Revista Palavra&arte - Edição #05 [Março-Abril/2017]

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Revista cultural - 5ª Edição - Março/Abril 2017

Da lente ao retrato, um olhar sob a

FOTOGRAFIA ANGOLANA Encontro de gerações da poesia feminina pag.09

Estilo em literatura - a busca do escritor pela afirmação da liberdadeartística pag.16

Os muros invisíveis no cenário da dança pag.18


Sumario 03|Editorial: A arte subsiste à crise 04|Frases 05|Cronicando: Memórias das mãos sujas 06|Posfácio: Um transferidor medindo os imensuráveis ângulos duma casa ou uma tentativa psicocrítica em os Ângulos da Casa de Hirondina Joshua 9| Poesia: Poesia no Feminino 14|Proposta Literária: Niketche - Uma história de poligamia 16 | Faça com Estilo: O Estilo em Literatura 18| Entredanças: Os muros invisíveis no cenário da dança 20| Perfil Artístico: Hélder Stefáne DOSSIER: Da lente ao retrato, um olhar a fotografia Angolana 24|Click: Fotografia, a arte de congelar vida em forma de luz 28| Ensaio: Um flash à fotografia Angolana 32| Arte pela Arte: O nu, a fotrafia e arte - entrevista com KKralos Scesar, sobre o nu artístico 40|Expo: 10 fotografias, 10 fotógrafos do nosso tempo 46|Portfólio: Olhar a guerra, Selma Fernandes 51| Entidades: Museu Nacional de Antropologia 54| Conto: Boa sorte, Dieji!

F i c h a Té c n i c a COORDENAÇÃO GERAL: Oliveira Prazeres COORDENAÇÃO EDITORIAL: Luefe Khayari DESIGN: Luamba Muinga REDAÇÃO: Adilson Leão Aneth Silva Ciíntia Gonçalves Cláudia Cassoma Cláudio Kimahenda Hélder Simbad Isis Hembe Leopoldina Fekayamãle Luamba Muinga Magno Esmeraldo Teresa Silva e Silva CARICATURA: Elias Jamba Sanjelembi REVISÃO: Mário Henriques COLABORAÇÃO: Lwsinha MC Pedro Fonseca O conteúdo aqui publicado pertence aos seus respectivos autores e não pode ser reproduzido sem prévia autorização

site: www.palavraearte.net email: palavraearteangola@gmail.com 2 | Palavra&Arte


E D I T O R I A L

Arte, uma expressão de luta Um estudo do Fundo das Nações Unidas para infância revela que “cerca de 120 milhões de meninas no mundo, quase uma em cada dez, foi estuprada ou vítima de abusos sexuais antes de completar 20 anos” (Jornal de Angola, 2014). Em 2016, o site de notícias Voa Português diz que o estudo realizado apenas em Luanda indicava um total de 134 estupros em dois meses. Quem escuta o programa radiofónico do Paulo Miranda, em Luanda, sabe que o maior número dos relatos é de familiares de meninas vítimas de abusos sexuais e casos de violência contra mulher. Infelizmente, numa sociedade como a nossa, tipicamente machista, tais números tendem a tomar proporções maiores. Numa época em que se fala mais frequentemente sobre igualdade de direitos, as mulheres vêem no mês de março mais uma oportunidade para diminuir estes números, para combater o assédio, a violência doméstica, a invasão de privacidade e o desrespeito à mulher; vêem a oportunidade de empoderar vítimas diárias de discriminação e desvalorização apenas pelo facto de serem mulheres. Assim como Clara Zetkin – socialista que apresentou, no 2º Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, uma proposta de se constituir um dia internacional para as mulheres –, em 1911. Avançamos em muitos aspectos, quanto a alguns direitos, a educação, as mulheres tornaram-se altamente escolarizadas e hoje muitas assumem posições de destaque em corporações. Mas a violência não avançou, e boa parte dela acontece dentro do seio familiar. Nesta edição, as mulheres lideram ao abordarem assuntos que as representam e não só. Em “Memórias das mãos sujas”, de Lwsinha MC, apresentamos uma crónica que nos transporta para a realidade de muitas famílias, nela levamos a reconhecer que uma acção rápida de intervir, ao observar-se o indício de uma violação, pode levar-nos a salvar vidas; em “Boa sorte, Dieji!”, de Cláudia Cassoma, contamos a luta de uma mulher que, pela fuga de um lar opressor, busca liberdade e felicidade; na proposta de literatura, de Leopoldina Fekayamãle, temos “Niketche: Uma história

de poligamia”, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, na qual abrimos os horizontes para a literatura feminina, não angolana, e mostrando, assim, os “reflexos das sociedades que legitimam a subalternação das mulheres aos homens, prejudicando-as e desumanizando-as”.

Nessa edição, o posfácio, de Hélder Simbad, ultrapassa as nossas fronteiras e nele apresentamos “Os Ângulos da Casa” – da, também, moçambicana Hirondina Joshua –, mostrando que “a ‘casa’ representa o seu espaço interior, podendo apresentar-se como um útero, o símbolo feminino”; com o “O estilo em literatura”, da Profª Teresa Silva e Silva, especificamos como se desenvolve a maneira particular de cada artista exprimir os pensamentos a partir da linguagem falada ou escrita. À fotografia angolana, por sua vez, damos um destaque peculiar, com artigos que sugerem um mergulho na realidade desta arte dentro das nossas geografias, assim propomos “Um flash à fotografia angolana”, ensaio de Cíntia Gonçalves; “O nu, a fotografia e a arte”, uma entrevista a Kkarlos Scesar; e “Fotografia, a arte de congelar vida em forma de luz”, de Bruno Fonseca; e, não menos importante, em Portfólio, “A mulher, sob Rural”, uma exposição, de Selma Fernandes, na qual representamos uma série de fotos que emanam a força e a beleza do feminino angolano no seu quotidiano.

Como P&A, sentimos um forte desejo de encontrar formas de engrandecer o país, relatando artisticamente as regressões e avanços para que encontremos o caminho a seguir. Precisamos estar alertas e apoiar esse processo de implantação de uma cultura que defende os direitos da mulher dentro de uma sociedade. Elas são fortes, capazes e determinadas. Vamos ouvir suas vozes, abraçar as suas causas, respirar as suas artes, deixar a sua sabedoria envolver-nos como suor impregnado em nossos corpos. Deixemo-las crescer livres e plenamente, contribuindo com vigor sobre formas diferentes de fazer cultura.

Aneth Silva |

Kj.priscilla@gmail.com Março/Abril | 3


Gastei muitos anos perseguindo a excelência, porque é nisso que se pauta a música clássica...Agora eu me dedico à liberdade, o que é muito mais importante Nina Simone (pianista, cantora, compositora e activista pelos direitos civis dos negros norte-americanos)

Temos pessoas com poder político e financeiro decisivo que têm muito pouca sensibilidade para a arte. E muitas vezes, preferem gastar dinheiro em coisas sem utilidade ou mais imediatas do que neste género de apostas. Infelizmente, não sou a única pessoa a ter este discurso. O nosso governo deveria começar a ter em conta que a nossa inteligência começa a ser roubada. Roubada mesmo no sentido das pessoas começarem a encontrar meios para subsistir e trabalhar no exterior do país. MARIA JOÃO GANGA (CINEASTA) Entrevista ao Rede Angola, 07.11.2016

Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. Chimamanda Ngozi Adichie (Escritora)

Eu venho de uma geração que ainda viveu a colonização, e, naquele tempo, as pessoas queriam ser o mais europeias possível. A nossa cultura não era valorizada, mas eu absorvi dos mais velhos. Era mal interpretada, porque pensavam que era nigeriana, senegalesa ou zairense, e o meu nome também deixava alguma margem para dúvidas, pois Aminata não é um nome muito comum cá. Mas persisti e, à minha maneira, mostrei que nós, angolanas, também podemos conservar o que é nosso A M I N ATA G O U B E L – M Ã E A F R I C A ( J O R N A L I S TA E A C T R I Z ) 4 | Palavra&Arte


CRONICANDO

Por: Lwsinha MC

Memórias das Mãos Sujas «Fui ensinada pela minha mãe a valorizar a limpeza de uma casa. Mostrou-me o quanto se associava à nossa higiene pessoal. Mesmo no chimbeco do Marçal que ela construiu para mim e os meus quatro irmãos, a higiene e ordem eram essenciais. Minha mãe trabalhava como quínguila durante o dia, deambulando pelas esquinas de Luanda. Dizia muitas vezes que só entre as nossas quatro paredes ela tinha paz. Mas sempre tememos que, em qualquer instante, ela viesse a ser roubada da alegria com que levava o seu dia. Conseguia ludibriar os fiscais com fintas pelos vários cantos da cidade. Era uma especialista em ludibriar, e coisas como essa nos ensinou desde cedo. Os meus tios visitavam-nos quando ela estivesse a trabalhar para verificarem se estava tudo bem connosco. Sentavam-se. Dormiam. Um deles cozinhava, fazia-me companhia enquanto eu estivesse a acabar de arrumar aquela parte da casa. Certo dia, ele puxou uma cadeira e chamou-me dizendo para que se sentasse ao colo dele. Sentei-me sem pensar duas vezes. Afinal, é meu tio. Repentinamente, senti a mão dele entre as minhas nádegas e dedos a penetrarem na minha vagina. Quando menos esperava, a outra foi-me aos seios. Não soube reagir senão olhar-lhe nos olhos. Lembro-me de sentir o meu corpo estar tenso, primeiro. Mas nessa fracção de segundos, consegui saltar daí. Desde esse dia, nunca mais aceitei ficar no mesmo sítio com ele caso estivesse sozinha. Ele pediu-me para não contar a ninguém. Não o fiz. Sabia que ninguém acreditaria em mim. Mas aquele dia ficou registado na minha mente, no meu corpo de 10 anos. Desde então, a limpeza passou a ser um martírio para mim. Custava-me fazer a minha parte especialmente quando tivéssemos companhia. Desaseis anos, cinco meses e duas semana mais tarde, numa festa de família, notei o meu tio Gioseto, o mesmo que me tocou ao sentar-me no colo dele, chamar a minha filha. Logo após a minha Gioleni sentar-se ao colo dele, o meu corpo voltou a mesma tensão de há anos. Vi a saia dela a voar, e ele

