Revista Cultural - 3ª Edição - Novembro/Dezembro 2016
ESPECIAL DESAFIOS LITERATURA EM ANGOLA
OS NOVOS AUTORES E O FUTURO
BALLET TRADICIONAL KILANDUKILU As agruras e a preservação cultural pag.14
Poesia, prosa, mistérios e epístolas intemporais em Todos Nós Fomos Distante pag.06
A mulher e o teatro - sua presença no cenário actual
Desafios da criação literária nos anos actuais
pag.12
pag.23
Sumario 03|Editorial: Identidade 04|Frases 05|Cronicando: Livro, árvore, filho, de Cláudio Alexandre
F i c h a Té c n i c a COORDENAÇÃO GERAL: Oliveira Prazeres COORDENAÇÃO EDITORIAL: Luefe Khayari
06|Posfácio: Poesia, prosa, mistérios e epístolas intemporais em Todos nós fomos distantes de Luaia Gomes Pereira 10|Proposta Literária: O Feitiço da Rama de Abóbora 11|Perfil Artistico: Ricardo Caley 12| Em Cena: A mulher e o teatro - sua presença no cenário actual 14|Entre Danças: Ballet Tradicional Kilandukilu - As agruras e a preservação cultural 18|Ateliê: A necessidade de partir da arte meramente contemplativa para uma arte de intervenção socio-politica. 19| Estilo e Cores: O Abstraccionismo 21|Dossier: O Futuro da Poesia Angolana 23 |Faça Com Estilo: Desafios da criação literária nos anos actuais 28 | Dossier: Novos escritores angolanos -da ousadia à mediocridade 31| Entidades: APROCIMA - a malta do cinema angolano 32|Portfólio: Nós somos o sol, de Jessé Manuel 40|Conto: Café dos Poetas, de Magno Daniel
COORDENAÇÃO TÉCNICA: Cláudia Cassoma DIAGRAMAÇÃO: Luamba Muinga Oliveira Prazeres REDAÇÃO: Aneth Silva Hélder Simbad Isis Hembe Luamba Muinga Luefe Khayari CARICATURA: Elias Jamba Sanjelembi REVISÃO: Mário Henriques COLABORAÇÃO: Jessé Manuel Leopoldina Fekayamãle Magno Esmeraldo Teresa Silva O conteúdo aqui publicado pertence aos seus respectivos autores e não pode ser reproduzido sem prévia autorização
site: www.palavraearte.net email: palavraearteangola@gmail.com 2 | Palavra&Arte
E D I T O R I A L
I d e n t i d a d e No sentido amplo da palavra, identidade está relacionada a uma ou a demais características que uma pessoa, grupo ou entidade possui. Ela pode ser adquirida ou construída à medida que esse for descobrindo o seu lugar na sociedade. A suma função da identidade passa por diferenciar um ser do outro. Sem ela, haveria um profundo desconhecimento de quem é quem. Nos meios artísticos, nos órgãos de difusão massiva e nas esferas sociais, tem surgido um modismo sensacionalista, em que muitos preferem a visibilidade baseada na mediocridade à sua identidade artística ou social. É sabido que os modismos tendem a metamorfasear a identidade bem como a leitura que se pode fazer dela. Para nós, Palavra&Arte, as influências constantes do meio não modificam o nosso ser e nem a forma de como nos propusemos em abordar a produção artístico-cultural angolana. A nossa identidade é visível à cada edição online bem como nos artigos publicados no nosso site. As nossas publicações abrangem várias áreas culturais e apostam no incomum, ou seja, retratamos as questões de fórum cultural sem o sensacionalismo frenético dos nossos dias. Aqui os agentes culturais, conceituados e emergentes, encontram um espaço para afirmação da sua arte; há, de nossa parte, um exímio cuidado com os artigos que disponibilizamos ao público, sendo que a leitura dos mesmos é proporcionada de forma gráfica atractiva para que o leitor possa entender as distintas formas de artes e seus estilos artísticos. É com tais preceitos que a nossa revista espelha uma imagem crítica à sociedade através das manifestações culturais. A nossa identidade passa por proporcionar essa aproximação da arte com os nossos leitores. Somos esse espaço onde cultores e leitores interagem e se identificam por esse olhar diferente sobre a forma de fazer cultura. Por Oliveira Prazeres
oliveirap2001@gmail.com
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Seria bom que a juventude escrevesse mais sobre o presente. Os nossos mais velhos têm a maturidade, as vivências, para nos retractarem o passado, bem como também podem falar com propriedade sobre o presente.
Roderick Nehone, e s c r i t o r, e m e n t r e v i s t a ao site da UEA.
A idiossincrasia que hoje evidenciamos começou a ser burilada no espírito guerreiro da ancestral monarquia (de que Ngola Kiluanji, Nzinga Bandi e Lueji são figuras arquétipas). Posteriormente, a nossa génese foi temperada pela convivência secular com o povo português. Na contemporaneidade, iniciada com a fase pós-independência, apresentamos uma mescla de temperamento, costumes, valores e tendências que é o repositório de metamorfoses pelas quais os angolenses passaram. Mário Araújo, sobre a definição do ser angolano, em Jornal Cultura
África tem problemas em comunicar entre si. Sempre fui um apologista do Pan-Africanismo, mas essa corrente fez sentido durante a luta de libertação colonial. Hoje existe a necessidade de pertencermos a um mundo moderno, onde quem dita as regras é o mesmo que antes era o colono. Kiluanji Kia Henda, sobre as iniciativas nos diferentes movimentos artísticos africanos, ao site Buala
Acusam os artistas de abandonarem os seus países, mas são os países que fazem tudo para expurgar algum desse sector que pode ser crítico ou incómodo.
Mia Couto, escritor moçambicano, em entrevista ao Novo Jornal
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CRONICANDO
Livro, árvore, filho (não necessariamente nesta ordem)
Por Cláudio Alexandre
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s aulas de História resumem-se sempre no mesmo: guerras, pessoas mortas; civilizações erradicadas, pessoas morta; mudanças de rumo da sociedade, pessoas morta. Não importa o caminho, sempre vai dar em pessoas mortas. Sou sempre obrigado a pensar em pessoas mortas. Pessoas mortas não deviam complicar a vida dos vivos. Pergunto-me, porque tenho eu de saber como os sumérios, egípcios, imperadores chineses, romanos, gregos e Czares Russos viveram? Como se reproduziam ou o que comiam? Porque tanta obsessão pelo passado? Não é certo que não devemos apegar-nos ao passado? A História devia ser uma disciplina opcional, porque, a mim, pouco importa se a Cleópatra casou-se com o Marco António, ou com o César – quando quiser saber, espreito no Google – já que, no presente, a Cleo, minha vizinha do lado, nem sequer olha para mim. Porque não ensinar, ao invés de História, uma disciplina chamada “Actualidade”? Seria bem mais fácil lidar com as datas e lembrar os nomes das celebridades e presidentes (ou não, no caso dos presidentes). Provavelmente nas provas de Actualidade sairiam questões do gênero: como abriu a bolsa de valores? Qual é o álbum número um na billboard? Qual é o smartphone mais vendido no mundo? Qual aplicação mais vendida na App Store? Como Rihana saiu de casa hoje? E tantas outras, ou seja, coisas que verdadeiramente interessassem as pessoas nos dias actuais. Falando em tecnologias, eu sinto-me mais privilegiado do que qualquer imperador, rei, faraó, sultão ou Czar, pois, embora eles tenham tido incontáveis riquezas, nenhum deles pôde desfrutar do prazer de jogar o Subway Surf, da alegria de ser chamado no Whatsapp, dos “gostos” e comentários no Facebook, sem esquecer dos selfies no Instagram.
Após uma análise como essa, sinto uma profunda tristeza, não pelas personagens da história, pois continuo a não me interessar pelas suas vidas aborrecidas, sinto-me mal, pois, tal como as Cleópatras, os Césares e companhia passaram à história, eu também passarei. Eu e toda a minha realidade, um dia, seremos apenas história, e já começou a acontecer com a Antártida que, dia após dia, vai derretendo como se de um sorvete exposto ao sol se tratasse, e que, em consequência, resultará no aumento do nível do mar, que resultará numa enchente a escala mundial, que vai resultar na minha morte, … ceus! Vou passar à história, mas não farei parte dela! Afinal quem sou eu? Meu nome não será lembrado como o da Cleópatra, Césares e outros! Preciso fazer algo para mudar esse quadro! Eureka! Já sei! Por que não perguntar ao oráculo mais sábio dos tempos modernos – Google – o que fazer para ser lembrado para sempre? Ao ligar o motor de busca, vejo surgirem inúmeras respostas, mas é difícil encontrar alguma convincente. O Google, ás vezes, é surpreendente, a pessoa procura por um artigo relacionado à equação do segundo grau, e ele sugere uma receita de bolo de chocolate. É impressionante, mas, ainda assim, continua a ser o oráculo mais sábio dos tempos modernos. Depois de tanto revirar nesse baú mágico, encontro um artigo que dizia que todos os homens (e mulheres) devem, pelo menos, escrever um livro, plantar uma árvore e fazer um filho – não necessariamente nessa ordem –, para que o seu legado continue noutras gerações. O filho para fazer parte da geração futura, o livro para passar os conhecimentos, e a árvore para preservar a referida geração, para que esta possa passar os nossos e os seus conhecimentos às outras gerações vindouras, e, só assim, poderemos ser os futuros Césares, Cleópatras ou outros. Novembro/Dezembro | 5
P O S FÁC I O
poesia, prosa, mistérios e epístolas intemporais em
TODOS NÓS FOMOS DISTANTE de Luaia Gomes Pereira Texto: Hélder Simbad | hssandre32@gmail.com Luaia Gomes Pereira conquistou o seu direito de exclusividade, entre os novíssimos da literatura angolana, ao inaugurar, no plano da ficção literária, uma forma suis generis de narratividade, marcando, assim, qualitativamente, a nova literatura com essa proposta de rejuvenescimento literário que há muito se impunha, intitulando-a «Todos Nós Fomos Distantes».
