Revista Palavra & Arte 8º Edição | Janeiro & Fevereiro

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Smá uSu má riorio Editorial| 04

Cronicando: O homem é lágrima| 06 Proposta Literária: Milagrário Pessoal: um livro de cabeceira | 09 Ensaio: Pinturas dos Ecos (Prémio Literário António Jacinto 2019), uma obra que insinua o retorno às raízes angolanas | 10 Estilos & Cores: Arte é educação | 16 Grafite: Galeria a céu aberto: Um olhar sobre o grafite na urbe luandense| 18 Perfil Artístico: Arte visual na emergente Yola Balanga | 26 Palavrandando: Novos espaços urbanos: a reivenção dos espaços artísticos e culturais | 32 Arte pela Arte: Hip hop: do nada para alguma coisa | 37 Portfólio: O magma dos Murais da Leba| 40

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FICHA TÉCNICA Coordenação editorial Luefe Khayari

Revisão

Mário Henriques

Design & Diagramação Kaz Mufuma Oliveira Prazeres

Colaboração Adriano Cangombe Amário Alberto Edmira Cariango Manuel Miguel Santos Nelson Malamba Pedro Mayamona Sófia Yala Media Sociais & Contacto

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Redacção

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ANO 04|20 ED.08

JANEIRO & FEVEREIRO

A REVISTA PALAVRA & ARTE É um projecto indenpendente que surge com intuito de divulgar toda produção artístico-cultural feita por artistas angolanos (residentes ou não no território nacional), tirando-os do anonimato e promovendo todas as formas de manifestações artísticas de jovens que procuram se expressar através da sua arte. Pretendemos, assim, ser capazes de responder a demanda de espaços capazes de abordar temas do nosso raio de actuação com a maturidade e seriedade que se exige, contribuindo dessa forma para a divulgação artístico-cultural angolana. Janeiro & Fevereiro | 3


E d i t o r i a l

ARTE É NOSSA VOZ

QUATRO ANOS

, oito edições, vários suplementos e dossiers bem como centenas de artigos publicados, é o resumo vivo de como a força de vontade do universo Palavra&Arte não esmoreceu. Nossa luta por um país onde a arte tenha voz, embora seja levada com certa exclusividade no mundo virtual, tem sido proclamada com a veemência do sangue que corre nas veias de quem deseja a mudança e faz alguma coisa por ela. Seguimos embebidos por uma motivação descomunal, pois temos arrancada a desistência dos nossos ideais, aprendendo muito e ensinando a quem tenha mente aberta e fome de aprendizado. E sendo a arte educação, com ela se forma uma solidez intelectual que fornece ferramentas para o desenvolvimento das sociedades, porque, afinal “independentemente do tempo e do espaço, a arte sempre teve um lugar preponderante na construção da subjectividade de todos os povos, de todas as culturas” (Isis Hembe). O ano 2019 marcou o findar de uma década repleta de criações e manifestações artísticas, dominadas maioritariamente pela principal força electromotriz que faz mover qualquer sociedade, a juventude. Nesta edição, como em todas as outras que a antecederam, apresentamos provas do que os jovens da tão famigerada “geração frustrada” têm feito, têm visto, vivido e criado com tanto ímpeto que chega a soar descabido qualquer opinião vinda de quem apenas permanece cego por opção. Os factos, os feitos, falam por si. E nesta senda estivemos, estamos, nós, Palavra&Arte, debruçando olhares diferentes nas distintas formas de arte, quer sejam de rua, de palco ou outra. E, portanto, quando o desdobrar da década começar a trazer os novos programas, as novas ideias, os novos projectos imbuídos de ansiedades e ambições, nós estaremos aqui para colher e apresentar os frutos da tamanha diversidade criativa derivada da inspiração de quem tem na arte a voz. São os desafios da actual geração que inspirou o tema da actual edição, por ser algo que comunga a ideia da constante busca por afir-

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mação. Trata-se da Arte Urbana, que se apresenta “como um espaço de disputa visual, pois nestes confluem imagens de várias manifestações, procurando mecanismos de demarcação de espaços para se afirmarem” (Adriano Cangombe). Dentre as várias manifestações, apresentamos um breve historial sobre o Hip-Hop, uma das culturas mais célebres pelos quatro cantos do globo e que já foi, e ainda é, um dos elementos que favorece mudanças e crescimento social. Não se fala de Arte Urbana sem se descrever os desígnios do Hip-Hop, “onde o nada aparente gerou um universo de possibilidade de expressão de vários discursos quer sejam visuais, corpóreos, linguísticos ou sonoros. (Isis Hembe). “[A arte] vem ocupando lugar significativo nos espaços urbanos da sociedade, criando convergências, potencializando contradições, integrando vazios urbanos, reivindicando também a harmonia ao desatacar as contrariedades específicas dos homens” (Kaz Mufuma). É com este preceito, dentre tantos outros, que esta edição saiu à rua, para mostrar que belezas se vêm apresentando desde as distintas paredes de Luanda aos murais da Serra da Leba. E assim, com o volume mais alto do megafone da arte, aqui estamos, pela oitava vez, para mostrar ao mundo, e aos distintos universos sociais, a resiliência de quem está e vive pela arte, pela cultura, pelo reconhecimento e engrandecimento de tais substâncias que procuramos tê-las cada vez mais proeminentes para ajudar a reencaminhar o nosso país longe do lamaçal de incongruências artísticas, culturais e sociais em que se vê cada vez mais absorvido. Luefe Khayari, Coordenador Editorial

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O HOMEM É LÁGRIMA Texto: Miguel Santos| O homem só é pela lágrima. Até antes da lágrima, tudo que existe é apenas barro solidificado, sem chama, ruindo com o movimento abrupto do tempo que come absolutamente tudo que existe nesse esplendoroso e sempre imprevisível universo. É pelo olhos que se vê a alma, e pela lágrima que se sente alma. A lágrima molda. A lágrima é a transformação literal e completa do homem. Sem lágrimas, não há homem. Há lágrima do menino, e a lágrima do homem. A lágrima do Homem é revolução. É ascensão para o próximo estágio de evolução. É liberdade pura. Se um Homem não chora, não é. Até ter chorado, Homem está apenas. Está no mundo apenas. A ser empurrado pelos padrões desenhados por outros homens que não foram, não são e provavelmente não chegarão a ser Homem. É pela lágrima que começa a transformação. A raíz do Homem é a lágrima. A água quente e salgada a queimar-lhe o rosto desavergonhadamente e a incendiar os sentimentos diversos que tem no coração. É o grito de vida. O sinal de que há um Humano aí. Seja de graça, dor, pena, medo, perda e outra coisa qualquer. Um Homem sem lágrimas é homem. Guerrear contra a lágrima é um falhanço. Um erro atroz. É evitar o crescimento. É perpetuar o fardo. Um Homem carregando fardo que podem ser deitados fora através da lágrima é só homem. É pequeno. Penoso. O Homem só é pela lágrima. O deus nasce no Homem quando se permite que a lágrima brote. Quando não há resistência. O mundo é choro, e deus é lágrima. Água triste e alegre correndo sobre os olhos da multidão. Sensibilidade materialização. Homenização do ser. Odeio homens de ferro. Homens sem vida. Homens sem lágrimas. Homens musculosos, incapazes de permitirem o crescimento da lágrima nos seus olhos. Homens que não choram. Homens que guerreiam sobre o Universo e escrevem longos discursos sobre a necessidade da não lágrima nos homens. Odeio esses garanhões estúpidos. Esses génios com teorias infundadas. Os que têm tempo para tudo, menos para lágrima. Escrevi Homem, mas desenganem-se, meus caros. Esses são homens. O Homem, com vida e alma, é lágrima. 6 | Palavra&Arte


