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Futebol e CiĂŞncias Humanas


Conselho Editorial Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Antônio Carlos Giuliani Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna Prof. Dr. Carlos Bauer Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Eraldo Leme Batista Prof. Dr. Fábio Régio Bento Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa

Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Profa. Dra. Magali Rosa de Sant’Anna Prof. Dr. Marco Morel Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus Profa. Dra. Thelma Lessa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

©2017 Igor Savenhago; Wolfgang Pistori Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor.

On9 Onze: Futebol e Ciências Humanas/Igor Savenhago; Wolfgang Pistori (orgs.). Jundiaí, Paco Editorial: 2017. 288 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-462-0544-8 1. Esportes 2. Lazer 3. Futebol 4. Ciências Humanas. I. Savenhago, Igor II. Pistori, Wolfgang. CDD: 300 Índices para catálogo sistemático: Educacão Física / Esportes Esportes profissionais Futebol

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Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 contato@editorialpaco.com.br


Sumário Apresentação, 5 Prefácio, 9

Capítulo 1, 11 Futebol, História & Sociedade De vira-latas a gênios. Ou: como o futebol influencia a autopercepção de um povo? Capítulo 2, 29 Futebol & Trabalho Sob a sombra de chaminés Capítulo 3, 57 Futebol & Política Paixão, futebol e ditadura: debates políticos sobre as Copas do Mundo de 1970 no Brasil e 1978 na Argentina Capítulo 4, 93 Futebol & Gestão Pública Megaeventos esportivos: características da Copa do Mundo de Futebol Capítulo 5, 119 Futebol & Comunicação Futebol na TV: evolução tecnológica e linguagem de espetáculo Capítulo 6, 139 Futebol & Arte Futebol, música e literatura


Capítulo 7, 149 Futebol, Lazer & Cultura O bar, o estádio e o clube Capítulo 8, 163 Futebol & Nacionalidade Construção de uma identidade étnica ao redor de uma sociedade esportiva: o Palestra Itália-Palmeiras e a italianidade Capítulo 9, 199 Futebol & Geografia Geografia e futebol na identificação de polarizações urbanas: um estudo a partir de Barbacena-MG e das predileções clubísticas Capítulo 10, 219 Futebol & Psicologia Psicologia do Esporte: Considerações acerca das intervenções do profissional psicólogo junto às categorias de base do futebol Capítulo 11, 239 Futebol & Direito Meio ambiente laboral futebolístico: tutela ambiental do atleta desportivo Referências, 255 Sobre os autores,

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Apresentação Além do gol Enquanto a Seleção Brasileira de Futebol saía de campo humilhada após perder por 7 a 1 da Alemanha, no dia 8 de julho de 2014, na internet não havia outro assunto mais popular. Nas ruas, muito menos. Era um clima de vergonha estampado no rosto, mesmo de quem dizia não “ligar” para futebol. E crises – a história nos mostra – servem, na maioria das vezes, para acelerar algo em estado inerte. Pode parecer óbvio, mas em situações assim não há nada mais humano do que pensar em soluções ou alternativas. Olhar para o adversário e para as virtudes dele pode ser um jeito de começar. Mas é possível encontrar outras fórmulas para transformar o futebol em algo tão grande quanto ele já é, só que extrapolando as quatro linhas. Uma delas seria analisar e buscar entender a relação tão íntima e muitas vezes tão ignorada entre o esporte mais popular do mundo e as Ciências Humanas. Este livro é, porém, mais do que uma discussão de relacionamento. É ciência aplicada, para estudiosos e curiosos, sobre como o futebol interfere em diversos aspectos da sociedade. E como essa relação molda mudanças tão significativas que, de tão presentes no nosso cotidiano, são invisíveis à nossa compreensão. Fazemos parte de um grupo que acredita na soma entre teoria e prática. E, para fazer essa conta, que não se trata de um simples cálculo matemático, montamos uma seleção de pesquisadores que aceitaram um desafio: contribuir para incluir o futebol num esquema tático que visa torná-lo um objeto de estudo tão popular quanto sua prática. Seria o futebol um simples jogo ou um definidor de ações econômicas, políticas e sociais? Tentamos, aqui, aprofundar respostas rasas e abrir novos caminhos para uma discussão construtiva. História, Trabalho, Política, Gestão Pública, Comunicação, Arte, 5


