Maio de 2021 • Ano 02 • Nº 11 • R$ 15,99
Irresponsabilidade com medidas sanitárias e omissões no processo de vacinação criam cenário fértil para mutações do novo coronavírus e provável terceiro pico da pandemia de Covid-19
O MELHOR CONTEÚDO DA AMAZÔNIA NO CENTRO DO PODER COLUNA VIA BRASÍLIA ENTREVISTAS ESPECIAIS FACTUAIS ARTIGOS ANÚNCIO EMPRESA DE PESCA
REDAÇÃO DA CENARIUM NO DF
LIBERTY MALL SHOPPING, TORRE B, SALA N° 731 - BRASÍLIA - DISTRITO FEDERAL
Editorial www.revistacenarium.com.br EXPEDIENTE Diretora Paula Litaiff – MTb-793/AM www.paulalitaiff.com Editores-Executivos – On-line Carolina Givoni Paulo Bahia Editora-Executiva – Impresso Márcia Guimarães Editora-Executiva – TV Cenarium Andréa Vieira Coordenadora de Redação Juliana Mattos Núcleo de Reportagem On-line e Impresso Alessandra Leite Bruno Pacheco Carolina Givoni Caroline Viegas Gisele Coutinho Matheus Pereira Priscilla Peixoto Victória Sales Núcleo de Produção TV Cenarium/ TV Cultura Gabriel Abreu Marcela Leiros Jander Souza Flávia Horta Samuelknf Fotojornalismo Ricardo Oliveira Arlesson Sicsú Redes Sociais Gisele Coutinho Guilherme Oliveira Marcele Fernandes Revisão Textual Gracycleide Drumond (on-line) Jesua Maia (impresso) Projeto Gráfico/Diagramação Hugo Moura Gerência Administrativa Elcimara Oliveira Secretária-Executiva Edne Ramos (092) 3071-8790 Consultor Jurídico Christhian Naranjo de Oliveira (OAB 4188/AM) Consultor Jurídico e Científico Daniel Pinheiro Viegas (OAB 8969/AM) Telefone Geral da Redação (92) 3071-8790 Circulação Manaus (AM), Belém (PA), Brasília (DF) e São Paulo (SP)
A cloroquina e o obscurantismo
Autorresponsabilidade e 3ª onda
Desde a sua origem, a REVISTA CENARIUM tem como princípio fundamental o respeito ao trabalho dos profissionais que dedicam grande parte da vida aos estudos científicos, e o que seria uma obrigação de todos, o respeito à Ciência, passou a ser uma decisão de uns, em meio a convicções pessoais de outros, que insistem em negar a importância dos estudos científicos.
Autorresponsabilidade. Palavra da moda que muito tem a ver com o prenúncio de uma terceira onda da pandemia de Covid-19. Resumidamente, trata-se da capacidade de nos responsabilizarmos pelo que acontece em nossas vidas. Muitos de nós transferimos a responsabilidade por nossas falhas, culpando outros. E isso diz muito sobre os altos níveis de internações e mortes por Covid-19 no Brasil e na Amazônia.
A recente revelação sobre a tentativa do Palácio do Planalto de mudar a bula da hidroxicloroquina para fazê-la contemplar o tratamento da Covid-19, sem qualquer experimento científico comprovado no mundo, mostra o quanto uma ideologia – política ou religiosa – destrói vidas e a história de toda uma nação.
Todos queremos o fim da pandemia e a volta à normalidade, mas usar máscara incomoda, ficar em casa nos deixa impacientes e deixar de festejar com amigos e família é chato. Muito mais fácil é dizer que não há leitos e vacina por culpa do governo.
Grave, também, é ver gestores, aliados políticos do presidente Jair Bolsonaro, reproduzirem aberrações anticientíficas, colocando em risco a vida de pessoas que buscam socorro nas Unidades Básicas de Saúde, a exemplo de Manaus (AM), cujo prefeito autorizou a distribuição de “Kits Covid”.
Aqui não se quer eximir o Estado de nenhuma de suas responsabilidades por omissões ou desorganização. As falhas são muitas, graves e devem ser respondidas com vigilância e medidas punitivas, quando couber. Mas, nenhum de nós pode esquecer da nossa parcela individual de responsabilidade, aquela que de um em um refletirá no todo, para o bem e para o mal.
Sumário Maio de 2021 • Ano 02 • Nº 11
MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE Temporada de queimadas........................................ 6 Efeito estufa em dobro............................................. 8 Rio Negro avança....................................................... 10
CENARIUM+CIÊNCIA Cenarium+Ciência: por uma ciência feminista!...... 12
10
Tecnologia antiCovid-19............................................ 14 Do nano à cura........................................................... 16
PODER & INSTITUIÇÕES CPI da Pandemia e eleições ..................................... 18 Coluna via Brasília..................................................... 20 Bolsonaro ‘amazonense’........................................... 22
ECONOMIA & SOCIEDADE À sombra da 3ª Onda................................................ 24
O “tratamento preventivo ou combativo” da Covid-19 agora é sinônimo de retorno ao período medieval, já que não há qualquer estudo confiável que valide a abordagem. A decisão de permanecer nas trevas é, neste momento, de cada cidadão e a informação, ainda, é a melhor aliada na defesa contra os ataques do pior inimigo na atualidade, o obscurantismo.
Para destacar esse quebra-cabeça de responsabilidades, esta edição traz na capa o questionamento 3ª Onda?, uma reportagem que aborda fatores que podem levar a uma terceira onda da pandemia e medidas com poder de evitar ou, ao menos, minimizar os impactos de um novo pico.
Imunização de indígenas e quilombolas.................. 32
Nesta edição, o leitor também lerá sobre fatos relevantes da política, economia e cultura da região.
POLÍCIA & CRIMES AMBIENTAIS
“Perdi minha família para a doença”....................... 34
Rio de Papel............................................................... 52
Farra do desrespeito.................................................. 36
Paula Litaiff Diretora
Márcia Guimarães Editora-Executiva
‘Arma’ do agronegócio.............................................. 56
Esperança na ponta da agulha ............................... 38
MUNDO E CONFLITOS INTERNACIONAIS
Ainda corremos riscos............................................... 40
Defesa indígena......................................................... 58
ARTIGO – MARCUS LACERDA
Comida jogada fora................................................... 60
Alta ocupação de leitos clínicos e UTIs................... 26 Manaus: Gestão confusa agrava cenário................ 28
66
Distantes e Vulneráveis............................................. 30
Homo persona............................................................ 41
ENTRETENIMENTO & CULTURA
Conexão com o público............................................. 42
Muito mais que um brinquedo................................. 62
Inflação em alta e renda em baixa.......................... 44
Lugar Sagrado............................................................ 66
Lixo que dá lucro....................................................... 46
DIVERSIDADE
Polo de Duas Rodas ganha fôlego........................... 50
Machismo S.A............................................................ 68
ARTIGO – CARLOS SANTIAGO
ARTIGO – REGIANE PIMENTEL
A vida sem graça de um Homo sapiens.................. 51
Afinal, por que precisamos do feminismo?............. 70
MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE
REVISTA CENARIUM
Crédito: Mayke Toscano | Secom-MT Fotos Públicas
Tempo quente e seco, fim das operações militares e desmonte da fiscalização deixam segundo semestre mais ‘inflamável’ para Amazônia e Pantanal Por Marcela Leiros – Da Revista Cenarium
“Os processos estão ligados. Hoje, sabe-se que o aumento do desmatamento e o aumento das queimadas estão diretamente relacionados à ocupação ilegal de terras públicas. São áreas protegidas, territórios indígenas e quilombolas”, destacou Durigan.
Após o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Cúpula de Líderes sobre o Clima, no dia 22 de abril, no qual prometeu a duplicação de recursos aos órgãos ambientais, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmou, em coletiva de imprensa, que a continuação ou não da GLO na Amazônia ainda era avaliada. No dia 30 de abril, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que as Forças Armadas estão prontas, caso seja necessário continuar a Operação Verde Brasil 2 na região amazônica. Segundo ele, o presidente Jair Bolsonaro ainda deve decidir sobre uma possível prorrogação da GLO.
Números da devastação
“As Forças Armadas estão em stand by, caso seja necessário”, disse Mourão na chegada ao Planalto. “O ministro da Defesa não me deu retorno [sobre a prorrogação]. O presidente poderá decidir isso a qualquer momento. Vamos dizer o seguinte, todo comandante tem que ter uma reserva, a reserva do presidente qual é? São as Forças Armadas. Se sentir que não estamos conseguindo cumprir a tarefa com o que nós temos, a gente entrega às Forças”, declarou. Até o fechamento desta edição a GLO não havia sido prorrogada. Edição: Márcia Guimarães
FOCOS ATIVOS DE INCÊNDIO
Entre janeiro e dezembro de 2020, a Amazônia perdeu
8.058 quilôme-
NA AMAZÔNIA JULHO A NOVEMBRO
tros quadrados de área verde. Em 2019, foram derrubados 6.200 quilômetros quadrados de floresta amazônica. Só em dezembro de 2020, os satélites registraram 276 quilômetros
75.295
EM 2020
EM 2019
quadrados de devastação na Amazônia, o que também significa recorde
2019 +21% DE A 2020
para a década. O Pantanal teve mais de 2,3
M
As queimadas cresceram, em média, 16% na Amazônia e no Pantanal em 2020 – na comparação com 2019 – no período considerado por especialistas como o mais ‘seco’. 6
milhões de hectares atingidos pelo fogo,
entre 1º de janeiro e 7 de setembro de 2020, de acordo com o Laboratório
ANAUS – A chegada do ‘verão amazônico’, a saída do Exército da fiscalização e o desmonte de órgãos ambientais formam uma combinação “inflamável” para Amazônia e Pantanal no segundo semestre de 2021. Entre julho e novembro, o tempo fica mais quente e seco nessas duas regiões, o que propicia queimadas mais intensas. Neste ano, o fator natural terá como combustível o fim da Operação Verde Brasil 2, que tinha os militares atuando diretamente na proteção da região por meio da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) vigente até 30 de abril, além do enfraquecimento de órgãos ambientais, que enfrentam demissões, cortes de verba e perda de autonomia. O resultado esperado dessa soma, segundo ambientalistas, é uma devastação maior que a dos últimos anos.
www.revistacenarium.com.br
De acordo com dados do painel Monitoramento dos Focos Ativos por Bioma do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), as queimadas aumentaram 21% na Amazônia, entre julho e novembro, nos anos de 2019 e 2020. É nesses meses que ocorre o ‘verão amazônico’, quando o clima da região é mais seco, de acordo com o ambientalista Carlos Durigan. No Pantanal, as queimadas aumentaram 271%. “A questão das queimadas está diretamente relacionada com o período que é conhecido como o ‘verão amazônico’, que vai de julho a novembro, aproximadamente”, afirmou Durigan, que também é geógrafo e mestre em Ecologia. Segundo o especialista, as queimadas na região são usadas por comunidades tradicionais na preparação de terrenos para a agricultura, mas também são causadas por criminosos que devastam grandes áreas de terras da União e, até mesmo, terras destinadas à preservação ambiental.
QUEIMADAS E DESMATAMENTO Não por coincidência, o desmatamento na Amazônia foi recorde em 2020, segundo o sistema de Alerta de Desmatamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). No Pantanal, o ano foi o que teve mais registros de fogo desde o fim da década de 1990, quando o monitoramento do Inpe começou. Em setembro do ano passado, investigações da Polícia Federal apontaram que ao menos cinco fazendeiros foram responsáveis pelas queimadas. O desmate na Amazônia cresceu 30% no ano passado. O incêndio no Pantanal foi o maior em 14 anos na região e destruiu nove vezes mais do que o desmatamento nos últimos dois anos. Os incêndios atingiram cinco Terras Indígenas, três parques estaduais, um nacional, uma área de proteção ambiental, duas reservas particulares e uma estação ecológica.
Crédito: Guilherme Reis
TEMPORADA DE QUEIMADAS
A relação desmatamento e queimada é percebida no aumento desses números, já que o primeiro passo para transformação de uma área é a retirada da mata e o segundo é o atear fogo. Nos grandes focos de calor registrados, as queimadas são geralmente causadas pela ocupação ilegal de terras públicas.
de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa). A área queimada do Pantanal equivale ao do Rio de Janeiro.
dobro do tamanho da cidade
NO PANTANAL MARÇO A AGOSTO
2.617 EM 2019
Somente nos meses de julho e agosto foram atingidos 1.654.000 hectares no Pantanal.