Cronicando

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P r o p o s ta L i t e r á r i a

“ Mil agrário Pessoal” Um livro de c abeceira Texto: Edmira Cariango Manuel |

JOSÉ

Eduardo Agualusa foi galardoado recentemente com o Prémio Nacional de Cultura e Artes 2019, na categoria de Literatura, pelo seu contributo à expansão da Literatura Angolana no exterior. O seu livro “Milagrário Pessoal” é um romance de aventura, que reúne 180 páginas de viagens ao universo da juventude e da velhice, de leitura divertida e aconxegante. Conta a história de um professor angolano residente em portugal e Iara, uma jovem linguista portuguesa. Iara é uma neologista, recolhe palavras novas em textos num jornal. Iara depara-se com mais de 100 palavras novas (neologismos) e, na confusão, vai pedir ajuda ao professor angolano, filólogo. Os dois viajam para conversar com Mara Bruto, jornalista do jornal “O Público” , depois se encontrar com Alexandre Anhanguera, poeta, e Plácido Domingos, seu amigo, a fim de descobrirem a origem daquelas palavras. Regressam. Todas aquelas palavras surgiram de um manuscrito antigo de origem angolana que o professor usa para chamar atenção de Iara. Mais tarde, Iara descobre que o professor planejara tudo, desde o princípio ao fim, para se salvar da depressão da velhice.

É impossível não se divertir nem rir, muito menos não aproveitar das várias informações que se encontram na obra como a origem da língua, o processo de evolução do português e a rica capacidade de criatividade linguística dos angolanos, bem como aproveitar-se de algumas leituras do professor, assim como saber como foram então produzidos alguns dos sucessos de Camilo Castelo Branco, através das suas leituras..., o professor, também narrador autodiegético, é um ávido leitor. Esta obra sugere outras leituras, viagem à história e um passeio aos imprevistos e milagres do dia-a-dia. Boa viagem, queridos leitores.

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E n s a i o

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F

PINTURA DOS ECOS (PRÉMIO LITERÁRIO ANTÓNIO JACINTO 2019)

UMA OBRA QUE INSINUA O RETORNO ÀS RAÍZES ANGOLANAS

elicitamos Ema Nzadi, pelo Prémio e pela concepção da sua obra de estreia, sem nos esquecermos de o agradecer pela consideração inclusive por nos ter escolhido para apresentação de Pintura dos Ecos. Relativamente ao universo literário, a estranheza é um dos resultados que se espera da leitura de textos predominantemente estéticos, e surpreende-nos Emanuel Vieira Cambulo, de seu nome completo, por ser o laureado com o Prémio Literário António Jacinto 2019. Um jovem poeta albergado nas entranhas do Movimento Litteragris do Zaire, com publicações esporádicas no facebook, os seus textos nunca despertaram tanto a nossa atenção ao ponto de pensarmos que arrebatariam um prémio de tamanho valor no âmbito das letras e das instituições de legitimação literárias, como o António Jacinto, daí termos feito recurso à dúvida, desenvolvendo curiosidade e atenção para leitura dos poemas com que Ema Nzadi é elevado à História, à Instituição Literatura Angolana e, quiçá, à Literatura Universal.

Texto: Pedro Mayamona | Apresentação da obra vencedora do Prémio Literário António Jacinto, 2019 Janeiro & Fevereiro | 11


Um escritor nunca está isento dos momentos em que produz o seu trabalho, podendo ser influenciado pelo meio em que está inserido e, ainda que se expresse no singular, ele é capaz de representar a memória colectiva de uma sociedade, daí que Emanuel Cambulo, filho da província do Zaire, residente no Soyo, com alguns traços da agremiação artístico-literária em que está vinculado, Litteragris, apresenta-nos Pintura dos Ecos, um conjunto de trinta e um (31) poemas, dos quais notamos ruptura na escrita habitual dos títulos que, em vez da parte cimeira, vêm no final, estando ainda patente o desmembramento das palavras em alguns versos, sob forma de encavalgamento: “cá / rego / infinita mulher” (no texto Mukongo, p. 34) ou ainda em “In Digna Acção” (p. 26), originando ambiguidade nos versos, que se tornam uma riqueza morfossintáctica e semântica que, se bem explorada, se consegue perceber a nossa afirmação. Discorrendo sobre os poemas, deparamo-nos com múltiplos recursos expressivos que incidem no nível fónico, com proeminência da assonância e a aliteração: “longe de mim não estás / seu céu sou / tu és (m)eu” (em Zaire, p. 23); no nível sintáctico, anáfora: “hoje sou luz / hoje só corpo Makinu” (no texto A Custo, p. 24), enfatizando-se o enfado do sujeito lírico, pelo sentido de actualidade para o qual o advérbio repetido nos remete; no nível semântico, imagem: “vozes deste chão” (Pinturas dos Ecos, p. 22), em que “vozes” ocorre como metonímia de pessoa: o autor emprega a parte no lugar do todo, pretendendo uma renovação da composição escrita.

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Lendo Pintura dos Ecos, confrontamo-nos com termos em Kikongo, uma das línguas nacionais de Angola com uma dimensão transfronteiriça, também falada na província de que o autor é originário, Zaire, onde alguns morfemas encerram uma dimensão proverbial, a título de exemplo temos o texto “Kimbemba” (p. 38), que, na cultura local, é nome de um pássaro de mau agouro, por encarnar a morte, transportando a crença de que nem toda morte é simples acidente, ou seja, há mortes provocadas, sobretudo em casos que o corpo do defunto não aparece, acusando-se os espíritos como os principais responsáveis. Neste sentido, o desaparecimento físico de alguém pode ter uma explicação física (do ponto de vista patológico) e outra além da física, de acordo com as elucidações que nos foram dadas pelo próprio autor e pela Formosa Castelo, uma Senhora entendida em matérias sobre algumas culturas de Angola, numa conversa que mantivemos a respeito do pássaro “Kimbemba”. Os Poemas de Pintura dos Ecos insinuam o regresso ao passado, especificamente às raízes culturais e tradicionais de Angola, o que se percebe pelos signos linguísticos do título: “Pintura”, que corresponde à representação de uma imagem numa tela, e “Ecos” que nos remete para o movimento de um som que se propaga no ar ou que retorna à sua fonte de produção. Realçar que a pintura é uma das formas de expressão das artes plásticas em que a vida e o mundo são apresentados pela interposição das cores, revelando uma parte da cosmovisão do seu autor. Como reforço do significado semântico


veiculado pelo título Pintura dos Ecos, o escritor Ema Nzadi faz citação de algumas letras musicais do malogrado Teta Lando, numa epígrafe: “Nuni yenuni zivovakwandi / (…) / Ngyenda kuna yawutilwa / I’nvoveswanga”, da língua Kikongo, que, numa tradução literal, significa: “Os pássaros dizem-me que eu volte à terra onde nasci, dizem-me”. No Medievalismo, torna-se recorrente o culto aos valores da antiguidade clássica, greco-romana, como forma de o artista se aproximar aos deuses, aos grandes, relembrando-nos as potencialidades da Grécia e também de Roma. Em Pintura dos Ecos, os sujeitos poéticos propõem o retorno aos tempos idos sob espécie de saudosismo, realçando um momento que contrasta com o presente.