a expor a mão dele na tal posição da qual eu bem conhecia a intenção. Corri até eles, esbofeteei-o com a mão esquerda e arranquei a Gioleni que já tinha na cara a mesma estampa de susto que bem reconheci. Carreguei-a ao colo e sai em direcção à porta. Fui directo à polícia. Há nove meses daí, não pude acreditar no veredicto do juiz ao terminar a leitura do julgamento do meu tio. Quisera sentir-me feliz, mas a tristeza lembrava-me da nossa vulnerabilidade. Abraçada à minha carteira e com o rosto lavado de lágrimas, fiquei sentada na escadaria do tribunal. A minha mãe e o resto da família fumegavam enfuriados pela minha posição. O meu tio é o irmão mais novo da minha mãe, o cassule que ela muito queria, muito quer ainda, e a quem sempre abriu as portas de casa, e que acabara de ser sentenciado acusado de envolver-se em actos indecentes com a minha filha de sete anos. Tudo por causa do meu testemunho. Por causa da minha decisão rápida de parar o seu acto no momento e fazer a devida queixa as autoridades. Apesar do resultado, sei e reconheço que nem todos os casos são assim, principalmente na nossa sociedade. Casos como o acima referido não são singulares e tampouco diferentes do que estamos acostumados a ouvir. Casos semelhantes acontecem diariamente entre as quatro paredes dos vários cantos do país. Muitas são as meninas assediadas por homens e outras crianças e jovens; assim como meninos são. Ouvimos alguns casos nas redes sociais e/ou televisão/rádio, mas, na sua maioria, incomensuráveis casos continuam no silêncio. Uns porque as vítimas desconhecem os seus direitos e outros por medo de qualquer que sejam as ameaças que recebem. Há, entretanto, uma percentagem que são vítimas do oportunismo ou permissismo e necessidade perceptiva das vítimas e das suas famílias. Infelizmente, a sociedade angolana continua, na maioria dos casos, a aplaudir estes perpetradores, dando-lhes nomes que são glamourizados e usados na retórica até de muitos adultos que se dizem condenar os actos desses. Março/Abril | 5


P O S FÁC I O

Um transferidor medindo os imensuráveis ângulos duma casa ou uma tentativa de psicocrítica em Os Ângulos Da Casa de Hirondina Joshua Texto: Hélder Simbad | hssandre32@gmail.com

N

ão se pode negar o papel activo do inconsciente durante a produção duma obra de arte. Nas palavras de MARINI (1997), o inconsciente está em actividade em toda a produção cultural, mesmo na mais planejada. A imprescindibilidade do seu papel, no âmbito da concepção artística, é reforçada aqui com o pensamento de VALERY (1957), segundo o qual, o trabalho do artista, mesmo em sua parte inteiramente mental, não pode reduzir-se a operações guiadas pela razão; no entanto, «o artista não pode absolutamente desligar-se do sentimento do arbitrário» (idem), como que se o inconsciente e o consciente coexistissem no mesmo instante, o concreto e o abstracto, o sonho e a realidade, no mesmo espaço psíquico, na mesma «Casa», obstando-se. BRETON (1924), no seu manifesto surrealista, afirma acreditar na resolução futura destes pares antagónicos, resumindo-os em «sonho e realidade», dois estados, na sua visão, contraditórios apenas por aparência. Nesta sede, lê-se, no manifesto Litteragris, o seguinte: «no processo de criação, assiste-se a uma magistral combinação entre o inconsciente e o consciente», pelo que, privilegiar o material colectável do inconsciente ou o material colectável do consciente, entendemos ser uma questão opcional. 6 | Palavra&Arte


É com as vozes do seu compatriota Eduardo White e do português Herberto Hélder que a jovem poetisa se conecta directamente numa rede de influências estético-literárias, recebendo outras influências através de leituras variadas Deixando algum espaço para o lado arbitrário, da arte, podemos afirmar, categoricamente, que os objectos estéticos colhidos por Hirondina, tijolos ou adobos, com os quais construiu a sua «Casa», provêem do inconsciente e que a poética surrealista constitui o alicerce deste seu poemário. A «Casa», em termos simbólicos, representa o seu espaço psíquico, seu interior, podendo apresentar-se ainda como um espaço fechado de protecção, como um útero, símbolo feminino; ao passo que «Os ângulos», do latim angulus, -i, deixando de parte os seus significados matemáticos, mais do que representar o espaço resultante entre a junção de duas paredes, equivalendo a canto, designa a maneira de pensar, de compreender, de abordar ou de observar, equivalendo a «perspectiva» ou a «ponto de vista». Assim, a sequência sintagmática «Os ângulos da Casa» configura-se como um macrotexto e cada poema ou prosopoema, apesar da heterogeneidade formal, constituem uma sucessão de unidades textuais autónomas que obedecem a uma certa linhagem semântica que, no âmbito da psicocrítica, remeter-nos-ia a um sujeito-paciente com um quadro clínico bastante complexo, ao qual se lhe diagnosticaria, uma psicose, que, segundo BOCK (et all.1999), «refere-se a uma perturbação intensa do indivíduo na relação com a realidade», dando-se «uma espécie de ruptura entre o ego e a realidade, ficando o ego sob domínio do id, isto é, dos impulsos». O sujeito reconstrói, de forma inconsciente, realidades alucinatórias «Como se estivesse num quarto todo desarrumado, gavetas postas ao tecto, janelas ao chão, e o chão fosse parede, e a roupa estivesse estendida dentro do coração». Por vezes, «a cabeça inclina-se devagar», «confronta o lado insano da parede», e «os móveis desarrumados tornam-se imóveis». E recupera-se a normalidade psíquica com uma exclamação: – «Ai!» E aí surge a grande questão após a suposta

recuperação: – «Que vem a ser isto?» A resposta a esta pergunta poética seria «Paranoia», na medida em que, durante o surto psicótico, o sujeito vive diferentes momentos de alucinações mais ou menos ordenados, ligados a temas complexos, que o levam a filosofar em torno de questões difíceis de fórum metafísico. Alguém que explique, com satisfação, «Como é que se escreve um olhar» e «… uma alma o que é?» Nota-se que o paciente mantém, activa, as suas faculdades psico-intelectuais, não revelando deterioração da capacidade intelectual, subindo «até ao horizonte» para poder sentar-se «ao lado da razão» e descobrir que «toda biologia se foi. Toda ciência se foi.» Restando «a “aicnêic”», a ciência ao avesso, se calhar aqui, denunciando a incapacidade que esta, ainda hoje, revela em responder a determinadas questões da humanidade, tidas como sem solução. No entanto, o quadro clínico do paciente agrava-se, diagnosticando-se-lhe, a posterior, uma esquizofrenia. O sujeito afasta-se da realidade, centrando-se em si, desenvolve uma fantasia de estar numa «varanda», onde «a testosterona agita os espaços compridos», manifestando desagregação do pensamento, das acções e da afectividade, como que se perdendo no transexualismo [1] . Sabe-se que, em média, a quantidade de testosterona nos homens é entre sete a oito vezes superior do que nas mulheres. Em vista disso, podemos referir que tal hormônio androgénico, segundo o Dicionário online de Português, a testosterona , configura-se como um tipo de catalizador biológico metamórfico que povoca a multiplicação do «eu», sujeito-paciente, gritando por socorro – «Alguém nos acuda» – sob pena de enveredar para um suicídio de natureza psicótica.

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Nas palavras de BOCK (et all.1999), a abordagem psicológica encararia estes sintomas, (…) desenvolvidos pelo paciente, como desorganização da personalidade, todavia admitindo que o conceito de normal e patológico é extremamente relativo. Terão de ser chamados de loucos os diferentes sujeitos poéticos apresentados por Hirondina? Sim e não. Porque «a loucura comunal deixa de ser loucura e torna-se mágica, loucura governada por leis e em plena consciência» NOVALIS (1997). Inversamente aos Irmãos Karamazov de Dostoiévski, ama-se «o vazio… o espaço da liberdade, a ausência de certezas». E não se teme «ter certezas» nem se troca «o voo por gaiolas». Porque «as gaiolas são o lugar onde as certezas moram». Então, que fique a loucura, «fonte de gozo nada desprezível» BRETON (Sd.).

como dos principais alimentos do psiquismo humano, estando presentes em todas as manifestações quotidianas. A questão que se deve colocar aqui é se as manifestações poéticas apresentadas pela poetisa moçambicana não revelam um estado psíquico dum sujeito-paciente com um tipo de transtorno sexual que usa uma linguagem que se confunde entre a erótica e a pornográfica. Nessa sede, permitir-se-ia algum relativismo analítico (?). Durante um coito, entrelaçam-se várias formas de linguagens, e acreditamos que o inconsciente seja a parte do psiquismo humano mais activa ao longo deste acto, pelo que achamos ser normal alguma linguagem grosseira. E a leitura das «casas» de Hirondina são tão secretas e particulares como um coito normal que só diz respeito às partes envolvidas. Portanto, sabe da sua Vários estudos, no âmbito da Psinormalidade quem não simula uma vida cologia, apontam a questão da sexualicelibatária, ou não o sabe dela aquele dade, pelos aspectos morais que lhe são que opta por um conservadorismo heréimputados, como fonte de angústia para tico. Ademais, o erotismo é dos espaços muitos indivíduos de diferentes extracmais sublimes quando se lhe impregtos etários e etnias. É um assunto que na um tipo de discurso, cuja função da não ocupa os diversos espaços de deba- linguagem predominante seja a poética. te das sociedades africanas tradicionais e E há tanta metafísica ao longo duma conservadoras, apesar da disponibilidacópula em que o prazer e a dor sejam as de sexual que se lhes reconhece. Tanta matrizes psíquicas dos afectos. Espera-se poligamia e poliandria, em crescente, «a tradição milenar de um pénis sedento. para que a sexualidade se constitua Para vingar a febre mundana. Há meainda hoje como um tabu. Por isso, a tafísica invisível no cimo do ministério. «voz entra no fundo \ e fode o espaMorre-se de várias formas… cumpre-se ço» «como se... pecasse atravessando o a lei do movimento. E ninguém pode sangue, a ingénua nudez. A carne louca. ultrapassar a sina do inabalável. A carMadura». ne.» FREUD (1905), na sua obra «Três Acreditamos em hipnose colectiensaios sobre a teoria da sexualidade», va quando mergulhamos nas estranhas mostra que a prática sexual entre os águas da poesia. E no âmbito destas readultos pode ser bem mais livre do que des psíquico-criativas, conseguimos ligar supõem os teóricos moralistas. E as a poesia de Joshua à poesia do angolano emoções, os sentimentos configuram-se João Tala, à do português Herberto Hél8 | Palavra&Arte

