Suplemento Palavrandando 01

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PALAVRANDANDO Suplemento semanal da Revista Palavra & Arte |01

Artivismo O activismo através da arte

Texto obrigatório

Sem & com assunto, para jovens poetas

Quando educação e cultura são sinónimos

Fotografia

Narração sem a palavra


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Palavrandando

Texto obrigatório

sem & com assunto, para jovens poetas Texto:.A.S. LOPITO FEIJÓO K.|

A

o longo dos meus alongamentos cerebrais, não raras vezes, tenho cruzado com um assunto que é – nada mais, nada menos! – o assunto das crónicas sem assunto. Agora, ao arriscar tocar neste assunto, corro o risco de ser considerado como tal. Um circunstancial autor de texto sem assunto.

fio. Sinto-me também nas vestes dos Pablos.

Na verdade, predispus-me a escrever em razão de uma aguda e insolente insónia que há dois dias me assola, provavelmente, tendo como causa as exageradas doses de cafeína, mais uns charutansos nas jornadas retrasadas.

VERÓNICA. No meio das tuas temperadas coxas/ contundente reside um continente com seus mares/de mais intercalares e felinos olhares seculares/onde desaguam incolores os jorros deste jarro.//No seio dos teus seios de divinos paladares/habita o leite ainda não derramado/nas papilas deste faminto andarilho que sou/ nos (uni)versos do teu geológico corpo geográfico!

São três da matina e, rebolando na posição horizontal – claro! –, olho pro lado e contemplo o Bicho numa aparente, saudável e luxuosa soneca. Antes mesmo de me levantar confirmo ser ela muito boa de respiração. Não há rinoceronte que lha enfrente em caso de desahttp://palavraearte.co.ao

Primeiro, …de Picasso delineando com os olhos os contornos do alheio corpo desnudo. Depois, …de Neruda que, num instante, me incendiou as entranhas inspirando-me estes versos para uma por/suposta:

Da janela do quarto, observo uma divinal paisagem nocturna, com o Mussulo e a Ilha Dos Pássaros já bem às escuras, quando, num repente, tudo ao redor escurece também. Triste. Resta-me info@palavraearte.co.ao


Palavrandando a beleza do mar agora envaidecido com o fluorescente brilho da lua reflectido na sua pele ondular. Sevícias da empresa de distribuição eléctrica em Luanda. A EDEL dos nossos hábitos e costumes. Irritado mas conformado, volto a deitar-me e, logo-logo, minutos depois, é reposta a «legalidade» iluminática. Provavelmente, um qualquer animal (ir)racional ou mesmo um sapateiro matreiro, dado a elétrico-electrónicas aventuranças, por (des)propositado engano, deve ter posto as patas na patilha em que não devia. Então levanta-se (de)novamente o escriba que, espiritualmente e por momentos, deixou de habitar em mim. Adentro o escritório, pela porta ao lado da porta do quarto da Casa-Museu que me recolhe neste merecido 3º piso, onde me encontro na rua do pôr-do-sol, ao Benfica de Belas silhuetas caluandas e prossigo a aventureira procura de um assunto para então consumar a minha escrita neste texto cujo assunto – sei de antemão! – reside no facto de inexistir um assunto para redigir, iniciando, assim, esta crónica sem assunto. Sem mais contra-curvas, sento-me na cadeira já a precisar de substituição nos próximos dias e debruço-me sobre a escrivaninha com tampo de correr do tipo daquela do poeta Pessoa que o pessoano João Paulo Cavalcanti Filho, juntamente com a Royale máquina de escrever do Senhor Fernando, arrematou por uns míseros noventa e tal mil euros, num leilão em Lisboa. Já sentado e decidido, recupero a inspiração do cronista ainda sem assunto que por culpa da EDEL nossa de todos os dias se havia já passado. Mentalmente recuperado, embora a chatice da insónia, cá estou eu à procura do assunto. Primeiro, arrumando a mesa e, na sequência, mexendo e remexendo. Papéis pra aqui, papéis pra acolá. Vou ordenando o papelsório e o pensamento

quando – depois de ter avistado o Livro dos Livros –, inesperadamente, ataco com os olhos e saltam-me para as mãos as mais importantes cartas que qualquer jovem poeta deve ler e reler. Refiro-me, sem medo de errar, às «Cartas a Um Jovem Poeta», assinadas por um tal de Ma-