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m 107 páginas, Luaia Pereira dá vida a uma personagem que se desdobra em três figuras e, embora pertençam a diferentes espaços temporais, coabitam e completam-se através de diálogos intemporais e anacrónicos, estabelecidos entre as personagens, predominando, assim, no plano da enunciação, a narração. Na verdade, no domínio da psicocrítica ou Psicanálise, podemos afirmar, efectivamente, que Eyala, a personagem principal, com outros seguimentos humanos (Umi e Massuela), desenvolvidos a partir da sua psique que, em termos psicopatológicos, padece de uma dissociação do pensamento, com confusões de sentimentos e pensamentos internos e externos, ouve o eco dos seus pensamentos, vozes alucinatórias que, com ela, dialogam na terceira pessoa, afigurando-se-lhes como realidades paralelas e concretas. Assim, Umi, que, de uma leitura apaixonada num diário, personifica-se dando vida a uma personagem que, 6 | Palavra&Arte
do ponto de vista cronotópico, a partir do contexto colonial que Angola viveu, cujo tempo cronológico é o ano de 1964, período em que se intensificaram as guerrilhas, consegue estabelecer uma relação muito íntima com Massuela, outro seguimento psicológico do futuro de Eyala. Trata-se de um romance modernista e híbrido que tem tanto de Romance Histórico (a vivência de Umi e o desejo de Eyala de indagar o passado) e de Romance Psicológico (as decisões e manifestações de Eyala), ao longo do qual se explicitam as perspectivas dos diferentes períodos que compõem o ciclo temporal natural: uma pátria que luta pela sua soberania, com espaço físico numa Angola sob o jugo colonial, portanto o passado; um presente vivido na cidade de Luanda; e uma Angola, num futuro que ela própria desconhece, retratados maravilhosamente pelas diferentes personagens, que, no
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desenrolar da narrativa, dialogam quebrando o curso normal do tempo. Umi pertencia a uma família de classe baixa, cresceu a pedir comida de porta em porta e que, por força disso, foi obrigado a ingressar às fileiras das forças armadas de luta de libertação do seu país aos vinte anos. Os traços físicos são-nos revelados, numa caracterização directa , por Massuela, que o imaginava «alto, figura elegante envolvida em tez negra. Olhos fundos ... usava uma barba teimosa ...», outros dados são-nos revelados pela conjuntura contextual, ou seja, através de uma caracterização indirecta, e em vista disso podemos afirmar que Umi Weya, socialmente, vem de uma família pobre, no entanto, da classe dos assimilados, pelo domínio da língua e da escrita; fez parte do grupo de guerrilheiros do partido histórico MPLA pelo facto de ser alguém muito próximo de uma das personagens muito referenciada na história de Angola e membro desse partido, Deolinda Rodrigues. Ademais a designação Camarada, lexema surgido do marxismo, utilizado na carta a si destinada, deixa esse facto bem evidente. Do ponto de vista psicológico, Umi era instável, uma pessoa muito revoltada, que, por vezes, perdia a fé e colocava algumas reticências e interrogações ao futuro: «Quem vai, quem se vai embora… Muitos dizem que isso vai virar um inferno, que o melhor é continuarmos como estamos agora» (p. 44). Umi simboliza a persistência de um povo, a necessidade de lutar pelo que nos pertence, a angústia, arrependimento e frustração da certeza que se transformaria em utopia incompressível. Eyala parecia ser alguém normal para sua geração e, como os jovens da sua época, instável do ponto de vista emocional; jovem de alguns amores, pois era uma jovem ora tão apaixonada ao ponto de se sentir tão amada pelo homem que lhe fazia ser «várias mulheres de uma só vez», ora tão vulnerável ao ponto de beijar os lábios do seu amigo mais íntimo, António. Vivia num dos 8 | Palavra&Arte
prédios da baixa de Luanda, perto dos Coqueiros, gostava muito de música e era estudante universitária. Massuela parece-nos ser alguém solitária, com dificuldade em revelar o seu verdadeiro eu e que, apesar de ser amante da leitura, desconhecia o passado da sua terra. Era tão solitária que fez de um diário o amante que atravessa o tempo para com ela se comunicar através da fala e do toque. Uma jovem mulher negra nos seus vinte e quatro anos e já sofria como uma adulta de quarenta, media um metro e sessenta e nove, cabelo crespo, preto, pelos ombros e com um corpo definido. Era alguém que pouco sabia de si. Vivia numa cidade de Luanda diferente, que apesar de manter o mesmo modus vivendi, diferenciava-se por não mais ter os vendedores ambulantes, as zungueiras, os candongueiros e pela nova estação: a primavera. Massuela manteve uma relação com Umi de 2064 a 2065 . A jovem arquitecta proporciona aos leitores com sensibilidade apurada verdadeiros momentos de prosas poéticas, que do ponto de vista da intensidade, oscila entre o mais poético no acto da descrição de todas as formas espaciais e comportamentais e o menos poético no acto da narração, porém o equilíbrio surge quando reúne na densidade do dizer poético, o dizer filosófico. A escritora, natural da província do Huambo, revela um domínio aceitável da norma da gramá-
Uma das grandes virtudes dessa obra é o modo como as sequências da narrativa se processam, fazendo o leitor acreditar que na página seguinte encontrará a revelação do mistério.
tica portuguesa, não obstante envolver registos de línguas diferentes. A narração é construída através de uma linguagem ora literária, ora corrente. Ao passo que os diálogos, situados no presente, envolvem o registo popular: «À volta, o azul das paredes e o tecto sublime faziam-me campainha» (p. 9); «Fomos acordados aos gritos e pontapés porque tínhamos de sair onde estávamos. » (p. 22); «– O paizinho baicou, kota…» Um dos aspectos a ter em conta nessa obra é o tom, macio, de reivindicação, artisticamente camuflado desde o título, propagando-se ao longo de toda a diegese. «Todos Nós Fomos Distantes» assume-se, deveras, como um título contestatário, uma chamada de atenção para que se olhe à juventude com olhos de ver e dê-se-lhe outro protagonismo. Umi, o passado, explicita os erros e injustiças durante a luta quando denuncia a fome e critica a forma de actuação dos líderes. Eyala, personagem do nosso tempo, representa a comunidade dos jovens mais atentos aos fenómenos sociais. António representa os jovens acomodados com estado actual e Massuela, as incertezas de um futuro. A jovem escritora, que nasceu em 1992, revela, nesta obra, uma forte preocupação com a cultura angolana, revelando ao universo dos leitores as formas como se anunciam os nossos óbitos – «– Aiwé Paiziinho! Paizinho memo, o meu paizinhué!...» –, o aglomerado de gentes constituídos pela família e vizinhança, os choros habituais de quem o faz com arte, a kissangua, etc. A senhorita Gomes Ferreira demonstra uma tendência de um Feminismo em alguns momentos da sua narrativa. Ora implícitos, nos traços psicológicos de Deolinda, ora explicitados, através do discurso de Massuela: «os tempos mudaram. Já não estamos na era dos heróis e sim das heroínas.». Ora servindo-se inteligentemente
de situações filosófico-gramatical: «Luanda tinha muitas. Seria ela uma poetisa? Ou ele. Mas ninguém falava o meu cidade…». Como é evidente «Luanda» não é precedido de artigo e sem deixar de lado o facto de a maior parte das personagens serem do sexo feminino. De facto, Luaia Gomes Ferreira revela ser uma excelente leitora e deixa essa sentença explícita ao longo da obra quando se refere a Alda Lara e a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que escreveu sobre os estereótipos que derivam das histórias singulares. Uma das grandes virtudes dessa obra é o modo como as sequências da narrativa se processam, fazendo o leitor acreditar que na página seguinte encontrará a revelação do mistério. Um romance algo complexo, com vários enigmas nas entrelinhas, que se aconselha a ler mais de uma vez sob pena de se perder parte da sua riqueza, porque, às vezes, «os finais felizes não acontecem no final». Novembro/Dezembro | 9
P R O P O S TA L I T E R Á R I A
O Feitiço da Rama de Abóbora Por Leopoldina Fekayamãle
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á aquelas pessoas que se fascinam por algum livro logo ao primeiro contacto com a capa e o seu título, há outras que precisam de muito mais do que, simplesmente, deixar-se levar pelo título ou pela capa e vão além, e há outras, ainda, que, apenas pela capa e pelo título, não se atrevem sequer a tocar num livro e não o incluem na lista de leitura. Na sequência desses factos, creio que o livro de Aníbal Simões, não muito pela capa, mas mais pelo título, causa alguma curiosidade logo à partida. Olhar para um livro e, de repente, ler um título como “O Feitiço da Rama de Abóbora” aguçaria a curiosidade de muitos e traria acima perguntas como “Que feitiço é esse?” ou “O que faz esse feitiço?”. Encontrará as respostas para tais perguntas quem se propor a ler o livro. Presente na terceira colecção dos 11 Clássicos da Literatura Angolana, “O Feitiço da Rama de Abóbora“ é um livro cuja leitura faz de quem o lê um descobridor de mistérios. E estes mistérios estão presentes em várias partes do livro, a começar nos provérbios, nas adivinhas e nas lendas que a obra apresenta de forma rica. O romance, todo desenvolvido no interior de Angola, revelando-a, deste modo, com outros olhos, longe das cidades, carrega em si desde o início ao fim uma componente cultural muito forte e profunda. Essa componente cultural, apesar de ser maioritariamente representada pelo grupo étnico Ovimbundu, transcende-o em vários momentos e remete-nos a outros grupos étnicos espalhados pelo país adentro. 10 | Palavra&Arte
A partir do momento que nos propomos a viajar através dessa obra de ficção, deparamo-nos com alguns hábitos, costumes, factos e usos que nos são desconhecidos, embora alguns destes estejam mesmo aí ao lado, ou seja, bem perto de nós. E é neste não reconhecimento do que está perto que o livro, em grande parte, se nos revela. É a busca pela identidade, pela sabedoria do povo e pelo conhecimento da cultura que a vida (e também grande viagem) de Cisoka, o protagonista da história, metaforicamente representa. Cultura e Tradições são dois aspectos entrelaçados para busca da identidade no livro. A procura para se saber o que somos e de que somos feitos podem ser vivenciadas intensamente nesta obra, e, também, o querer entender as nossas raízes e o que nos rodeia. Será a nossa identidade construída num determinado momento? Ou será um processo que nos acompanha desde o início até ao fim dos nossos dias? Que cada um reflicta sobre essas questões a cada página de “O Feitiço da Rama de Abóbora“ e encontre suas respostas.