“Os Poemas de Pintura dos Ecos insinuam o regresso ao passado, especificamente às raízes culturais e tradicionais de Angola”

Outrossim, o passado, embora revestido de dureza, constitui-se em manancial de prazer, fonte de vida e bonança, pelo recurso aos morfemas “ilhas” e “mar” presentes na imagem da primeira estrofe e da quarta, do poema que dá título à obra, donde se pode ler: “vozes deste chão banham na pele dos séculos cheiros vestindo ventos de volta trazem ilhas ecos das durezas”

Pintura dos Ecos, uma obra de valor monumental, apresenta-nos não somente o imaginário do seu autor, mas também um punhado da visão da sociedade que, saindo de uma fase embrionária, progride para o momento actual, pairando no imo dos diferentes sujeitos poéticos a ideia de frieza que encarna as relações interpessoais entre os mais velhos e os

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mais novos, sendo sugerida reconciliação por meio do diálogo, que nos vem sob vozes: “vozes deste chão banham na pele dos séculos cheiros vestindo ventos” (…) “nenhum tempo abraça comboio locomovem com elos ecos” No fragmento em alusão, a palavra comboio dá-nos a entender a velocidade com que correm os dias hodiernos, pelo que ninguém tem tempo para ninguém. Em contrapartida, a voz poética diz: “nenhum tempo abraça comboio”, todos se “locomovem com elos” e “ecos”. Outros temas que atravessam sobre os poemas de Ema Nzadi são os diferentes tipos de amor com que se trajam os laços afectivos na actualidade, a saber: o amor

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por simpatia, ou melhor, aquele em que há partilha de afectos e um projecto futuro para os envolvidos, para se confirmar no texto “Homenagem ao nosso Amor” (p. 25); o amor platónico, em que o objecto do amor é inacessível, e o amante vive consumido pelas labaredas da paixão, exemplo no texto “Nestas Curvas Rio” (p. 28) ou em “Humi(l)dade nas Rochas” (p. 29). Trespassam ainda sobre a obra algumas calamidades que enfermam a nossa sociedade, como a fome, citada em “Estigma” (p. 20); a guerra e a morte, em “Nvita” (p. 36), revelando-nos a função estética e utilitária da arte, usada como arma de combate, pelo que, o seu autor, não estando alheado às circunstâncias ao seu redor, intervém socialmente. Lida e analisada Pintura dos Ecos, dissipamos as nossas dúvidas, percebendo que o Prémio lhe é merecido e recomendamos a sua leitura.


AQUI PODERÁS LER ARTIGOS QUE TRAZEM UM OLHAR DIFERENTE SOBRE A PRODUÇÃO ARTÍSTICA E CULTURAL ANGOLANA

BAIXE E LEIA AS EDIÇÕES DA NOSSA REVISTA EM: HTTP://PALAVRAEARTE.CO.AO Janeiro & Fevereiro | 15


E S T I LO E C O R E S

ARTEÉ

EDUCAÇÃO A

Te x to : I s i s h e m b e

história da humanidade é bastante ilustrativa quanto à relação de enamoramento entre a arte e educação. As paredes decoradas pelas pinturas rupestres são motivos de especulação científica que advogam ideias, segundo as quais, aquele tipo de arte guardava instruções relacionadas à caça, às normas dos rituais de fertilidade e expressão de conceito, valores, crenças, entre outras coisas que adornavam o quotidiano do homem da pré-história.

inteligível (das ideias) e o mundo sensível (o mundo material) fez com que muitas manifestações artísticas fossem relegadas a uma periferia. Principalmente aquelas manifestações artísticas que representavam as coisas, como caso das artes plásticas e da poesia. O argumento do autor era que, sendo o mundo inteligível o mundo real, e o mundo sensível a cópia do mundo inteligível, as artes representativas (mimese) eram cópias da cópia. Portanto, de certa forma, inferiorizadas.

O folclore de todas as culturas também é um celeiro de cantigas, estórias, provérbios, canções, danças que ilustram o cariz imemorável da tendência do homem de passar ensinamentos por meio das artes.

Essa visão foi redimida por outro pensador de orientação mais monista, Aristóteles. Esse também pensava que a arte devia ser moralizadora mas, contrariando seu antigo mestre, Platão, não para atingir um mundo somente inteligível, mas para melhor adaptação à cidade, a polis.

No entanto, a teorização desse tal contributo teve uma data no calendário da história da humanidade. Trata-se de mais ou menos cinco séculos antes da era comum em que Platão, filósofo grego, pensou o posicionamento ideal do relacionamento das artes com a educação. Segundo este autor, as artes deviam possuir um carácter moralizador no sentido de estimular os cidadão a inspirarem-se a elevar suas almas para o mundo inteligível. Ou seja, era das artes a missão de inspirar os homens a superar o mundo material, o mundo dos sentidos. Todavia, essa mesma distinção do mundo

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Daí em diante, foi um desenrolar dessas ideias até chegar ao advento do cristianismo, que mais tarde culminou com a exploração europeia do globo terrestre. A evangelização do planeta tomou de assalto a agenda dos maiores impérios da época, bem como a intenção política da conquista de novas fronteiras.

Assim, o carácter educativo da arte passou a ser o de elevar os valores da ortodoxia cristã que eram o de temeridade ao sacrifício de Cristo.


Apesar da multiplicidade das culturas africanas,l pode-se aferir que o aspecto educativo a partir de valores místicos, é bastante evidente. Figuras como o Kuku, vulgo Pensador, e a máscara, Muana Po carregam, além da simbologia mística, um sentido, moral orientador de respeito à vida natural.O Renascimento, período que veio logo a posterior, dissocia-se um pouco da perspectiva de uma relação muito óbvia entre as artes e a educação, privilegiando a estética. No entanto, a arte ainda assim serviu para ilustrar a ideia do antropocentrismo que vinha se opor ao teocentrismo da era medieval. Nesse contexto, as esculturas e as pinturas que mais se destacaram eram as que enfatizavam esse ideal. A modernidade e pós-modernidade não produziram padrões homogéneos relacionados à relação da arte e a educação. Os contextos sociais e culturais de um mundo globalizado produziram vários movimentos, e cada um destes foi pintando a textura da relação da educação e arte à sua medida. Dentre esses movimentos, pode se destacar os seguintes: O Movimento Naturalista que consistia na visão estética de representar as coisas no seu ambiente e aspecto natural. Seu carácter pedagógico assentava-se na ideia de apresentar nulidade do homem perante as forças da natureza. Ideias que foram engrossadas com a Teoria da Evolução das Espécies de Darwin. O Movimento Expressionista que vem dar ênfase ao sujeito em detrimento do objecto como no caso do naturalismo. Ou seja, ao invés da representação dos objectos na natureza, passou a ser privilegiado o olhar pessoal do artista.