[1]

Termo introduzido em 1953, pelo psiquiatra norte-americano Harry Benjamin, para designar um distúrbio puramente psíquico da identidade sexual, caracterizado pela convicção inabalável que tem um sujeito de pertencer ao sexo oposto.


der, à do brasileiro Murilo Mendes e a tantos outros poetas da escola surrealista. Mas é com as vozes do seu compatriota Eduardo White e do português Herberto Hélder que a jovem poetisa se conecta directamente numa rede de influências estético-literárias, recebendo outras influências através de leituras variadas de como “O gato e o escuro” – Mia Couto; “Elogio da loucura” – Erasmo de Roterdão ;“Neighbours” – Lília Momplé ; “Conto Homônimo: o Ovo e a Galinha” – Clarice Lispector; “Niketche” – Paulina Chiziane; “Paraísos artificiais” – Charles Baudelaire; “Xicandarinha na lenha do mundo” – Calane da Silva; “As Ondas” – Virgínia Woolf; “Ualalapi” – Ungulani Ba Ka Khosa; “Uma Faca nos Dentes” – António José Forte; “Ácia, O Primeiro Amor, Águas Primaveris” – Ivan Turguenev e eventualmente outras, pela qualidade que já apresenta. Sobre a escritora, diga-se que nasceu em Maputo, em 1987; que está integrada em diferentes antologias de poesia e prosa. Publicou nos jornais Notícias e Sábado (Moçambique); no jornal Cultura de Angola, nas revistas Literatas e Soletras; em TriploV e nas brasileiras: Acrobata, São Paulo Review, Sirrose, Òmnira. Participou das colectâneas da editora brasileira Sol Além Mar de conto e poesia nomeadamente: “Faces não reveladas” e “A voz da liberdade”. Integrada no Projecto Enegrescência, ganhou a menção extraordinária no Prémio Mondiale di Poesia Nósside edição 2014. Por fim, é importante alertar aos leitores que a nossa análise incide-se na obra e não na sua autora, pelo que qualquer transtorno psíquico diagnosticado aos diferentes sujeitos-pacientes que foram surgindo ao longo dessa psicocrítica se refere-se apenas aos sujeitos poéticos. Hirondina, pelo que sabemos, é uma pessoa…

Hirondina Joshua | Foto de @Kdumda-c Referências Bibliográficas BOCK, Ana Mercês Bahia (et alli). Psicologias: Uma introdução aos Estudos da Psicologia. Editora Saraiva. 1999. BRETON, André. Primeiro Manifesto do Surrealismo, em Manifestos do Surrealismo, Brasiliense. Sd. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders.4. ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 1994 ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães. Rio de Janeiro. Zahar, 1998. HERRNSTEIN, Richard J. e BORING, Edwing G. Textos básicos dehistória da Psicologia. São Paulo, Herder/USP, 1971.

Completas de Sigmund Freud vol.VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996 Sigmund Freud. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Paris, Gallimard, 1987 MARINI, Marcelle. IN: BERGEZ, D. et al. Crítica Psicanalítica em Métodos críticos para a análise literária. Trad. de Olindina Maria Rodrigues Prata. São Paulo: Martins Fontes, 1997. NOVALIS. Philosophical Writings, translated and edited by Margaret Mahony Stoljar, State University of New York Press, Albany, NY, 1997. VALÉRY, Paul. Discurso sobre estética. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2002 WIDIGER T e Clark LA. Toward DSM-V and the classifcation of psychopathology. Psychol Bull. 2000.

FREUD, S. O método psicanalítico de Freud in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

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P o e s i a n o Fe m i n i n o


Encontro de geraçþes na poesia feminina


Desilusão Caí em letargia… Meu sonho adormeceu profundamente… Ficou num par de fronhas virgens… Estreadas em noites de volúpia… Sonho bordado Nas fronhas dum hotel Vidas aneladas Pontos cheios de suspiros sem gemidos… Juntos dormimos Mas nossos sonhos Esses! Adormeceram Num par de fronhas…

Isabel Ferreira, «Nirvana»

Edição/Kilombelombe, 2004

Sibéria Perdida estou nesta Sibéria Mal consigo me mover nesta esteira O que mais meu corpo sentiria Congelado nesta neve sorrateira? Tão inteligente que sabe quando vir Na ausência de meu amor cálido Se faz presente para meu sorriso engolir Emoção inóspita, prazer inválido. Deixe-me! Suplico. Vai embora! Regresse! Ansiosa espero a tua volta Sentimentos confusos criam revolta E aumentam as saudades de outrora.

SimbioseS

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pintar reflexos morar em velas pretas ser concreto inexistente pegar seios imaginados andar sobre nuvens de ossos secos fazer-me vida voz vermelha e chorar sol.. escutar silêncio passando por mim...

O lago da lua

apagar água de sorriso poético esculpir corpo em salivas e ressuscitar sonetos

« Dizer estou presa...»

No lago branco da lua lavei meu primeiro sangue Ao lago branco da lua voltaria cada mês

Mariyeth Van-Dúnem

para lavar meu sangue eterno a cada lua No lago branco da lua misturei meu sangue e barro branco e fiz a caneca onde bebo a água amarga da minha sede sem fim o mel dos dias claros. Neste lago deposito minha reserva de sonhos para tomar.

Ana Paula Tavares, em "O lago da lua". Lisboa: Editorial Caminho, 1999, p. 11.

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P r o p o s ta L i t e r á r i a

Niketche Uma história de Poligamia Por: Lepoldina Fekayamãle leofecaiamale@gmail.com Chegamos a Março, o mês considerado das mulheres e período em que, normalmente, começam a aparecer os "largos e pomposos" elogios às mães, amigas, esposas, namoradas e até àquelas mulheres que não nos são próximas. Longe de deslegitimar os actos de carinho direccionados a nós, gostaríamos apenas que nesse Março parássemos para pensar de forma diferente na condição das mulheres, nas suas vivências difíceis fruto das desigualdades de género que regem as sociedades. E é a pensar nessas desigualdades e na forma como afectam negativamente a vida de inúmeras mulheres que trazemos como sugestão de leitura o livro Niketche de Paulina Chiziane. Um livro que apesar de ser de uma escritora moçambicana e ter Moçambique como principal contexto, aborda a condição da mulher numa perspectiva além desse contexto principal, ou seja, ultrapassa os limites de Moçambique e abrange outras culturas africanas. Niketche é uma estória de poligamia que retrata a vida das mulheres em função de um homem e seus caprichos. É um reflexo de como o facto de muitas sociedades e culturas africanas legitimam a submissão e subalternação das mulheres aos homens, prejudicando-as e desumanizando-as. E falamos de sociedades e culturas africanas, porque as nossas culturas não são todas iguais, não temos 'uma cultura africana homogénea', mas vivemos numa diversidade. E essa diversidade, no livro, é espelhada pelas mulheres do nosso polígamo do texto, que são naturais de regiões diferentes do país, que recebem instruções culturais diferentes, mas que, em relação ao homem, têm a mesma base: obedecer independente do que aconteça e olhar o macho como o todo-poderoso! Toni, o nosso polígamo e “grande macho” da estória, espelha atitudes de inúmeros “pais” que andam por aí; é o típico homem que só faz filhos, ou seja, que lança inúmeras sementes e estupidamente se orgulha deste acto de “macho”, mas, logo a seguir, não se importa com 14 | Palavra&Arte

a assistência, auxílio, tempo e dedicação de que essas sementes precisam para crescerem em condições. Deixa tudo a cargo das mulheres e vai viver a vida de pássaro que não se satisfaz só com um ninho. E ainda, tem consigo as culturas que o protegem e tornam legítimas essas formas de proceder e exigem das suas mulheres submissão. Em Niketche, somos convidados a pensar de forma não romantizada na condição social de obediência da mulher, somos chamados a reflectir na forma como essa hierarquia estruturada em “Homem manda e Mulher obedece” não é justa, não é saudável, e não constrói uma sociedade equilibrada. E antes que termine este texto, importa referir, também, que, no livro, além de todas estas reflexões que somos convidados a fazer, somos levados, também, a ver como a união, de facto, faz a força e pode mudar muita coisa à nossa volta. Quando as mulheres de Toni se unem e decidem pensar nas suas condições injustas e procuram juntas formas de ultrapassar os problemas, então, acontecem mudanças significativas e surpreendentes. Dá-se uma reviravolta que conhecerá aquele que se propor a ler Niketche e deixar-se levar por esta viagem que Paulina Chiziane nos oferece!