9.724 EM 2020
2019 +271% DE A 2020 Fonte: INPE
DESMONTE DA FISCALIZAÇÃO Desde o final de abril, a Amazônia não conta mais com a Operação Verde Brasil 2, que tinha as Forças Armadas atuando na proteção ambiental da região, por meio da Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Os militares também foram designados para proteger Terras Indígenas (TI), Unidades de Conservação (UC) Ambientais Federais, além de atuar em outras áreas sob responsabilidade do Executivo nos nove Estados que compreendem a Amazônia Legal.
De forma geral, o Ministério do Meio Ambiente (MMA), sob o comando de Ricardo Salles, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) sofrem, desde 2019, um desmonte da política ambiental, fator que levou ao desligamento de servidores atuantes na fiscalização das florestas. “A fragilização de políticas de prevenção e combate a incêndios afeta esses biomas da mesma forma, porém com um grau até
mais complicado porque os outros biomas [Cerrado e Pantanal] não possuem programas de prevenção a queimadas, como é o caso de Amazônia, há aí uma diferenciação histórica de programas voltados a combater essas questões”, lembrou Durigan. A reportagem questionou as assessorias de comunicação do MMA, Ibama e ICMBio sobre que estratégias devem ser adotadas após o encerramento da GLO e que ações que estão sendo feitas no combate às queimadas no Pantanal, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
7
REVISTA CENARIUM
EFEITO ESTUFA EM DOBRO
Níveis globais sobem na pandemia
SÃO PAULO – Mesmo com políticas de lockdown, isolamento social e a desaceleração da economia causada pela pandemia de Covid-19 no mundo, os níveis de dois dos mais importantes gases do efeito estufa – dióxido de carbono (CO2) e metano – continuaram a subir em 2020, segundo a Agência de Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (Noaa).
Em nove anos, emissão de gases cresceu quase 100% na Amazônia Legal contribuindo para o aquecimento global, diz estudo Bruno Pacheco – Da Revista Cenarium MANAUS – A emissão de gases do efeito estufa na Amazônia Legal aumentou 99,8%, em nove anos. Segundo o estudo “Fatos da Amazônia 2021”, publicado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), os nove Estados da região emitiram 1.137,13 megatons de dióxido de carbono equivalente (CO2e) em 2019, mais de um bilhão de toneladas de poluentes. A medida corresponde a um aumento de quase 100% em relação a 2010, quando foram registrados 656,1 megatons de CO2e. O dióxido de carbono equivalente é o resultado da multiplicação das toneladas emitidas de Gases de Efeito Estufa (GEE) pelo seu potencial de aquecimento global.
pela retenção do calor. “Isso ocasiona uma tendência de aquecimento da atmosfera que leva ao aquecimento global”, salientou. Segundo Marinho, quando o carbono chega à atmosfera, ele interage com os raios solares e acaba absorvendo mais poluentes.
O doutor em Clima e Ambiente pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), professor e pesquisador Rogério Marinho, explica que quanto maior a emissão de gases na atmosfera, maior o efeito estufa, que é o aumento da temperatura da Terra
De autoria de Beto Veríssimo, pesquisador associado do Imazon, Daniel Santos, consultor do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, e Rodney Salomão, consultor, o estudo faz parte do projeto Amazônia 2030, que também conta com a participação
De acordo com Marinho, os gases do efeito estufa podem ser contabilizados com uma unidade de medida de peso, como o megaton. Dessa forma, uma medida de megaton significa um milhão de toneladas. “Por exemplo, o valor de 656 megatons corresponde aos milhões de toneladas de CO2 equivalente e o CO2 é o dióxido de carbono, um dos principais gases do aquecimento global, o efeito estufa”, destacou.
da Climate Policy Initiative (CPI, na sigla em inglês) e do Departamento de Economia da PUC-Rio. A pesquisa, publicada em 12 de abril em coautoria com o Imazon, leva em consideração as emissões brutas de gases na mudança de uso da terra, na energia, na agropecuária e nos resíduos e processos industriais. Segundo o estudo, o Estado do Pará foi o maior emissor em 2019, seguido por Mato Grosso e Amazonas. Os dados foram coletados pelo Sistema de Estimativas de Emissões e Remoção de Gases de Efeito Estufa (Seeg Brasil), uma iniciativa do Observatório do Clima, onde foram analisados e verificados pela equipe responsável pela publicação.
Crédito: Fernanda Carvalho | Fotos Públicas
MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE
Estimativa de Emissões de GEE na Amazônia Legal 2010 - 2019 1.137,13 988,6 893,8 937,7 882,2 777,7 807,3 656,1 688,9 688,2
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Segundo amostras coletadas de locais remotos da Noaa, a quantidade média de CO2 na superfície global foi de 412,5 ppm (partes por milhão) em 2020, um aumento de 2,6 ppm no ano. É o quinto maior aumento anual, de acordo com os registros da Noaa, depois de 1987, 1998, 2015 e 2016. Sem a recessão, o aumento teria sido o maior já registrado, segundo Pieter Tans, cientista sênior do Laboratório de Monitoramento Global da Noaa. Os níveis de CO2 na atmosfera são os maiores num período de 3,6 milhões de anos, época em que as concentrações do dióxido de carbono estavam entre 380 ppm e 450 ppm. Também houve alta significativa de metano na atmosfera. O gás é menos abundante, mas 28 vezes mais potente do que o CO2. A alta em 2020 foi de 14,7 ppm, o maior aumento anual desde que a medição sistemática começou, em 1983. O metano na atmosfera é gerado por fontes como o desenvolvimento e o uso de combustíveis fósseis e como subproduto da criação de gado. Com informações da Folhapress
Fonte: 'Fatos da Amazônia 2021', com base nos dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa
RISCO
ças climáticas causadas por esse aumento das emissões podem alterar o regime de chuvas, ocasionando grande risco a atividades econômicas, como a agropecuária e sistemas agroflorestais, piora na qualidade de vida nas cidades amazônicas com o aumento das temperaturas e maior impacto ambiental sobre as florestas”, frisou.
O aumento da emissão de gases, na avaliação de Daniel Santos, representa risco para as atividades econômicas das cidades em meio às temperaturas elevadas. “As mudan-
O crescimento registrado no Pará, Mato Grosso e Amazonas, conforme Rogério Marinho, está relacionado a mudanças de áreas com cobertura florestal para outro meio de
uso, como a pecuária, áreas com reflorestamento e frentes de garimpo sobre a floresta. “Tudo isso desmata a floresta, queima. A floresta entra em decomposição e acaba emitindo gases do efeito estufa. Esses são os Estados que mais desmataram”, pontuou. O levantamento mostra ainda que 76% do total da emissão de gases do efeito estufa de 2019 foi relacionado, principalmente, ao desmatamento e queimadas na região. Segundo a pesquisa, o ano de menor emis-
são de gases do efeito estufa foi 2010, quando o índice começou a ser calculado.
FATOS DA AMAZÔNIA 2021 O estudo “Fatos da Amazônia 2021” faz parte da iniciativa de pesquisadores brasileiros para desenvolver um plano de ações para a Amazônia brasileira. Tem o objetivo de levar condições à região para o maior desenvolvimento econômico e humano, além de atingir o uso sustentável dos recursos naturais em 2030.
Aumento da emissão de gases do efeito estufa leva à retenção do calor e ao aumento das temperaturas globais
8
www.revistacenarium.com.br
9
Crédito: Ruan Souza | Semcom
MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE
REVISTA CENARIUM
RIO NEGRO AVANÇA No Amazonas, subida das águas ultrapassa cota de inundação severa e deve bater recorde de 2012 Marcela Leiros – Da Revista Cenarium
Além de Manaus, o CPRM ainda apresentou a previsão para o nível dos rios nos municípios de Itacoatiara e Manacapuru, que também estão em inundação severa – quando a inundação provoca danos severos aos municípios. O principal motivo da subida extrema dos rios foram as chuvas intensas registradas nos meses de janeiro e fevereiro em toda a bacia amazonense.
velocidade”, explicou a pesquisadora em geociências do CPRM Luna Gripp.
2015. A probabilidade de que a previsão se cumpra é de 54%.
As análises do CPRM indicam que a probabilidade do nível do rio Negro superar ou igualar os 30 metros é de 56%, mas ainda é necessário aguardar o comportamento pluviométrico no Estado até o mês de junho.
ITACOATIARA
“O nível do rio hoje é bem próximo ao que foi observado em 2012. Em Manaus, teve uma subida muito extrema entre os meses de janeiro e fevereiro. O grande problema observado foi a chuva no princípio do ano. A partir de março e agora em abril, o rio não está subindo muito rápido. O problema é que subiu muito rápido em janeiro e não começou a descer na mesma
MANACAPURU Em Manacapuru (distante 68 quilômetros de Manaus), o nível do rio Solimões está em 19,86 metros e também já ultrapassou a cota de inundação severa. A previsão do CPRM é que o rio atinja 20,80 metros, superando por apenas dois centímetros o recorde de 20,78 metros marcado em
M
ANAUS – O nível do rio Negro – que banha Manaus, capital do Amazonas – atingiu a marca de 29,03 metros, e ultrapassou a cota de inundação severa. De acordo com o Serviço Geológico do Brasil (CPRM), a previsão é que o nível das águas alcance a máxima de 30 metros, superando a cheia histórica de 2012, quando o rio Negro marcou 29,97 metros. As informações constam no 2º Alerta de Cheias Manaus 2021, divulgado em 30 de abril.
A subida do nível do rio Negro afeta moradores de bairros de Manaus próximos à margem
Primeiro alerta MANAUS – O primeiro alerta de cheia do rio Negro em Manaus feito pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM) apontou que o nível das águas poderia alcançar 29,45 metros em 2021. No dia 31 de março, quando foi emitido o primeiro alerta, o nível do rio Negro na régua que mede diariamente o comportamento das águas em Manaus estava em 27,28 metros. O rio estava em nível acima do esperado para o período. Segundo a pesquisadora em geociências Luna Grip Simões Alves, a probabilidade de o rio Negro atingir a cota recorde de 2012 era, naquele momento, bem pequena, de apenas 17%. “A probabilidade que nós usamos, por meio dos prognósticos divulgados é que o nível do rio Negro alcance 17%, ou seja, não é uma probabilidade muito alta, mas ela existe. Por isso, não podemos relaxar nas medidas, pois o nível do rio irá atingir a cota de inundação e afetar as famílias que vivem em áreas próximas”, informou a pesquisadora, no final de março.
Em Itacoatiara, o nível do rio Amazonas poderá alcançar a cota de 15,20 metros. No dia 30 de abril, o nível estava em 14,61 metros. Itacoatiara registrou cheia recorde em 2009, quando o nível do rio Amazonas atingiu 16,04 metros. A probabilidade de atingir essa cota é de 1%.
MUNICÍPIOS EM EMERGÊNCIA De acordo com a Defesa Civil do Amazonas, até 29 de abril, já havia 108.157 pessoas afetadas pela enchente de 2021 nos municípios do Estado. São 14 cidades em situação de emergência, duas em atenção e 31 em alerta. Estavam em situação de emergência Guajará, Ipixuna, Eirunepé, Envira, Itamarati, Carauari, Juruá, Boca do Acre, Pauini, Lábrea, Canutama, Tapauá, Borba e Nova Olinda do Norte. Em atenção, estavam Humaitá e Apuí. Em alerta, estavam Manicoré, Novo Aripuanã, Manaus, Atalaia do Norte, Benjamim Constant, São Paulo de Olivença, Tabatinga, Santo Antônio do Içá, Amaturá, Tonantins, Beruri, Anori, Anamã, Caapiranga, Manacapuru, Iranduba, Manaquiri, Careiro da Várzea, Careiro Castanho, Itacoatiara, Silves, Autazes, Urucurituba, Itapiranga, Barreirinha, Boa Vista do Ramos, Nhamundá, Urucará, São Sebastião do Uatumã, Parintins e Maués.
