Clรกudio Beling
MANUAL DE ORTOPEDIA PARA CONCURSOS VOLUME #1
AUTOR Cláudio Beling Graduação em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Residência em Ortopedia no Hospital Madre Teresa Especialização em Ortopedia Pediátrica no Hospital da Baleia Membro da Sociedade Brasileira de Ortopedia Pediátrica
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1. Classificação .............................................................................................................................. 2. Patologia ................................................................................................................................... 3. História natural ......................................................................................................................... 4. Tratamento ...............................................................................................................................
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PARALISIA CEREBRAL
PARALISIA CEREBRAL Cláudio Beling Gonçalves Soares
Define-se a paralisia cerebral como uma doença neuromuscular, fruto de evento não progressivo que acomete o sistema nervoso central. Por exemplo: uma criança sofre um trauma cranioencefálico antes dos 2 anos de idade. É um evento único que não se repete com o crescimento da criança. Contudo, a repercussão ortopédica é progressiva. Falaremos sobre isso na história natural da patologia. A paralisia cerebral é a doença neuromuscular mais frequente, acometendo entre 2 e 2,5 / 1000 nascidos vivos. A etiologia pode ser por evento pré-natal: doenças infecciosas e malformações congênitas; perinatais: hipóxia perinatal e pós-natais, como a infecção do sistema nervoso central e o trauma. Estudos recentes têm dado ênfase à etiologia pré-natal, à medida que são identificadas síndromes genéticas que levam à paralisia cerebral.
cinéticos. Também chamada de discinética. O distúrbio de movimento mais frequentemente observado em pacientes portadores de paralisia cerebral é a espasticidade. Ela decorre de lesões no nível piramidal ou corticoespinhal e cursa com aumento do tônus e espasticidade. Finalmente, temos a ataxia, decorrente de lesões cerebelares. Levam à perda de controle e coordenação. Outra classificação importante é a relacionada à topografia do acometimento. De forma simplificada, os tipos principais são hemiparéticos – acometimento de membros ipsilaterais, diparéticos – acometimento de ambos os membros inferiores e quadriparéticos – acometimento dos quatro membros.
Funcional – GMFCS - Nível I: Criança anda dentro e fora de casa. Sobe escadas sem limitações. Sem habilidades como correr e pular, mas com velocidade, equilíbrio e coordenação limitados. - Nível II: Criança anda dentro e fora de casa. Sobe escadas com apoio. Apresenta dificuldades para andar em superfícies acidentadas, inclinadas, em multidões ou espaços confinados. Capacidade mínima para correr e pular. - Nível III: Criança anda dentro e fora de casa, no plano, com auxílio de muletas. Pode subir escadas com apoio. Consegue dar propulsão à cadeira de rodas manualmente, tendo que usá-la para locomover grandes distâncias ou em terrenos acidentados. - Nível IV: Criança pode andar pequenas distâncias com um andador, fazendo a maior parte de sua locomoção na cadeira de rodas. Possui controle de cabeça. - Nível V: Não possui independência para qualquer habilidade. Não tem controle de cabeça.
1. CLASSIFICAÇÃO São várias as classificações para a paralisia cerebral, todas com igual importância. A primeira aborda o distúrbio do movimento. Ela pode ser flácida, atetoide, espástica e atáxica. A paralisia flácida normalmente acomete o nível espinomuscular, em patologias como a paralisia braquial obstétrica, a poliomielite, a seringomielia e os tumores do SNC. Na paralisia cerebral, este distúrbio do movimento normalmente ocorre no primeiro ano de vida do paciente, evoluindo para espasticidade, e em portadores de síndromes genéticas. Ela pode também ser atetoide quando a lesão ocorre no nível extrapiramidal. Cursa com aumento do tônus e movimentos hiper-
GMFCS Level I
GMFCS Level II
GMFCS Level III
GMFCS Level IV
GMFCS Level IV
Classificação de GMFCS e suas subdivisões com base em ilustrações
Paralisia Cerebral Espástica, Diparética, GMFCS II Portanto, a classificação completa para um paciente com paralisia cerebral, com distúrbio do movimento tipo espástico, com acometimento topográfico dos membros inferiores, que tem a habilidade para marcha sem aparatos de auxílio, com certa dificuldade em terrenos acidentados, é Paralisia Cerebral Espástica, Diparética, GMFCS II.
