para purificar seus desejos e impulsos. Uma vez restringido, cria-se um desapego da necessidade e isso permite o avanço espiritual, identificando-se com a perfeição de Cristo.
Tipos de ascetas
É importante mencionar que esses eremitas não são apenas típicos do deserto egípcio. De fato, talvez a maior diversidade de práticas ascéticas se encontre no deserto da Síria. Podemos destacar diferentes grupos de ascetas:
• Estacionários, aqueles monges que praticavam a statio, a imobilização absoluta em pé.
Não falavam, não levantavam os olhos e não se deitavam para dormir, sendo comum entre eles amarrar-se a um poste ou a uma árvore para se apoiar na prática e manter a postura ereta.
• Dendrites (do grego “drendon”, “árvore”), ascetas que decidiram viver suas vidas nas árvores, com grande presença nos santos ortodoxos russos.
• Acemetas (do grego “akemetoi”), que são os que não dormem. Eram monges que viviam em comunidade e se revezavam na recitação de salmos e leituras da Bíblia.
• Hypetros, que se trancaram em recintos descobertos para enfrentar as intempéries.
• Estilitas, que viviam em plataformas localizadas em colunas altas. Sua figura principal era Simeão Estilita, que no final de sua vida estava em uma coluna de estilo que, segundo alguns autores, chegava a 21 metros.
Ao contrário do que se acredita, a prática do ascetismo fosse comum, razão pela qual se encontram registros arqueológicos de comunidades de ascetas vivendo próximas umas das outras para se ajudarem, criando outra forma de fuga mundial paralela: o cenobitismo (viver em comunidade em prol da oração e do ascetismo).
Pacomio é considerado o pai fundador deste movimento, sendo o primeiro mosteiro criado para a prática desta ascese numa comunidade próxima da cidade de Tabenna. Sua maior contribuição foi a criação da regra de vida que organiza o cotidiano desses monges.
O monge que saía vitorioso do combate contra os demônios (tentações) era legitimado como líder ou abad (pai), pois esse triunfo mostrava sua própria virtude e força de vontade, sendo este o efeito intrínseco da privação corporal praticada na eschatia
Retiro de iniciação
Assim, o deserto é identificado como um suporte na vida ascética, sendo o enclave onde a vida como tal terminava, produzindo essa falta que imitava a pobreza.
Para além do carácter incivilizado do deserto e da sua relação com a presença do mal, é interessante analisar que o percurso do anacoreta não responde a um modo geográfico real, mas sim a um percurso interior e existencial. A cartografia serviu neste caso para representar graficamente o progresso do monge e consequentemente não é o cenário que provoca a reação do eremita, mas sim os requisitos que lhe eram exigidos para mostrar a sua força espiritual.
Desta forma, a paisagem tornar-se-á um instrumento de iniciação dotado de um sentido religioso, onde a imagética deu o sentido de- moníaco, saindo o monge vitorioso desta luta graças à sua vontade face às tentações.
É importante notar que a luta incessante contra esses demônios é significada em dois dos sinais mais evidentes da queda da humanidade: a fome e o desejo sexual. Somente derrotando-os, o homem poderia retornar ao seu estado original, que correspondia à utopia paradisíaca representada no céu. No que diz respeito à fome, a fuga para um cenário como o deserto não apresentava maiores complicações, sobretudo devido ao enquadramento geográfico, tornando mais meritório o autocontrole e a resistência à tentação.
A maior prova que então o asceta do deserto tinha que enfrentar era trair sua própria humanidade, trocando sua condição de ser humano pela de animal, devido ao desespero pela restrição imposta. O abandono daquela rotina baseada na vigília, na oração e no jejum, embora rigorosa, lembrava-lhes que não eram animais, formando sua vontade e aperfeiçoando-os espiritualmente.
“ao contrário do que se acredita , a prática do ascetismo fosse comum , razão pela qual se encontram registros arqueológicos de comunidades de ascetas vivendo próximas umas das outras para se ajudarem , criando outra forma de fuga mundial paralela : o cenobitismo