MAIORES CHEIAS EM MANAUS FONTE: CPRM ANO
COTA
2012 2009 1953 2015 1976 2014 1989 2019 1922 2013
29,97 m 29,77 m 29,69 m 29,66 m 29,61 m 29,50 m 29,42 m 29,42 m 29,35 m 29,33 m
Gabriel Abreu – Da Revista Cenarium
10
www.revistacenarium.com.br
11
CENARIUM+CIÊNCIA
REVISTA CENARIUM
CENARIUM+CIÊNCIA: POR UMA CIÊNCIA FEMINISTA!
Considerando que 54% das mães cientistas cuidam sozinhas de seus filhos, as pesquisadoras do mundo inteiro se articularam em torno da pesquisa Parent in Science, para cobrar dos mais diversos países, políticas públicas que levem em consideração os limites impostos pela maternidade, que vão desde o registro da quantidade de filhos e a idade no Currículo Lattes, para serem considerados no cálculo da produtividade científica, até bolsas de pesquisa e prazos especiais para que as mulheres possam apresentar seus projetos em condições de igualdade de gênero. Portanto, embora a participação das mulheres na ciência esteja crescendo ainda mais com o passar dos anos, elas ainda encontram muitas barreiras que precisam ser superadas com políticas públicas que permitam às pesquisadoras, como a professora Ayrles, a escolha pela maternidade e pela produção científica, ambas tão relevantes para o Brasil.
Daniel Viegas e Victória Sales* - Da Revista Cenarium
M
ANAUS - Segundo a escritora norte-americana Bell Hooks “a luta feminista acontece sempre que algures alguém, mulher ou homem, resiste ao sexismo, à exploração sexista e à opressão”. Essas resistências descortinam violências estruturais das nossas práticas machistas que, desavergonhadas, saem de casa, andam soltas nas ruas e invadem as universidades. Aderindo à resistência, a Cenarium+Ciência traz a trajetória da Pesquisadora Ayrles Silva Gonçalves Barbosa Mendonça, doutora em Biotecnologia e mestre em Engenharia Mecânica, professora do curso de Fisioterapia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) que, graças a sua formação, tem realizado pesquisas interdisciplinares voltadas para a saúde na Amazônia.
superior no país, de acordo com o Mapa de Ensino Superior no Brasil 2020, além de estarem presentes em 55% das vagas dos mestrandos e 53% dos doutorandos. Também se observa a participação das mulheres em 55% das bolsas de iniciação científica, 52% no mestrado, 50% no doutorado e 53% nos programas de pós-doutorado, de acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - 2016.
de Produtividade em Pesquisa (64% de homens), que é a posição acadêmica de maior apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) a pesquisadores no Brasil. O cenário ainda piora se considerar apenas a concessão de bolsas nível 1A e Sênior, em que as mulheres são reduzidas a um percentual de 25%.
Contudo, esses percentuais não se mantêm na trajetória das carreiras acadêmicas, sendo inversos quando se leva em consideração a ocupação das cadeiras de docência no ensino superior (54% de homens), a coordenação de grupos de pesquisa (53% de homens) e as bolsas
Ela está também na conquista das mulheres ao ocuparem 57% das vagas de ensino 12
www.revistacenarium.com.br
Babá
Quem cuida dos filhos? Respostas das cientistas que participaram da pesquisa Parent in Science
*Daniel Viegas é pesquisador no projeto Nova Cartografia da Amazônia, advogado, procurador do Estado do Amazonas e doutor em Direito.
Apesar disso, essas pesquisadoras estão presentes nas mesmas estatísticas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), nas quais as mulheres brasileiras, no ano de 2019, se dedicaram, em média, 21,4 horas semanais a afazeres e cuidados domésticos, enquanto para os homens esse período médio é de 11 horas semanais.
AS MULHERES NA CIÊNCIA Antes de mais nada, não podemos falar da pesquisa ou da pesquisadora sem observar o contexto em que estão inseridas no campo das ciências. Não se pode esconder o fato de que a professora Ayrles está entre os 30% das estudantes que, no mundo, escolhem carreiras ligadas à ciência, tecnologia, engenharia e matemática, conforme levantamento da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), lançado em fevereiro de 2021.
Como o leitor poderá observar, a professora, pesquisadora e mãe do João, da Clara e da Laura, que está a caminho, desenvolveu, em sua pesquisa de doutorado, um auspicioso tratamento para a leishmaniose e partiu, agora, para o desenvolvimento de respiradores reutilizáveis e adaptáveis aos rostos de crianças, como método de prevenção ao Covid-19.
Crédito: Ricardo Oliveira
Mulheres ainda lutam por mais espaço dentro do mercado de produção científica
6%
membros 1% Outros da família
54%
34%
Somente a Mãe
Ambos os Pais
5%
Mãe e Pai (Por tempo limitado)
Fonte: Parent in Science (2017)
A doutora em Biotecnologia e mestre em Engenharia Mecânica Ayrles Silva Gonçalves está entre a minoria de mulheres que segue carreira na pesquisa
13
TECNOLOGIA ANTICOVID-19 CENARIUM+CIÊNCIA
REVISTA CENARIUM
M
Crédito: Ricardo Oliveira
ANAUS – Um projeto de pesquisa desenvolvido no Amazonas pela doutora em Biotecnologia Ayrles Silva Gonçalves Barbosa Mendonça se mostrou pioneiro ao apresentar um protótipo de máscara 3D reutilizável produzida com impressora 3D. O principal objetivo da pesquisa é desenvolver respiradores como os pesquisadores se referem às máscaras - com melhores sistemas de vedação e filtragem, que também sejam econômicas e sustentáveis, para enfrentar a Covid-19.
Ayrles Silva Gonçalves Barbosa explica que a ideia é que a máscara seja mais eficiente e mais barata, além de sustentável
Contemplado no edital 005/2020 do Programa C,T&I nas Emergências de Saúde Pública no Amazonas - Covid-19 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), o respirador deve apresentar 94% de potencial de filtragem das partículas e ter a vantagem de se adequar à face de quem o utiliza, já que será produzido com um material biodegradável e termomoldável chamado PLA - plástico
de fácil utilização que não emite odor ou gás durante o processo de impressão. “Não adianta você ter um filtro que filtre 100% se na lateral a máscara fica aberta. A N95, por exemplo, apresenta filtro de 95%. Então a PFF2 é quase que o equivalente a N95, mas funciona com 94% de filtragem do fim das partículas no meio. A ideia é que a gente tenha um protótipo de uma máscara feita em impressão 3D, pensada numa conformação facial que se adeque à face do indivíduo, e que a gente tenha também a busca de um sistema de filtros que possa permitir que a gente garanta o filtro 94 ou filtro 95%”, explica a pesquisadora. Ayrles Mendonça ainda explicou as vantagens de ter um produto reutilizável e que possa ser adaptado ao rosto de quem irá utilizá-lo. “Diferentemente das máscaras que a gente usa e que a gente acaba jogando fora, e principalmente no hospital, por exemplo, essa máscara poderia ser
higienizada e a pessoa só trocaria o filtro de duas em duas horas, seria muito mais barato e muito mais sustentável. A gente quer fazer com um material que possa ser termomoldável. Então, mesmo fazendo a impressão 3D é possível que eu, com um sistema de aquecimento ainda consiga modelar sob medida. Então você compra e coloca na água quente e modela de acordo com seu gosto”, detalha a pesquisadora.
PESQUISA A pesquisadora ainda destaca a importância de editais, como o que foi disponibilizado pela Fapeam, destinarem recursos para o desenvolvimento de pesquisas em um momento em que cortes de recursos para o fomento dessas pesquisas científicas são feitos constantemente. “Você vê o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], que antes tinha muitos editais, hoje em dia a gente tem uma publicação cada
Projeto no AM desenvolve protótipo de máscara 3D reutilizável Marcela Leiros – Da Revista Cenarium
A pesquisadora
Mesmo com “ pouco apoio, o
vez mais tímida. As FAPs [Fundações de Amparo à Pesquisa] do País inteiro estão em um processo em que não publicam editais já há vários meses, algumas até anos, e a gente tem a Fapeam que ainda tem um recurso, muito embora não seja um recurso robusto, mas que consegue trazer editais para que a gente consiga participar da chamada”, disse a doutora em Biotecnologia.
Ayrles Silva Gonçalves Barbosa, doutora em Biotecnologia.
Ayrles Mendonça ainda ressaltou a importância da pesquisa no Brasil diante desse cenário. “A pesquisa foi extremamente importante e mostra o potencial que a gente tem para conseguir executar as coisas, o quão criativa a gente é dentro da pesquisa. Mesmo com pouco apoio, o Brasil é um dos países que mais publica na área da saúde, por exemplo”, disse.
A pesquisadora ainda tem formação em Materiais, pelo Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) e doutorado em Biotecnologia, onde participou de dois programas na Universidade de Helsinque, na Finlândia, com pesquisas voltadas para a Engenharia Biomédica e Engenharia de Reabilitação.
Brasil é um dos países que mais publica na área da saúde”
14
www.revistacenarium.com.br
Ayrles Silva Gonçalves Barbosa Mendonça é formada em Fisioterapia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde também fez mestrado em Engenharia Mecânica, com dissertação voltada para a área de Engenharia Biomédica.
15
CENARIUM+CIÊNCIA
DO NANO À CURA Tratamento alternativo para a leishmaniose é desenvolvido por pesquisadora no AM
O aparelho gera o “ campo magnético,
as nanopartículas de óxido de ferro aquecem. A gente consegue matar o parasita, não pelo óxido de ferro, porque não é tóxico, mas pelo aquecimento ou superaquecimento dessas células” Ayrles Silva Gonçalves Barbosa Mendonça, doutora em Biotecnologia.
Crédito: Ricardo Oliveira
Marcela Leiros – Da Revista Cenarium
REVISTA CENARIUM
M
ANAUS - Um tratamento alternativo para a leishmaniose também foi proposto por Ayrles Silva Gonçalves Barbosa Mendonça para substituir os tratamentos tradicionais considerados mais tóxicos. Em sua tese de doutorado intitulada “Desenvolvimento e caracterização de nanopartículas de óxido de ferro para o tratamento de Leishmaniose cutânea via hipertemia por ondas curtas”, a proposta principal é aplicar sobre as lesões cutâneas causadas pela doença, que afeta principalmente pessoas vulneráveis socioeconomicamente, nanopartículas de óxido de ferro que superaquecem as células infectadas e matam os parasitas. A leishmaniose é transmitida por flebotomíneos, popularmente conhecidos como mosquitos-palhas, que transmitem dois tipos da doença: a visceral, conhecida como Calazar - que afeta os órgãos internos - e a tegumentar ou cutânea, cuja incidência no Amazonas é mais comum. “Aqui no Amazonas a gente tem, até por uma questão do inseto em si, a presença da leishmaniose cutânea, a gente não tem a presença da Calazar, da visceral, mas nós temos uma variedade muito grande de espécies de leishmaniose cutânea”, afirma Ayrles Mendonça. Na pesquisa, foram desenvolvidas nanopartículas de óxido de ferro de maghemita para serem aplicadas sobre as lesões com um aparelho chamado Diatermia, criando um campo eletromagnético que aqueceria as lesões e mataria o parasita devido ao superaquecimento das células infectadas.
A pesquisa Ayrles Silva destaca que no Amazonas há a presença da leishmaniose cutânea, que é mais comum entre pessoas que se expõem ao contato com o mosquito transmissor e com o parasita
16
www.revistacenarium.com.br
O estudo teve apoio do Projeto Vaikutus, formado por pesquisadores da África do Sul, União Europeia e Ucrânia. No Brasil, conta com pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e é coordenado pela pesquisadora e atual diretora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Maria Antônia Ramos Franco.