PERFIL ARTÍSTICO
PERFIL ARTÍSTICO
RICARDO PEDRO CALEY Nome artístico: [Ricardo] Caley Data de nascimento: 16 de maio de 1997 Área de formação académica: estudante médio em Matemática e Física O que te motiva no teatro: a paixão pela arte, sobretudo a representação. Acho ser a melhor forma de comunicação. Inspirações: Wagner Moura , Denzel Washington, Lázaro Ramos, Nelson Faustino, Taís Araújo. Aspirações artísticas: ser actor de teatro de referência a nível nacional, de cinema e televisão e ser dramaturgo. Apresentar trabalhos a solo a nível nacional, quiçá, internacional. Grupos teatrais do qual já fez parte e pertence actualmente: fiz parte do grupo teatral Apromok, desde 2010 e actualmente faço parte do grupo Monte Sinai, desde 2013, contando ainda com um projecto artístico, “Projecto Actuar”, com Dionísio Pedro e Ernesto Relogio, com foco em monólogos e binólogo (representação de dois actores). Cargos que já desempenhou trabalhando no teatro: já desempenhei o cargo de porta-voz do grupo teatral Monte Sinai durante um ano e desempenho, actualmente, o cargo de produtor de espectáculos e porta-voz para o “Projecto Actuar”. Participações em Espectáculos: Festiva – Festival de Teatro de Viana, Festival de Teatro do Cacuaco, ambos com o Monte Sinai Participações em TV/Cinema: participei no filme angolano “Rastos De Sangue”, de Mawete Paciência, com o personagem Leo. Público-alvo: atingir a camada jovem Projectos na área do teatro em que está inserido e/ou desenvolvidos por si: Estou a começar um projecto, Globo de Artistas, que agrega algumas categorias de arte, em Viana, e visa partilhar experiências entre artistas e dinamizar carreiras com realização de espectáculos. Há também o aspecto filantrópico nesse projecto. Contactos: 928 31 91 57 // 996 583 412 Correio electrónico: ricardopefrocaley@gmail.com facebook.com/ricardopedrocaley.ricardo
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T E AT R O | E M C E N A
A MULHER E O TEATRO Por: Luamba Muinga | edymuinga@gmail.com
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edir a presença da mulher no teatro pode pressupor medir a afirmação de poder e da sua aceitação nas diferentes divisões sociais. O percurso histórico do teatro apresenta em sua fase inicial a presença masculina como única e exclusiva, desde a Grécia e Roma antiga, bem até a época medieval só os homens podiam representar. Essa presença masculina chegava até a interpretar personagens e papeis que hoje são desempenhados por mulheres. Personagens femininos eram apresentados por homens com máscaras. A presença da mulher começa somente a partir do seculo XVII, com Therese du Parc sendo o primeiro nome feminino apontado na história do teatro.
que foi posto de escolher entre o desporto, outra sua paixão, e o teatro. Estas imposições, variando entre a família, parceiros e amigos, são raras vezes bem fundamentadas, muitas delas alegando estar a mulher exposta ou sujeita a envolvimentos extraconjugal pela proximidade que possa criar no acto da representação.
Optimista, a pesquisadora e professora Agnela Barros defende uma situação gradativamente positiva a da mulher angolana quer no teatro quer nos cargos públicos, citando os rankings internacionais que mostram a posição de mulheres na vida política do país. Menciona ser a própria mulher, em alguns casos, quem desiste do teatro. Derivado das Muito diferente da conquista historica das mu- ocupações e cuidados a prestar com os filhos. lheres, a sua presença tem sido feita com desafios de outras proveniencias, foi a isto que se desafiaA capacidade de liderança da mulher não está, ram a reflectir cinco mulheres do teatro nacional na como se pode presumir, exclusivamente ao facto sétima edição do Há Teatro no Camões, um evento de possuir habilidades que a ajudam a gerir, por realizado em torno de temas e desafios do teatro exemplo, a família e sim pelas capacidades de lidar nacional. profissionalmente com questões exigidas pela dinâmica dos grupos. Em termos pragmáticos, ainda é É levantado na mesa, além dos vários papéis so- raro associar-se a posição administrativa feminina ciais, o de mãe, o de esposa, a questão das decisões no teatro, a posição confiada muitas vezes é o de de entrar no teatro, afirmação destas neste cenário financeira. É escassa aceitação para cargos de enaritistco, a capacidade de liderança e de produção cenação, direcção, por exemplo. artistica. Adiante, o essencial de cada tópico. Na perspectiva de produção, um aspecto com Na questão das decisões que estas têm enfren- abertura acrescida,“a mulher consegue trazer, dada tado. Muitas vezes forçadas por seus parceiros, as a sua sensibilidade, um olhar especial a temas como mulheres são postas a escolher entre manter a re- o amor ou a violência”, a abordagem pode ser diverlação e o teatro. Carla Rodrigues, do grupo Pitabel sificada como afirmou Carmen Zita Moreneo, que e directora artística do Ciclo Internacional de Tea- apresentou, na noite anterior ao debate, seu livro A tro, apresenta seu percurso mencionando o desafio Empresa na Cultura, sobre gestão cultural. 12 | Palavra&Arte
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E N T R E DA N Ç A S
BALLET TRADICIONAL KILANDUKILU
Texto: Aneth Silva |
Kj.priscilla@gmail.com Luefe Khayari |
luefe.khayari@gmail.com
As agruras e a preservação cultural Dos mais antigos grupos de dança do país, galardoado diversas vezes, tanto nacional como internacionalmente, doptado de história, identidade, ritmo, instrumentos e homenagens, assim é o Ballet Tradicional Kilandukilu. Fundado em Luanda, no bairro Maculusso, há, precisamente, 32 anos, o elenco começou voltado apenas para a recreação, mas hoje é um dos poucos que sente e vive a necessidade de preservar as danças folclóricas e tradições de Angola, pesquisar, recolher e estudar as manifestações culturais do seu povo.
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Com largos anos de divulgação da cultura do nosso país, à luta pelo reconhecimento das matrizes verdadeiramente angolanas, terá, o Kilandukilu, conquistado o prestígio aos olhos dos apreciadores e peritos em arte em Angola? momentos, esteve prestes a abraçar a desistência, mas o desejo de vencer foi maior e porque acredita no país, o grupo mantém-se de forma determinada, ressalvando a paixão que continua bem viva até hoje. Assim, repartido em três, entre as cidades de Luanda, Uíge e Lisboa (Portugal), e mantendo também um projecto com mais de 50 integrantes, dentre eles técnicos, professores, coreógrafos, bailarinos e instrumentistas, em Recife, no Brasil, com a parceria de uma organização não-governamental denominada Pés no Chão, o grupo continua em pé.