Desses dois movimentos, surgiram outros que alternavam a prioridade ora no objecto, como caso do realismo, ora no sujeito, como no caso do surrealismo. Contextualização Africana Apesar da multiplicidade das culturas africanas, pode-se aferir que o aspecto educativo a partir de valores místicos é bastante evidente. Figuras como o Kuku, vulgo Pensador, e a máscara Muana Po carregam, além da simbologia mística, um sentido moral orientador de respeito à vida natural. Há linhas teóricas que defendem que a natureza oval do Pensador é uma referência ao estado de integração do homem com a natureza. Tal integração permitiria o alcance do reino dos ancestrais, permitindo uma interacção mística com a realidade. Artes Urbanas As artes urbanas vêm num contexto contracultural onde artistas reivindicavam uma voz num panorama de metrópoles despersonalizadas. Assim, paredes de cores pálidas deram origem a verdadeiros museus a céu aberto. As consequências imediatas foram a integração e participação dos cidadãos na estética da cidade, apropriando-se de toda uma linguagem urbana. O sentimento de pertença decorrente de uma cidade cuja construção da imagem é democrática. Eu suma, independentemente do tempo e do espaço, a arte sempre teve um lugar preponderante na construção da subjectividade de todos os povos de todas as culturas.

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Grafite

GALERIA A CÉU ABERTO:

UM OLHAR SOBRE O GRAFITE NA URBE LUANDENSE

Texto: Adriano Cangombe | Foto: Nelson Malamba | Não faremos, neste texto, uma tentativa de construção histórica linear da arte urbana em Luanda, mais especificamente do grafite. Pois, pensamos que a essência da narrativa historiográfica artística assentaria suas bases em questões estéticas, filosóficas, culturais, sociológicas, antropológicas, históricas, epistemológicas e metodológicas, o que não temos por falta de bibliografia (produção e divulgação) e uma sistematização de tais conhecimentos. Assim, o presente texto é uma tentativa de mapeamento dos principais espaços e sítios onde a arte urbana luandense se apresenta com maior força, especificamente o grafite. Vale dizer que estamos em presença de um objecto de estudo bastante fértil e virgem, dado a falta de pesquisas e produção artística.

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TAGS QUE DESENHAM UM CONTEXTO E POSSÍVEL CONCEITO

Na década de 1960, a arte nos mais importantes centros artísticos e culturais ocidentais assiste grandes transformações. Movimentos como o Dadaísmo, mais propriamente com Marcel Duchamp, viria a ser uma das grandes influências nesse processo. A arte por meio destes fragmenta-se em termos de materiais, linguagens, meios, ideias, valores e etc. Há um total rompimento com a tradição dos paradigmas da História da Arte, o valor é substituído por uma lógica onde a ideia é a regra do jogo. Além da introdução de materiais extra-artísticos, Duchamp cunha com suas ideias uma lógica, onde o lugar de exposição faz dos objectos obras de arte. (Cauquelin, 2010). A influência do Dadaísmo diluiu convenções e padrões que, por longos séculos, vinham determinando o que era ou não obra de arte. Sua força originou movimentos como a Arte conceptual, o Minimalismo e a Arte Pop. Todas estas mudanças em volta da arte como sistema acentua-se, no princípio dos anos de 1980, com a Arte Pop, onde artistas se apropriam de outros espaços fora da galeria, entregues oficialmente, assistindo-se colaborações entre artistas e arquitectos no intuito de intervir e transformar visualmente os espaços urbanos (Oliveira, 2013). Artistas como Andy Warhol transformaram personagens da história, celebridades, ícones de consumo em temas muito vinculados ao quotidiano e à cultura de massa. Nova York será neste contexto o epicentro destas manifestações que buscam novas formas de comunicação cujas linguagens são codificadas. Bansky e Jean Michel Basquiat são artistas que se viram eternizados na história da arte, exercendo grande influência em artistas do mundo inteiro e sobre artistas de comunidades negras marginalizadas. A Arte Urbana (Street Art) apresenta-se como um espaço de disputa visual, pois nestes confluem imagens de várias manifestações, procurando mecanismos de demarcação de espaços para se afirmarem. Nesta lógica, nos espaços urbanos decorrem manifestações que vão das artes plásticas (pintura mural, grafite, esculturas urbanísticas, etc.), hip hop (música, dança, skate, etc.) e artes de acção processual e efémeras. Janeiro & Fevereiro | 19


Mais precisamente, arte urbana diria respeito, então, a toda uma linhagem que se desenvolveu a partir da pichação (escritas em parede) e do grafite, estas duas modalidades cujo histórico de colaboração envolve similaridades e diferenças entre as suas operações, as suas estratégias e os seus propósitos. (Dalcol, s.d.). Se os espaços são automaticamente factores de legitimidade artística, como acontece, e muito, no caso das artes visuais em relação às galerias e talvez uma ideia elitizada da arte na arte urbana, a lógica não muda. São os espaços, independentemente de suas características, os factores que conferem a estas propostas artísticas seus valores, sua autenticidade e impacto no meio inserido. Na linha ténue entre a vandalização do(s) espaço(s) público(s) e a manifestação e necessidade de uma autoexpressão, que moveu e move até hoje grande parte dos artistas pioneiros desta arte no mundo inteiro, está a essência duma arte estritamente contestatária. 20 | Palavra&Arte

O Graffiti possibilitou uma nova percepção da arte: de baixo custo, sem cânones estéticos definidos apesar da influência dos estilos modernistas (Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo) e acessível a qualquer um com coragem para enfrentar – em muitos momentos e por essência – sua ilegalidade. Com ele, a arte foi efetivamente para a rua e interagiu com o espaço público e a dinâmica da vida urbana. (Cauquelin, 2010).


EXPOSIÇÕES A CÉU ABERTO EM LUANDA

Por quase todos os cantos da cidade Luanda, uma policromia contrasta todos os dias entre os raios que enunciam um novo dia e um jogo luminoso entre postes de iluminação e lâmpadas domiciliar nas ruas, faróis de automóveis e o luar. Os suportes se expandem entre tons de cinza do cimento: muros, pontes, viadutos, paredes, etc. O poder de intervenção social que esta manifestação possui é algo que ao nosso ver não são muito explorados pelos artistas. O grafite, nascido e forjado nas ruas, hoje é uma prática institucionalizada em muitas paragens do mundo (o que talvez amortece sua essência revolucionária, o seu sentido de vanguarda). Não estamos sendo generalistas, mas pensamos que o grafite não tem expressão em Luanda por duas razões, cujas hipóteses são discutíveis, pois são de bases empíricas : a) O que tem estado na base das criações não são elementos que expressam concretamente anseios da colectividade, servindo-se de sua substância contestatária. b) Não havendo um número considerável de

artistas e fazedores, o movimento enfraquece seu poder de intervenção social. O centro da cidade de Luanda (Mutamba, Kinaxixi, Ingombota, Maianga) concentra um número maior de obras, artistas e estéticas. A rua dos mercadores, por exemplo, é cenário para muitas intervenções, sobretudo gravação de vídeo-clips de géneros musicais como rap, kuduro e afro-house. O mesmo sucede com a fachada da Casa 70 em direcção ao parque da independência. Vários são os artistas cuja essência musical tem raízes na street, nos gestos, nos bairros procurando por estes espaços, na ideia de misturar linguagens, pois são manifestações interligadas culturalmente na urbe. A rua Rainha Ginga conserva algumas pinturas que precisam ser restauradas. O viaduto que liga a travessa do Museu de História Natural apresenta murais e grafites esteticamente muito elaborados, conferindo ao recinto, um cenário policromado e bastante agradável de se apreciar.