Fa ç a c o m E s t i lo

O Estilo em Literatura Texto: Teresa Silva e Silva

Estilo, palavra proveniente do latim “stilu”, é um substantivo masculino que significa pequena haste de osso, metal ou outro, com uma extremidade pontiaguda e a outra espatulada, que era usada pelo homem há alguns séculos para escrever sobre a camada de cera. Em Literatura, representa a maneira de exprimir os pensamentos, falando ou escrevendo. Entretanto, como, para escrever ou falar, precisamos de apreender os conceitos de linearidade frásica – a Sintaxe e a função de cada morfema que integra a frase – ou a forma das palavras – a Morfologia, lançamos mão à Linguística para melhor conhecer o estilo. Para que isso seja viável, escolhemos, dentro de um dos seus rebentos, a Semântica que nos permite explorar o significado das palavras, enquanto unidades lexicais, que, por sua vez, nos empresta a Estilística e essa, finalmente, torna possível conhecermos o senhor Estilo. Com todo este arsenal, verificamos que o estudo da gramática não passa da aquisição de munições para um combate; e quanto maior for o nosso conhecimento de gramática, mais munidos nos encontraremos para a luta. Da gramática extraímos os moldes uniformes da expressão; da estilística, colhemos a beleza e a liberdade do génio, nas combinações estéticas da palavra. O grande privilégio é que isso 16 | Palavra&Arte

é individual. Por isso é que se diz que o Estilo é a maneira peculiar, individual de expressar os pensamentos do escritor. Visto dessa maneira, vamos perceber que ninguém pode escrever o que quer e dizer, simplesmente, porque é o seu estilo, pois o estilo obedece a crítica e a análise dos géneros literários, as figuras, a malícia, o esplendor, a técnica da redacção, onde haja integridade, harmonia e claridade. O escritor busca o seu estilo na afirmação da liberdade artística, pela literariedade, a ciência tangível da própria Literatura. Pelo contrário, o autor não, pois a ciência para este é o seu próprio relato, não se socorre nem da arte nem do belo como expressão artística. Na literatura, concorrem, para o cumprimento desses factores, as frases curtas, o emprego de palavras apropriadas, a simplicidade, ou seja, fuga ao preciosismo; o emprego de palavras elevadas, ou melhor, fuga à trivialidade, pois há vocábulos e expressões que, embora toleradas na conversa, destoam num trabalho escrito; por fim, evitar o emprego repetido dos mesmos termos, fazer uso variado das figuras sintácticas. Para isso, conhecer o idioma em que se escreve, dominar o assunto sobre que se escreve e a leitura exclusiva de bons escritores deve servir de alimento para o nosso trabalho literário. Esses são alguns dos pilares em que se assenta qualquer obra literária, seja qual for o género. A gramática e o

A estilística pode definir-se como a arte de bem escrever e ainda como o tratado das diferentes formas ou espécies de estilo e dos preceitos que lhes dizem respeito. Também pode definir-se como o sector dos estudos da linguagem que se ocupa com o estilo, tendo a linguagem como factor imprescindível


A análise literária difere da análise estilística. Aquela é da competência do professor de literatura; esta é da alçada do professor de língua portuguesa e visa, primordialmente, enfocar aspectos do “sistema expressivo e da sua eficácia estética no idioma ou nas particularidades idiomáticas de um autor literário ou de um simples falante”

vocabulário (Léxico) do idioma escolhido; a educação, ou seja, a formação, a experiência são os elementos necessários. Somente firmada nessas duas colunas é que encontramos redacção, baseada na finalidade a que se propõe o literato ou no género em que quer escrever. Em sentido figurado, hodiernamente se define o estilo como a maneira ou o carácter especial de os artistas, de um modo geral, assinalarem os seus trabalhos. De um modo específico, é a maneira particular de exprimir pensamentos, através da palavra falada ou escrita. Assim, a estilística pode definir-se como a arte de bem escrever e ainda como o tratado das diferentes formas ou espécies de estilo e dos preceitos que lhes dizem respeito. Também pode definir-se como o sector dos estudos da linguagem que se ocupa com o estilo, tendo a linguagem como factor imprescindível. Entendemos, então, resumindo o pensamento do Professor Evanildo Bechara, (Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 199, p. 415), que o estilo é a reunião de processos que fazem da língua representativa um meio de exteriorização psíquica e de apelo. Temos, finalmente, a seguinte dicotomia para classificarmos a estilística: a chamada estilística da língua, de Charles Bally, e a chamada estilística da fala, apregoada por Karl Vossler, Leo Spitzer, dentre outros, do Idealismo alemão, condensando-se as palavras do Professor Evanildo Bechara. Todavia, a distinção entre a estilística e a gramática está em que a primeira considera a linguagem acfetiva, ao passo que a segunda analisa

a linguagem intelectiva, que vai se afirurar como, todo o aparato afectivo e emocional que caracteriza a expressividade do autor. Não podemos confundir estilística (que estuda a língua afectiva) com a gramática (que trabalha no campo da língua intelectiva). Condensando isso, veremos que não é a oposição entre o individual e o colectivo que caracteriza o estilo, e sim, o contraste entre o emocional e o intelectivo. A análise literária difere da análise estilística. Aquela é da competência do professor de literatura; esta é da alçada do professor de língua portuguesa e visa, primordialmente, enfocar aspectos do “sistema expressivo e da sua eficácia estética no idioma ou nas particularidades idiomáticas de um autor literário ou de um simples falante”, interessando-lhe “tanto a captação de traços estilísticos da língua oral como da escrita do falante comum e do literato. Com razão, observaremos que, na linguagem de um mendigo ou vagabundo, há aspectos estilísticos da mesma natureza de todo o mundo expressional, comparados há um Shakespeare, quando se conhece a língua com a qual aprendemos a balbuciar as primeiras palavras, coisa que poucos angolanos possuem… principalmente, se assim entendermos o pensamento pessoano quando afirma que na língua existe a nacionalidade, isto é, um povo sem língua não tem identidade e isso pode provocar amiúde o nosso estilo individual… (repensemos quando afirmamos que “este é o meu estilo”).

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E n t r e da n ç a s

Muros invisíveis no Cenáro da Dança

Texto: Aneth Silva |Kj.priscilla@gmail.com

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em sido inevitável o crescimento e o aumento de novos centros e casas de cultura nos últimos anos. Para melhorar, ginásios e academias estão cada vez mais empenhados em colocar a dança nas suas grades, já que senhoras de várias idades se mostram profundamente interessadas em fazer aulas, como a zumba ou a salsa, que as possam ajudar a emagrecer e ainda dar-lhes uma aparência fit. Os pais procuram, de todas as formas, colocar os filhos em creches, escolas ou locais com ATL onde, entre as actividades extra-curriculares, a dança precisa estar presente; talvez porque se interessam em desenvolver as capacidades artísticas dos seus filhos ou porque sempre tiveram o sonho de dançar, mas não a 18 | Palavra&Arte

oportunidade de o fazerem, ou, talvez ainda, a intenção seja distrair os filhos com actividades que os deixem, na maior parte do tempo, fora de casa para, desta forma, não sentirem tanto a falta de disponibilidade que os mesmos apresentam. Seja qual for o motivo da adesão a esta actividade artística, uma aula de dança não deve ser banalizada. As pessoas que dançam tornam-se potenciais fontes vivas de criação e de edificação e também de transformação do quotidiano de uma sociedade. Quando tornamo-nos professores, temos a grande responsabilidade de educar indivíduos, e isso exige cuidado e pesquisa. Não podemos esquecer de que somos


fonte de ensino aprendizagem e, antes de nos colocarmos em actividades pedagógicas – referentes ao ensino-aprendizagem –, devemos conhecer os nossos limites e as competências individuais. Depois de detectados os limites, devemos agir, buscando desenvolver as aptidões não construídas. Muitos são os casos, infelizmente, de professores-relâmpagos, que chegam com o intuito de ministrar aulas que se baseiam apenas nas suas experiências como aluno ou que desenvolvem um método de ensino que exclui a criatividade e a personalidade do aprendiz – colocando em risco o seu desenvolvimento ao não reflectir sobre as implicações corporais –, método este que se apoia na criação de coreografias que têm como principal objectivo fazer brilhar a sua própria imagem; esquecem-se que lhes cabe buscar cursos de formação que auxiliem na continuidade do seu desenvolvimento enquanto educador e promover a capacitação dos seus alunos para o desenvolvimento das competências necessárias para a realização das suas tarefas bem como para a resolução dos problemas quotidianos com maior eficiência. Parte deste problema recai sobre as instituições de ensino da dança, porque, se como professores a responsabilidade é grande, como instituição a responsabilidade é super-hiper-mega-blaster, ou seja, maior! O que observo em muitas instituições angolanas dedicadas ao ensino das artes ou da dança, mais especificamente, é que todas elas são constituídas com as melhores das intenções, materializadas, talvez, como um sonho antigo para alguns. Mas, com o passar do tempo, percebe-se uma forma de trabalho que foge da nossa realidade cultural, artística e social; um pouco resultado da situação económica que o país enfrenta, mas também por negligência e falta de objectivos bem traçados.

Ao não contratar professores especializa-

dos para o estabelecimento e seguir de perto os planos curriculares desenvolvidos pelos mesmos; ao não implementar um sistema de bolsas, para que crianças e jovens menos favorecidos tenham a oportunidade de ingressar; ou ao não dar aos alunos um espaço onde tenham a oportunidade de apresentar as suas obras artísticas, depois de orientados pelos professores; ao cobrar valores exorbitantes pelas aulas oferecidas e pelas exibições realizadas, estabelecendo um público reservado para contemplação dessas apresentações; ao colocar nas grades apenas aulas que estão em alta, pensando somente em lucrar e não em obter resultados para os discentes; ou ao deixar de incentivar a aprendizagem e o progresso ou evolução dos professores e alunos (que podem, possivelmente, ampliar a ambição de seguir uma carreira artística) matam a arte e a necessidade que a própria arte tem de chegar aos corações mais improváveis. E olha que aqui estão enumeradas alguns riscos e formas de aniquilação da arte! Partindo do princípio que os seres humanos se desenvolvem pelas relações que estabelecem com o seu meio, devemos estar interessados em educar corpos sociais, corpos presentes, que dialoguem, que estabeleçam conexão, que interajam social e culturalmente, ao contrário de corpos que se escondem em casulos ou carapaças, esperando serem moldados, e que os desafios que lhes foram impostos desapareçam. Os alunos, como parte de todo este sistema, também precisam mostrar interesse genuíno e dedicação ao conteúdo oferecido. É tudo uma troca sem barganhas. O educando tem todo o direito de participar na construção do seu desenvolvimento técnico, sempre em colaboração com o educador, partilhando, respeitando, sabendo que o professor é a melhor referência que terá na sala de aula para o desenvolvimento das suas habilidades e competências. Aos professores, cabe educar cidadãos sócio-afectivos estruturalmente, que se apropriem da dança para fazer alguma diferença no mundo em que vivemos.