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PARALISIA CEREBRAL
2. PATOLOGIA Do ponto de vista motor, a paralisia cerebral funciona como uma lesão do neurônio motor superior. Ela leva a alterações fisiopatológicas estimuladoras e inibitórias. A ausência de inibição do SNC leva a estímulos positivos, são eles a espasticidade, a hiperreflexia, o clônus e a co-contração. Já a deficiência em conexões do SNC leva a efeitos negativos, que são a fraqueza, a fadiga, o desequilíbrio e os déficits sensoriais. Juntos, estes fatores levam à patologia musculoesquelética, produzindo gradativamente o encurtamento muscular, os defeitos ósseos, a instabilidade articular e a osteoartrose. CNS pathology
Loss of connection to LMN (and other pathways)
Loss of inhibition to LMN
Positive features of UMN syndrome
Negative features of UMN syndrome
- Weakness - Fatiguability - Poor balance - Sensory deficits
- Spasticity - Hyper-reflexia - Clonus - Co-contraction
Mechanical
Neural
Musculoskeletal pathology
Muscle shortening ↓ Bony torsion ↓ Joint instability ↓ Degenerative arthritis
Patologia da paralisia cerebral e sua consequente repercussão no tecido musculoesquelético
3. HISTÓRIA NATURAL A história natural da paralisia cerebral, especialmente em pacientes portadores de espasticidade, segue o padrão do gráfico. Durante o primeiro ano de vida, a paralisia é flácida, com pouco potencial para produzir deformidades. Após o segundo ano, com aumento do tônus, as contraturas dinâmicas começam a aparecer. Isso ocorre entre 1 a 4 anos de idade. Com o passar do tempo, as contraturas musculares começam a se desenvolver. Entre os 5 e 8 anos, essas deformidades se estabelecem. Após os 9 anos, inicia-se o período das alterações esqueléticas.
História natural da Paralisia Cerebral Espástica e a correção com a idade da criança ORTOPCURSO - 2017
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Isso guia, em linhas gerais, o tratamento ortopédico. No primeiro, a abordagem é de reabilitação e ortetização. Dos 2 aos 4 anos, é a época do tratamento da espasticidade, com uso da toxina botulínica. Entre 5 e 8 anos, é o período de realização dos alongamentos musculares. Após os 9 anos, geralmente são necessários procedimentos que englobam cirurgias ósseas.
4. TRATAMENTO O tratamento da paralisia cerebral é multidisciplinar, necessitando de abordagem médica – ortopédica e neuropediátrica – e de reabilitação – fisioterápica, fonoaudiológica e terapêutica ocupacional. Importante também as abordagens psicológica, de assistência social e de inclusão.
Sinapse em funcionamento em condições normais e após aplicação de toxina botulínica A espasticidade é o distúrbio do movimento presente em cerca de 80% das crianças portadoras de paralisia cerebral. É, ainda, o principal fator patológico tratado. O tratamento pode ser focal ou generalizado, temporário ou permanente. O tratamento é focal, quando se direciona a uma região específica, e generalizado, quando tem efeito sistêmico. Um importante agente, e provavelmente o mais utilizado para tratamento da espasticidade, é a toxina botulínica. Esta converte a paresia com hiperatividade em paresia com hipoatividade. Sua indicação ocorre em pacientes com contraturas dinâmicas, especialmente do tríceps sural. Sua ação é de bloqueio de liberação da acetilcolina na sinapse da junção neuromuscular. Seu efeito é local – no músculo em que foi infiltrada – e transitório – pois dura cerca de 3 meses. Outros métodos de controle da espasticidade são o uso do Baclofeno oral ou por bomba de infusão, que tem efeito generalizado e temporário, e a rizotomia dorsal seletiva, que consiste na secção de parte das raízes dorsais de L1 a S1 e tem efeito focal e permanente.