“Esse aparelho geraria o campo e então você teria uma movimentação muito grande porque essas partículas de óxido de ferro são magnéticas. Elas entram em
consonância, digamos assim, com esse campo e elas aquecem porque aumenta o grau de agitação. Então, uma vez que elas aquecem, a gente consegue matar o parasita, não pelo óxido de ferro, porque não é tóxico, mas pelo aquecimento ou superaquecimento dessas células”, explica a pesquisadora. Ayrles Mendonça lembrou ainda a necessidade de chegar a uma temperatura de superaquecimento que destruísse apenas as células infectadas e não as saudáveis. “A gente buscou pensar numa temperatura que você conseguisse destruir as células infectadas, mas, ao mesmo tempo, não destruir essas células íntegras, não infectadas, que elas conseguiriam resistir a esse aumento de temperatura”, destacou. No Brasil, o tratamento mais tradicional da doença é feito com uma medicação antimonial chamada Glucantime, considerada muito tóxica e causadora de efeitos colaterais, como dor nas articulações, náuseas, vômitos, dores musculares, febre, dor de cabeça, diminuição do apetite, dificuldade para respirar, entre outros.
MAIS AFETADOS A leishmaniose é comumente conhecida como “doença de pobre”, pois afeta prioritariamente pessoas em situação de vulnerabilidade econômica. “A gente não gosta muito dessa terminologia, mas é a utilizada. É uma ‘doença de pobre’ e afeta prioritariamente pessoas com uma renda menor e que estão expostas ao flebotomínio e, consequentemente, ao parasita. Então, normalmente, essas pessoas são como um público-alvo. Outro perfil comum: jovens homens adultos que fazem atividades que os expõem ao contato com o inseto e com o parasita”, lembra Ayrles Mendonça.
Desmatamento A pesquisa ainda faz uma relação da infecção da doença com o desmatamento, já que os flebotomínios costumam migrar para as áreas habitadas quando o habitat natural deles é destruído. “O desmatamento de fato tem uma íntima relação com a questão de casos registrados de leishmaniose e isso já é conhecido. É por isso que as atividades extrativistas, mineradoras, em que as pessoas se expõem aos locais que são classicamente tidos como o habitat desses insetos fazem com que as pessoas estejam mais vulneráveis à infecção”, destaca a pesquisadora.
17
Analistas e parlamentares apontam que comissão deve ter influência no processo eleitoral Alessandra Leite e Carolina Givoni – Da Revista Cenarium
M
ANAUS – Após a abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que vai apurar ações e omissões na gestão da pandemia pelo governo federal, com respingos nas gestões estaduais e municipais, especialistas ouvidos pela REVISTA CENARIUM expõem as possibilidades de encaminhamentos das investigações, sob liderança dos senadores Omar Aziz (PSD-AM), presidente, Randolfe Rodrigues (Rede), vice-presidente, e Renan Calheiros (MDB), relator, e a consequente influência sobre as eleições gerais de 2022. Para o cientista político Ademir Ramos, Aziz fez uma boa articulação, que lhe garantiu a presidência assegurando oito dos 11 votos necessários. E, apesar de evitar o discurso punitivo, o senador pelo Amazonas está repetindo um “mantra” comum. “Sabemos que não tem nada técnico ali, e sim político. Agora, ele tem que fazer isso pra poder manter a unidade de seus pares”, iniciou Ramos. “Vejo que a atitude do Omar é correta. Ele se articulou muito bem e conseguiu a presidência da comissão. Agora, ele está
18
www.revistacenarium.com.br
com todos os holofotes, sendo candidato [à reeleição] ao Senado pelo Amazonas. E, agora, tudo vai depender do encaminhamento que se der na comissão e no desempenho dele e do vice-presidente da mesa, no sentido de ver como é que a comissão vai agir”, detalhou.
SEM NOVIDADES Já o cientista político Márcio Araújo aponta que o elemento “experiência” dos componentes da CPI é um diferencial e que com apenas dois membros declaradamente de oposição, um do PT e outro da Rede, a composição da comissão indica uma força opositora enfraquecida. “É anedótico dizer que uma CPI não será politizada. É impossível e cômico ao mesmo tempo. Toda a ação dentro do Parlamento é, em si mesma, uma ação com vistas ao poder. Uma CPI, historicamente, pode levar a perda de mandato, a desgastes da força política ou a ganhos eleitorais e fortalecimento de candidatos no mercado político”, determinou.
O especialista explica que uma CPI próxima das eleições não é novidade, mas que pode resultar em mais um – dos 66 - pedidos de impeachment acumulados contra o presidente Jair Bolsonaro (Sem partido). “Se caso crescer a força de oposição na Comissão Parlamentar, minando a resistência eleitoral de 35% do presidente [Bolsonaro], isto poderá incrementar um movimento popular nas ruas. Marcaria o desgaste de Bolsonaro e inviabilizaria sua reeleição”, finaliza.
ARTICULAÇÕES Aziz usou as primeiras palavras na presidência para destacar a necessidade de se haver imparcialidade e técnica nas investigações de possíveis desvios de verba federal destinada ao combate à Covid-19. “Não dá para a gente discutir questões políticas em cima de quase 400 mil mortos. Eu não me permito fazer isso. Infelizmente, eu perdi um irmão há 50 dias. Não haverá pré-julgamento da minha parte”, declarou o parlamentar amazonense. Escolhido relator da CPI, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) disse que agirá
Parlamentares do Amazonas têm papel importante na CPI, como o senador Omar Aziz, escolhido presidente
com toda a postura técnica, imparcial e despolitizada que a função exige. “A investigação será focada no objeto que causou a comissão de inquérito. É impossível apagar todos os dias fúnebres desde o início da pandemia. É impossível esquecer o dia 6 de abril, com uma morte a cada 20 segundos”, afirmou Calheiros, que pediu 20 segundos de silêncio em homenagem aos mortos. Para o senador Eduardo Braga (DEM-AM), que também é membro da CPI, a comissão é uma resposta a todo o Brasil, especialmente aos amazonenses, que viveram os
Relator, Renan Calheiros fez discurso pautado na análise técnica e imparcial
Não faltaram alertas de que o caos sanitário que assolou o Amazonas iria se repetir no restante do País. Não há justificativa para a falta de medicamentos e insumos”, declarou Braga. De acordo com Braga, no Brasil, a ciência foi atropelada pelo negacionismo e pela irresponsabilidade, tendo um governo que, segundo seu pronunciamento, se negou-se a planejar e a negociar antecipadamente a compra de imunizantes. “Não há justificativa para a recusa da compra de
Toda a ação dentro do Parlamento é, em si “ mesma, uma ação com vistas ao poder. Uma
CPI pode levar a perda de mandato, a desgastes da força política ou a ganhos eleitorais e fortalecimento de candidatos no mercado político” Márcio Araújo, cientista político. “dois meses mais negros da história”, no início de 2021. “É uma obrigação que temos que é dar uma resposta a todas as famílias que perderam seus entes queridos para a Covid-19. A tragédia que vivemos hoje no Brasil é uma tragédia anunciada.
70 milhões de doses oferecidas pela Pfizer ainda no ano passado. Estamos colhendo o que plantamos, temos um abismo assustador entre o número de imunizados e o percentual necessário para frear a doença”, disse o senador.
Crédito: Marcos Oliveira | Agência Senado
CPI DA PANDEMIA E ELEIÇÕES
Crédito: Edilson Rodrigues | Agência Senado
REVISTA CENARIUM
Crédito: Edilson Rodrigues | Agência Senado
PODER & INSTITUIÇÕES
Randolfe Rodrigues, vice-presidente, é uma presença de oposição na CPI
Foco no Amazonas O cientista político Ademir Ramos detalha que, a respeito do governador Wilson Lima, a presidência da CPI deve chamá-lo à responsabilidade que lhe cabe. “Como presidente, Omar não pode bater, mas, com absoluta certeza, o Eduardo Braga vai. Inclusive já está batendo de forma voraz, por ser pré-candidato ao governo do Estado”, detalha o especialista. Márcio Araújo descreve que a novidade em processo de CPI se deu na formação da Comissão Parlamentar da Assembleia do Amazonas. “Novidade foi a CPI do governador do Amazonas, basicamente desenhada no início do mandato. Para 2022, o cenário eleitoral é improvável. Ainda é uma mesa de apostas”, defende. Ramos diz que Omar pode se articular para garantir o mandato ao Senado, no sentido de buscar apoio e fazer palanque também no Estado para outras forças políticas que não sejam o Lula ou o Bolsonaro. “É possível que ele venha com o Ciro Gomes. Essa é uma articulação de bastidores. Não sei se é verdade, mas os fatos dirão. Quanto ao Renan, Aziz tem que segurar um pouco e engolir muito sapo da situação tentando ‘catimbar’ o processo”, finalizou Ramos. 19
REVISTA CENARIUM
PODER & INSTITUIÇÕES
Crédito: White House photo by Adam Schultz | Fotos Públicas
Em sua fala na Cúpula do Clima - que antecedeu a Conferência sobre Mudança Climática, em novembro, na Escócia - o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antônio Guterres, materializou a nossa tragédia ambiental. Nos últimos 50 anos, foram mais de 11 mil desastres naturais, com danos avaliados em US$ 3,6 trilhões. Guterres aponta que, na última década, mais de 410 mil pessoas morreram em decorrência desses eventos, a grande maioria em países de rendas baixa e média. Difícil encontrar razões mais contundentes para que avancemos rapidamente para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.
www.revistacenarium.com.br
Diante do deserto de ideias do governo federal para a evolução da nossa economia à neutralidade de carbono, governadores e parlamentares brasileiros se preparam para assumir o protagonismo. Já alinhavam projetos para levar na bagagem à Glasgow. O governador do Amazonas, Wilson Lima, que coordena a Força-Tarefa dos Governadores para o Clima e Florestas (GCF Task Force), vai apresentar na conferência metas claras para a redução do desmatamento e um plano de ação e investimento via Amazonas Mais Verde, programa com soluções inovadoras para as florestas e a sociedade, visando ao fortalecimento da bioeconomia.
AGENDA Equacionado o imbróglio do Orçamento de 2021, a Câmara começa a organizar suas prioridades para as votações no primeiro semestre. Líderes ligados aos partidos de Centro afirmam que devem andar nos próximos meses o PL dos Correios, a MP da Eletrobras (prevista para maio). A lista de prioridades da Casa inclui, ainda, a revogação da Lei de Segurança Nacional, o projeto do superendividamento e,
COBERTOR CURTO
MERCADO DE CARBONO
Agostinho e várias ONGs trabalham, ainda, para que o Projeto de Lei 528/2021, do deputado federal amazonense Marcelo Ramos (PL-AM), seja incluído na pauta que levarão à COP-26. O PL propõe a regulamentação do mercado de carbono no país, a precificação dos serviços ambientais da floresta, trazendo segurança jurídica a investidores que quiserem compensar suas emissões. Nas contas de Marcelo Ramos, o mercado de crédito de carbono movimentou 45 bilhões de dólares, em 2019. O Brasil não está entre os países beneficiados, apesar de ter o maior ativo ambiental do planeta - as florestas - porque a Lei de Política Climática, que tem 12 anos, ainda não foi regulamentada. Crédito: Ricardo Stuckert | Fotos Públicas
pasmem, a Reforma Tributária. Numa surpreendente fala, o presidente da Câmara, Arthur Lira, anunciou a antecipação da apresentação do relatório da PEC 45, que tramita na Casa, para maio. Sobre a Reforma Administrativa, as conversas ainda estão no começo, por isso a pauta deverá ser votada apenas no segundo semestre. “No segundo semestre ou no governo que vem”, ironizou um destes líderes.
Do jeito que o Orçamento foi sancionado, o governo federal vai ter de operar no limite do apagão da máquina pública. Segundo analistas, somente uma onda de crescimento econômico poderia sustentar um descontingenciamento gradual dos recursos bloqueados, da ordem de R$ 9 bilhões. Num cenário de baixo ritmo de vacinação, dificilmente isso ocorrerá neste ano. O Instituto Fiscal Independente do Senado indica que, para manter a máquina pública, são necessários R$ 31 bilhões. Entre vetos e bloqueios, o governo contará com R$ 28,1 bi. Assim, sobra pouca margem para acordos futuros no Congresso, onde há uma CPI em andamento, já que o risco de o apetite parlamentar aumentar é grande.
Crédito: Ricardo Oliveira
Crédito: Clóvis Miranda
Em tempo: a prosseguir o atual ritmo das queimadas e de devastação da floresta, o Ministério do Meio Ambiente poderá produzir mais um deserto, desta vez na Floresta Amazônica.