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ilandukilu significa divertimento, em Kimbundu, e é com este espírito de diversão e amor à arte, em especial à música e à dança, que o grupo se apresenta com mais de dez obras no mercado, sempre incluindo instrumentos tradicionais, como batuque, ngongue, ngaietas, reco-reco, apitos, marimbas, chocalhos, djembés, mondo, etc; ou, até mesmo, efeitos sonoros, como barulho de água a escorrer ou do vento feito pela boca e assobios. Devido às dificuldades, que não são poucas, sem apoio de qualquer instituição pública ou privada, embora tenha alguns apoios circunstanciais e muitas promessas, em alguns
Sobre esse grupo, que representa a dança tradicional angolana, como nenhum outro, não é preciso apoiar-se em argumentos soberbos para fazer perceber que é composto de pessoas com garra, mangolés de verdade, com sangue bantu na veia, e que correm com gosto atrás dos objectos que almejam, mesmo em circunstâncias adversas. Por essas e outras razões, já pisaram em mais de trinta palcos internacionais, representando o melhor de que Angola tem no quesito da dança. Dentre os países, por onde o Kilandukilu passou, destacam-se: Alemanha, Suécia, Polónia, Zimbabwe, Marrocos, Cuba, Costa-Rica, Nicarágua, Índia, Coreia do Norte, Singapura, Qatar, Israel, Coreia do Sul, França, Argentina e Turquia. No entanto, o palco que representou um dos maiores desafios para o grupo foi o da África Novembro/Dezembro | 15
do Sul, aquando da participação no Festival Internacional Eisteddfod Of South Africa, em 1995. No referido festival, com carácter extremamente competitivo, uma má interpretação do regulamento quase levou o grupo a desqualificação; esse facto forçou-os a fazer uma readaptação das obras que levava para a competição, tendo conseguido, no final, dois diplomas de ouro e duas taças, vindo a ser considerado o melhor Grupo Africano.
boração, adaptação, concepção, coreografia e direcção de actores foram da responsabilidade de Maneco Vieira Dias, professor, investigador, estudioso da cultura Angolana – sobretudo a dança e a música – e director do Ballet Tradicional Kilandukilu.
Com largos anos de dedicação à dança, à divulgação da cultura do nosso país, à luta pelo reconhecimento das matrizes verdadeiramente angolanas, terá, o Kilandukilu, conquistado Os mais recentes palcos em que o Kilan- o prestígio aos olhos dos apreciadores e peridukilu actuou foram no Japão e Itália, com o tos em arte em Angola? grupo que reside em Angola e no Brasil, e no Vietname e Luxemburgo, com o grupo que Nas palavras de Maneco Vieira Dias, “O grureside em Portugal. Em Angola, destaca-se o po gostaria de poder realizar dois espectácuespectáculo no Cine Tropical. Entretanto, num los por ano, mas falta-nos meios e, para se ter outro nível, os bailarinos do grupo participa- uma ideia, ainda há dívidas para honrar do ram – com ginastas, actores e outros grupos último que foi feito em 2015. Ainda assim teconvidados – no Musical da LAC 2015 cuja ela- mos participado em actos cuja iniciativa é de 16 | Palavra&Arte
O reconhecimento ainda não tem a dimensão do que o Kilandukilu tem feito ao longo destes anos de carreira
outros”. Deste modo, fica clara a evidência de que, “o reconhecimento ainda não tem a dimensão do que o Kilandukilu tem feito ao longo destes anos de carreira”. O Kilandukilu, pelo seu currículo, mostra que já fez e poderá fazer muito pela identidade angolana, particularmente pela dança. Actualmente, quase já não faz o que sempre soube, o que não deixa de ser inquietante para os seus membros e sua direcção e deveria ser, também, para qualquer apreciador de danças folclóricas, bem como para as entidades culturais, como principais veladores da preservação da identidade nacional. Novembro/Dezembro | 17
at e l i ê
Além de estético… é inquietante? A necessidade de partir da arte meramente contemplativa para uma arte de intervenção socio-politica. Por: Luamba Muinga | edymuinga@gmail.com
Quinta-feira, dia 12, um total de dezassete peças de técnicas diversificadas, entre acrílico sobre tela, colagem, resina e poxy sobre madeira, é exibido na sala de exposições do Centro Cultural Português em Luanda. O artista é Guilherme Mampuya. Estávamos em Maio e a exposição, em que o artista não receou explorar seu estilo, predominado pelo uso das cores, era em homenagem a Africa. Nesse mergulho de cores, uma peça apresenta um oposto relativo. Esta é, em boa medida, a preto e branco, deixando, entre as jovens-mulheres, apenas uma com a dinâmica das cores conhecidas em Mampuya.
Pintura de Guilherme Mampuya, em homenagem a Africa
te africano (das tranças aos adornos) – estávamos nós a debater se o crescente uso do penteado afro entre as mulheres era resultante da actual crise ou havia no colectivo feminino um acordar. Já se presenciou muitas obras de arte no mercado nacional em que a representação estética é, de alguma maneira, agradável, mas a sua expressão não transfigura nada sobre a consciência colectiva. Se formos a sublinhar artistas que carregam essa preocupação na arte nacional, acabaríamos num número reduzido em que se verificaria que os mais predominantes produzem e expõem os seus trabalhos no estrangeiro. Muitos desses trazendo questionamentos duma interpretação global da situação social, económica, politica, e ficamos com poucos para questões mais próximas do conviver do angolano.
Esta peça serve-me para dar mote aos assuntos actuais de relevância intelectual ou de intervenção, como metáfora ausente/presente na expressão dos artistas. Pois, é a arte das expressões humanas que não está fora dos assuntos críticos da vivência comum, e é o artista responsável por trabalhar nos aspectos factuais da obra e em influenciar Em todos os casos, é mais o artista que se faz habilmente as pessoas a reflectirem em torno das como tal “internamente” a quem se coloca a quesimplicações sociopolíticas ou outros temas de forte tão da intervenção metafórica, pois vive em sua intervenção. constância os mínimos problemas que se generalizam. Mesmo que se defendam valores como a arte Numa luta de afirmação da mulher africana con- pela arte, ainda é dela que temos um paralelo para tra todos estereótipos e influências do ocidente, a nossas abordagens sociais: “Que se crie um novo peça de Mampuya, a que chamo aqui, poderia nos momento político”, assim como afirmou o presidenrecordar da ideia de que a afirmação da mulher te da república em declarações do seu aniversário. passa, no lugar de seguir um evolucionismo ociden- Assim como a arte nos serviu para modificar o motal (preto e branco), em “retroceder” ao puramen- mento social do período colonial.
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Estilos e Cores
O ABSTRACCIONISMO Por: Isis Hembe de Oliveira | quebra.tendencia@gmail.com
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entendimento dos mais diversificados estilos artísticos é uma ferramenta que nos impulsiona à compreensão da nossa multiplicidade como espécie, em que uma mesma realidade é percepcionada com indumentárias diferentes e cada fragmento da mesma ganha prioridade e, por consequência, vida. Essa é, claramente, uma marca indelével da criatividade humana. É nesse panorama que trazemos à luz da nossa reflexão o abstraccionismo.
Circles in a Circle (1923), de Vassily Kandinsky
com os descobrimentos das mais variadas zonas do saber na época. A Teoria do Inconsciente de Sigmund Freud, por exemplo, foi bastante reveladora para idealização das obras nessa linhagem.
Foi por meio dessa linguagem que emergiram movimentos como o cubismo, dadaísmo, o futurismo e o surrealismo. Não obstante o abstraccionismo entrar para história da arte no século XX, na vanguarda europeia, a arte abstracta já era presente desde a pré-história e em várias partes O Abstraccionismo ou arte abstracta, como do mundo. é comummente designada, é um estilo artístico moderno que prioriza as subjectividades, ou seja, Contextualizando em África, onde a arte semé um estilo que não prioriza a representação da pre teve uma componente transcendental bem realidade tal como ela se apresenta aos sentidos. patente, essa linguagem pode ser identificada na Opondo-se ao legado da arte da Renascença, que escultura, mais especificamente, em máscaras saconsistia numa representação fidedigna da reali- gradas ou em peças como o caso do Cucu ou Sadade, esse estilo coloca-se numa posição de bus- manhonga, vulgarmente chamada Pensador. ca de uma representação mais poética. Pode-se, portanto, especular uma tese que reÉ citado Kandinsky, como o pai da Arte Abstrac- pagine o fazer artístico africano em paralelo com ta, a partir da obra “Primeira Aquarela Abstracta”. o que foi feito na Europa. Pois, apesar de as moA construção dessa linguagem teve como ori- tivações artísticas, entre os dois espaços, terem gem a vanguarda de artistas europeus do século sido diferentes e até mesmo divergentes, há muiXX que aspiravam uma nova estética que repre- tas similaridades a nível de linguagem e do objecsentasse novos valores culturais em concordância to de representação. Novembro/Dezembro | 19
DOSSIER
DESAFIOS LITERATURA EM ANGOLA OS NOVOS AUTORES E O FUTURO
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DESAFIOS LITERATURA EM ANGOLA
O Futuro da Poesia Angolana Texto: Hélder Simbad | hssandre32@gmail.com
O
s poetas dos próximos dez anos são os jovens poetas que hoje se mostram nos mais variados espaços literários que existem em Angola. Se quisermos prever o futuro, temos de abordar o presente. E o presente é este, frequentemente criticado e raramente elogiado. Pergunta-se: E onde se buscam os fundamentos para essas críticas? O porquê desta visão apocalítica? Há falta de humildade entre os jovens? Conflito inter-geracional, ou porque os jovens não demonstram evolução no plano da criação, ou porque os kotas não aceitam as novas tendências literárias? Umberto Eco, numa coletânea de ensaios a respeito da questão da cultura de massas na era tecnológica, abordados numa perspectiva estética, apresenta-nos o título «Apocalípticos e Integrados». O crítico italiano usa esse par explicitamente antagônico para aludir àqueles que lêem o passado por um viés literário, social ou histórico. «Apocalípticos» seriam os críticos que vislumbram o passado com um olhar saudosista, retendo dele a era dourada e perdida. Os «integrados» defendem a leitura moderna do passado, interessa-lhes o momento actual. O autor de «Obra Aberta», sabiamente, evita tomar partido de uma das partes e defende uma atitude intelectual moderada, que saiba fazer dialogar passado e presente. E é de facto esta ponderação que deve acompanhar sempre as
nossas abordagens, sem deixarmos de parte valores importantes como a honestidade. Longe de um olhar saudosista, sem ter de concordar plenamente com os apocalípticos, é com muita tristeza que temos de dizer que o passado ainda é melhor que o presente e, a esse ritmo, continuará a ser. O normal seria o contrário, pelo facto de hoje termos mais ferramentas à nossa disposição. O processo de alfabetização literária passa pelo domínio sistemático das técnicas do passado, logo o passado é tão somente uma das ferramentas à disposição do presente. Em contrapartida, a nova geração não pode olhar para o passado como algo imutável. Deve sobre ele traçar um novo caminho, forjar a sua tendência até amadurecer. E os mais velhos devem abandonar ou deixar de lançar um olhar apocalítico sobre o futuro da Literatura e respeitar ou ajudar a melhorar as tendências emergentes. Porque a visão global que muitos têm do estado actual advém de uma análise baseada em estereótipos, como se nada de bom estivesse a ocorrer.