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Deixando a cidade, o troço que liga o Rocha Pinto ao Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro é uma outra galeria repleta de ilustrações e representações. Os temas são diversos, assim como os motivos pictóricos, passando de uma estética tradicional a linguagens mais urbanas; junta-se a este mapa, o troço que liga a Samba e a Mutamba, conservando pinturas em muros, grafites , pichações e tags de vários artistas, destacando-se a Verkron; não fica de fora o troço que liga a Vila de Viana ao Cazenga. Entre pichações e grafites, pedestres e passageiros nos candongueiros apreciam várias representações. Estes são alguns lugares que mereceram nossa atenção, mas certamente que o número de avenidas, ruas e zonas não terminam nem na baixa de Luanda nem nos bairros mencionados.

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As pontes e viadutos não ficam de fora. De forma muito breve, apontamos o viaduto situado no São Paulo, defronte do prédio do livro. O projecto contou com vários artistas plásticos filiados a UNAP e grafiteiros. As pintaras foram muito bem executadas de temas bastante diversos. Outro viaduto situa-se na via Congolenses-Maianga, em cima do Catetão (campo de treino do Petro Atlético de Luanda), com boas composições e artistas plásticos diversos.

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UM POUCO SOBRE ELES O grafite em Luanda é uma manifestação embrionária, com um número muito reduzido de artistas e colectivos. “Ainda é algo inicial. Ainda está muito desorganizado. Não há união entre os grupos. Cada um pinta por si. Temos tido algumas parcerias com um outro grupo, Bawcru, tirando isso, não há mais nenhuma parceria” (Hemak como citado em André, 2016). Andy Graft é um nome bastante significativo em matéria de grafite em Luanda e a este juntam-se nomes como Spenth e o Colectivo Verkron, que são ao nosso ver os nomes mais sonantes desta manifestação artística em Luanda. O último inaugurou em 06 de Setembro sua mais recente exposição intitulada Kalunga System, na galeria Jameck, rua dos coqueiros, em Luanda. A exposição trouxe elementos de várias linguagens e técnicas, entre pinturas em tela, mural, fotografia e vídeo-criação. Desde 2010, este colectivo vem construindo um legado artístico que saiu das ruas e institucionalizou-se em projectos como os Murais da Leba e de exposições de arte contemporânea, com destaque a participação permanente no Fucken Globo, plataforma de arte que desconstrói a ideia da galeria como espaço legitimador-elitista. O mesmo colectivo pintou no mês passado, na rua Dr. Américo Boavida, na baixa da cidade, aquele que parece ser o maior mural na cidade de Luanda, numa colaboração com o artista espanhol Mr. Sor Two. Sem desprimor dos outros cá citados e não só, destacamos o Verkon por ser, no nosso entendimento, o colectivo mais organizado, com um estatuto que o diferencia bastante, muito por conta de seus ideais, convicções e filosofia, assim como o papel de consciencializar e levar às pessoas um olhar interior sobre si e sobre o mundo por meio da espiritualidade que muito cultivam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Cauquelin A. (2010). Arte contemporânea. Publicações europa-américa. João, N. (2019). Glat bantu, mural do colectivo Verkron na baixa de Luanda. Chocolate lifestyle. In chocolate.co.ao Oliveira J. L. V. de (2013). A cidade como suporte artístico: o papel do Graffiti em estratégias de renovação urbana. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.

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Peril Artístico

Arte Visual na em ergente

Yola Balanga

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e tudo que já se ouviu sobre os artistas, na generalidade, pode-se citar manias, características e outros, como pessoas inteligentes, mas pobres, que fazem riquezas mesmo depois de mortos e às vezes nada vaidosos. Todas estas informações foram dadas pela geração de artistas dos séculos anteriores. Em pleno século XXI, talvez pela primeira vez, uma artista deseja trabalhar para ser rica. Este é o desejo e o sonho de Margarida Celestina Balanga, de nome artístico, Yola Balanga. A jovem artista de 25 anos de idade, natural do município do Cazenga, é artista visual e multidisplinar, como ela mesma se intitula, por também gostar e fazer artes ligadas à performance. Quanto à arte visual, ao contrário do que foi e ainda possa ter sido entre os artistas nacionais, Yola tem formação superior. Embora tenha começado recentemente a sua relação com as artes plásticas, no seu 3º ano de formação superior, isto em 2017, já matinha uma forte ligação com a arte da performance por causa da sua ligação com o teatro. Porém, escolhe as artes plásticas por ser aquela que neste momento lhe proporciona uma linguagem que lhe permite exprimir o que pretende. E como qualquer artista emergente, Balanga teve e tem as suas referências. E as que mais lhe serviram como fonte de busca de ideias para as suas próprias obras performáticas e plásticas foram e são Maria Abramovich (esta que foi muito importante para sua compreensão do que é performance), Renata Torres, Rozemara Kielela, Regina José Galindo e o eterno ar tista que, como ela mesma diz, admirará para sempre, Michael Jackson.

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Texto: Isis Hembe & Mรกrio Henriques | Foto: Sรณfia Yala | Janeiro & Fevereiro | 27


Ocultando | 150cmx145cm Acrílico s/Tela - Madrid 2019 | Mesmo tendo pouquíssima idade no mundo das artes plásticas, foi, em Agosto deste ano, participante de uma residência artística organizada pelo Atelier Solar na cidade de Madrid, Espanha, que terminou com uma exposição que esteve patente durante uma semana na La Nave Sánchez-Ubiria-Madrid. Tudo isso foi graça a um open call feito por este mesmo atelier, destinado a artistas africanos emergentes. Quastionada sobre como os artistas angolanos devem trabalhar, respondeu dizendo que “é muito relativo, porque, primeiro, depende da visão que o próprio artista tem sobre a sua carreira, se é uma opção fazer mercado fora”. “Penso que começa por se arriscar, investigar as probablidades disso acontecer. Por exemplo, hoje, pesquisando pela internet, consegues ter acesso a open call e fazeres a sua inscrição e, de uma certa maneira, começares a ser conhecido mais fora do que dentro do seu país”, terminou com a resposta à pergunta. Porém, sabe-se que, geralmente, para um 28 | Palavra&Arte

reconhecimento internacional, se precisa, primeiramente, de um reconhecimento nacional. E isso depende de muitas coisas, entre elas a expansão do mercado das artes plásticas que, no entender da artista visual depende somente de trabalho, pois para ela não há outra fórmula. Já que tudo, segundo Yola Balanga, depende da fórmula trabalhar, diz que ainda tem muita coisa por vir, por se fazer, tendo em conta os projectos futuros. Vai continuar a trabalhar, a produzir arte que tenha alguma funcionalidade na vida das pessoas, sobretudo na sua. Já começa, portanto, a pensar numa exposição individual, porque precisa de dar um “intervalo” nesta série de outras que estão mais voltadas à libertação e auto-conhecimento do seu corpo e mente, e dos pré-conceitos. Convida os amantes das artes e, em particular, da sua a visitá-la nas redes sociais para saber mais dos seus trabalhos já produzidos e por se produzir.