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PERFIL ARTÍSTICO

HÉLDER STÉFANE Idade: 23 Formação artística: autodidacta O que te motivou na expressão fotografia: A possibilidade de expressar sentimentos por meio das fotos e as habilidades que foi desenvolvendo naturalmente. O impacto das fotos postadas despretensiosamente no Instagram, também teve a sua influência. O que atrai o foco de sua câmara: Alegria, esperança e beleza. A história de vida de pessoas comuns que se cruzam com o fotógrafo, o pôr-do-sol… Em suma, tentativa de traduzir o belo em fotos. Ambições enquanto fotógrafo: Conhecer pessoas, capturar suas emoções e fazer com que elas se sintam bonitas; poder viver de fotografia; Criar uma escola de formação fotográfica. Perspectiva sobre o mercado nacional: O mercado é aberto, cada fotógrafo deverá ter a destreza de se inserir segundo a estratégia de marketing mais favorável para si. Não perdendo o foco da ânsia de atingir a excelência, pois a maior publicidade é a recomendação satisfeita de um cliente. Contactos Email: helder.stefan.silva@gmail.com WhatsApp: +351933305089 Unitel: +244939105015 https://www.instagram.com/stefan.helder/ 20 | Palavra&Arte


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Da lente ao retrato, um olhar sob a

FOTOGRAFIA ANGOLANA A vertente histórica e artística da fotografia nacional, tendências, novas técnicas e expressões. As fronteiras entre o artístico, o jornalístico e o turístico na fotografia.

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Fotografia, a arte de congelar vida em forma de luz Texto e fotografia de: Bruno Fonseca

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arto do pressuposto que a Fotografia em si é uma Arte. É a arte de escrever com a luz. Posto isto, convém diferenciar e catalogar as variadas formas de expressão através da fotografia. Fotografia de arte, fotografia artística ou fotografia fine art são termos ou referências actuais que se fundem no seu todo, no seu conceito global. Dado que a maior parte dos curadores e os concursos internacionais usam a terminologia Fine Art, adoptei também para mim este termo. O Fine Art representa uma visão criativa do artista enquanto fotógrafo. Seja essa visão encenada ou “ready made” permite um olhar subjectivo sobre o sujeito ao contrário do Fotojornalismo, que 24 | Palavra&Arte

tem como missão a realidade objectiva, documentar a realidade. Já no caso da fotografia comercial., o foco principal está no apresentar e divulgar o produto em questão. Dentro destes géneros, podemos incluir alguns subgéneros, por exemplo, a categoria Fotojornalismo pode ser dividida em Notícias, Vida Quotidiana, Retratos, Desporto, Reportagem, etc. Uma das fronteiras/barreiras mais antigas entre estes géneros fotográficos era a de que somente a Fine Art seria digna de exposição, o que deixou de acontecer nos dias de hoje, em que tanto o fotojornalismo, a fotografia comercial ou até mesmo de casamentos e baptizados conseguiram o seu próprio espaço e é comum encontramos exposições e festivais dedicados a estes géneros.


ideias de reportagem em pleno acto criativo. É comum também afirmar-se que a fotografia Fine Art é aquela que é produzida com intenção de venda, ao contrário do fotojornalismo em geral, que noticia/informa e da fotografia comercial, que pressupõe uma encomenda prévia. Outra grande diferença entre esses géneros baseia-se no facto da reprodução limitada/ilimitada das fotografias. Enquanto no Fine Art se tem por hábito de limitar a reprodução das obras, nos outros géneros é precisamente o inverso. Uma boa fotografia comercial ou de fotojornalismo tem, necessariamente, uma reprodução ilimitada e uma exposição universal. Em qualquer um destes géneros fotográficos e como em quase tudo na vida, é possível incutir o seu “quê” artístico ou criativo, e é comum ter ideias para criações artísticas em plena reportagem, bem como

A fotografia encenada, quer seja em estúdio quer seja na rua, tem, como particularidades principais, a luz cuidada, os elementos colocados no seu devido lugar numa composição pensada e definida enquanto no “ready made” são os elementos que chamam a atenção ao artista, como que o convidando à interacção. Um projecto fotográfico pode nascer das duas formas, seja ele pensado e executado como tal ou acumulativo, no sentido de ir acumulando séries de fotografias que transmitam o mesmo sentido ou conceito. Dentro do “ready made”, tive oportunidade de apreciar recentemente a última grande exposição do artista angolano António Ole, a retrospectiva que esteve patente na Gulbenkian em Lisboa, onde me deliciei com as suas fotografias.

Out of Box Angola, Luanda Salao Beleza Março/Abril | 25


Dos meus projectos pessoais, destaco o projecto Out of Box, que ainda está em curso e que foi recentemente exibido no Camões-Centro Cultural Português. E ainda uma residência artística em Vila Nova de Cerveira que culminou na selecção de duas obras para exibição na Bienal de Cerveira de 2015 e que contou também com a presença do angolano Marco Kabenda com uma das suas obras. Mas vamos ao que pode ser uma dimensão absolutamente única, excepcionalmente única, da fotografia enquanto obra de arte criada e pensada como tal. É comum ouvir e ler que aquilo que realmente é ou foi excepcional perdura no tempo, vence a barreira do esquecimento, vê o mundo a erguer-se e a refazer-se diariamente à sua volta, contribuindo para esta metamorfose, mais do que fazer parte dela… Se se fizer o exercício de pedir a um cidadão com mediana cultura que pense numa imagem que tenha marcado uma época, que tenha protagonizado um momento único e no qual, o que somos hoje como humanidade, provavelmente ouvir-se-á mais vezes o nome de um fotógrafo do que o de um pintor ou o de um ilustrador. Vamos arriscar E é aqui que chego ao ponto em que mais arrisco, apesar de não ser um olhar novo sobre este universo.

Roof Top Sambila 26 | Palavra&Arte

Uma fotografia de puro fotojornalismo pode transformar-se em arte, num momento de ruptura genial com o que tínhamos visto até então, como a fotografia da “menina napalm”, de Nick Ut, no Vietname, ou o inverso, em que aquilo que parece criado para obter um efeito estético se transforma numa poderosa imagem que informa, como o “desavergonhado” marinheiro que, no dia em que termina a II Guerra Mundial, toma nos braços uma enfermeira e a beija sofregamente, com o momento a ser eternizado pelo fotógrafo Alfred Eisenstaed. Dificilmente consigo compreender a criação artística, seja na fotografia ou numa outra ferramenta de construção do novo, sem determinação para alcançar o nunca visto, mesmo que esse seja o Santo Graal que todos os criadores procuram e poucos alcançam. Esta razão pela qual entendo que um fotógrafo criativo, como, de resto, já digo em cima, está permanentemente em busca da oportunidade para congelar, em forma de luz, um momento excepcional ou porque o constrói a partir do seu universo pessoal e referencial, ou está sempre preparado para não o deixar fugir se com ele se deparar casualmente. Porque nem sempre a arte nasce de um momento de genialidade criativa, a arte pode muito bem vir ao nosso encontro e a genialidade está, quando assim é, em não nos esquecermos da câmera fotográfica em casa.


Uma fotografia de puro fotojornalismo pode transformar-se em arte, num momento de ruptura genial, ou o inverso, em que aquilo que parece criado para obter um efeito estético se transforma numa poderosa imagem que informa

Dois séculos de luz Há quase 200 anos que a fotografia faz o seu caminho de luz, iluminando a humanidade, seja num canto da casa mais humilde, dentro de uma moldura antiga, seja na mais reluzente e sofisticada sala de Paris, Nova Iorque ou Tóquio. Já muito, senão tudo o que é possível, foi dito sobre o que é a fotografia, nas suas variadas afirmações estéticas ou utilitárias, mas não será desajustado pensar que “não há regras de boas fotografias, existem apenas boas fotografias” (Ansel Adams), ou que “se uma foto não está suficiente boa, é porque não se aproximou o suficiente” (Robert Cappa), mas convém não esquecer que “a câmera fotográfica é um espelho dotado de memória, porém incapaz de pensar” (Arnold Newmann) até porque “você não fotografa com

O Salto - Tripico Cerveira 1

a sua câmera, você fotografa com toda sua cultura” (Sebastião Salgado), sabendo nós que ajuda também ter em consideração que “a fotografia é a poesia da imobilidade: é através da fotografia que os instantes se deixam ver tal como são” (Peter Urmenyi). Eu gosto de pensar enquanto fotógrafo, que são as fotografias que nos procuram e que se não estiver com a minha câmera, se não estiver sempre e humildemente à procura, a grande fotografia não vai saber que é a mim que quer encontrar. E que as minhas fotografias, a forma como a fotografia me permite olhar o mundo, fizeram de mim melhor pessoa, e que a fotografia fez e faz bem à humanidade, como Arte e como a arte de viver de click em click até à imagem definitiva, onde o mundo pára com a luz exacta e se deixa ver como ele é, afinal...