O passado ainda é melhor e, a esse ritmo, continuará a ser. O normal seria o contrário, pelo facto de hoje termos mais ferramentas à nossa disposição. Novembro/Dezembro | 21
Debate livre sobre literatura, que reuinu jovens escritores em Luanda
O valor artístico de uma obra, dizia Chklovski, formalista russo, não decorre apenas da sua estrutura verbal, mas também da maneira como é lida. A tendência literária, a que designamos Poesia Dita, quando bem escrita tem o seu encanto, tem o seu mérito, mas como vivemos de ideias pré-concebidas, encerradas por momentos menos bom com este ou com aquele poeta, generalizamos e perdemos a oportunidade de descobrir as virtudes de uma nova poética. Que se trata de um estilo, ainda em fase embrionária, precisando amadurecer, é factual. Mas dizer que devem abandonar esse estilo, nunca. O apocalíptico é aquele que não percebe que vivemos um período de diversidade estético-literária. Os integrados, movidos pela filosofia dos contrários e acreditando num eventual conflito inter-geracional como justificação da crítica que sobre eles é feita, aprendem que «o modernismo de uma época não tarda a ser considerado arcaísmo no começo das novas tendências» (Jorge Macedo:1986), e se negam a ler o passado, acreditando que dele, 22 | Palavra&Arte
OLT: Observatório Literário Tundavala ©
nada podem tirar, e que podem «partir do grau zero da escrita» (Luís Mendonça, 2010). É comum, nas comunidades literárias, existir conflitos ideo-estéticos, contudo diferentes tendências podem coexistir sem se consumirem. Logo, afastamos a ideia de um eventual conflito inter-geracional e elevamos parte daquelas questões acima colocadas à categoria de interrogação retórica. A nível da publicação, temos o Movimento Lev’Arte, com duas antologias e diversas publicações individuais; o Berço Literário, com uma Antologia e uma publicação individual; o Requintal, com três obras literárias; o Movimento Litteragris, com duas obras e outras organizações jovens com livros publicados. Eis a questão: Há qualidade nessas obras? Há alguma qualidade em algumas dessas obras, mas, do nosso ponto de vista, há que haver muito mais trabalho colectivo e individual. Se quisermos construir um futuro risonho, só será possível por via de diálogos inter-geracional, oficinas literárias, estudo da língua etc.
FAÇA COM ESTILO
Desafios da criação literária nos anos actuais Por: Teresa Silva|
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ntende-se por Criação Literária, o processo através do qual se produz a literatura e isso abrange o estudo e o exercício prático dos géneros, espécies e formas literárias. Todavia, estaríamos a falar, se calhar, de uma oficina, que apareceria como extensão para a Criação Literária. Essa oficina, supostamente, levaria os principiantes a construir um estilo literário próprio, a partir da ideia da escrita como uma criação autoral, exercitando e desenvolvendo a fluência no discurso escrito criativo por meio da abordagem da prosa, da poesia e da dramatologia. Os artistas podiam ser: escritores, editores, professores de literatura e estudantes das áreas de Letras e Comunicação, além de pessoas singulares, interessadas em desenvolver as suas habilidades de produção literária, ou de simplesmente, transmiti-las aos outros.
Onde encontrar ideias para escrever uma história? Como criar personagens complexos e acreditáveis? Como desenvolver uma cena? Como escrever diálogos? Como escrever um final que satisfaça os leitores? Como transformar as histórias pessoais em narrativas de impacto?
Pressupomos que o objectivo dessa aventura seja fornecer subsídios teóricos e práticos para a construção da voz autoral na escrita, potencializando habilidades de observação, imaginação, experimentação de imagens, trabalho rítmico e sonoro com a linguagem. Além disso, o de reflectir sobre o processo de criação em diferentes manifestações literárias, na forma de poesia e narrativa. Aí seriam abordados temas vários que passariam pelo género lírico, o poema moderno, a lírica contemporânea, géneros híbridos, o papel do narrador no conto angolanizado, o ritmo narrativo, etc. É claro que não seria tarefa fácil, a arte de criar narrativas de ficção, como conto e romance, tudo o que se constitui a partir de alguns elementos fundamentais: narradores e pontos de vista, personagens, diálogos, descrições de pessoas, de objectos e ambientes da cultura de Angola, mas são elementos que podemos encontrar nos livros de vários téoricos de literatura, o desafio é buscar tudo o que forneça aos pupilos, a partir dos exercícios de escrita e do estudo de autores Novembro/Dezembro | 23
clássicos e contemporâneos, o conheci- crever um final que satisfaça os leitores? mento básico acerca de cada um desses Como transformar as histórias pessoais A relação inelementos. Os elementos transversais em narrativas de impacto? trínseca entre a necessários para o estudo dos géneros e formas da literatura. Um depoimento de uma escritora, que educação famise diz muito curiosa, começa assim: liar desde tenra Enfim, queremos mostrar que num exercício de construção da cidadania po“Em situações onde tive que decidir enidade e a sua demos incentivar a colocar as ideias no tre a curiosidade e a educação, escolhi, com aliança com a papel ou incentivar a Criação Literária, mais frequência, a primeira opção. É um asfala, a leitura e contando com a colaboração de todas as pecto da minha personalidade que nunca a escrita, dentre pessoas abalisadas na matéria, se assim, consegui controlar e, para falar a verdade, se pode dizer! Isso ajudaria muito os as- há muito tempo desisti de tentar. outras grande- pirantes a escritores, estudantes, profeszas, da experiên- sores e todos aqueles que amam a litera- Fui julgada muitas vezes como intrometicia como factor tura, a terem maior atenção, ou cuidado, da. Mas decidi que prefiro ser acusada com com a linguagem – fazer tudo para enxu- esse adjectivo e satisfazer a minha curiosivital no exercício gar ou esgotar o texto, preparar um livro, dade, do que ser aplaudida por não alimenda escrita: criar exercitar a síntese, entre outras técnicas. tar a minha imaginação”. Todo esse trabalho seria feito, principalacção. mente, por cima de textos apresentados O que pretendemos enfatizar é que, pelos principiantes, realizando um acom- muitas vezes a nossa curiosidade nos panhamento de cada projecto literário, transporta para cenários “curiosos”, que contando também, com a participação nos obrigam a fazer conjecturas investiespecial de renomados autores nacio- gativas e que determinada história anónais. nima e sem narrador pode estar a espera de quem se aproprie dela para criar ficAtendo-nos aos desafios: ção. O primeiro desafio é exercer a carreiPara que fique claro, o objectivo não é ra de escritor no nosso país, onde as in- convencer os leitores a bisbilhotar a vida fluências falam mais que a competência alheia. O ponto a ressaltar é que uma literária, como acontece na maioria dos porta entreaberta tem um apelo quase países. Em Angola é ainda, muito desafia- irresistível à nossa curiosidade e as vedor abrirem-se as portas para a carreira zes, até a curiosidade pode gerar romande escritor; ce. Pode ser que mesmo aqueles que se O segundo é como ganhar o gosto pela deixam guiar pelas normas dos bons cosleitura – um dos primeiros ingredientes tumes desejam, secretamente, colher as para escrever? Por onde começar a explo- pistas e desvendar os mistérios de uma rar o universo de criação literária? Onde possível história interessante que cruza o encontrar ideias para escrever uma histó- seu caminho. ria? Como criar personagens complexos e acreditáveis? Como desenvolver uma Aquelas frestas de portas entreabercena? Como escrever diálogos? Como es- tas são convites à curiosidade. É uma 24 | Palavra&Arte
oportunidade de, ocasionalmente, fugir da previsibilidade do nosso dia e descobrir um universo diferente. Todo o texto que se escreve é, também, um convite. Grande parte da ficção em Angola, que encontramos em Pepetela, Ondjaki, João Melo, Dya Kazembe, entre outros é composta por uma série desses convites para praticar formas simples de criar essa vontade incontrolável de explorar o que está por trás das portas que se abrem com os textos escritos. Na verdade, o que você encontra são respostas possíveis para essas e outras perguntas relacionadas ao assunto, além de dicas práticas e recursos para desenvolver e exercitar a sua criatividade. As considerações a seguir advêm de um trabalho minucioso com o estudo e a prática individual na Literatura, a partir da imersão em aulas desenvolvidas, tanto na Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto como na Faculdade de Ciências Humanas e Comunicação da Universidade Metodista de Angola, junto aos estudantes. Espaço interdisciplinar por excelência, ponto de fuga em que se tocam ansiedades humanas em princípios paradoxais, tais como fluidez e permanência, retraimentoe exposição, orgulho e baixa estima, obrigação e necessidade – pares tantas vezes amalgamados1 por uma cadeia de enganos: o acto de “criar” transita por modelos arquetípicos, imitações infundadas, inspirações e transpirações vitais, enfim, projecções que variam do 1 A amalgama ocorre quando se fundem duas ou mais palavras, sem motivação morfológica, isto é, de forma aleatória. Ex: imagináutica (imaginação náutica), desesfefiz (desespero feliz), cibernauta (cibernético astronauta), etc.