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Lazer, Cultura, Nacionalidade, Identidade, Geografia, Psicologia e Direito são temas aprofundados neste livro. E, como um atacante tentando usar a habilidade para chegar ao gol, cada autor usa de seu conhecimento para driblar a marcação cerrada que ainda existe na academia em relação ao futebol. São 11 artigos, de especialistas do Brasil e do exterior, que entram em campo de mãos dadas. Um número que não é aleatório. Forma um time. Do goleiro ao centroavante, buscamos entender, por exemplo, como o futebol influencia a autopercepção de um povo. Uma missão proposta por Gerson Wasen Fraga, que passeia pelas raízes do esporte no país e por momentos decisivos deste para a formação de uma identidade brasileira. Por outra perspectiva, Miguel Enrique Stédile discute como o futebol profissionalizado e altamente mercantilizado sepultou times surgidos nas fábricas. Já Ernesto Sobocinski Marczal se concentra no futebol como instrumento político. Ele traça panoramas menos explorados da relação entre paixão, futebol e ditadura, construindo um debate sobre o impacto da Copa do Mundo de 1970 no Brasil e a de 1978 na Argentina. Tassiana Hille e Letícia Peret Antunes também olham para a Copa. Elas armam, com maestria típica de um craque, uma discussão sobre infraestrutura de megaeventos esportivos, que, por sua vez, se popularizaram rapidamente, muito pelo seu potencial de audiência e lucro pelos meios de comunicação. A televisão tem grande responsabilidade nos rumos que o esporte tomou a partir da segunda metade do século XX. Igor Savenhago explica como o futebol precisou recuar, como uma equipe mais fraca lutando pelo resultado, frente aos interesses dos grandes empresários de mídia. Apesar de ter virado negócio, o futebol guarda uma relação artística, partindo da noção de que o esporte também é uma forma de arte. Alguém duvidaria ao presenciar um toque de letra ou uma agremiação que joga por música? Outro exemplo disso é o lance protagonizado por Wolfgang Pistori para mostrar como o futebol está inserido na literatura e na música brasileiras. E se é arte, pode, também, ser sinônimo de lazer. O bar, um dos componentes fincados na cultura futebolística nacional, não poderia ter sua entrada barrada. Como torcem seus frequentadores? 6


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Curiosamente, as respostas para esta e outras questões vão bem além das mesas nas quais se aprecia um bom petisco com os olhos grudados na TV. Podem até ter saído delas, mas foram parar na pesquisa de Milena Avelaneda Origuela e Cinthia Lopes da Silva. Até a disposição populacional de um país ou uma região pode ser influenciada pelo futebol. Não é simples coincidência que o principal local de lazer na periferia seja, geralmente, um campo de futebol. Helcio Ribeiro Campos foi identificar polarizações urbanas em Minas Gerais e o que os clubes têm a ver com isso. Mas antes do encontro com os mineiros, uma viagem no tempo na companhia de imigrantes italianos. Quando embarcaram rumo ao Brasil, eles trouxeram elementos que ajudaram na construção de uma identidade étnica ao redor de uma sociedade esportiva. Assunto para o pesquisador italiano Davide Barile. Todas essas análises partem da prática, mas contam com visão teórica treinada para observar de ângulos únicos. É mais ou menos o que um jovem jogador precisa para construir uma carreira sólida. Ainda mais num cenário que demanda profissionalização prematura. Nesse processo, um agente é fundamental: o psicólogo. A importância de uma intervenção adequada já nas categorias de base é o ponto de partida de Maristela Júlia Fernandes, Eduarda Christiny Ribeiro de Castilho Costa e Isabella Assumpção. A relação entre atleta e prática esportiva é mediada, ainda, por leis trabalhistas e pelo estabelecimento de um ambiente laboral. Guilherme Domingos de Luca e Antonio Carlos Ferreira do Amaral avaliam como os descumprimentos de normas básicas podem afetar a vida dos jogadores e como os contratos com os clubes deveriam levar em conta condições mais saudáveis. É provável que sejam necessários mais que 90 minutos para percorrer todo este livro. Uma sugestão é saborear seu conteúdo rodada a rodada, como num campeonato de pontos corridos. Ou, se preferir, sentir a emoção de cada capítulo como se fosse uma disputa mata-mata. Bom jogo e boa leitura! Os organizadores

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Prefácio O antropólogo Roberto DaMatta capturou de Didi, o eterno Príncipe Etíope, uma frase que ajuda a decifrar a sociedade brasileira. “Não sou eu que corro, a bola é que corre”. Didi, no alto de sua sabedoria e elegância, referia-se ao futebol, mas sem querer foi além e acertou em cheio uma filosofia para a vida. “A bola corre mais que os homens”, batizou assim DaMatta seu grande livro que reúne crônicas relacionadas ao esporte. O futebol está tão intimamente ligado ao Brasil que pode ser usado como fio condutor para relembrar e compreender os grandes e pequenos momentos de sua história. Ou o futebol não é um simulacro da sociedade brasileira? Afinal, nossa miscigenação – o caldo étnico, cultural e social que faz o brasil, Brasil – também foi fundamental para fazer do futebol brasileiro uma arte à parte, singular, rodeada de tantas particularidades, beleza e nuances que nos levou das latas viradas para as páginas mundiais. Se os ingleses não tivessem inventado o futebol, um brasileiro provavelmente trataria de fazê-lo, cedo ou tarde. Uma partida de futebol é uma arena de paixões, de vilões e heróis imediatos, sentimentos mistos e confusos que vão da tragédia à comédia com a facilidade de um gol aberto. É uma trégua para a igualdade social e racial, um intervalo de 90 minutos em que ricos e pobres brasileiros convivem e se identificam mutuamente. A capacidade de mobilização do futebol brasileiro, porém, é um código ainda a ser decifrado. Desde a chegada de Charles Miller a Santos, em 1894, com duas bolas de couro na bagagem, o jogo transcende seu papel ao alcançar as mais refinadas discussões políticas, psicológicas, éticas e sociais, e ajudar a moldar e transformar a sociedade. Qual outra atração pode reunir, dentro e fora dos 90 minutos, relações tão íntimas com o direito, a geografia, a política, a gestão, a cultura, o lazer, o patriotismo, sem excluir a graça, o charme e a paixão? 9