GOVERNADORES NO COMANDO Líder da minoria na Câmara Federal, a deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC) disse à coluna Via Brasília que, qualquer que seja o resultado econômico da COP-26, os governadores e parlamentares da Amazônia devem se mobilizar para que os recursos externos porventura direcionados à conservação das florestas tenham governança dos Estados. Para ela, o Ministério do Meio Ambiente não tem credibilidade para gerir projetos na região, com o legado que tem de leniência com os crimes ambientais.
Crédito: Jean Marc | Fotos Públicas
20
Crédito: Diego Peres | Secom
AMAZONAS MAIS VERDE
Coluna via Brasília
A CONTA DA TRAGÉDIA
Crédito: Pablo Valadares | Câmara dos Deputados
PARLAMENTO MAIS ENGAJADO A Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso também se mobiliza em diversos fóruns e discussões, para sinalizar ao mundo que a pauta climática segue evoluindo, independentemente da inação federal. O presidente da Frente, deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), busca assinaturas e apoio à sua Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que faz do direito ao clima uma garantia fundamental prevista em nossa Carta Magna.
ZFM FORA DA AGENDA
LULA ATIVO
Vacinado contra a Covid-19 e imunizado pelo STF de entraves legais a sua candidatura, o ex-presidente Lula segue mais ativo do que nunca, afiança um ex-líder do PT no Congresso. Os contatos com parlamentares de partidos do centro já se deslocam agora à chamada direita mais “progressista”. Com as lideranças empresariais, o ritmo de reuniões também ganha velocidade à medida em que a candidatura do ex-presidente ganha impulso. Estão programadas, ainda, viagens pelo País, que permitem “o olho no olho”, tão necessário em certas ocasiões. Mas isso, diz a fonte, somente quando a pandemia estiver sob controle.
Fora o despropósito da entrega do título de cidadão amazonense a Jair Bolsonaro e do balão de ensaio da candidatura ao governo do ex-ministro Eduardo Pazuello, a viagem da comitiva presidencial ao Amazonas provocou, ao menos, mais um mal-estar. Repercutiu negativamente entre o empresariado a vinda de Bolsonaro sem que ele tivesse feito qualquer comentário sobre a Zona Franca de Manaus. Uma importante liderança empresarial do Polo Industrial disse que o silêncio foi um sinal negativo, ainda mais quando se tem a discussão de uma reforma tributária no Congresso. Essa fonte sustenta que os líderes do setor produtivo esperavam uma manifestação em apoio às indústrias e à economia do Estado.
MALOCÃO DA SAÚDE
A líder indígena do povo Witoto e técnica de enfermagem, Vanda Ortega, foi eleita diretora da Casa de Saúde do Parque das Tribos, obra que integra o Programa de Restauração Ecológica e Urbanização Sustentável da Amazônia (Reusa) e que conta com mais quatro estruturas entregues à comunidade no Dia do Índio. Segundo ela, o regimento da Casa foi criado junto com os moradores e o espaço conta com a direção e a coordenação composta por profissionais de saúde indígenas, funcionando de segunda a sexta-feira. O Reusa é resultado de parceria entre a Fundação Amazonas Sustentável (FAS) e a Embaixada da França. 21
PODER & INSTITUIÇÕES
REVISTA CENARIUM
mil famílias do Amazonas e de 372 mil famílias de todo o Brasil que perderam familiares na pandemia. A concessão do título também gerou revolta entre personalidades homenageadas com a honraria. Pelo menos sete delas foram à Assembleia Legislativa no dia 22 de abril para devolver os títulos de Cidadão do Amazonas.
‘REPUGNANTE’
O presidente Jair Bolsonaro recebeu o título durante visita a Manaus, sob protestos de grupos da sociedade civil e aplausos de apoiadores
BOLSONARO ‘AMAZONENSE’ Crédito: Ricardo Oliveira
A Executiva Estadual da Rede Sustentabilidade no Amazonas também se pronunciou, no dia 21 de abril, contra a concessão do título. Em nota de repúdio, a entidade lembrou do agravamento da pandemia de Covid-19 no Amazonas, quando centenas de vidas foram perdidas em meio à falta de políticas públicas do governo federal com a saúde. “É repugnante, inadmissível e vergonhoso”, informou a Executiva sobre a aprovação da honraria pelos deputados. Para a entidade, Bolsonaro promoveu atritos sociais e jogou contra a política de saúde incentivando o povo a não usar máscara, a promover aglomeração, a usar medicamentos de eficácia não compro-
vada, além de tomar medidas contra a economia do Amazonas. “A todo momento atenta contra a Zona Franca de Manaus, como aconteceu com as fábricas de concentrados, causando desemprego em massa”, diz a entidade na nota. Nas redes sociais, internautas levantaram a hashtag #Bolsonaroamazonensenemcomnojo (Bolsonaro amazonense nem com nojo), uma referência ao linguajar amazonense.
PARLAMENTARES DIVERGEM A concessão da honraria dividiu opiniões entre parlamentares. O deputado federal José Ricardo (PT/AM) disse à REVISTA CENARIUM que conceder o título de Cidadão Amazonense ao presidente “é um absurdo e uma afronta ao povo do Amazonas”. “Bolsonaro realizou constantes ataques à ZFM, fez política de incentivos às queimadas e à invasão de terras indígenas. Vendeu o aeroporto no Amazonas, a Petrobras e a Amazonas Energia. Ainda retirou direitos e programas sociais que beneficiavam milhares de famílias pobres. E o mais grave: permitiu a falta de vacinas e de oxigênio. Sou
Para movimentos sociais, título de Cidadão do Amazonas concedido ao presidente ‘é uma afronta à sociedade’. Honraria dividiu opinião de parlamentares Bruno Pacheco – Da Revista Cenarium
M
ANAUS – O presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), recebeu o título de Cidadão do Amazonas sob protestos de grupos da sociedade civil e aplausos de apoiadores. A honraria foi aprovada em 20 de abril pela Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam), o que gerou revolta entre entidades da sociedade civil e movimentos sociais, que repudiaram a concessão do título, entregue a personalidades como reconhecimento a bons serviços prestados ao Estado. A homenagem também dividiu opiniões entre parlamentares do Estado. Bolsonaro recebeu o título no dia 23 de abril, durante evento em Manaus. De um lado, as críticas à homenagem apontam medidas do governo federal que atentam contra a Zona Franca de Manaus (ZFM), falhas na coordenação das ações
22
www.revistacenarium.com.br
de enfrentamento à pandemia de Covid19 no Amazonas e descaso com questões ambientais que refletem na Amazônia. De outro lado, 13 deputados estaduais aprovaram a concessão do título e parlamentares federais também se manifestaram favoráveis, assim como grupos de apoiadores, que foram prestigiar o evento de inauguração de um centro de convenções, onde Bolsonaro recebeu o título. Em nota conjunta, movimentos sociais lembraram a crise instalada pela Covid19 no Amazonas, que fez o Estado sofrer com a falta de oxigênio, de leitos clínicos e de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) nos meses de janeiro e fevereiro deste ano, período mais intenso do segundo pico da pandemia no Estado. “O Brasil todo acompanhou a tragédia vivenciada pelos amazonenses, sem
oxigênio, sem UTI, sendo tratados com remédios sem eficácia científica, sofrendo com o descaso do governo federal e provocando uma tragédia que poderia ter sido evitada”, diz trecho da nota. A nota é assinada por 39 entidades, partidos e personalidades políticas do Estado, como PT, PCdoB, Psol, Movimento de Mulheres Negras da Floresta – Dandara, Rede Nacional de Mulheres no Combate à Violência, Articulação Amazônica dos Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana (Aratrama), entre outros. O Psol foi além e ingressou com uma ação pedindo a anulação de ato legislativo que aprovou a concessão do título. No documento, os movimentos afirmam que conceder o título ao presidente “é uma afronta à sociedade” e significa desconsiderar o sofrimento de mais de 12
Deputado Delegado Péricles é o autor da proposta de título de Cidadão Amazonense para Bolsonaro Crédito: Danilo Mello | Aleam
PROJETO DE LEI (PL 187/2021) O Projeto de Lei (PL 187/2021), de autoria do deputado estadual delegado Péricles (PSL), foi aprovado com apenas um voto contra e uma abstenção. Uma das normas para a concessão do título de Cidadão Amazonense, de acordo com a Resolução Legislativa nº 71, de 10 de dezembro de 1997, é a prestação de relevantes serviços ao Estado, em qualquer campo de atividade, pessoal e indiretamente. Como justificativa para o projeto, Péricles disse que o Amazonas tem muito o que agradecer ao presidente e destacou a compra de vacinas ao destacar o motivo da homenagem ao presidente, o que é obrigação do governo federal para com todos os Estados da Federação. “O governo federal vem fazendo a sua parte e continua distribuindo vacinas para o Estado”, disse Péricles.
contra a entrega de um título tão importante como esse a um presidente acusado de genocídio”, disse José Ricardo. Outros parlamentares se mostraram favoráveis. Um deles é o deputado federal Bosco Saraiva (Solidariedade/AM), que salientou que Bolsonaro é merecedor do título, mas que espera que o presidente ajude a preservar a Zona Franca de Manaus com a homenagem. Edição: Márcia Guimarães
Como votaram os deputados Votação Nominal Projeto de Lei Ordinária nº 187 de 2021 Ementa: Concede o título de Cidadão do Amazonas ao Exmo. Sr. Jair Messias Bolsonaro, atual Presidente da República Federativa do Brasil.
DEPUTADOS
VOTAÇÃO
Abdala Fraxe
Não Votou
Adjuto Afonso
Sim
Álvaro Campelo
Não Votou
Belarmino Lins
Sim
Cabo Maciel
Não Votou
Carlinhos Bessa
Sim
Delegado Péricles
Sim
Dermilson Chagas
Abstenção
Dra. Mayara Pinheiro
Não Votou
Dr. Gomes
Sim
Fausto Junior
Não Votou
Felipe Souza
Sim
João Luiz
Sim
Nejmi Aziz
Não Votou
Ricardo Nicolau
Sim
Roberto Cidade
Sim
Saullo Vianna
Sim
Serafim Corrêa
Não
Therezinha Ruiz
Sim
Tony Medeiros
Sim
Wilker Barreto
Sim
Fonte: Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas / Sistema de Apoio ao Processo Legislativo
23
PANDEMIA DE COVID-19
ECONOMIA & SOCIEDADE
À SOMBRA DA 3ª ONDA
Para cientistas e gestores, vacinação lenta, desrespeito ao distanciamento social e relaxamento de restrições constroem caminho para a 3ª onda da pandemia de Covid-19 nos Estados da Amazônia Legal Camila Carvalho - Da Revista Cenarium ções, o desrespeito às medidas de prevenção com a falta de autorresponsabilidade de parte da população e novas variantes do novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da Covid-19, são encarados por cientistas e gestores públicos como prenúncio de uma terceira onda da pandemia na Amazônia. A aparente queda no número de internações no Amazonas não reflete a realidade brasileira, especialmente a vivida nas UTIs de Estados da Amazônia Legal que ainda amargam taxas de internação superiores a 80%, segundo dados do Boletim
O Amazonas já viveu dois picos trágicos da pandemia, com mais de 12 mil mortos e mais de 366 mil contaminados
Crédito: Ricardo Oliveira
M
ANAUS - Amazonas, 23 de abril de 2021. Pela primeira vez, desde o fim de 2020, a fila de remoções de pacientes por Unidades de Terapia Intensiva (UTI) aérea do interior do Estado para Manaus foi zerada. No final do dia, 21 dos 62 municípios amazonenses estavam sem pacientes internados por Covid-19. Os dados foram divulgados pelo governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), nas redes sociais, mas estão longe de garantir um cenário promissor. A taxa de ocupação de leitos de UTI, as constantes aglomera-
Observatório Covid-19, produzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com análise de dados do período de 4 a 17 de abril. Apenas três dos nove Estados da Amazônia Legal estavam com leitos de UTI abaixo dessa marca no período: Roraima (38%), Amapá (68%) e Amazonas (69%). O cenário era preocupante especialmente no Mato Grosso (96%); Acre e Rondônia (94%); e Tocantins (93%), nos quais a taxa de ocupação das UTIs era superior a 90%.