lúdico, passando pelo terapêutico, até a busca e o domínio de técnicas "novas". Procuramos nas instituições de direito, por uma Oficina de Criação Literária, talvez porque existem poucos professores de Literatura, nunca conseguimos encontrar uma em Angola, pois, privilegia-se mais os professores de Língua Portuguesa, mas o que a experiência tem demonstrado é que o objectivo mais explícito, daqueles que procuram por uma Oficina ou Curso de Criação Literária, procuram por, um estímulo para escrever e um olhar que lhe pontualize se “aquilo” que produziu até então é “literatura”. Na falta disso, esperam que o escritor que elegem para prefaciar a sua obra, tenha um olhar clínico que julgue ou valorize a sua literatura. As hesitações, portanto, que levam os candidatos a essa postura, demonstram que a maioria vai em busca de um apoio, testemunho e uma espécie de garantia para a sua própria prática de produção textual. Nesta perspectiva, provavelmente, estejamos a perder um grande grupo que esbanja sensibilidade, curiosidade, defesa e até mesmo uma certa desconfiança – até que seja provado o contrário, ou melhor, até que os sucessivos encontros provem a inutilidade deste temor. Se é então extremamente delicado transitar por área tão fluida do ponto de vista daquele que se identifica como “criador”, pensemos juntos na condição de quem, mesmo momentaneamente, pretende assumir a tarefa de levar os outros a exercerem e exercitarem a criação, a se outorgarem do poder da linguagem, da materialização dos próprios e alheios pensamentos. Estimular a criação é também criar – uma via de mão dupla, como nos lembra Clarice Lispector: “Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia tivesse a língua em meu poder. E no entanto cada vez que eu vou escrever,é como se fosse a primeira vez. Cada Novembro/Dezembro | 25
Como encontrar sua voz narrativa, a sua visão literária, construir uma escrita original, própria, diante de tudo que já foi feito?
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livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa virtualidade do texto literário” .3 capacidade de me renovar à toda medida O terreno é movediço, apoia e atraique o tempo passa é o que eu chamo de çoa e, sabemos, a percepção desta duviver e escrever.” 2 plicidade já deveria ser questão de senParece claro que a escritora aqui nos so comum, principalmente por ter sido fala da relação intrínseca entre a educa- levada a público diversas vezes. Mas ção familiar desde tenra idade e a sua muitas das belas reflexões dos literatos, aliança com a fala, a leitura e a escrita, infelizmente, não chegam ao conhecidentre outras grandezas, da experiência mento da maioria. Tal especificidade se como factor vital no exercício da escrita: restringe aos estudiosos do tema. Daí a criar acção. E é aqui, que nós angolanos importância do docente estar sempre encontramos os nossos desafios – o de- atento e disposto a actualizar o déjà vu, safio de ler muito tarde, o de termos al- a reabastecer ou desconsiderar o clichê guma “letargia” pela leitura e o medo de e a trazer ou atrasar o novo – a exclusiler, ler e ler muito; pequenas, médias e vidade, mas também a fértil noção de grandes obras; obras angolanas, outras simultaneidade mais típica das conjunproduções de outros mundos, obras ções aditivas. universalizadas. Quando Muanza, Soares e outros, Não existe nenhum manual ordenado escrevem o seu texto de literatura exlogicamente para adestrar o candidato plicando “Como se lê um texto literáa romancista, ou poeta, ou contista. E rio”, o objectivo é formalizar um métoquando me refiro a não existência de do – comparativo – para aqueles que, manual, refiro-me à total inadequação analogamente a um biólogo, de facto de um guia acessível que trate, basica- queiram atingir um mais alto grau de comente, da produção literária. Com todas nhecimento na matéria literária. A sua as ambiguidades que a prática provoca, pretensão é clara: obviamente será ele com toda a singularidade que cada su- quem vai apresentar a matéria-prima jeito constitui, com toda a insatisfação necessária àquele que deseja tornar-se e alegria que o resultado pode – ou não um expert em literatura. – trazer ao seu “criador”, o grande deInteressa-nos aqui compreender que safio é orientar sem formatar, levar ao aprimoramento sem cortar, estimular a comparação elogiosa de Francisco sem mentir. “Especialmente porque, ao Soares à Abreu Paxe pressupõe um cose relacionar mais profundamente con- nhecimento prévio dos escritores mais sigo mesmo, ao garimpar as mazelas do representativos da literatura, os quais, seu texto, ao encontrar o ouro, separar no seu entendimento, são aqueles que o joio do trigo e às vezes optar pelo joio, mantêm a linguagem “eficiente”, isto é, o autor recém-nascido é obrigado a en- a sua precisão e a sua clareza. Para tal, frentar o mundo, a diluir parte do seu ele propõe “duas maneiras de ler a poe“eu” e abrir-se à projecção alheia. A par- sia” criando uma mini-antologia que vai tir daí vai contracenar com o outro na de Ezra Pound, passando por José Luís
Mendonça e David Mestre. Vale considerar a relevância que Pound atribui ao acervo literário da humanidade como um património que não deve ser ignorado, mas conhecido e organizado de maneira que os demais possam ir além do que já foi de facto trilhado pelos antepassados. A escolha dos componentes deste ou daquele texto seria daqueles que fazem “grande literatura”. Com tão grande fascinação pelo processo criativo, ou ao descobrir como, a partir de uma ideia, uma imagem, um tema, o escritor constrói um universo. Como as peças da narrativa se articulam na linguagem, na estrutura, na construção das personagens, suscitam muitas indagações... Como, entender o processo de criação de escritores do calibre de Hilda Hilst e Uanhenga Xitu, Florbela Espanca e Agostinho Neto, que são tão diferentes entre si e tão singulares nas suas obras. O que cria essa singularidade? Essa pergunta é o ponto de partida das crónicas da vida, que percorrem toda a escrita, que gira ao redor de uma questão sobre criação literária, leitura, vida e obra dos escritores, as suas angústias e descobertas. Anton Tcheckov, José Saramago, Fernando Pessoa, Luís de Camões, Cordelina Fine, Kim Eduards, Flaubert, são alguns autores que estão no pensamento literário. É interessante que pessoas ligadas à criação, mesmo de outras áreas, como teatro, música, dança, se identificam também com o livro. São inquietações e descobertas que elas têm também. Outro retorno saudável sobre o texto, objecto da Criação Literária é uma mistura de ensaio e ficção conduzidos pela crónica, como o que experimentei lendo, recentemente, uma crónica inicial do estudante de literatura, Teodoro Miguel, numa linguagem que permite que questões complexas sejam tratadas com simplicidade e leveza. Ser escritor hoje, no sentido criativo, é desafiador também, porque as nossas estantes estão cheias de livros fascinantes, criativos, ousados, maravilhosos e assim, vive-se num constante embate entre a fricção, a tradição e a vanguarda, nossas heranças estéticas. O desafio do escritor nos tempos actuais é encontrar a sua voz narrativa, a sua visão literária, construir uma escrita original, própria, diante de tudo que já foi feito, e muito bem feito, em literatura.
A comparação elogiosa de Francisco Soares à Abreu Paxe pressupõe um conhecimento prévio dos escritores que mantêm a linguagem “eficiente”, isto é, a sua precisão e a sua clareza. Para tal, ele propõe “duas maneiras de ler a poesia” criando uma mini-antologia que vai de Ezra Pound, passando por José Luís Mendonça e David Mestre.
2 “As três experiências”, Clarice Lispector. In: A descoberta do mundo. 3 “As três experiências”, Clarice Lispector. In: A descoberta do mundo.