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Sêneca dizia que um homem sem paixões está tão perto da estupidez que só lhe falta abrir a boca para cair nela. O estádio é um caldeirão onde são confiadas essas paixões. É onde, mesmo que por um instante, o ódio ao adversário pode naturalmente se sobrepor ao amor pelo próprio time sem que haja desvio de caráter ou mesmo julgamentos. O futebol aceita toda e qualquer discussão, desde que haja um pouco de paixão. Lucas Reis, jornalista Foi repórter da Folha de S. Paulo por oito anos Coordena o Departamento de Comunicação da Federação Paulista de Futebol

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capítulo 1 FUTEBOL, HISTÓRIA & SOCIEDADE De vira-latas a gênios. Ou: como o futebol influencia a autopercepção de um povo? Gerson Wasen Fraga

Em 31 de maio de 1958, a Seleção Brasileira de Futebol encontrava-se em solo italiano, fazendo os últimos preparativos para o VI Campeonato Mundial, que começaria dentro de poucos dias, na Suécia. A equipe, a cargo do técnico Vicente Feola, deveria enfrentar, nas partidas válidas pela primeira fase da competição, três adversários particularmente respeitáveis: os austríacos, tidos como donos de um estilo pragmático, muito próximo ao alemão; os ingleses, sempre reverenciados como “os inventores do futebol”; e os soviéticos, especialmente conhecidos naquele momento por haverem desenvolvido um esquema “científico” de jogo. A fase de preparação em solo italiano incluía duas partidas amistosas, respectivamente contra as equipes da Fiorentina (que contava com seis titulares da Azzurra) e da Internazionale de Milão. Sem dificuldades, os brasileiros venceram estes dois encontros pelo placar de 4 x 0. Contra a equipe de Florença, dois dias antes, o então jovem ponteiro-direito Garrincha fez um gol tido como genial: após driblar três zagueiros e o goleiro adversário, e tendo o arco vazio a sua frente, esperou um dos defensores voltar para enganá-lo com uma ginga de corpo, fazendo com que o pobre zagueiro tivesse de se segurar na trave para não se estatelar no chão. Não contente, aplicou ainda uma janelinha no goleiro que, desesperado, voltava para o lance e, 11


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somente então, com o arco novamente vazio, caminhou com a bola em direção às redes. Este seria o último tento daquela partida (Castro, 2002; Galeano, 1995). Nesse mesmo 31 de maio, o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues publicava, na revista Manchete Esportiva, sua última crônica antes da estreia brasileira. Possivelmente sem pretender tal feito, Nelson cunharia, com aquele texto, uma expressão que integraria a partir de então o imaginário brasileiro: o “complexo de vira-latas”. O próprio autor explicava o sentido da expressão: Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. (Rodrigues, 1994, p. 52)

Assim, seríamos um povo envergonhado de nós mesmos, exalando falta de fé e de autoconfiança a ponto de nos julgarmos incapazes de ombrear em condição de igualdade com outros povos – especialmente os tidos como “desenvolvidos” – em qualquer campo, fosse este esportivo ou não. No entanto, o próprio Nelson Rodrigues apontava, ao fim de seu texto, a solução de tal problema: “o brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia” (Rodrigues, 1994, p. 52). Com efeito, a sincronia entre o lance genial de Garrincha e a criação do conceito de nosso viralatismo por Nelson Rodrigues talvez seja um mero acaso. Mas tal acaso nos leva a pensar se este não seria um período especial dentro de nossa História, marcado por uma espécie de fronteira entre duas formas de entender o Brasil. De um lado, uma perspectiva cujas raízes mais profundas remontam ao período colonial, calcada no desejo de modernidade e civilização estabelecido sobre modelos estrangeiros – notadamente dos países tidos como “mais desenvolvidos da Europa” – e que via em nossa característica de país mestiço um problema intransponível no rumo à condição desejada. De outro, a ideia de que nossa brasilidade poderia ser conjugada com os valores percebidos como 12


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