AGLOMERAÇÕES
mente para os povos tradicionais, indígenas e comunidades ribeirinhas. Com a dificuldade de acesso rápido a essas populações em decorrência das distâncias geográficas aliada à falta de assistência médico-hospitalar, especialistas e representantes dessas comunidades apontam que o contágio por Covid-19 em massa seria avassalador.
Em paralelo ao cenário de guerra no combate à Covid-19 e mesmo com as medidas restritivas impostas pelos governos estaduais e municipais, aglomerações e festas clandestinas são comuns no Brasil. No Amazonas, um barco foi impedido de sair do Porto de Manaus com mais de 800 pessoas a bordo; no Pará, o presidente da República, Jair Bolsonaro, promoveu uma aglomeração de apoiadores em recente visita à capital paraense; em Mato Grosso, foram registradas aglomerações para vacinação; já no Maranhão, houve aglomeração em festa de posse de um prefeito e também na imunização de idosos; sem deixar de contabilizar as inúmeras festas clandestinas que já foram fechadas pelas autoridades locais.
Segundo dados do Ministério da Saúde, em 23 de abril de 2021, o Brasil registrou 69.105 novos casos de Covid-19. Até essa data, em uma população de 210.147.125 habitantes, 14.237.078 tinham sido contaminados com o vírus. Dentre essas pessoas, 386.416 perderam a vida para a doença, 12.711.103 estão recuperadas e 1.139.559 estão em acompanhamento. Em Manaus, em meio a irregularidades na vacinação, com denúncias de pessoas fora do grupo prioritário imunizadas, o prefeito David Almeida (Avante) chegou a declarar que poderia decretar lockdown (restrição máxima de circulação de pessoas) para conter uma terceira onda da doença, mas, até o momento, nada de efetivo foi feito pelo Executivo municipal da capital.
A 3ª ONDA Com o aumento na circulação de pessoas e sem respeito a medidas preventivas (como uso de máscara corretamente e álcool em gel), aliado às aglomerações e desrespeito às ações restritivas e de controle, especialistas da Fiocruz, da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas (FMT-AM)
A pandemia na Amazônia
Nesses Estados, há preocupação, ainda, em conter a transmissão do vírus especial-
881.935
Cenas de aglomeração, como as vistas no Centro de Manaus, preocupam cientistas e gestores públicos
77.146
605.761
845.731
94.769
104.109
1.472
1.502
4.144.597
261.350
366.798
7.063
12.494
8.602.865 460.306
24
www.revistacenarium.com.br
Com mais de 800 pessoas a bordo, um barco foi impedido pela fiscalização de sair do Porto de Manaus
Crédito: Guilherme Reis
Crédito: Ricardo Oliveira
Crédito: Junio Matos
12.354 1.777.225
3.484.466
208.292
349.426 1.572.866
9.273
4.999
44.939 2.440 POPULAÇÃO CASOS
ÓBITOS
Fonte: Ministério da Saúde, dados atualizados até 23/04/2021
TOTAL 28.990.627
2.077.365
“A possibilidade de uma nova alça epidêmica não pode ser descartada diante de uma nova flexibilização das medidas de contenção, aliada a uma baaaixa cobertura vacinal determinada principalmente pela escassez deste insumo e pela possibilidade de mutação viral, com o aparecimento de variantes que possam interferir no curso e comportamento da epidemia”, afirmou o pesquisador da Fiocruz Amazônia, Bernardino Albuquerque. Para os especialistas, nem mesmo a marca de 37.988.023 de doses de imunizantes aplicadas, com mais de 9 milhões de pessoas entre os mais de 211 milhões de brasileiros que já completaram o esquema vacinal, segundo dados do Ministério da Saúde e da Fiocruz, é suficiente para relaxar e voltar à vida normal. Para mostrar de que forma estamos construindo um caminho rumo à terceira onda da Covid-19, especialmente nos Estados da Amazônia Legal, e como podemos mudar a rota rumo à cura, a REVISTA CENARIUM entrevistou especialistas, representantes de comunidades, pesquisadores, gestores públicos e pessoas que perderam familiares para a doença com o intuito de demonstrar que podemos vencer a pandemia, desde que a luta seja em conjunto. Edição: Márcia Guimarães
7.075.181
1.500
e gestores públicos acreditam que estamos caminhando para uma terceira onda de contágio da Covid-19.
53.062
A possibilidade “ de uma nova alça
epidêmica não pode ser descartada diante de uma nova flexibilização das medidas de contenção aliadas a uma baixa cobertura vacinal” Dr. Bernardino Albuquerque, pesquisador da Fiocruz Amazônia. 25
PERCE
MARANHÃO
40
ECONOMIA & SOCIEDADE
AMAZONAS
CENARIUM PANDEMIA DEREVISTA COVID-19
20
0
OCUPAÇÃO DE LEITOS DE UTI NA AMAZÔNIA LEGAL
Setembro 2020
Novembro 2020
Janeiro 2021
Março 2021
Maio 2021
POPULAÇÃO MENOR QUE 2 MILHÕES 100
POPULAÇÃO MAIOR QUE 2 MILHÕES 100
80
PARÁ
RONDÔNIA
60
TOCANTINS AMAPÁ
40
RORAIMA
MARANHÃO
40
AMAZONAS
20
20 0
Wilson Lima, governador do Amazonas
Com 100% de leitos ocupados, o Amazonas precisou enviar pacientes de Covid-19 para outros Estados durante o pico da 2ª Onda, no início de 2021
MATO GROSSO
60
PERCENTUAL
PERCENTUAL
“
O plano de contingência prevê medidas para o pior cenário”
ACRE 80
0
Setembro 2020
Novembro 2020
Janeiro 2021
Março 2021
Maio 2021
Setembro 2020
Novembro 2020
Janeiro 2021
Março 2021
Maio 2021
Fonte: Painel MonitoraCovid-19 do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) - acesso em 24/04/2021
POPULAÇÃO MENOR QUE 2 MILHÕES 100
Alta ocupação de leitos clínicos e UTIs Com a crescente demanda por leitos, especialmente de UTIs, cinco Estados da Amazônia Legal têm taxas de ocupação acima de 80% Camila Carvalho - Da Revista Cenarium
M
ANAUS - Com taxas de ocupação de leitos clínicos acima de 50% e de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) ultrapassando 80%, em média, gestores dos Estados da Amazônia Legal travam uma corrida contra o tempo na tentativa de garantir atendimento hospitalar aos acometidos pela Covid-19. Dados do Boletim Observatório Covid19, produzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com análise de informações do período de 4 a 17 de abril, apontam que apenas três dos nove Estados da Amazônia Legal estavam com leitos de UTIs abaixo de 80% de ocupação no período: Roraima (38%), Amapá (68%) e Amazonas (69%). Dentre eles, apenas o Amapá informou, no dia 23 de abril,
26
www.revistacenarium.com.br
que reduziu a ocupação dos leitos de UTIs para 64,39%. No Maranhão, a taxa de ocupação de UTIs alcançou 78%. Já no Pará, a ocupação de UTIs que era de 80% no início de abril, reduziu para 79,87%, com taxa de ocupação de leitos clínicos em 49,43%, segundo dados disponibilizados pelos governos estaduais. Nos demais Estados da Amazônia Legal, o cenário era preocupante. De 4 a 17 de abril, a taxa de ocupação de UTIs era maior em Mato Grosso (96%), no Acre e em Rondônia (94%), além de Tocantins (93%). No dia 23 de abril, segundo dados dos Estados, os números apresentaram redução: no Mato Grosso, a taxa de ocupação de UTIs caiu para 91,30% e de
leitos clínicos marcou 52%; em Rondônia, os números reduziram para 80,60% de ocupação de UTIs e 49,43% em leitos clínicos; já Tocantins, mesmo com a redução percentual de ocupação de leitos de UTIs para 90%, pelo menos quatro hospitais da rede pública operavam com UTIs com 100% da capacidade ocupada.
COLAPSO No Acre, em março de 2021, a rede de atendimento hospitalar entrou em colapso. Com 100% da ocupação das unidades, o Estado passou a transferir pacientes para o Amazonas. “A Secretaria de Saúde do Acre continua nesse processo de articulação, de acordo com a nossa taxa de ocupação de leitos,
mantendo essa porta aberta com o Amazonas, 80 além de articular com outros Estados o envio de pacientes, caso seja necessário”, informou, à época, a gerente do Complexo 60 Regulador da Secretaria, Ana Moraes. PERCENTUAL
Crédito: Fotos Públicas
No Amapá, em 23 dias do mês de abril, 40 foram registradas 200 mortes por Covid19 - um recorde para o Estado.
ACRE RONDÔNIA TOCANTINS AMAPÁ RORAIMA
20
No Amazonas, o governo estadual montou um plano de contingência - apresen0 Janeiro Maio Setembro tado no dia 22 deNovembro abril ao Ministério daMarço 2020 2021 2021 2021 2020 Saúde - que prevê a ampliação de leitos clíFonte: Painel MonitoraCovid-19 do Instituto de Comunicação e Informação Científica e nicos e de UTIs, especialmente no interior Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) - acesso em 24/04/2021 do Estado com a instalação de estruturas hospitalares em cinco cidades-polo. “Estamos entrando agora no período de estiagem, quando há uma diminuição das síndromes respiratórias agudas graves. De qualquer forma, o plano de contingência prevê medidas para o pior cenário”, disse o governador Wilson Lima.
O governador do Amazonas, Wilson Lima, apresentou ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, plano de contingência para uma possível terceira onda da pandemia
Oxigênio ainda preocupa Após o Amazonas entrar em colapso por falta de oxigênio nos hospitais das redes pública e privada, ainda durante a segunda onda da pandemia, o Estado anunciou que tem adotado medidas para que não haja mais falta do insumo. De acordo com a Secretaria de Estado de Saúde (SES), o consumo atual de oxigênio medicinal no Estado gira em torno de 18 mil metros cúbicos nas redes pública e privada. Além da White Martins, principal fornecedora, as empresas Carbox, com produção estimada em 8 mil metros cúbicos por dia, e Nitron, que importa oxigênio de outro Estado, também fornecem oxigênio no Amazonas. No âmbito do Plano de Contingência Estadual, representantes da SES se reuniram com representantes da empresa White Martins para discutir o abastecimento de oxigênio, caso ocorra uma terceira onda da doença.
CAPACIDADE A White Martins informou que possui capacidade de produção diária de 36 mil metros cúbicos de oxigênio e de armazenamento de até 270 mil metros cúbicos. No entanto, o governo do Amazonas não descartou interlocuções com outros fornecedores em outros Estados e, até mesmo, em países vizinhos como forma de contingenciamento. Segundo dados de um painel no Portal da Transparência do governo do Amazonas, o Estado possui, ainda, 4.404 cilindros de oxigênio disponíveis para uso. Desses, 2.521 estão cheios (593 estão em uso) e 860 estão vazios. Há uma estratégia de geração independente de oxigênio que inclui o cronograma de implantação de usinas em todo o Estado, com a meta de somar 75 unidades em operação, com capacidade de produção total por dia de 35.640 metros cúbicos de oxigênio medicinal. 27
MANAUS: GESTÃO CONFUSA AGRAVA CENÁRIO PANDEMIA DE COVID-19
ECONOMIA & SOCIEDADE
A REVISTA CENARIUM questionou a Prefeitura de Manaus, via e-mail encaminhado à Secretaria Municipal de Comunicação (Semcom), sobre que medidas estão sendo adotadas para a prevenção e/ ou minimização dos danos caso a terceira onda realmente ocorra.