RIBAS, Maria Cristina – Criação Literária, p.109
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DESAFIOS LITERATURA EM ANGOLA
NOVOS ESCRITORES ANGOLANOS
da ousadia à mediocridade Luefe Khayari | luefe.khayari@gmail.com
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os últimos anos o universo da escrita angolana tem evidenciado um número cada vez mais crescente de novos escritores, na sua maioria jovens, que procuram revelar-se em todas as frentes da literatura. Vários têm despontado e apresentado as suas obras com bastante destaque mediático e que acabam por ser referenciados como autores promissores para a nova vaga da literatura angolana. Obras singulares, colectâneas, assim como publicações em jornais e revistas, sites e redes sociais, têm sido amostras irrefutáveis de que mais nomes estão sendo, ou virão a ser, escritos no livro de registos dos escritores angolanos.
-la a escrita. Deste modo, cantos, contos, provérbios, adivinhas e rituais religiosos, que costumavam ser contados a noite, comummente à volta de uma fogueira, foram trazidos à palavra escrita. Nisso destacam-se os três volumes de Misoso como obras de compilação de narrativas tradicionais orais. Por tal empenho e ousadia, Óscar Ribas veio a notabilizar-se como um dos maiores colaboradores na configuração de um perfil identitário de Angola. Por outro lado, os temas abordados por Uanhenga Xitu, em seus diversos livros, representam o ser angolano gritando ao mundo as suas identidades e desafiando os diversos sistemas, sociais ou políticos, com uma ousadia na escrita, tal que o fez um dos principais modernizadores da literatura angolana. Em temas como Bola com Feitiço, ou Manana é notável a representação de um contador de estórias vestido sob a pele da angolanidade e do modus vivendi angolano, sem descorar o ocultismo presente em vários ramais da nossa sociedade. Deste modo, a sua escrita acabou certamente criando outros moldes para uma literatura originalmente angolana.
Avaliando os precursores da nossa literatura, não é penoso concluir-se que está englobada desde sempre em ousadia e bravura. Um dos primeiros textos ficcionais angolanos do século XX, por exemplo, O Segredo da Morta, de Assis Júnior, é uma das mais antigas provas dessa ousadia, em que o autor despe-se da influência colonialista e desbrava uma literatura rica de personagens com uma essência angolana e ambientada pelas suas vivências. Ademais, destaca a sua genialidade ao recorrer a um estilo narrativo de autores mundialmente conceituados, do início do século, mesclando com dialectos e Os exemplos supracitados, reflectem um peprovérbios nacionais, mais especificamente o queno punhado do empenho e coragem por quimbundo; que se regeram os referidos autores, deixando algumas bases que os justificam como referênÓscar Ribas por sua vez, mostrou-se como o cias na criação narrativa da literatura nacional. “sunguilador – mor” no que concerne a tomar Evidentemente outros, não menos ousados os ápices da literatura de tradição oral e passá- ou empenhados os ladearam ou os seguiram 28 | Palavra&Arte
Pelas trilhas por que corre a sociedade actual, o universo de questões para serem abordadas é incomensurável o que dá espaço à ousadia dos novos autores para escolherem as que mais se adequam a sua forma de abordagem ou às suas intenções. e fizeram-se referências, quer pela qualidade Entre factores sociais, culturais e económiapresentada em suas obras como pelas inova- cos, o aumento do número de novos escritores ções que fizeram as mesmas transportar. e a pouca presença de autores de outras gerações nas novas publicações, têm levado leitoAo longo das décadas de 1990 e 2000, o país res, escritores – conceituados ou não –, analispassou por um período de quase estiagem li- tas e cultores literários à uma análise contínua terária no quesito da narração. Poucas obras e permanente em vários fóruns sobre o estaforam lançadas num grande período de tempo, do da literatura angolana, em que se evidencia sendo que poucos autores novos emergiram. uma crise com tantos preâmbulos que por veNo entanto, as mudanças no paradigma geral zes reflecte um foco inalcançável de mudança. do país aos poucos foi se reflectindo na arte li- Tanto como isso, tem-se debatido, a qualidade terária até chegar num momento em que, para da literatura actual, especialmente a feita por muitos, tornou-se quase uma obrigação ter escritores emergentes. E numa época como a uma obra disponível ao público. Pelas trilhas actual, com enorme disposição para o acesso por que corre a sociedade actual, o universo à leitura e, mais ainda, à curta distância de um de questões para serem abordadas é incomen- “clique”, o acervo de literatura é denotado pela surável o que dá espaço à ousadia dos novos diversidade que o universo das letras oferece e autores para escolherem as que mais se ade- a leitura – como base para uma melhor escrita quam a sua forma de abordagem ou às suas – é tida como garantida quer em obras físicas intenções. E isso é em sua essência um dos cer- ou digitais e isso, por si só, poderia ser uma ranes desta análise. zão para evidenciar a qualidade literária antes da quantidade. O novo escritor, que leva a sua obra ao alcance do leitor, ambiciona, ou tende a ambicionar, Entretanto, como é sabido, a composição de ser um precursor da literatura para as gera- textos narrativos num livro, para ser consideções vindouras. É com esse pressuposto, den- rado uma obra literária, tem diversos pressutre outros, que a ousadia tem despontado no postos dentre os quais: os recursos estruturais seio e que os leva a arriscarem-se a publicar as e linguísticos de um texto narrativo; a descrisuas obras, quer o façam individualmente ou ção dos personagens; o desenvolvimento do em colectivo, quer através de algumas editoras enredo; as técnicas de escrita; a profundidade ou por meios próprios, viajando de temas po- da história; a coerência na narração; a classifilémicos à abordagens inusitadas. Deste modo, cação do género; referências históricas e geoo número de livros lançados entre os jovens e gráficas; referências artísticas e culturais; etc. É novos autores tem ganhado, a cada publicação, com tais quesitos na balança que as supracitamais notabilidade. das discussões têm posto em causa, nem tanto a criatividade dos autores mas sim as suas cria-
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ções, pois têm sido cometidos atropelos que descaracterizam os géneros defendidos.
DESAFIOS LITERATURA EM ANGOLA
“(Livros ruins) roubam tempo, dinheiro e atenção do público, coisas que pertencem por direito aos bons livros e a seus objectivos nobres”, disse Arthur Schopenhauer. A mediocridade presente nalgumas obras as vezes referidas, por alguns autodenominados críticos, como grandes obras da literatura angolana, soa quase como um insulto aos conhecedores da escrita e aos leitores ávidos pelo melhor da literatura. Embora alguns autores sejam ousados para abordar determinado tema com um carácter atractivo e de impacto social, não estendem tal ousadia a uma pesquisa rigorosa sobre o assunto; ignoram a essência da própria arte da escrita, não reconhecem que na obra, não é tanto a história em si que importa, mas sim a forma como ela é contada; não transportam a alma do escritor naquilo que apresentam; não demonstram com uma visão particular o assunto comum, acabando por não criar um cunho próprio, e de qualidade, dentro do reportório da escrita nacional. É necessário que o novo autor conheça os passos que pretende dar na literatura e como os deve dar, por outro lado, é necessário que os críticos e analistas literários tenham a decência de dizer claramente o que está mal e que caminhos se deve seguir para se atingir a melhoria. Carlos Ruíz Zafón, em seu livro o Jogo do Anjo, afirma que “não se deve subestimar a vaidade de um escritor, especialmente de um escritor medíocre”, e é precisamente o que muito se vê. Análises e comentários que inflamam o ego do novo autor com elogios que pouco ou nada engrandecem o seu aprendizado literário acabando por influenciar, tão somente, o contínuo aparecimento e destaque de obras medíocres. Agindo-se com a solidez requerida e exigência defendida comummente nos destintos pontos de vista nos fóruns de discussão e análises sobre a literatura angolana, talvez se possa preencher alguns dos vazios bem visíveis na estrutura dos novos autores e com isso se descamará a mediocridade existente nesse seio. BIBLIOGRAFIA DE APOIO SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte De Escrever. L&PM, Porto Alegre. 2009 SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro, Ensaio: Óscar Ribas e as Literaturas da Noite: A Arte de Sunguilar. Mulemba. Rio de Janeiro. 2010. www.ueangola.com/bio-quem/item/38-antónio-de-assis-júnior;
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www.ueangola.com/bio-quem/item/61-uanhenga-xitu;
ENTIDADES
APROCIMA - a malta do cinema nacional Entidades é um espaço que contempla a divulgação de instituições e órgãos ligados à área cultural, para lhes compreender a função, razão de existência e sua utilidade para os seus destinatários (artistas e criadores). Palavra & Arte traz para esta edição da revista a Associação Angolana dos Profissionais de Cinema e Audiovisual (APROCIMA). O que é a APROCIMA (porque foi criada)? APROCIMA é a Associação Angolana dos Profissionais de Cinema e Audiovisual. Foi criada a 16 de Agosto de 2014, com a finalidade de defender os interesses dos profissionais da classe, sendo o primeiro parceiro privado do Executivo Angolano para toda e qualquer questão relacionada com a implementação da política de incentivo e promoção do Cinema Angolano. O que a APROCIMA desenvolve na prática? A APROCIMA desenvolve actividades que visem a promoção do cinema e audiovisual angolano, capazes de garantirem a Paz, Harmonia e o Desenvolvimento Social, defendendo culturas locais, regionais e nacional. Resume-se em iniciativas de fomento à cadeia da actividade cinematográfica, tais como formação; produção; distribuição; exibição; crítica e arquivo. Quem pode fazer parte da APROCIMA? Podem fazer parte da APROCIMA todos os profissionais de Cinema, Televisão, Rádio, Escritores, Técnicos e Artistas de Teatro (actores, actrizes, dramaturgos, técnicos, etc), Estudantes de Cinema e de Comunicação Social, Jornalistas, Críticos de Artes e de Cinema e Cinéfilos. Como fazer para se registar como membro da APROCIMA? A pessoa interessada preenche uma ficha de inscrição, anexa duas fotos tipo passe, fotocópia do BI, e fotocópia de Certificados ou Diplomas de
Habilitações Académicas ou Habilitações Profissionais e valor de 10 mil Kwanzas (jóia de inscrição). Poderá apresentar, ainda, cópias em DVD de filmes de sua autoria ou em que tenha participado. Posteriormente, deverá pagar a quota mensal de mil Kwanzas. Como a APROCIMA trabalha com os membros? A APROCIMA informa aos seus membros e ao público interessado sobre as suas actividades, convoca reuniões para acertos de actividades ou para se dar a conhecer determinadas situações da associação. Que tipos de actividades têm realizado? A APROCIMA realiza com frequência as seguintes actividades: • Cine Clube Mensal, denominado “Cinema@ Debate”, na União dos Escritores Angolanos, em que há projecção de um filme seguido de debate com o realizador ou actores e técnicos envolvidos no filme. Geralmente tem sido na última quinta-feira do mês. • Cursos Intensivos de Cinema e Oficinas. • Intercâmbio com instituições nacionais e estrangeiras, públicas e privadas • Divulgação dos filmes angolanos no país e
no exterior.