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PARALISIA CEREBRAL
Hemiparesia espática Classificação de Gage, Winters e Hicks
Classificação de Gage, Winters e Hicks para Paralisia Cerebral Hemiparética e o tratamento preferido para cada grupo O tratamento para pacientes portadores de Paralisia Cerebral Espástica Hemiparética é determinado pela classificação de Winters e Gage. Ela divide-os em 4 grupos, sendo eles: - No grupo I, observa-se o pé equino sem contratura muscular. O tratamento é feito pelo uso do tutor curto articulado, que pode ser associado à toxina botulínica; - No grupo II, ocorre o equino verdadeiro com encurtamento do tríceps sural. Para este, o tratamento consiste no alongamento cirúrgico do tríceps sural associado ao uso do tutor curto articulado. O alongamento do tríceps sural é feito na zona II, ou seja, no terço médio da panturrilha. Caso a deformidade seja em equino-varo, associa-se o alongamento cirúrgico do tibial posterior; - No grupo III, ocorre o “jump”, ou seja, a associação do equino ao flexo do joelho. O tratamento consiste no alongamento do tríceps sural e dos isquiotibiais mediais. Em casos nos quais o quadríceps está também encurtado, pode ser necessário realizar a transferência do reto femoral. Usa-se também o tutor curto articulado; - No grupo IV, observa-se também o flexo do quadril. Portanto, associamos o alongamento cirúrgico do psoas, que é realizado na pelve. A órtese utilizada é o tutor curto rígido ou de reação ao solo.
Diparesia espástica Classificação de Rodda e Graham
Classificação de Rodda e Graham para Paralisia Cerebral Diparética e o tratamento adequado para cada grupo ORTOPCURSO - 2017
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Já o tratamento de pacientes portadores de Paralisia Cerebral Espástica Diparética é definido pela classificação de Rodda e Graham. Esta também é dividida em 4 grupos distintos: - Grupo I: Equino verdadeiro. O tratamento é realizado pelo alongamento do tríceps sural na zona II associado ao uso do tutor curto articulado. Deve-se avaliar a necessidade do alongamento concomitante do tibial posterior; - Grupo II: “Jump”. Além da contratura do tríceps sural, avaliar concomitância de encurtamentos dos isquiotibiais mediais, reto femoral e psoas. Caso ocorra, devem ser alongados em procedimento único. Usa-se também o tutor curto articulado; - Grupo III: Equino aparente. A criança não tem encurtamento do tríceps sural, e o equino aparente é produzido pelos encurtamentos dos isquiotibiais e psoas. O tríceps não deve ser alongado cirurgicamente, ficando o tratamento direcionado aos músculos que apresentam encurtamento. Usamos ainda o tutor curto rígido; - Grupo IV: Crouch. Este tipo de marcha em agachado é produzido pelo alongamento cirúrgico equivocado do tríceps sural em um paciente do grupo III. O tratamento consiste no alongamento dos grupos musculares encurtados, em especial os isquiotibiais mediais e o psoas, associado ao uso de órtese de reação ao solo.
Deformidades rotacionais Outro ponto importante a ser avaliado em pacientes com paralisia cerebral são as deformidades rotacionais dos membros inferiores. Normalmente são femoral em rotação interna e tibial em rotação externa. Estas deformidades são de especial importância em pacientes deambuladores, principalmente hemiparéticos e diparéticos. Elas são corrigidas com osteotomias derrotatórias e são, preferencialmente, realizadas em procedimento único simultâneo.
Quadril A abordagem ortopédica da articulação do quadril consiste, principalmente, no tratamento de deformidades em flexo-adução e da instabilidade. A deformidade em flexo-adução é a mais frequente em pacientes portadores de Paralisia Cerebral Espástica, que acomete a articulação. Ela decorre de encurtamentos de adutores e de ílio-psoas. O tratamento cirúrgico é realizado pelo alongamento dos adutores e do psoas. Em pacientes deambuladores, o alongamento do psoas é feito na pelve, na altura do rebordo acetabular.