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U m f la s h à foto g r af i a Angolana

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trato, e ao rseob a t n le a r D a um olh

A RAFI G O T FO LANA O G N A

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Ensaio

Texto: Cíntia Gonçalves | cintiagoncalves@gmail.com

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escrita foi das primeiras formas que o ser humano encontrou para se perpetuar, com ela viaja pelos acontecimentos mas não os pode ver sem os olhos da mente. É então que surge a necessidade de captar e criar imagens de momentos únicos para que estes não sobrepassem. A primeira fotografia reconhecida pelo mundo, segundo nos conta a história através de diversos relatos, foi feita pelo francês Joseph Nicéphore Niépce em 1826, embora não se possa atribuir a sua evolução apenas a uma pessoa, pois muitas descobertas contribuíram para o desenvolvimento da fotografia que hoje conhecemos. Artistas plásticos, físicos e, principalmente, químicos destacaram-se grandemente neste percurso. Numa associação de condições ambientais e de iluminação a produtos químicos, os processos de revelação e fixação da fotografia são essencialmente físico-químicos. A fotografia está no entrecruzamento de dois processos inteiramente distintos: um é de ordem química: trata-se da acção da luz sobre certas substâncias; outro é de ordem física: trata-se da formação da imagem através de um dispositivo óptico (Roland Barthes). Desde os daguerreótipos, uma das primeiras formas de se fazer fotografia e que muito se destacou, até à produção em preto e branco (P&B), que nos remete ao surgimento da fotografia, houve muita evolução técnica. A fotografia colorida é um dos principais marcos desta evolu28 | Palavra&Arte

ção, apesar de ter sido um processo lento e que necessitou de muitos testes. A primeira fotografia colorida foi feita pelo britânico James Clerk Maxwell em 1861; ao passo que o primeiro filme colorido só aparece em 1907. Estes dois factos têm gerado muita confusão em torno das datas que marcam a fotografia. Alguns teóricos apontam 1907 como sendo a data da aparição da primeira fotografia colorida. Foi, no entanto, em 1888 que deu-se o eclipsar da fotografia enquanto objecto de consumo. Gabriella Esteves, no seu «Ensaio Sobre a Fotografia», diz que até hoje a fotografia colorida não alcançou a definição da escala de tons da sensibilidade do material preto e branco. Percorrendo as páginas da história da fotografia no mundo, observamos que cada canto tem o seu próprio trajecto, face ao surgimento da mesma. Olhando para o nosso umbigo, vê-se emergir em Angola, cada vez mais, praticantes da área. Vimos quase que constantemente a divulgação de fotografias actuais e antigas em exposições fotográficas nas plataformas e redes sociais ou fora delas, mas, afinal, qual a história por trás destas imagens? Centralizando-me no plano fotográfico angolano, meu desejo de conhecimento sobre a Fotografia adquire uma postura menos específica. Embora esta actividade seja antiga em Angola, ainda existe uma escassez de material bibliográfico sobre o assunto. Os especialistas e passeatas da área estão mais interessados em clicar e capturar do que em documentar a trajectória da


captura. A pobre aderência à escrita faz com que haja uma enorme dificuldade para se falar sobre os primórdios da fotografia angolana e, por esta falta de material de apoio, pouca gente se atreve a tocar no assunto. Os livros que falam dela são muito menos que pouco, os que existem apenas beliscam o tema e primam mais pela técnica, permitindo apenas observar o significante fotográfico. Quando o assunto é material histórico e/ ou sociológico, o nosso mercado não tem muito a oferecer, porque não existem estudos divulgados sobre a fotografia enquanto fenómeno e contribuinte social. Ao constatar este desagrado, e para tentar abordar o assunto com o mínimo de justeza, tive de fazer o uso de uma qualidade que é característica do povo angolano e africano no geral, no caso a oralidade, consultando fontes vivas. Nomes sonantes na fotografia angolana são, na sua maior parte, fotojornalistas, sendo que o jornalismo é das áreas que mais uso faz da fotografia, por também proporcionar alguma formação, e não só, pois a história da fotografia em Angola está intimamente ligada à história da imprensa e do cinema, a partir da qual é possível estabelecer uma cronologia de dados. Durante as entrevistas, cada um foi falando segundo o seu par de olhos, já que cada um vê e vive o seu próprio mundo. A fotografia acaba por ser a expressão mais íntima do fotógrafo sobre o que o rodeia, sendo, assim, uma das mais inusitadas descobertas do ser hu-

mano. Transforma um segundo numa imagem secular ou milenar. Com o assombro da perca do instante em que o imaginário suplanta o real desejado, os portugueses trouxeram para Angola, nos finais do século XIX, a fotografia ainda em preto e branco (P&B), com o objectivo de retratar informações de zonas que eram exploradas para o seu rei. Pela expansão colonial, alargou-se o interesse pela imagem, e chegavam mais fotógrafos em Luanda, trazendo consigo alguns órgãos de comunicação como a RTP. As fotografias serviam mais para capturar o poder e domínio português na exploração mineira, nos cafezais e nos campos de algodão…, até 1975. No âmbito da massificação, a fotografia entra para as periferias quando alguns jovens angolanos, na ânsia de se tornarem fotógrafos, começam a integrar-se nos laboratórios como contínuos. O colono precisava encurtar os gastos e faziam dos contínuos empregados de limpeza, da limpeza passavam para impressores, e das impressoras para as câmaras era apenas um salto. Naquela época, para fotografar tinha de se saber imprimir. E para os angolanos, era necessário um documento do patrão a identificar que este pertence a um laboratório, pois a fotografia era somente permitida aos portugueses. Enfio na agulha, a que muitos chamam de tempo, uma linha fina para costurar os recortes da história fotográfica angolana no período pós-colonial. Parte dos fotógrafos que trabalhavam nos laboratórios coloniais evoluíram as

Dentre os principais pioneiros da fotografia em Angola, destacam-se: Francisco Bernardo; Paulino Damião (kota 50); Rogério Tutti; Pauolo Toneth; ucas de Sousa; Pedro Salvador; Carlos Guimarães; Maurício Makembe; Carlos Mocco; Amper Rogério; Quintilhano dos Santos; Pinto Afonso. Entre outros.

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Ao falar da fotografia em Angola, não se pode esquecer das instituições mais importantes no desenvolvimento, evolução e história da mesma. suas técnicas. Lino Guimarães, fotojornalista da Angop, diz que a maioria fez formação por correspondência e, durante essa época, tiveram várias dificuldades. Um dos grandes empecilhos era a aquisição de material, porque o que lhes era dado era já bastante obsoleto. Também tiveram várias dificuldades na impressão das fotografias, pois os elementos químicos eram nocivos para o organismo humano, chegando mesmo a causar danos graves aos fotógrafos. Muitos morreram por envenenamento naquela época, e os poucos que sobraram ficaram com várias sequelas, como a perda das unhas e queimaduras. Neste processo de elaboração da fotografia, era necessário um laboratório fechado, os fotógrafos estavam expostos a produtos químicos nocivos, que faziam parte dos processos análogos da fotografia.

horas para cada fotografia, sendo produzidas dez a quinze por dia. Na década de 80, cria-se uma comissão representativa de fotógrafos, para adquirir material vindo de Portugal. Esta delegação era regida por J. Comercial que fazia a importação. Este período ficou marcado, primeiramente, pela dificuldade de aquisição de material, o que se superou mais tarde.

Em 1992, com o surgimento da guerra, a maior parte da população abrigava-se nos meios urbanos. Os Vietnamitas que trabalhavam como médicos viram, na fotografia, um meio rentável, e vendo a força do trabalho por parte dos jovens, eles importavam laboratórios de fotografia conhecido como Mine Labs, para as zonas periféri De 1972 a 1980, havia apenas máquinas cas. Nas zonas urbanas, já existiam alguns laboraanalógicas, de 100 a 400mm. Aparecem as primei- tórios como o Foto Ngufo, o Colorama na Avenida ras fotografias coloridas produzidas por angolaBrasil e o Foto Ventura na Baixa de Luanda. nos, totalmente rudimentares com uma imagem muito fraca e feitas em rolos. Era utilizado um Ao falar da fotografia em Angola, não se processo de sete estágios para a obtenção de pode esquecer das instituições mais importanuma fotografia. Depois de tiradas, as fotografias tes no desenvolvimento, evolução e história da eram levadas ao laboratório por seis minutos mesma. O DIP (Departamento de Informação e para a avaliação do material, faziam cinco minutos Propaganda), a actual ENFOTO (Empresa Nacional para serem reveladas utilizando o revelador, a se- de Fotografia), e o Jornal de Angola. Eram estes guir vinha a interrupção. Neste estágio, usava-se os órgãos que cobriam as grandes actividades do um produto químico que tinha a capacidade de país. interromper a revelação da fotografia, caso não fosse bem-feita. Enquanto decorria este proces Os vietnamitas e os chineses trouxeram o so o revelador continuava a agir até escurecer a estilo Kónica que trazia uma fotografia muito mas fotografia por completo. Na fixação, utilizava-se polida e vendiam as máquinas fotográficas a preo fixador que tinha a função de fixar a imagem ço baixo, porque sabiam que teriam rendimento. no rolo. E na água era feita a lavagem das fotos, Deram aulas práticas ensinando a utilizar o matepara se retirar os resíduos químicos presentes, e rial. Contudo, uma das primeiras escolas de fotodepois na estufa fazia-se a secagem do rolo numa grafia foi criada entre 1996 a 1997 no Maculusso temperatura que não poderia ultrapassar os 40ºc pelo fotógrafo Paulo Oliveira Pinda, no sentido de e, só assim, eram impressas num objecto chama- dar mais conhecimento sobre a fotografia para do ampliador. O processo levava quase quatro profissionais e amadores.