• Comemoração de efemérides internacionais
e nacionais.
Quando e onde funciona a APROCIMA? Provisoriamente, a APROCIMA funciona na União dos Escritores Angolanos (UEA), num dos quiosques do pátio. Contactos: (224) 937 03 52 51// 998 33 01 90 // 923 27 94 90 Email: maltadocinema.angolana1975@gmail. com Facebook: Aprocima Malta DoCinema Novembro/Dezembro | 31
PORTFÓLIO
JESSÉ BALANÇA ANTÓNIO MANUEL Nasceu no Lubango, Huíla, em Abril 1988. Licenciado em Eng. Civil, é um fotógrafo voltado para fotografia de paisagem, e no retrato fiel das vivências do povo Angolano. Começou a fotografar em 2012, ganhando algum destaque nas redes sociais. Consolidou a sua posição de fotógrafo emergente, tendo conquistado o prêmio de campeão nacional de fotografias de rali "FotoRali 2014". Conta neste momento com a participação em uma exposição colectiva organizada pelo Banco Caixa Geral Totta "Projecto Coleção Arte", com quatro obras; em Setembro de 2015 participou de uma exposição fotográfica organizada pelo Instagram, Photoville Nova York, com uma obra. Mereceu também destaque, por 3 vezes na página oficial do Instagram Brasil. Com seis obras, faz parte do projecto Nossa Língua, primeiro documentário visual dos Países de Língua Oficial Portuguesa . Tem parceira com a página Visiter L'Afrique (onde tem a missão de divulgar e contar histórias sobre Angola), e com Views of Angola.
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NÓS SOMOS O SOL
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Doadores da vida — Tundavala, Lubango Nós Somos O Sol //Jessé Balança António M
Manuel ©
Que vivas para sempre meu filho — Tundavala, Lubango Nós Somos O Sol //Jessé Balança António Manuel ©
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Ligando-me a estrutura (auto-retrato) — Tundavala, Lubango Nós Somos O Sol//Jessé Balança António Manuel ©
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Assim vivemos, entre o laranja do sol, e o vermelho da terra — Lubango, Huíla Nós Somos O Sol//Jessé Balança António Manuel ©
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«O Fim de Tarde Perfeito», pôr-do-sol na companhia da minha Princesa. Esta fotografia é um auto-retrato, onde desfrutamos de algo que a Huíla tem de melhor: o pôr-do-sol sobre as falésias do planalto da Humpata, Alto Bimbe, o ponto mais Novembro/Dezembro alto da província. | 39
C O N TO
Café dos Poetas por Magno Daniel
A placa na porta de entrada era clara, não carecia de explicação. Era uma frase simples, escrita em itálico: “Café dos Poetas”. Atiçou a minha curiosidade natural de procurar saber o que acontece atrás de cada porta dessa cidade inflamada de suspiros humanos. Olhei pela janela, notei que havia, no interior, quatro cadeiras de madeira, quatro homens e uma folha branca na mão de cada um, mas não havia café e muito menos máquina alguma para fazê-lo. Minha curiosidade aumentou, dei a volta até a entrada e quase abri a porta, mas parei, imaginando o que sucederia logo que a abrisse: - Quem és tu? - Eu? - Sim, tu, quem és? És poeta? E eu responderia desajeitado, coçando a cabeça: - Sou sim, poeta de imaginação, vivo pensando em poemas, mas nunca os escrevo. Um senhor de idade, aparentemente avançada, mofando de mim e de minha cara de palerma, perguntaria: - Afinal existem poetas de imaginação? Os outros três homens presentes na sala zombariam de mim, gargalhadas incontroladas, babas, cuspes, engasgos e tudo que se tem direito ao servir-se de uma piada numa manhã ensolarada de sábado. Mas não foi assim que aconteceu, a porta abriu-se logo que meus pensamentos decidiram chamar-me a razão de que seria melhor voltar à janela para continuar a alimentar minha curiosidade natural de saber que vidas vivem as pessoas nessa 40 | Palavra&Arte
cidade de chamas silenciosas. O senhor de idade, aparentemente avançada, trazia nas mãos um livro vermelho sem letras na capa, abriu a porta e, com um tom de voz que muito se assemelhava ao de José Saramago, disse-me: -Entra, estávamos só à espera de ti para começar. -Como? Argui sem mover meu corpo, apenas os lábios, as palavras que rondavam minha mente recusaram-se a sair e fiquei pela pergunta de criança que tudo quer saber; Como? Como conseguem os peixes viver na água sem se afogar? Como? E por ali fiquei por meros segundos, achei que estivesse prestes a ter um ataque cardíaco, não conseguia acreditar, parecia ele, parecia ser José Saramago, não apenas pelo tom da voz, também pelos gestos e a melancolia, característica de sua alma quase imutável. Consegui ler em seus olhos suas ideologias, consegui ouvir suas entrevistas e sentir a energia de seu amor por Pilar, Ele reforçou o convite: - Entra, apresse-se! E dirigiu-se ao fundo da sala aonde havia uma cadeira branca, prosseguiu convidando-me a sentar e começou por perguntar a quem mais próximo dele estava, um jovem-senhor de camisa cinzenta: -Para quem escreves poesia? Para ti, para mim, ou para a vida? Com o rosto curvado ao chão, o jovem-senhor respondeu:
''escrevo poesia para a ironia do mundo para ouvir a voz difusa da alma de um mudo escrevo poesia para os irmãos gémeos os legisladores desse imenso universo
ou
escrevo poesia para o escárnio que é ser Abel e o contratempo que é fugir de Caim para a sorte de ser um quase-deus mas não poder fugir da morte em mim''
-E tu? Para quem escreves poesia? Dirigiu-se a um outro jovem, aparentemente mais velho do que eu e mais novo do que o jovem-senhor da camisa cinzenta. Pôs-se em pé e disse: escrevo poesia para ela a mulher que me transformou em poeta para a noite em que tristezas da alma metamorfoseiam-se em melodias e para o crime que é largar abraços no silêncio da brisa da vida escrevo para a valsa que nunca iremos dançar para o barco que mesmo sem vela continua a pelejar para vencer o mar eu, escrevo para a escuridão poética da noite de rimas sem ar em que vi nos olhos dela o azul escuro florescente do mar, coisas de me encantar escrevo para as ondas sem direcção que levam para ela as perólas de minha imaginação’’
Olhei para ele e pensei porque pulou o adolescente de óculos escuros e veio para mim? Era evidente a seriedade em seu rosto envelhecido, seria mesmo José Saramago? Talvez, de qualquer modo, não sabia o que responder, havia posteriormente dito que era poeta de imaginação e agora me pergunta para quem escrevo? mas eu, poeta de imaginação desde quando vi o Sol pela primeira vez imagino poemas de delírios poemas de amor poemas de vida e de morte como qualquer outro poeta não os imagino pensando em mulher alguma, nunca provei com meus lábios e coração o amor romântico de uma imagino poemas de saudades e de cheiros de abraços mal apertados e de beijos mal beijados imagino poemas de não escrever poemas de guardar apenas no fundo do meu desarranjado ser. Levantei-me. depois de uma vista de olhos panorâmica por todos que ali estavam, disse sem balbuciar: -eu não sou poeta! e me retirei às pressas...
- E tu ali no fundo, para quem escreves? - Eu? Perguntei com o coração quase pulando pela boca -Sim, tu? Novembro/Dezembro | 41
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