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|03 ria Rilke que, nascido em Praga, então capital da Boémia integrada no Estado dos Habsburgos, em vida atendia pelo simples nome de Rainer. São dez cartas no total, endereçadas para um destinatário concreto. Franz Kappus. Um jovem oficial do exército austríaco, autor de algumas experiências poéticas que, aos dezanove anitos, ousou escrever para o poeta, pedindo opinião sobre aquilo que rabiscava em seus papéis nas horas de lazer. Segundo o próprio Kappus, «várias semanas passaram até que a resposta chegasse. A carta selada de azul trazia o carimbo de Paris, era pesada e exibia no sobrescrito a mesma caligrafia nítida, bela e segura que compunha o texto da primeira à última linha», tendo assim começado uma troca de correspondência regular que se prolongou até 1908 e cuja importância reside, fundamentalmente, no facto de serem cartas que podem interessar «também a muitos dos que hoje crescem e aos que ainda estão por vir nos dias de amanhã», pois, segundo ainda o discípulo de Rilke, em 1929, «quando fala um Grande e Inigualável os pequenos calam-se», e, acrescento, escutam, aprendem e devem agradecer. É justamente por isso que ainda cá andamos à procura de um assunto para este texto. Acreditem. E não vai este tornar-se, definitivamente, o assunto desta viagem no texto que agora desejo sem assunto até ao fim, mas tenho na memória também uma outra importantíssima “Carta” de Virginia Woolf, também “… A Um Jovem Poeta” que, há cerca de trinta anos, o David Mestre me deu para ler com sérias recomendações, que ainda hoje me têm sido úteis e, só agora, tardia, mas publicamente, agradeço. Tanto Rilke como Woolf aconselham jovens principiantes. Diz-se que os seus conselhos vão em sentidos opostos, mas coincidem fundamentalmente no momento em que aconselham os seus correspondentes a não terem pressa de puinfo@palavraearte.co.ao


Palavrandando blicar, pois, para Virginia, enquanto jovens, podemos escrever disparates, cometer até erros gramaticais e inventar seja lá o que for… sendo assim, que se aprende a escrever ficando com a sua liberdade em perigo todo aquele que, em jovem, indiscriminada e apressadamente publicar. Já Rilke insiste na paciência, no trabalho e na crença na própria vida, pois, para ele, a vida tem sempre razão e «Nessa vida o tempo não é uma medida. Um ano nada é, e dez anos não são nada; ser artísta significa: não fazer cálculos nem contas, amadurecer como uma árvore que não força a sua própria seiva e resiste, confiante, nas tempestades da Primavera, sem recear que o Verão possa não vir depois… a paciência é tudo!». Até mesmo na vã tentativa de encontrar um assunto para esta crónica que definitivamente terminará por acabar ou acabará por terminar sem o dito cujo assunto.

|04 titária. A questão da idade que, suponho, não deve ser vista sob parâmetros balizados de forma rigorosa, apesar de Ortega Y Gasset – na sua Meditação Del Pueblo Joven – ter dito ser (mais ou menos) aos trinta anos de idade que os Homems começam a ser fiéis a si mesmo, pois, em jovens sempre preferimos as coisas dos outros em vez das nossas, vivendo sempre em constante imitação. Assim sendo, com assunto ou sem assunto, apraz-me visitar uma vez mais o pensamento da “lírica” prosadora fascinada por versos que foi Virginia Woolf. Corajosamente disse esta ao seu jovem correspondente: «A maior parte dos defeitos dos poemas que li pode ser explicada, creio, pelo facto de estes serem expostos à luz feroz da publicidade, quando são ainda muito novos para lhe resistirem». Entretanto, havia-lhe já dito: «...E, por amor de Deus, não publique nada antes dos trinta anos». Pronto & final!

Finalmente, vem-me à tona uma questão iden-

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|05 uma ligação mais fácil de ser reconhecida, se compreendermos a educação para além da escolarização.

Quando a educação e cultura são sinónimos

Texto: Isis Hembe|

A pergunta sobre os sectores do Estado que merecem mais investimento no ideal de progresso de uma nação recebe sempre uma resposta: a saúde e a educação. É uma sentença praticamente unânime no panorama das sociedades modernas, uma vez que se reconhece o homem como pilar-chave do progresso, onde, e sob qual, a ideia de bem-estar permeia. Por isso, é imperativo desdobrarmos a profundeza dos conceitos de saúde e, principalmente, de educação, de modos que os nossos eventuais investimentos sejam catalisados no “objecto” concreto que estes conceitos podem ser. Entende-se por saudável aquele indivíduo que tem as funções vitais relacionadas ao corpo físico e à psique em funcionamento equilibrado, cumprindo-se, assim, a demanda do organismo http://palavraearte.co.ao