Após período caótico, no início de 2021, crise na saúde pública foi acentuada com falta de atenção na rede básica de atendimento e irregularidades na vacinação Camila Carvalho – Da Revista Cenarium
M
ANAUS – Por duas vezes consecutivas, a capital do Amazonas, Manaus, foi o epicentro da pandemia da Covid-19 no Estado e acabou ganhando destaque pelos números negativos, ao invés de contar com iniciativas exitosas da Prefeitura, responsável pela atenção básica à saúde. Segundo diretrizes do Ministério da Saúde, a atenção básica que deveria ser ofertada pela Prefeitura de Manaus envolve, entre outros, ações de promoção, prevenção e proteção, como campanhas para imunização contra a Covid-19. No entanto, o que se presenciou em Manaus foi um esquema montado na prefeitura, segundo o Ministério Público do Estado (MP-AM), para garantir que secretários municipais e parentes de empresários furassem a fila de vacinação e fossem imunizados. O caso veio à tona porque os próprios “fura-filas” postaram fotos nas redes sociais. Após a repercussão, o prefeito David Almeida (Avante) fez uma live em
28
www.revistacenarium.com.br
uma rede social e, entre outros, disse que proibiria a realização de imagens do ato de vacinação. “Se você se vacinou, fique para você. Você não precisa compartilhar na rede social. Essa é a determinação, esse é o pedido”, afirmou o prefeito David Almeida, em vídeo, na época. O prefeito foi alvo de um pedido de prisão solicitado pelo MP-AM e é acusado de, entre outros, falsidade ideológica e peculato, além de ser o único prefeito convidado a depor na recém-criada Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia. Após as polêmicas, ainda em janeiro, a vacinação foi suspensa pela Prefeitura de Manaus para “reprogramação na distribuição de doses”. Recentemente, em 28 de abril, a aplicação da 1ª dose do imunizante foi, novamente, suspensa, por conta do risco de falta de doses, o que comprometeria o esquema vacinal.
PREVENÇÃO Na tentativa de prevenir uma possível terceira onda da Covid-19 no Amazonas, o Governo elaborou um Plano de Contingência, dividido em cinco fases, com base nas duas ondas da doença e pensando em um cenário ainda mais complexo, com foco na prevenção, para tentar brecar a transmissibilidade da doença. Atualmente, o Amazonas está na fase 3 do plano, com baixa taxa de ocupação de leitos clínicos e Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).
Em nota, a Prefeitura de Manaus, por meio de informações da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), informou que faz o monitoramento permanente da situação sanitária na cidade, sempre ajustando as intervenções necessárias não só ao controle, como também ao combate da doença, a partir do estabelecimento de medidas para conter o avanço do novo coronavírus e sua disseminação. Todas as ações estão elencadas no Plano de Contingência Municipal para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus, que mantém a vacinação e as medidas comuns de proteção contra doenças respiratórias como estratégicas efetivas e ainda válidas para o controle da Covid-19 em diferentes cenários epidemiológicos. O documento divulgado pela equipe técnica da Semsa também inclui diretrizes relacionadas à assistência dos usuários em unidades básicas de saúde, com oferta de exames e acompanhamento dos pacientes, inclusive por meio de telemonitoramento e terapias pós-Covid-19, orientações à população, notificação dos casos e também as estratégias de rastreamento, isolamento e monitoramento dos que tiveram contato com quem teve diagnóstico positivo. As estratégias também contemplam comunidades rurais,
Se você se vacinou, fique para você. Você não “ precisa compartilhar na rede social. Essa é a determinação, esse é o pedido”
David Almeida, prefeito de Manaus, em live sobre o episódio dos furafilas da vacinação. indígenas, quilombolas e migrantes, e ainda refugiados venezuelanos. O plano de contingência sinaliza, com clareza e com a atribuição de responsabili-
dades, o que deve ser feito pela rede de saúde, desde o fluxo de atendimento de casos suspeitos até o acompanhamento das tendências de adoecimento e mortalidade, que permitem estabelecer medidas pontuais de prevenção e controle. Desde o início do mês de abril, a demanda nas unidades municipais e o número de casos notificados começaram a cair, mas a Vigilância Epidemiológica da Semsa permanece alerta, considerando que novos cenários podem surgir, exigindo medidas imediatas, que devem ser realizadas pela Semsa e apoiadas pelas demais áreas da Prefeitura, conforme compromisso e orientação do prefeito David Almeida. A atualização do Plano de Contingência considerou novas evidências científicas, normatizações do Ministério da Saúde, o cenário epidemiológico atual e a Emergência em Saúde Pública de Interesse Internacional. Além de estabelecer as linhas de atuação da rede municipal de saúde, o plano sublinha a importância da participação popular no enfrentamento à pandemia.
“Teremos um monitoramento mais detalhado da prevenção, com rastreamento de contatos. Ampliamos o apoio ao diagnóstico com um número maior do teste RT-PCR para que todas as unidades básicas de saúde fomentem a realização deste teste no paciente que chegue com uma síndrome gripal. É um trabalho muito forte da Vigilância em Saúde com a atenção básica”, afirmou a secretária adjunta de Políticas de Saúde da Secretaria de Estado de Saúde (SES), Nayara Macksould. 29
Crédito: Ricardo Oliveira
PREFEITURA
CENARIUM PANDEMIA DEREVISTA COVID-19
ECONOMIA & SOCIEDADE
M
ANAUS – Historicamente esquecidas e subjugadas, as populações tradicionais, os indígenas e as comunidades ribeirinhas amargam o risco do contágio pelo vírus da Covid-19. Sem assistência médico-hospitalar próxima, isoladas social e economicamente por conta das medidas de restrição de circulação, as comunidades são assoladas pelo medo de contrair a doença e veem na vacinação a esperança em dias melhores.
algumas pessoas. No entanto, ainda é um cenário de instabilidade, ainda há uma preocupação grande, especialmente pela falta da vacina”, afirmou.
VACINAÇÃO Segundo ele, o que é possível perceber é uma grande angústia, indignação e insegurança pela ausência do Estado, especialmente do governo federal, além da morosidade em atender essas famílias.
“
Vivemos em um Estado com dimensões continentais e densidade demográfica baixa. Para acessarmos essas comunidades é necessário um esforço operacional diferenciado, com custos elevados e situações que precisam de um planejamento, em decorrência do contexto amazônico”
Crédito: Bruno Cecim | Ag. Pará | Fotos Públicas
Distantes e Vulneráveis Comunidades tradicionais, indígenas e ribeirinhas sofrem com distâncias geográficas na Amazônia Legal no âmbito da prevenção e combate à Covid-19 Camila Carvalho - Da Revista Cenarium
30
www.revistacenarium.com.br
De acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), foram confirmados 52.997 casos de indígenas infectados pela Covid-19 em 163 povos. Desse total, 1.048 morreram na luta contra a doença. Entre os indígenas vítimas da Covid19, 75,95%, ou seja, 796, moravam em Estados da Amazônia Legal, com destaque para o Amazonas, com 252 mortes de indígenas acometidos pelo vírus.
“Temos uma população estimada em mais de 300 mil famílias em áreas rurais que precisam dessa vacina. A vacinação é a única esperança de saúde para essas populações. Já esperamos demais e não podemos mais contar com a sorte”, afirmou Dione Torquato. Segundo o diretor-presidente da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) do Amazonas, Cristiano Fernandes, os povos
“ A vacina é a principal arma para a contenção da doença e esse é um desafio que temos enfrentado. Vivemos em um Estado com dimensões continentais e densidade demográfica baixa. Para acessarmos essas comunidades, é necessário um esforço operacional diferenciado, com custos elevados e situações que precisam de um planejamento, em decorrência do contexto amazônico”, disse o diretor-presidente da FVS, Cristiano Fernandes.
Mortes de indígenas na Amazônia Legal por Covid-19
Estado
Óbitos Confirmados
Amazonas Mato Grosso Roraima Pará Maranhão Rondônia Acre Amapá Tocantins
252 159 109 102 72 37 29 22 14
Fonte: Apib. Acesso em: 24/04/2021
RIBEIRINHOS Segundo o secretário-geral do Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS), Dione Torquato, a grande preocupação era a chegada da Covid-19 nos territórios, uma vez que, além das dificuldades logísticas, as comunidades enfrentam dificuldade de acesso à comunicação, prejudicando a difusão de orientações para prevenção. “A gente vê que a pandemia chegou no território, com impacto menor do que imaginávamos, graças às ações realizadas com os coletivos sociais, na disponibilidade de apoio, mas a própria comunidade tomou algumas medidas de orientação para tentar barrar a entrada e a saída de
Crédito: Ricardo Oliveira
A vacinação de indígenas é desafio na busca pela imunização contra a Covid-19
Cristiano Fernandes, diretor-presidente da FVS.
tradicionais, indígenas e comunidades ribeirinhas já foram incluídos no calendário vacinal e serão imunizados pelas prefeituras dos municípios correspondentes.
O diretor-presidente da FVS do Amazonas, Cristiano Fernandes, informou que povos indígenas e comunidades ribeirinhas já foram incluídos no calendário vacinal e serão imunizados pelas prefeituras dos municípios onde vivem
31
CENARIUM PANDEMIA DEREVISTA COVID-19
ECONOMIA & SOCIEDADE
IMUNIZAÇÃO
DE INDÍGENAS E
QUILOMBOLAS
Caroline Viegas - Da Revista Cenarium
M
ANAUS – Levantamento feito pela REVISTA CENARIUM no dia 26 de abril aponta que 50% da população indígena da Amazônia Legal recebeu imunização com as duas doses da vacina contra a Covid-19. Dentre os 409.883 indígenas contemplados, de acordo com o Vacinômetro Indígena do Localiza SUS, 233.891 vivem na Amazônia Legal, representando 57% do total. Os dados da região disponibilizados na plataforma informam que 162.080 desses indígenas receberam a primeira dose da vacina, 57% do total, e apenas 118.081 chegaram a receber a segunda, o equivalente a 50%. Conforme o Localiza SUS, o total de contemplados a receber o imunizante
Imunização Indígena no Brasil
409.883
POPULAÇÃO INDÍGENA
558.004
DOSES APLICADAS
312.116
INDÍGENAS VACINADOS COM A PRIMEIRA DOSE
245.888
INDÍGENAS VACINADOS COM A SEGUNDA DOSE Fonte: Localiza SUS 32
www.revistacenarium.com.br
vacina, devido às notícias que receberam via WhatsApp. A aeronave teve de levantar voo com o carregamento de vacinas intacto. Outra dificuldade é o acesso às localidades. Chegar às comunidades mais extremas em uma época em que deslocamentos estão sendo evitados não é o único desafio. É necessária toda uma logística, como o cuidado para manter as vacinas armazenadas na temperatura correta em uma região de clima quente e úmido. Por isso, as “missões” têm tempo certo para serem cumpridas, considerando o gelo que mantém o imunizante conservado.
VIGILÂNCIA refere-se aos indígenas de 18 anos ou mais cadastrados no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), incluindo-se as especificidades da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 709), em que os povos indígenas cobram no Supremo Tribunal Federal (STF) um plano coordenado pelo Governo Federal para enfrentamento adequado da pandemia entre as populações tradicionais. As comunidades indígenas foram incluídas na primeira fase prioritária do Plano Nacional de Imunização (PNI) contra a Covid-19, sendo asseguradas na Lei 14.021, que garante o direito a medidas de proteção aos povos tradicionais durante a pandemia.
FAKE NEWS E DIFÍCIL ACESSO Entre os desafios da vacinação nos Estados da Amazônia Legal, está uma outra epidemia: a das fake news, que dissemina informações falsas sobre a pandemia. Um incidente em uma comunidade indígena, no início de fevereiro, repercutiu na mídia quando agentes de saúde relataram resistência por causa de conteúdo falso espalhado principalmente por meio do aplicativo WhatsApp. Um helicóptero da Força Aérea Brasileira carregado de agentes de saúde e doses de vacina contra o novo coronavírus levantou voo em Lábrea, no sul do Amazonas, rumo à terra indígena dos Jamamadi. Mas, ao pousar, às margens do rio Purus, o helicóptero foi recebido por homens e mulheres com arcos e flechas pedindo a retirada da equipe. Os indígenas diziam temer pela própria vida se tomassem a
Preocupado que o governo estadual e as prefeituras municipais não cumpram a prioridade das comunidades tradicionais extrativistas e ribeirinhas na aplicação da vacina contra a Covid-19, o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) tem encaminhado ofícios pedindo ao Ministério Público Federal (MPF) que faça o monitoramento junto aos gestores públicos estaduais e municipais para que cumpram com a obrigação pública de vacinar as pessoas das comunidades extrativistas, dispersas em territórios do Estado do Amazonas. A entidade pede também que o MPF recomende às prefeituras que informem, a cada 15 dias, a quantidade de pessoas das comunidades já vacinadas, com base na agenda municipal de aplicação da vacina da Covid-19. Em nota conjunta, o MPF e a Defensoria Pública da União (DPU) reforçaram a importância de que toda e qualquer informação ou notícia, no sentido de desacreditar ou contestar a garantia e a segurança das vacinas, compartilhada principalmente por meio de aplicativos de mensagens (WhatsApp, Telegram etc.) e mídias sociais (Facebook, Instagram, Twitter etc.), seja verificada junto aos profissionais da saúde e autoridades responsáveis pela vacinação de indígenas, quilombolas e ribeirinhos, de modo a evitar a propagação de notícias falsas, que têm em muito prejudicado as ações dos serviços de saúde para o enfrentamento do novo coronavírus.