E S PA Ç O

PÚBLICO

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Pa l av r a n da n d o

NOVOS ESPAÇOS URBANOS: A REINVENÇÃO DOS ESPAÇOS ARTÍSTICOS E CULTURAIS

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Te x t o : K a z M u f u m a |

o atendermos os resultados das manifestações artísticas e socioculturais realizadas neste tempo e espaço comum, somos levados à análise histórica reveladora dos vários interesses a que está associada a cultura através das épocas. “O século XIX representa o momento de estruturação de um espaço social consagrado à cultura tal como o conhecemos hoje em dia” (Centeno, 2012, p. 116). No mundo todo, teatros, óperas, orquestras, museus e bibliotecas multiplicaram-se durante este período graças a um esforço assegurado pelos estados. No entanto, vários são os sentidos adicionados de forma progressiva ao conceito de cultura, mas é sobretudo no século XXI que a ideia de cultura vem conhecendo maiores transformações, reunindo a tudo novas e múltiplas preocupações de uma sociedade em mutação. Se quisermos, podemos asserir, tal como muitos outros especialistas sociais, que o Maio de 1968 francês foi o marco das grandes revoluções mundiais, e que os espaços para as manifestações artísticas e socioculturais passaram a ser reinventados pelas dinâmicas inerentes a todos os contextos consequentes daquele. Mas não nos inocentamos aos gritos que emitiram, na altura, os muros de Paris: “Ce n'est q'un début” ou “Este é apenas o começo”. Aquele foi só o começo daquilo que, por exemplo, o sociólogo brasileiro Edgar Morin, chamou de “êxtase da História”. Pois, a propagação dos espaços, lugares e movimentos culturais é, também, o resultado daquele êxtase.

duto das revoluções mundiais vêm sendo materializadas nas mais diversificadas plataformas, em lugares onde se revela a pluralidade de ideologias políticas, religiosas, laicas, culturais; lugares onde a criatividade se estabelece quer enquanto recurso simbólico da identidade local, quer como recurso livre de exteriorização individual e/ou colectiva. Neste caso, a cidade de Luanda e algumas outras poucas vão conhecendo novos espaços ou, até mesmo, espaços que se reinventam pelas dinâmicas ecoadas no sorriso dos novos tempos. A arte no espaço público emerge com vigor. Dentre as inúmeras formas e os distintos contextos em que está presente, ela vem ocupando lugar significativo nos espaços urbanos da sociedade, criando convergências, potencializando contradições, integrando vazios urbanos, reivindicando também a harmonia ao desatacar as contrariedades específicas dos homens. Ela também revela cenários inventivos e, arriscamos mais, cenários inimagináveis à medida que concede a coexistência de todas as manifestações a si inerente a partir das negociações que se firmam entre o campo ampliado da arte e todos outros muitos campos da vida social.

Como lido algures, “a cultura constrói os códigos e as linguagens simbólicas em que radicam os sentimentos de pertença a um colectivo de base territorial.” É, no entanto, neste conceito a que nos enlaçamos para compreender como os novos espaços urbanos dão sustentabilidade à liberdade criativa para a construção de códigos Dentre nós, as manifestações artísticas e linguagens simbólicas enquanto “sube socioculturais enquanto, também, pro- terfúgio” dos sentimentos das gerações. 30 | Palavra&Arte


Num programa específico, o governo angolano estabeleceu a construção, por todo o país, de espaços como Casas da Juventude, como lugar de encontro de culturas e de outas manifestações. Espaços que se diluíram nas políticas desprovidas de identidade que dialogassem com o local em que estão inseridos e, por isso, vão sendo continuados numa correcção convertida em mediatecas; estas vão alargando-se no tempo e sendo, por isso, espaços que propiciem algumas das manifestações artísticas e socioculturais. A abordagem tida na concepção destes projectos passa, muitas vezes, pela intervenção no espaço público circundante. Esta é uma forma de não só enriquecer aquele local com outros usos, mas também de estabelecer, através daquele espaço, uma ligação à cidade, fazendo com que ele se insira na rede de recursos que, em si, dialoguem com a própria identidade local. Janeiro & Fevereiro | 31


Segundo Gomes (2002, p.160), o espaço público, na sua definição fundamental, Pressupõe a interlocução entre actores sociais, que buscam manifestar as suas diferenças através de uma inter-relação subjetiva, ou seja, pela comunicação das consciências individuais, umas com as outras, realizada com base na reciprocidade. Entretanto, a relação de reciprocidade estabelecida pelo diálogo só será bem-sucedida na medida em que for permitido ao indivíduo manifestar sua razão, confrontá-la à opinião pública sem obstáculos ou sem subjugar a razão do outro, estabelecendo um debate numa linguagem que possa ser comungada pelos demais.

A inserção na nossa sociedade de espaços como a Casa das Artes, o Centro Cultural do Rangel, as Mediatecas, a Casa Ubuntu, Clubes de Leitura, Centro Cultural Dr. Agostinho Neto, Livrus, Kassemba Terra Preta, Casa Rede, Centros Recreativos e Culturais e muitos outros que, pela sua natureza, se esquivam do tradicional, constitui os desejados avanços de uma sociedade carente de actividades discriminadas centradas na cultura. Neste ínterim, para descomprimirmos a ideia destes espaços/lugares, optamos, assim, as proposições apresentadas por Tuan (1983, p. 151) ao afirmar que “O espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado e os define como centros aos quais atribuímos valor e onde são satisfeitas as necessidades biológicas”. Assim sendo, por tudo com que se estabelecem, estes lugares constituem novas possibilidades para a acção cultural. Através da concretização de novas práticas culturais e artísticas abertas a várias dimensões da vida e do quotidiano, são lugares que participam na reinvenção do lugar da cultura na cidade e na sociedade.

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Deste modo, a concretização desses fins leva-nos a aderir a já supracitada frase de Tuan, com recurso a de Henry (2010, p. 5), pois, nesses espaços, “a cultura apresenta-se como objeto de preocupações estéticas, mas também, e sobretudo, como linguagem. A linguagem de uma crítica à sociedade e aos mundos instituídos da cultura e da arte”. Assim, tais espaços se definem e ganham significados na medida que se realizam, reinventando-se por meio das manifestações artísticas e socioculturais albergados por si, satisfazendo, assim, as mais diversas necessidades dos indivíduos

Democracia cultural…? Ao longo do século, o crescimento cultural das cidades é acompanhado por um processo de descentralização espacial, seja em relação à cultura, seja em relação ao lazer, bastando-nos, para isto, observar algumas galerias de arte, bares, bibliotecas, centros recreativos e afins instalados nas periferias; assim, o nascimento ou a reinvenção dos espaços urbanos e suburbanos que suportam as manifestações artísticas e socioculturais representam opções que criam roturas com o elitismo típico dos espaços e lugares dos costumes. Entretanto, devemos também aceitar o lazer, tal conceituou Gomes (2004, p. 124): “[...] uma dimensão da cultura constituída por meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaço conquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações”. Afinal, aqui o lazer deve ser entendido como um campo específico de actividade em estreita relação com as demais áreas de actuação do homem. Assim, a perspectiva de democratização cultural materializada por políticos e parceiros, baseada na configuração do fazer crer que ampliar o acesso aos bens culturais e serviços afins é estrita e principal função das políticas culturais, guiadas só por entidades do género, é deficitária, por tender a encarar a cultura e o povo como partes distintas e isoladas uma da outra, afastando-se da visão mais alargada, por desconsiderar que todo indivíduo é também produtor da cultura. Cá, a democratização cultural ainda se esfarrapa em políticas desentendida, desenquadrada no tempo e estática, pois “não muda as formas de produção e consumo dos bens simbólicos.” Por isso, olhamos atentos aos dizeres críticos de Canclini (1987, p. 49): “a democratização, quando consiste em divulgar a cultura, implica na definição elitista do patrimônio simbólico, sua valorização unilateral pelo Estado e por sectores hegemônicos, e pela imposição paternalista ao resto da população.” Pois, esta propalada “democratização” anula-se pelas opções que se vão criando com o nascimento ou reinvenção dos espaços e lugares nas cidades e periferias. Espaços que se demovem por iniciativa da natureza própria dos tempos, da esfera política e seguem autónomas como fruto de uma sociedade com necessidades de se manifestar. Janeiro & Fevereiro | 33