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Ao longo do período das eleições de 1992, a fotografia desempenhou um papel muito relevante ao registar tal período marcante para o nosso país. Nesta etapa, houve interacção e troca de experiências entre fotógrafos angolanos e os estrangeiros que vinham reportar o que se passava. Muitos fotógrafos foram capacitados para as eleições em seminários ministrados por brasileiros, alemães, americanos e portugueses. Muitos desses eram funcionários de jornais enquanto outros faziam fotografia independente e amadora, devido carência de escolas especializadas na área. O amadorismo excessivo na fotografia é um fenómeno que até hoje se faz presente. O avanço tecnológico melhorou o dia-a-dia da profissão, mas não mudou a essência da forma de se fazer fotografia. No que toca ao transporte internacional de imagens, observou-se uma enorme melhoria. Anteriormente, era necessária uma máquina chamada telefoto que tinha de estar unida a uma Companhia telefónica e custava o preço de uma máquina fotográfica moderna. Tinha de se ligar a agência Angola-Telecom, marcar a chamada e, por sua vez, a agência ligava ao destinatário que ficava à espera ao ligar também o seu telefoto. Precisava-se de muita atenção e cautela, porque se a ligação fosse interrompida tinha de se repetir o processo que durava quase duas horas. Actualmente, é um processo que se realiza em segundos. Com as câmaras digitais, o trabalho ficou melhorado e facilitado. Começam a surgir em 1990 e chegam em Angola entre os anos 1998 a 2000. As primeiras usavam disquetes com capacidade de armazenar dez a quinze fotos, dando uma imagem mais nítida e próxima à realidade. De 2000 até hoje a fotografia em Angola desenvolve de forma preguiçosa, discute-se a formação do fotógrafo e existência de escolas

e centros de formação. Vão surgindo diversas associações destinadas a capacitação técnica e teórica do fotógrafo, observa-se cada vez mais a inclusão da fotografia nas diversas áreas sócias e principalmente como contribuinte económico. Desde o século XIX até hoje é visível uma evolução significativa das máquinas, dos suportes de armazenamentos, assim como da própria fotografia. O contexto fotográfico angolano, fora as capturas, publicações de livros de fotografias e exposições, em um pensamento clama por uma soma de reflexões. Nesse jogo de primazias entre a técnica e a teoria vem à tona a relevância de artigos mais desenvolvidos do que este, para que se possa resgatar a imagem histórica como aquela que permite paralisar o olhar e, deste modo, fazer emergir desejos e questionamentos, construindo vínculos entre o conhecimento histórico/sociológico e o técnico. Mereceria uma análise mais aprofundada sobre as premissas e implicações do trajecto da fotografia em Angola, no entanto os dados que tenho são insuficientes, sendo que, assim, forneço apenas uma chave interpretativa e eficiente para tentarmos compreender, analisar e investigar o que na verdade é a fotografia em Angola.

Referências Bibliográficas COELHO, Sebastião; Angola - História e Estórias da Informação; 1999 ESTEVES, Gabriella; Ensaio sobre a fotografia; Porto Artes; s/d BARTHES, Roland; Câmara clara, 3ª ed. Trad. Júlio Castanon Guimarães; Nova Fronteira; Rio de Janeiro; 1984

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ARTE PELA ARTE

O nu, a fotografia e a arte Entrevista com o fotográfo Kkarlos Scesar, sobre o nu artistico

A nudez sempre esteve representada na arte quer pela via escrita, oral ou visual. Na visual, foi sempre partindo da milenar pintura; com a fotografia, trazendo maior nitidez descritiva da figura imagética, a nudez traz abordagem delicada enquanto forma artísitca. A conversa com o artista que luta para estabelecer uma arte que causa repúdio passa pelo estabelecimento dessa arte em nossa forma de vida. 32 | Palavra&Arte


RAFIA FOTOG LANA ANGO

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Como e quando começou seu interesse pela fotografia? A partir desse interesse o nu artístico já estava presente? O interesse pela fotografia surge numa fase em que seguia o trabalho de um amigo fotógrafo, e foi a primeira pessoa que “me picou”, e, de lá para cá, segui os seus passos e hoje digo que consegui trilhar o meu caminho, e faço uns “rabiscos” com a câmara. O nu artístico foi como um desafio para mim, decidi mergulhar naquilo em que é mais difícil de se fazer, torná-lo em arte, sem que fosse transportada a ideia de ser uma arte ligada à pornografia. Há algum fotógrafo que tenha influenciado na sua técnica? E como foi esta influência? Dos nus, digo que bebi muito de alguns fotógrafos da europa do leste, tais como Vadim Stain, Anton Belovodchenko e tantos outros e, de alguns cá do nosso mercado. No mundo fotográfico no geral, eu fui bebendo de fotógrafos como Sebastião Salgado, Marc Delong, Steve McCurry, José Silva Pinto, Adalberto Gourgel, Luaty Almeida, Costadin… na verdade, a lista é enorme. Porque considerar-se ainda “fotógrafo amador”? O que precisa a sua fotografia para atingir tal profissionalismo? Amador não seria bem o termo. Considero-me um aprendiz, sou um aspirante a fotógrafo.

Entrevista: Luamba Muinga | edymuinga@gmail.com Fotografia: Kkarlos Scesar

Uma das reflexões do nosso especial é perceber a fronteira da fotografia artística. Para si, o que faz da fotografia uma expressão artística? Quais elementos separam a fotografia despretensiosa da fotografia artística?

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A fotografia faz parte da sétima arte, e existe um sentimento que liga o fotógrafo à obra que ele desenvolve. A fotografia apesar de resultar da simbiose entre fenómenos físicos e químicos, ela parte antes da ideia de quem a cria, o sentimento que é empregue é que faz com que ela resulte e ganhe vida. Toda e qualquer obra traz consigo um discurso que a torne interessante, a isso eu chamo arte. Até que ponto a nudez é uma forma de arte? E porque escolher esta forma de fotografia? Desde os primórdios da humanidade, a nudez sempre esteve presente. Os grandes movimentos artísticos sempre estiveram acompanhados de obras ligadas à nudez, e são inúmeras obras de artistas que sempre influenciaram a humanidade a admirar o corpo não como um simples objecto, mas sim olhar para o mesmo e admirá-lo mais ainda. Admiro o belo, então este sentimento fez-me mergulhar para o mundo dos nus, fez com que tornasse a nudez em arte, sem que se carregue o sentimento obsceno por parte de quem toma contacto com os trabalhos que faço, fazer as pessoas verem arte num corpo despido, admirá-lo e não alimentar sentimentos que desvalorizem o corpo que nela aparece. Trabalhou até aqui na série fotográfica Nu no Feminino? Como escolheu e determinou o conceito e a finalidade dele? Tenho desenvolvido vários outros projectos ligados à fotografia, em que o nu se destaca por ser um dos projectos mais polémicos no que toca a fotografia que faço. A finalidade do mesmo ainda está por se determinar, mas, a princípio, busco aumentar a auto-estima das pessoas com as quais tenho trabalhado, fazer com que as pessoas se admirem mais e passem a amar mais os seus corpos independentemente das mutações que o corpo possa apresentar. Há outros artistas que trabalham também com o nu artístico no país?

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Sim, existem vários outros artistas, embora com pouca divulgação dos seus trabalhos que realizam, mas há muito boa fotografia relacionado ao nu artístico a ser feita por este país. Quais são os confrontos entre o nu artístico e as determinações morais de nossa sociedade? Partindo da ideia de que o nu causa repúdio, a nossa sociedade ainda precisa mesmo de alguma educação mental e artística para que possa aceitar o nu como forma de arte. Quais são suas intenções e crenças que guiam seu processo artístico? É sempre bom a existência de alguém que quebra os tabus das sociedades, e eu mergulhei neste mundo dos nus de forma a fazer perceber que o nu artístico vai muito além de uma simples fotografia com o corpo despido; é preciso que se olhe para este tipo de fotografia e alimentar-se da mesma como arte, ou seja, o nu faz parte de nós como angolano; alguns povos do sul de angola carregam o nu como tradição, e a sociedade admira o corpo deste povo, vendo apenas a beleza que nele carrega. Qual é a relação entre nu artístico e questões da sexualidade, da aceitação do corpo? Apesar do nu artístico despertar a auto-estima, existe uma linha que separa o nu como arte da sexualidade. A arte do nu, muitas vezes, desperta na pessoa em si um prisma diferente na forma como encara o seu corpo; a pessoa passa a admirar os detalhes que alguma vez viu em si, começa a amar-se mais e nutre-se de confiança, deixa de ter insegurança, mesmo que veja algumas mutações no seu corpo.

“Toda e qualquer forma de expressão artística na sua fase “embrionária” gera sempre debates, críticas (boas ou más), mas, que com o passar do tempo, é sempre aceite e vista com outros olhos.”


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“Toda e qualquer forma

O nu artístico de expressão artística na vai muito além sua fase “embrionária” de uma simgera sempre debates, críples fotografia ticas (boas ou más), mas com o corpo que com o passar do temdespido po é sempre aceite e vista com outros olhos. Como fotógrafo de nus, acredito e tenho fé nisso.”

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Qual é a sua visão sobre a sexualidade em Angola, dos angolanos?

com pessoas que já desenvolveram certa confiança comigo, pessoas “amigas”.

É um tanto quanto delicado falar-se de sexualidade, mas, como artista e na visão daquilo que é a Angola de hoje, e dada a amplitude que a mente humana vai tomando devido a aceleração da globalização que se vive, a utilização do nu sem pudor tem causado estragos no seio de várias famílias devido a vazão de imagens colocadas a circularem pelas redes sociais.

O preto e branco é um estilo significante no seu trabalho, principalmente no projecto Nu no Feminino. Trabalha também com a presença da cor, ainda dentro do nu artístico?

Quem tem sido, geralmente, os seus/suas modelos? Por tratar-se de fotografia que envolvam corpos despidos, opto sempre por trabalhar

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Estou mais ligado ao Monocromático (Preto e Branco), porque não existe ruído entre a obra feita e a ideia que se pretende passar; quem olha para uma obra a preto e branco procura explorar a técnica existente para que se alcance o resultado exposto e, ao mesmo tempo, faz com que o olhar humano não se desvie do foco da obra.