Há, por isso, uma necessidade de se entender a saúde para além do território circunscrito aos hospitais, postos médicos e todos aparatos sociais necessários para responder as necessidades do bom funcionamento do corpo físico, chegando, portanto, a dar à psique do homem o tratamento condigno que se efectiva por meio de cenários em que o homem é convidado a reflectir sobre a sua condição de ser e os vícios nos quais está emaranhado. A partir dali, pode-se ligar a saúde e a cultura por um raciocínio menos óbvio segundo o qual, se cultura cura a psique, e a psique saudável contribui para o bem-estar físico, então a cultura é uma das disciplinas a se ter em conta sob ponto de vista psicossomático. Mas, mais do que a saúde, a Educação e a Cultura têm

A escolarização é apenas um dos elementos da educação que visa dar ferramentas aos cidadãos para poderem transformar a natureza e a sociedade para o bem comum. Porém, com advento das sociedades modernas que apresentam todas as bandeiras da tecnocracia segundo qual as ciências e a tecnologia são estimuladas a produzirem, quase que sem freio algum, comunidades autómatas e não autónomas quanto à necessidade de consumo. O resultado disso é a transformação do nosso planeta num aterro sanitário de obsolescências. Nesse contexto, a educação em sua totalidade é convidada a salvar a escolarização, sintonizando-a ao serviço do homem e não mais às excentricidades de seus caprichos. Então, que parte da educação sobra, se retiramos dela a escolarização? A filosofia e as artes.

“a educação em sua totalidade não serve exclusivamente como ponte do homem para produção, a educação serve para elevar o homem a si mesmo” info@palavraearte.co.ao


Palavrandando Circunscrevendo a filosofia das artes, separando-nos da história da filosofia, como disciplina independente, podemos limitar a nossa abordagem na percepção de que as artes fazem parte da educação, pois são disciplinas que ajudam o homem a aprender e apreender as suas razões ontológicas mais profundas. Isso ocorre porque a filosofia das artes, para além de dotarem o produto artístico dum escopo estético, ajuda o homem e se orientar para a resposta do enigma de quem ele é. Pois, não convém viver automaticamente como que embriagados pelas próprias produções, é preciso procurar os porquês últimos da existência. Por esse motivo, é que Michelangelo consegue ser desafiador até hoje, com propostas de obras como “A criação de Adão” que estava fadada a ser

|06 uma mera representatividade da narrativa teológica da criação do homem, mas que nos desafia a questionar: qual é a posição do homem perante Deus? A depender da resposta que tiremos desse quadro, teremos uma construção ética que culminará com a nossa organização social. Em suma, a educação em sua totalidade não serve exclusivamente como ponte do homem para produção, a educação serve para elevar o homem a si mesmo, ou seja, para elevá-lo à sua condição de ser capaz de compreender a sua pequenez e potencial grandeza. E isso é possível quando a Educação é arte, cultura tradicional, filosofia e escolarização científica e técnica.

Artivismo

Activismo através da arte Texto: Oliveira Prazeres|

“Hoje, com a mudança de paradigmas, quer à nível mundial e, em particular, à nível nacional, assiste-se, de forma tímida, um fomento em alguns segmentos da arte em Angola. “

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ivemos numa época de grandes mudanças, de protesto e até mesmo de revoluções. A cada momento, novos milagres artísticos vão acontecendo. Diversas manifestações artísticas vão ganhando corpo e dando voz a novos movimentos cuja interpretações estão entregues à http://palavraearte.co.ao

sorte de cada um. Para alguns, a palavra artivismo pode soar nova ou estranha, porém, nas lides artísticas não é um fenómeno novo e chega a representar o modo de vida de muitos artistas. De modo singelo, o artivismo é a prática que se info@palavraearte.co.ao


Palavrandando assenta nas acções sociais (políticas, religiosas, ecológicas, etc.) produzidas por artistas ou grupo de artistas que usam estratégias artísticas, estéticas ou simbólicas, para sensibilizar, problematizar ou evocar reflexões sobre questões que estão em voga na sociedade. O artivista busca na arte uma forma de participação activa, expressando-se através de inúmeras formas – manifestações artísticas –, como a música, o vídeo, teatro, cinema, fotografia, escultura, arte de rua, performance artística, os problemas da sociedade. Uma obra artística, ao longo da história da humanidade, era (ou é) entendida pelo valor artístico-estético que ela era capaz de evocar. Dessa forma, o artista poderia trazer ou embutir nela plurissignificações, apesar da leitura e interpretações que os seus apreciadores poderiam ter dela. As épocas ao longo dos tempos foram e são, na verdade, um trampolim por onde emergem as questões reflectivas da arte. Ao recuarmos no tempo, numa revisitação à história do nosso país, percebe-se, claramente, a influência dos movimentos vanguardistas da Europa e dos movimentos africanistas que provocaram profundas manifestações artísti-