lizada pela avaliação clínica semestral e radiológica anual de quadris de crianças portadoras de paralisia cerebral. O principal teste clínico é o de Phelps, que consiste na medida da adbução de quadris em flexão e extensão. Aberturas menores que 45º são sugestivas de instabilidade. A instabilidade é medida radiograficamente. Dois parâmetros são indicativos de sua presença: o índice de Reimers e o índice acetabular. Para determinação do percentual de Reimers, usamos a linha de Hilgenheiner e medimos o percentual da cabeça femoral, que está fora do acetábulo, como exemplificado na figura da esquerda. Para o exemplo, o percentual de Reimers é de 25. Ou seja: A x 100 / B. O diagnóstico de instabilidade é firmado quando este valor supera os 40%. Outra medida importante é o índice acetabular. Ele avalia a insuficiência acetabular. O tratamento é feito em 3 fases distintas: - Tratamento preventivo: que consiste na avaliação clínica e alongamentos cirúrgicos de pacientes com contraturas em flexo-adução e percentual de Reimers entre 40 e 60; - Tratamento reconstrutivo: que consiste no alongamento cirúrgico da musculatura contraturada e osteotomia femoral de varização e derrotação. É realizado para pacientes com percentual de Reimers > 60. Pacientes com índice acetabular > 30 devem ser submetidos à osteotomia pélvica tipo Dega; - Tratamento paliativo: que consiste em artroplastia de ressecção ou osteotomias de valgização. É realizado em pacientes com luxação paralítica inveterada do quadril, não passíveis de reconstrução, pois apresentam cabeça femoral deformada.
Joelho Na articulação do joelho, a principal deformidade é a flexão. Ela decorre de encurtamento de isquiotibiais. O seu tratamento cirúrgico consiste no alongamento de isquiotibiais mediais. Mesmo que auxilie no encurtamento, o alongamento do bíceps femoral deve ser evitado, pois pode interferir na habilidade da marcha. Alguns pacientes podem ter associado ao encurtamento dos isquiotibiais, o encurtamento do reto femoral. Este é identificado pelo teste de Ely. Quando necessário, fazemos a transferência do reto femoral em sua inserção patelar para a pata de ganso. Quando a co-contratura de reto femoral e isquiotibiais não é identificada, o resultado pode ser a marcha em stiff Knee, com joelho em extensão.
Tornozelo A principal deformidade do tornozelo é o equino. Pode associar-se ao varo ou valgo. O tratamento cirúrgico, quando necessário, é direcionado ao alongamento do tríceps sural. Este é realizado na zona II, ou seja, no terço médio da panturrilha. Nos casos em equino-varo, associamos à abordagem o alongamento do tibial posterior. As deformidades em valgo são frequentemente compensatórias de contraturas do tríceps não tratadas. A abordagem é realizada pelo alongamento do tríceps e ortetização.
Escoliose paralítica
Exemplo de quadril de paciente portador de Paralisia Cerebral. Vemos, à esquerda, como calculamos o percentual de Reimers e, à direita, o índice acetabular O controle da instabilidade do quadril é ponto fundamental na abordagem do quadil paralítico. Normalmente, decorre de encurtamentos da musculatura adutora, associado a encurtamento do ílio-psoas. O primeiro passo, e o mais importante, é a prevenção. Esta é rea10
A escoliose é a principal deformidade da coluna em pacientes com Paralisia Cerebral. A sua abordagem depende fundamentalmente de sua flexibilidade. Curvas flexíveis, independentemente de sua graduação, devem ser acompanhadas, não tendo indicação cirúrgica. Curvas rígidas menores que 20º, medidas pelo método de Cobb, devem ser acompanhadas radiograficamente para avaliar progressão da deformidade. Curvas rígidas maiores que 20º e menores que 40º podem ser ortetizadas. Curvas rígidas maiores que 40º, medidas pelo método de Cobb, devem ser tratadas cirurgicamente com instrumentação por parafusos pediculares.
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PARALISIA CEREBRAL
Membros superiores As principais deformidades dos membros superiores na paralisia cerebral são flexo de cotovelo e punho, desvio ulnar do punho, pronação do antebraço e polegar em adução. A necessidade cirúrgica varia muito em razão da função do membro superior, e ocorre principalmente em pacientes hemiparéticos. Normalmente, a indicação é de alongamentos de grupos musculares, que encontram-se encurtados. Uma exceção é a consagrada transposição do Flexor Ulnar de Carpo para Extensor Radial do Carpo.
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