No entanto, o contexto social deve constituir o elemento fulcral na elaboração de políticas culturais, pois que os gostos, os hábitos quotidianos e a experiência cultural que é construída ao longo da vida e das relações de sociabilidade de cada ser humano vão influenciar o aproveitamento que cada pessoa terá no contacto com as expressões artísticas. Assim, como sujeitos e produtores da cultura, os indivíduos devem participar da elaboração das políticas de cultura para a sua comunidade. Neste sentido, o conceito de democracia cultural nos parece mais adequado para pensar a promoção do desenvolvimento sócio-cultural, passando pela gestão das acções culturais preocupada com a promoção da participação popular e a organização autogestiva das actividades culturais. “O objetivo é incentivar a criação, buscando o desenvolvimento plural das culturas de todos os grupos em relação com suas próprias necessidades.” (Faria, 2003, p. 38).

trução da autoestima mais do que individual, social; como lugares de modificação do “eu” social e de descoberta de universos; lugares de transmissão de valores e de construção de símbolos e códigos. Afinal, elas, as manifestações artísticas e socioculturais, podem e têm que dirigir o indivíduo para consciência, para emancipação individual e colectiva e para transformação social. Uma outra característica que define estes lugares é a interdisciplinaridade, a presença das diversas disciplinas artísticas, mas também a abertura para outros registros que não especificamente artísticos. Partindo desse pressuposto, todos os espaços supracitados e alguns outros poucos que vão surgindo formam palcos de transformações e interacções sócio-políticas, económicas e culturais e, tendo as artes como parte constitutiva e construtora, podendo ser um importante agente estimulador e fazedor das mudanças dentro de uma sociedade, afirmamos que tais lugares devem insistir-se na divulgação e promoção Portanto, a reinvenção dos espaços das artes, das manifestações em diferenou lugares de manifestações artísticas e tes dimensões de sua expressão cultural, socioculturais ― dentro das dinâmicas pois, se estes projetos se apresentam, actuais ―, por tudo que lhes é inerente, em primeiro lugar, como artísticos e culconstituem-se como lugares de (re)cons- turais, são igualmente sociais e urbanos.

BIBLIOGR AFIA Canclini, N. G. (1987). Políticas Culturales in América Latina. México: Editora Grijalbo. Centeno, M. J. (2012). As organizações culturais e o espaço público: a experiência da rede nacional de teatros e cineteatros. Cidade: Caminhos do conhecimento. Faria, H. (2003). Políticas públicas de cultura e desenvolvimento humano nas cidades. Gomes, P. C. C. (2002). Ensaios de geopolítica da cidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Gomes, C. L. (2004). Dicionário crítico do lazer. Belo Horizonte: Autêntica Editora. TUAN, Y. (1983). Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad.: Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel.

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Arte pela Arte

Alquimia d o hip h op Te x to : I s i s H e m b e

do nada para alguma coisa

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ntre as catacumbas de um projecto social falido, nascia, na década de 70, em Nova Iorque, Estados Unidos, uma cultura que hoje vem se confirmar como uma das mais influentes da era moderna. Os escombros dos prédios arruinados de Bronx enganaram os abutres de praxe que lambiam os lábios com um livro de história nas mãos, com folhas brancas, ansiosas para usurpar as palavras da lápide “aqui jaz uma comunidade negra e latino-americano”. A morte devia ser apenas uma questão de tempo, não era possível prever outro destino num espaço com estrema violência, carência e descaso institucional. Só restos deixavam rastos naquele espaço, resto de toda produção cultural da época. No entanto, o insólito aconteceu: de repente, extractos de artes marciais misturam-se com extractos musicais expelidos por um sistema de som potente

exposto na rua; as paredes da cor de um cinismo que valorizava mais o betão em detrimento das pessoas ganharam identidade com os tags (primórdios do grafitti) e subitamente, a alquimia aconteceu, do nada nasceram os quatro elementos nucleares da cultura Hip Hop, a saber: o Dj, Graffite, o Break dance e o MC. O Dj assumiu desde então um lugar preponderante para a cultura: é o interconector dos quatro elementos, colocando a música que une o Mestre de Cerimónia aos dançarinos que dançam em volta de paredes grafadas com desenhos. Além do papel de eixo, a cultura lega a três Djs a sua identidade: 1 – Dj Kool Herc: é creditado como pai da cultura, tendo a criado através de uma iniciativa de fazer uma festa para arrecadar fundos para que a sua irmã, Cindy Campbel (também conhecida como a mãe da cultura), entrasse Janeiro & Fevereiro | 35


para o ano lectivo com maior dignidade. A iniciativa veio da experiência que o Dj tinha de uma tradição jamaicana de colocar sistema de sons potentes na rua e entreter a população à volta. 2 – Dj Africa Bambaataaa: creditado por ser o padrinho da cultura, pois foi ele que cunhou o nome de Hip Hop àquela miscelânea de manifestações artísticas e introduziu um quinto elemento que norteia todos os outros: o conhecimento. 3 – O Dj Grandmaster Flash: creditado como um grande inventor e divulgador das técnicas que, até hoje, definem o diferencial de um Dj desta cultura, dos restantes djs. Técnicas como o scrash, por exemplo. A cultura ia se maturando paulatina e espontaneamente. Os Mcs saíram de anúncios básicos a palavras que moviam multidões como se de gritos de guerra se tratassem. As possibilidades de expressão se expandiram até chegar o “the messeger” curiosamente do Grandmaster Flash and the Furious Five do lendário letrista Melle Mel que trouxe ao hall do rap as mensagens interventivas. A partir daí, as estéticas das letras tornaram-se tão versáteis a ponto do rap escapar sempre da captura dos discursos por parte dos poderes institucionais, como ênfase nos poderes corporativos.

Coisa que veio a acontecer só nas últimas duas décadas. O lirismo de Rakim coabitava com as letras ácidas e contundentes do Ice T, que se debruçavam a respeito da vida das ruas periféricas. E, ao mesmo tempo, havia espaço para músicas com forte teor político como do Public Enimy ao lado de elucubrações filosóficas de artistas como o KRS One. A versatilidade temática do género levantava uma bandeira clara: jovens periféricos podiam tomar posse dos seus próprios discursos e serem activos na edificação das próprias vidas e na vida das respectivas comunidades. E esses discursos não eram restritos ao verbo, isso espalhou-se aos outros elementos da cultura. Essa bandeira acabou por contagiar o mundo e Angola não foi excepção. No final dos anos 80 a cultura foi se instalando em nosso território, coincidindo com o advento da democracia, e, consequentemente, o desmoronamento do sonho socialista de implementação de um Partido Único. O Hip Hop deu voz a uma juventude pluralista que nos seus primórdios foi representada por grupos como GC UNITY, Filhos Da Ala Este, SSP e entre outros.