Hoje, com a mudança de paradigmas, quer à nível mundial e, em particular, à nível nacional, assiste-se, de forma tímida, um fomento em alguns segmentos da arte em Angola. No entanto, o artista enquanto ser social, envolvido nas questões quotidianas, acaba por imergir nalgumas discussões momentâneas. Alguns destes artistas, por meio da arte, vão buscando questionar os tempos em que nos encontramos. O artista, http://palavraearte.co.ao

|07 cas e políticas, e com isso, foram surgindo por toda a parte os ditos movimentos e agremiações culturais que se destacaram na luta contra a opressão colonial portuguesa. Na música, podemos citar a título de exemplo, as intervenções musicais dos Ngola Ritmos, Artur Nunes, David Zé, os Kiezus, Urbano de Castro, Elias Diá Kimuezu… Tal como na literatura em que se destacam os movimentos dos intelectuais (Mensagem e Vamos descobrir Angola), onde surgem os nomes sonantes como de Viriato da Cruz, António Jacinto, Agostinho Neto, etc., com uma poética cujas marcas de guerrilha servem e dão vasão ao desejo de liberdade e independência nacional. De forma geral, a mensagem passada por tais movimentos era uma mensagem questionadora em sua época e cuja elaboração estética musical e literária não era posta de parte. Já nos anos pós-independência, a consciência artística segue por outros rumos, há necessidade de deixar para trás o plano histórico e político e abraçar-se à liberdade de criação, deixando de parte esta forma de artivismo (in)consciente.

enquanto artivista, faz da arte sua forma de activismo. É a militância através da arte, ou seja, fazer activismo por meio da arte. Nisso, destaco aqui o movimento das feministas angolanas, em que, aquando da realização da primeira edição do festival feminino de Spoken Word, Muhatu Spoken Word, se viu algumas artistas transformando as suas performances em manifestos feministas, o que, de certa forma, é a militância antes da arte. info@palavraearte.co.ao


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Fotografia

Narração sem a palavra Texto & Fotografia: Allicia Santos

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alar de fotografia é recontar a história humana desde o momento em que essa começou a ser retratada. No entanto, é actualmente uma outra forma de contar a história, sem nos servirmos do recurso da palavra. É uma forma de mostrar o que vemos, as coisas, e a mais próxima de mostrar como as vemos. Capturar os momentos que nos são importantes é o processo. O olhar diz tudo. Afinal, tudo é uma questão de perspectiva, de ângulo, tal como um 9 e um 6. Dentre os muitos géneros e formas de contar histórias, prefiro a fotografia urbana, através da qual posso ver as histórias das cidades, posso rever no tempo a intemporalidade. Gosto do facto de se tentar capturar as almas das cidades, a vivência, os hábitos e os costumes, características íntimas de um povo, rituais e cultura, paisagens, traços genéticos, expressões faciais e tudo resto que as acompanha. Gosto do facto de fotografarmos tudo aquilo que nos influencia como artistas urbanos. Gosto, também, da incrível capacidade de alguns http://palavraearte.co.ao

fotógrafos conseguirem tirar o que está na mente e mostrar-nos, isso quando falamos da fotografia artística. Gosto ainda mais de humanos e suas histórias, apesar disso não faço retratos e não costumo fotografar pessoas como objecto principal. A fotografia desperta-nos a curiosidade, o desejo de passear e procurar lugares e, quiçá, de fugir à rotina. Dá-nos novas influências, desperta-nos novas ideias. Constitui um instrumento de interacção entre as pessoas e é um grande agente propagador de turismo. Ajuda-nos também a desenvolver determinadas capacidades cognitivas, a ser mais atentos e disciplinados. A cores ou a preto e branco, capturar um momento a filme ou a analógica é compartilhar experiências, alegrias, infortúnios, acontecimentos históricos, paisagens, costumes, desportos. Fotografar é, em si, uma manifestação artística para capturar a arte que é viver. info@palavraearte.co.ao


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