O seu trabalho é exposto maioritariamente na internet. Pretende atingir outro patamar na forma de expor esse trabalho? Quais são? Actualmente, o mundo tornou-se pequeno devido a utilização da internet, conseguimos atingir vários cantos do mundo com uma publicação feita em Angola ou em qualquer outro ponto do mundo, ganhamos seguidores e admiradores pelo mundo a fora. Pretendo, num futuro, publicar o meu livro de nus. Para onde vai o nu artístico em Angola? Toda e qualquer forma de expressão artística na sua fase "embrionária" gera sempre debates, críticas (boas ou más), mas, que com

o passar do tempo, é sempre aceite e vista com outros olhos. Como fotógrafo de nus, acredito e tenho fé nisso. Um dia teremos exposições de nus com mais aberturas e aceitação dos críticos e da sociedade em geral. Hoje consigo ver o nu com pernas para caminhar… E para onde vai a fotografia, de forma geral, em Angola? A fotografia em Angola, apesar da abertura que existe e apresentação de muitos bons trabalhos de fotógrafos locais, ainda há muito que tem de ser feito, e é necessário a união dos artística fazedores dessa arte.

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Foto José Pinto

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Foto: Mauro Sérgio


Foto: Edna Kajango

Foto Rui MagalhĂŁes


Foto Ildo Step

Foto Flรกvio Cardoso 44 | Palavra&Arte


Foto: Carlla Alexandre Marรงo/Abril | 45


PORTFÓLIO | A mulher sob o rural

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Selma Fernandes Angolana de alma nobre, alegre e descontraída, encontrou na fotografia um meio para explorar, e expressar, o contacto com a natureza e com as pessoas. Revela, nas imagens que capta, o quotidiano na sua forma mais crua e natural. Dedica-se ao voluntariado, cujo foco são as pessoas albinas, distribuindo cremes e protectores solar e investe na consciencialização sobre o albinismo

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ENTIDADES

Museu Nacional de Antropologia Entidades é um espaço que contempla a divulgação de instituições e órgãos ligados à área cultural, para lhes compreender a função, razão de existência e sua utilidade para os seus destinatários (artistas e criadores).

Pode se visitar o museu por meio de marcação, onde a visita poderá ser com um guia. Ou ainda livremente sem qualquer marcação. Em grupo ou individualmente

Que tipos de actividades têm realizado?

Palavra & Arte traz para esta edição da revis- As principais actividades estão ligadas as ta o Museu Nacional de Antropologia celebrações do dia do museu, 18 de maio, com Exposições temporárias, Palestras com temas diversos no auditório do museu, em escolas do ensino O que é o Museu Nacional de Antropologia médio, nas universidades, etc. Atende pesquisado(porque foi criada)? res e artistas que estejam a desenvolver projectos culturais. Atende músicos que pretendam divulgar O Museu Nacional de Antropologia é entia cultura através dos seus vídeos. dade responsável pela recolha investigação, conservação e divulgação de pesquisas sobre o patri- Quando e onde funciona o Museu Nacional mónio cultural nacional. É vocacionado a assumir de Antropologia? a personalidade cultural através da revalorização e transmissão desta às gerações vindouras. Foi criado a 13 de novembro de 1976. Funciona de segunda a quinta-feira das 09h as 15:30, sextas das 09h as 15h O que Museu Nacional de Antropologia de-

senvolve na prática?

Desenvolve o seu acervo e colecções que comportam maioritariamente peças etnográficas que descrevam o quotidiano das diferentes comunidades históricas do país, olhando para as actividades produtivas, artísticas e culturais das comunidades.

Quem pode expor no Museu Nacional de Antropologia? Artistas plásticos, antropólogos e pesquisadores da área da cultura, com base em uma solicitação feita a direcção do museu.

Avenida de Portugal, nº 61, Coqueiros, junto ao Centro Cultural Brasil Angola

Contactos: Telefone: 222 33 70 24 (contacton temporariamente indispoinível) Email: antopologia@angoladigital.net Site: www.museuantoplogia.angoladigital.net Facebook: www.facebook.com/MNAntopologiaAngola

Como fazer para visitar o Museu Nacional de Antropologia?

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CONTO

Por: Cláudia Cassoma claudiacassoma@hotmail.com

Boa sorte, Dieji! Dieji corria, ia tão apressada quanto o seu respirar. Numa ida perenal, no que parecia um túnel negrejado com uma única janela no além, levava as dores do seu corpo manchado, mas dessa vez sem medo. Ela era mulher de porte africano, contudo não eram as nádegas que a cansavam. Dos cabelos que pareciam pedúnculos de imbondeiro escorriam as mesmas águas que se faziam lágrimas e deixavam nas elevações do seu rosto genuíno linhas de choros antigos. Lá ia Dieji. Enquanto corria, via-se impossibilitada de fazer distinções, tudo estava à beira de vanescer ou já o tinha feito. No começo, não sabia exactamente por que razão corria, só que incansavelmente o fazia. Ainda com os pés activos, virou-se para confirmar que atrás de si realmente havia um gigante, tal como faziam-lhe pensar os sons agressivos de botas militar. Parar de correr não pareceu-lhe aconselhável nem mesmo quando além de um passado escuro nada mais viu. Os sons agressivos eram os mesmos que os das noites cálidas, as pegadas que se desfaziam no enevoar pareciam as mesmas cicatrizadas nas suas costas. O barulho do silêncio que a incomodava plagiava o da voz do ébrio ser que, num dia, juntos perderam-se em sonhos e juras; o mesmo dos seus dias primeiros, o único da sua vida, o que chamou verdade exclusiva. Tal som era incomparável, conhecia-o bem, então, ao ouvir, correr era natural. Corria, ia tão apressada quanto o dançar dos ventos. No branco de um chegar que não podia adiantar, num distante alvo, viu o que nos olhos de qualquer desesperado parecia possibilidade e mais rápido ainda pôs-se a correr. Nos maboques que nela passavam por seios iam as águas dos quilómetros percorridos, desta vez mais açodados. O pouco de banha que ondulava o forno dos seus filhos oscilava ao ritmo dos pés calejados. Dieji ia! Sentia o desmedido bater do coração e desta vez já não era afeição. O sorriso não era o bobo, próprio de pessoa tomada de forte amor, era um que traduzia alívio. As borboletas que iam-lhe pelo estômago exprimiam um desejo impetuoso de reinventar-se. Via o excesso de agonia como o que lhe provocaria a metamorfose. A janela fazía-se mais perto. No musseque em que nasceu, mulher alguma tinha reivindicado, aliás, os seus sete tios foram concebidos em noites pungentes. Os sons agressivos aumentavam na medida em que via-se a chegar, mas em contrapartida, o seu desejo de metamorfosear também o fazia. A luta deixou de ser pelo afrouxar das pernas, pelo descansar dos olhos, e passou a ser uma pela mudança da sua própria mente, pelo dis-

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cernimento do seu querer e pela independência das outras. Deixou o suor que lhe banhava significar uma tomada de atitude há muito carecida. O chegar seria essa acção. — “Mulher não se comporta assim, filha” — ouvia agressivamente, desta vez aos pedaços. A voz da mãe quase já não se escutava pelos ruídos dos berros da avó: — “Vocês é que não aprendem, mesmo a vos ensinar, até hoje não sabem tratar bem dos vossos maridos, é por isso que eles se zangam” — berrava a velha. Enquanto isso, seus pés não cessavam, continuava a correr. Corria contra as correntes das normas da sanzala. Corria contra as correntes das vozes das senhoras grandes. Corria contra as correntes da escolha dos seus tios. Finalmente corria por si. Corria o mais rápido possível livrando-se de desnecessários decessos. Ia sem medo; talvez um pouco, mas não temia por si, temia pelo futuro do seu rebento feminino que pelo passado das suas já estava ameaçado também. Via nos soluços que a empurravam oportunidades para desfazer o ciclo, nos calores que alagavam os seus olhos inúmeras razões para acordar. Ainda custava-lhe acreditar que faria grandes coisas, mas tinha na cabeça que se lhe permitissem fazer uma coisa apenas, essa seria a sua ida. O chegar fazia-se alvo, mas não sem o escurecer do seu nó gargantal. Numa ida agora vista perecível, no que parecia um túnel em degradação com uma única janela no além, levava a sua exsudação à uma realidade que parecia-lhe virente, mas dessa vez determinada. Pelo furibundo tossir que deixou sair ao duro e desesperado dançar das pernas esticadas no frio chão, a mão do poltrão que a tinha amoleceu e escorregou do pescoço. Em pé, distraiu-se com o reflexo do resto de beleza que portava. As mãos do bárbaro estavam ainda tatuadas nas vias do pescoço adiposo, sentia o peso dele nas dobras do seu ventre e isso via nas marcas deixadas pelos seus joelhos. Cada berro seu era visto nas feridas que trazia. Ao notar que no organizador de maquiagem frente ao espelho já não havia base nem pó suficiente para cobrir as manchas daquela noite, pelo espelho, no canto dos seus olhos, viu no rosto lacrimoso da filha, agarrada à porta entreaberta, razão para um último adeus. Com isso, confiava que Minguito, o seu filho pequeno, aprenderia que violência não era o seu gênero e Mionga, a filha mais velha, diferente dela, jamais precisaria se conformar com gigante algum e independentemente das botas militar a opção de ir embora seria uma que sempre teria à sua disposição. Aos quarenta e poucos anos Dieji atreveu-se a crer em felicidade e ainda que só, uma sem dores. — “És tonta se achas que te vão aceitar com tantos filhos?” — Ironicamente, a primeira vez que ele dirigiu-se à ela de mãos vazias foi a última também. — “Boa sorte, Dieji!” — Expressou-se em tom sarcástico. Dieji abriu os olhos e, por fim, o branco que via no além eram as suas malas feitas.

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