Para o DJ Afrika Bambaataa, o hiphop tem quatro pilares essenciais. São eles, o RAP (Ritmo e Poesia), o DJing, o breakdance e o graffiti. 36 | Palavra&Arte


A vida da cultura em Angola, influenciada pelo que se vivia fora, também acompanhou o distanciamento do MC dos outros elementos. No entanto, a heterogeneidade do género sempre se manteve intacta. Podemos encontrar uma variedade de texturas literárias no rap. Refiro-me especificamente aquilo que podemos chamar de subgéneros literários dentro desse género musical que congrega a poesia e o ritmo. Por exemplo: Hoje o sol nasceu mais cedo Começou o dia O galo cantou as 04:00 Motivos pra poesia Agradeço a Deus Por mais um dia de vida 06:00 horas da manhã Tou pronto pra batida Bidon nas costas Não tenho água em casa Vou roubar debaixo da ponte Tenho de ir em brasa De seguida vou ao Kixima Caular o pitéu Uma lata de leite Dois ovos e um quibéu

– Mc K, atrás do prejuízo

Na hora de dormir deixe um olho bem aberto És inteligente, o país é dos espertos Na República Popular em biolos Ponho a colher na panela nem que for para corrolos Depender de tio rico não adianta O gajo tem corpo de humano e mãos de vaca Não és da frente? Corre atrás, não perdes nada Ninguém se aleija quando lhe cai uma fezada

– Francis, República do Biolo

Nessa música, podemos ver uma poética fortemente influenciada pela crónica, em que um retrato quotidiano é capturado pelos versos. Nessa letra, podemos encontrar um lirismo que se aproxima mais da poesia tradicional escrita, onde o tratamento da língua está manipulado de formas a fazer passar as impressões do eu lírico ao ouvinte por meio de figuras retóricas clássicas. A par de letras como essas, temos uma infinidade de formas – expressões literárias dentro desse género musical que o tornam muito eclético. O exercício dessa poética é chamado de liricismo que, ao contrário do lirismo que abrange só a estética da poesia tradicional, o liricismo abraça uma poética elástica que flerta com os contos (story tellen), com a crónica e etc. Em suma, a cultura hip hop é fruto de um processo alquímico comunitário, onde o nada aparente gerou um universo de possibilidade de expressão de vários discursos quer sejam visuais, corpóreos, linguísticos ou sonoros. Tudo isso permeado pelo quinto elemento, o conhecimento, para a produção de formas de vida mais activas e produtivas dos seus praticantes. Como consequência, novas estéticas discursivas foram criadas e também novos elementos como o beatbox, a linguagem de rua, o empreendedorismo de rua, moda de rua, saúde e bem-estar. Tudo graças a uma atitude de resistência à captura do senso criativo – no aspecto mais lato do termo – das pessoas. Que as futuras gerações possam manter este espírito. Janeiro & Fevereiro | 37


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Po rt folio O magma dos

murais da Leba “É nos muros do mundo que o Homem lê a história deste planeta.” Texto: Amário Alberto | Foto: Adilson Leão |

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s muros da Serra da Leba é, antes de tudo, a natureza querer nos submeter o conteúdo, o sublime, a beleza a forma e o sentido aos ritmos. Como dizia o outro: quem tem olhos vê, e acrescenta-se: quem tem alma há-de escalar um muro. No nosso caso, há-de ultrapassar os muros através da longa estrada que, se nos apossarmos das metáforas, é ressonância das paisagens. E em que circunstâncias foi construída? Foi lançado, em momentos coléricos de Salazar, em 1961, um alarme ininterrupto “Para Angola, apressadamente e em resistência…”. No meio de várias necessidades e em situação de guerra que durou perpétuos 13 anos, Portugal procurava cativar a população de pouco estudo, e, por isso, procurou-se levar estudos, mais religiosos, a todos os cantos de Angola, para ver se, no meio de toda miséria, o povo pudesse perdoar ou esquecer que estava a ser oprimido. Foi neste clima de mudança que, em meados dos anos 60, teve início a construção da Estrada da Leba, projectada pelo engenheiro Edgar Cardoso. A sua inauguração aconteceu em 1974, nas vésperas da independência de Angola. Houve muitas mortes aquando da construção da mesma. A Serra da Leba encontra-se no flanco ocidental do Planalto da Humpata, na fronteira entre as províncias da Huíla e do Namibe. Os contrastes geomorfológicos desta região combinam com mais de cinquenta curvas de estradas da Serra da Leba, na qual podemos observar uma cascata, onde um rio permanente que nasce no Município da Humpata se despenha em outras pequenas quedas.

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O homem lê a sua história nos muros como um leitor ávido, fulminante, interrogativo.

Observar os Muros da Leba

enquanto deslizamos sobre a longa estrada é

como

reflectir

no grande enigma”

Em termos geológicos, a subida desta estrada permite validar o princípio da sobreposição a toda uma sucessão estratigráfica proterozóica, com cerca de 600 metros de espessura do chamado grupo da chela e da formação da Leba, conjunto que, por inconformidade, se sobrepõe a granitos com cerca de dois mil milhões de anos. O percurso com um desnível de mais de dois mil metros de altitude serpenteado na sua parte mais elevada, e que, até chegar à margem do atlântico, atravessa várias impressões climáticas personalizadas no sistema Koppen-Geiger. O homem lê a sua história nos muros como um leitor ávido, fulminante, interrogativo. Observar os Muros da Leba enquanto deslizamos sobre a longa estrada é como reflectir no grande enigma. Às vezes, permanecemos sorridentes, apaixonados, grandiosos, convidativos e sempre, sempre mudos, exclamando, por vezes, “Ó”, invocando tudo que, se o outro nos observar, terá a ideia de que estamos a invocar os deuses, mas não será, de todo, a verdade, estamos a invocar a beleza que a paisagem, por si só, nos transporta de um estado físico a um estado de encantamentos sem bruxas, sem unicórnios, apenas isto: a imagem dos muros à nossa frente, a poesia da natureza aos seres humanos; observar os muros da Leba é estar sujeito a óperas silenciosas, a longos feixes sitiados de emoções, de iluminuras, de alabardas amarelas, verdes, vermelhas, azuis, em suma, cheia de cores. Num mundo em que tudo pode dizer alguma coisa, os muros da Leba cantam. Se o observador amar kuduro, os muros cantarão para si o kuduro mais iluminado (talvez Tchubila de Bruno M. ou Felicidade de Sebem); se amar jazz tocará Kind of Blue de Miles Daves.

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Os visitantes ao atravessarem os dois mil milhões de anos tatuados nos muros pensarão que toda paisagem já visitada por eles parece estar contida numa só paisagem; terão diante de si um mundo repleto de espelhos. Talvez o silêncio no mundo anda ameaçado pelos celulares, mas o silêncio que os muros da Leba nos obrigam a fazer é de espanto e, se quisermos ser mais fabulosos, num gesto de vénia, como se os muros quisessem dizer “só permito ser fotografado no meu melhor lado”, permitir-nos-emos fotografar mesmo pelo mais medíocre fotógrafo, e não terá como não acertar. As fotografias nunca param de falar. As grandes pinturas com mais de quarenta mil metros quadrados é um convite para o turismo e para as culturas, trata-se da mais verdadeira e poética forma de arte, onde a imagem se volta para si mesma e não somente para o seu conteúdo. Como toda arte é, por si só, perigosa, todo cuidado é pouco: é preciso andar com cautela sobre as artes (este mesmo conselho é dirigido aos automobilistas que por lá passam), entrar nela com toda calma possível; é preciso encontrar, nas pinturas feitas com mestria, uma imagem total e fazer dela uma imagem privada. É nos muros do mundo que o homem lê a história deste planeta como um leitor ávido, fulminante, interrogativo. Não temos como sair ileso, imune, ao depararmo-nos com a “selffie” feita pela natureza que o homem ousou chamá-la de Serra da Leba, Muros da Serra Leba.

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