RONDÔNIA À FRENTE
alcança o índice de 70% da população indígena vacinada com as duas doses do imunizante contra a Covid-19. Enquanto isso, o Acre, mesmo com uma das menores populações indígenas, só tem 32% dela vacinada com as duas doses. Roraima, por sua vez, tem uma discrepância entre o número de vacinados com a primeira (74%) e a segunda dose da vacina (41%). Há uma diferença de 36% entre os números, o que representa uma estagnação na vacinação. O Amazonas, com a maior população indígena convocada a receber a imunização, está na quarta posição no ranking.
QUILOMBOLAS E A INVISIBILIDADE A luta da população quilombola frente ao direito pela imunização vem desde dezembro de 2019, quando a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) protocolou, no STF, um pedido para que as comunidades quilombolas fossem incluídas na lista de grupos prioritários que serão vacinados contra a Covid-19. Após serem incluídas (as comunidades quilombolas) na fase prioritária, já em
janeiro, o MPF pediu explicações do então ministro da saúde, Eduardo Pazuello, sobre a efetiva prioridade dispensada pela pasta à população quilombola na imunização contra a Covid-19. O motivo seria que a estimativa de distribuição das doses reservadas para as primeiras etapas da campanha não identificava explicitamente a população quilombola. Desde então, o Conaq vem movendo ações para que, de fato, as comunidades quilombolas tenham acesso ao imunizante, mas outro desafio é a falta de conhecimento sobre o quantitativo populacional. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) afirma que “embora não haja uma estimativa dessa população, calcula-se que o país possua 5.972 localidades quilombolas”. Os dados são estimativas do Censo 2021, que foram antecipadas para subsidiar o desenvolvimento de políticas, planos e logísticas para enfrentar a Covid-19 junto aos povos tradicionais. Já a Fundação Cultural Palmares, responsável pela certificação quilombola, informa que há 3.467 comunidades quilombolas, destas, 1.294 estão nos Estados da Amazônia Legal.
VACINA Apesar do registro de comunidades quilombolas existentes no País, a falta de registros mais precisos sobre o quantitativo populacional dificulta a transparência no processo de distribuição e administração das vacinas. O Localiza SUS disponibiliza os dados de doses aplicadas em quilombolas em cada Estado do Brasil, mas não há registros precisos de população contemplada, o que impede o monitoramento. O que chama atenção nos dados é que somente três Estados da Amazônia Legal têm quilombolas vacinados com a segunda dose da vacina contra a Covid-19. Os outros sete Estados aparecem zerados. Em Roraima, onde a Fundação Palmares alega ter oito comunidades quilombolas, não há registros de vacinados no banco de dados. De acordo com o banco de dados da Fundação Cultural Palmares, não constam comunidades quilombolas no Estado do Acre, que também não apresenta dados de vacinação de quilombolas no Localiza SUS, por isso, não foi incluído na reportagem.
SUS
No ranking da imunização, Rondônia é o único Estado da Amazônia Legal que 33
CENARIUM PANDEMIA DEREVISTA COVID-19
ECONOMIA & SOCIEDADE
M O advogado Francisco Balieiro ficou internado com Covid-19 perdeu familiares para a doença, incluindo, dois irmãos e uma filha
Famílias sofrem com a dor de perder entes queridos para a Covid-19 e vivem o drama de suportar o risco de uma terceira onda Camila Carvalho - Da Revista Cenarium
A primeira onda da pandemia passou, mas as perdas familiares continuaram. Em dezembro, na madrugada do dia 20 para o dia 21, Francisco Balieiro recebeu a notícia da morte de sua filha, Alana Gabriela de Alencar Balieiro, de 27 anos. Seis dias depois, morreu o tio de Balieiro,
“No dia em que me internaram, na sexta, mais de 100 pessoas morreram. Quando agravou, eu já não tinha mais Covid-19, já estava apenas com pneumonia e cheguei no hospital muito ruim, com o pulmão 70% comprometido e, mesmo assim, não sentia falta de ar”, contou.
Foram oito dias sem dormir, vendo escurecer “ e vendo clarear. No hospital, era uma angústia
A cena era de um filme de terror: no hospital, pegaram todos os seus documentos e roupas e queimaram - com exceção de um terço que ele carregava consigo.
Crédito: Ricardo Oliveira
“Perdi minha família para a doença”
ANAUS - Era uma sexta-feira, 24 de abril de 2020, quando o advogado Francisco Balieiro, de 65 anos, deu entrada em uma unidade da rede privada de saúde informando ter cansaço ao fazer esforço. O Amazonas enfrentava o primeiro pico da pandemia de Covid-19, com recordes de mortes diárias e internações.
“Passei os três dias internado sem dormir e passei mais cinco dias, depois que eu fui para casa, também sem dormir. Foram oito dias sem dormir. No hospital, era uma angústia grande, porque não sabia se iria sair dali. Fui submetido ao tratamento com hidroxicloroquina e, até hoje, sinto os efeitos colaterais”, contou. No domingo, 26 de abril, um dia antes do seu aniversário, já se preparando para enfrentar mais uma noite em claro ele começou a rezar o terço e, após terminar, recebeu a notícia: “Minha saturação estava em 98%, sem auxílio de oxigênio, e recebi alta”. No entanto, o pior do enfrentamento à doença estava por vir. Sete dias depois, Francisco Balieiro recebeu a notícia da morte do irmão Jonas Rodrigues Balieiro,
34
www.revistacenarium.com.br
“A Covid mudou as nossas vidas, não temos mais os nossos pais, não tem como
grande porque não sabia se iria sair dali” Francisco Balieiro, advogado. José Raimundo Siqueira, de 65 anos. Em 12 de janeiro de 2021, Balieiro perdeu o segundo irmão: Ulisses Balieiro Filho, de 48 anos, que morreu esperando por uma vaga na UTI e sofrendo pela falta de oxigênio em Manaus. No mesmo período, o advogado lutava para socorrer a mãe, de 79 anos, Maria José Rodrigues Balieiro. Ela teve que recorrer a um tratamento em São Paulo e sobreviveu à Covid-19. “Se há uma cidade em que o isolamento social foi muita retórica, pela falta de fiscalização e pulso forte com os infratores, além da fraqueza política, foi em Manaus. Perdi minha família para a doença”, disse Francisco Balieiro. A última perda da família para a Covid19 foi o cunhado de Francisco, Armando Manuares, em 23 de fevereiro de 2021. Vacinado com as duas doses do imunizante, Balieiro lamenta a falta de políticas públicas que possam salvar vidas. “É
voltar ao normal. A estrutura familiar foi completamente reformulada”, disse Rubens B. Neto. Stanley foi internado no dia 23 de agosto de 2020 e foi enterrado no dia 02 de setembro. No mesmo dia, Vladya foi internada e passou 53 dias no hospital, até não resistir. No dia seguinte, o filho, Rubens B. Neto também foi internado e passou 36 horas na UTI. Ele sobreviveu à doença. Durante a luta dos pais pela vida, os filhos receberam uma enxurrada de carinho vinda de correntes de oração, mensagens e demonstrações de afeto. “Tenho um sentimento de gratidão. Falamos que recebemos muitos anjos nessa luta e agradeço a todos pelo carinho. Por mais que já tenha se passado seis meses, parece que ainda não caiu a ficha”, disse Valentina, a caçula da família.
Stanley Filho, advogado.
Em dezembro de 2020, a família teve um susto: Stanley Filho foi acometido pela doença, ficou 24 horas sentado em uma cadeira esperando atendimento e só não foi transferido para a UTI porque não tinha vaga.
56 anos, em Tabatinga, que aguardava por um leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Vinte dias depois, ainda em luto, morreu uma das cunhadas, conhecida pelos familiares como Trindade, em São Paulo de Olivença, também aguardando por assistência médica.
“No leito que eu dividia com outras três pessoas, as três morreram. Sentia muito medo, porque o histórico da família com relação à doença não era bom, dividia oxigênio com outras pessoas e era muito difícil. Teve noites de desespero, principalmente quando via as pessoas ao meu lado morrendo, mas, graças a Deus, consegui vencer a doença”, contou Stanley Filho.
Teve noites de desespero, principalmente “ quando via as pessoas ao meu lado morrendo”
Os irmãos Stanley, Valentina e Rubens perderam pai e mãe para a Covid-19 e tiveram que reformular a estrutura familiar
Thiago B. Braga, 24, também viram a vida em família mudar de forma repentina e dolorosa. Eles perderam o pai Stanley Pinheiro Braga, 48, e a mãe, Vladya Rachel Lira Benzecry Braga, 47, para a Covid-19.
estarrecedor como não há uma campanha do governo federal pela vacinação”, disse.
TRAGÉDIA Os irmãos Stanley P. Braga Filho, Rubens Samuel B. Neto, ambos de 31 anos, Valentina Pantoja F. Bastos Lira, 16, e
35
CENARIUM PANDEMIA DEREVISTA COVID-19
FARRA DO DESRESPEITO Enquanto os governos tentam manter medidas restritivas e de prevenção à Covid-19, parte da população ignora as orientações e coloca vidas em risco nas aglomerações
Crédito: Bar Herick Pereira | Secom
ECONOMIA & SOCIEDADE
sanitária, previsto no Artigo 268 do Código Penal Brasileiro. “O comportamento da doença está relacionado ao comportamento das pessoas. O vírus está circulando, as pessoas ainda continuam adoecendo e o comportamento das pessoas será um definidor de qual rumo tomaremos no Amazonas. Parte da população está construindo uma terceira alça epidêmica, com a falta de adesão às medidas de distanciamento social e de prevenção”, ressaltou o diretor-presidente da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS), Cristiano Fernandes.
AGLOMERAÇÃO IMPOSTA Além das festas e bares, onde ocorrem aglomerações, há ainda circunstâncias que impõem à população trabalhadora maior vulnerabilidade frente à Covid-19, como é o caso do transporte público de passageiros. Todos os dias, centenas de milhares de pessoas se aglomeram nos terminais e dentro de ônibus, onde não há circulação de ar nem sequer o mínimo espaço entre as pessoas. Segundo dados do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros no Amazonas (Sinetram), 600 mil pessoas utilizam o transporte
Camila Carvalho - Da Revista Cenarium
Os governos tentam coibir festas e aglomerações, que têm sido recorrentes em diversas cidades da Amazônia
No transporte público, centenas de milhares de pessoas se amontoam dentro de ônibus sem circulação de ar Crédito: Clóvis Miranda
público em Manaus, em uma frota de 1 mil veículos em dias úteis. Em Manaus, as aglomerações são cenário constante nos terminais de integração e em paradas nas principais vias da capital amazonense. Nos locais, não é possível visualizar fiscalização da prefeitura para garantir o distanciamento necessário e/ou medidas que reduzam o número de pessoas dentro dos veículos. Na última semana de abril, a prefeitura anunciou um reforço na frota de veículos e ajustes nas linhas de transporte público, mas o aumento não foi suficiente para conter as aglomerações, especialmente nos horários de pico.
2.683
EVENTOS E ESTABELECIMENTOS VISTORIADOS NO AM
750 FECHADOS
21
VEÍCULOS APREENDIDOS
93
INTERDITADOS
5
EMBARCAÇÕES APREENDIDAS
462
NOTIFICAÇÕES E AUTUAÇÕES
215
AUTUAÇÕES DO DETRAN
642
NOTIFICAÇÕES E AUTUAÇÕES DO IMMU
127
PESSOAS CONDUZIDAS AOS DIP
M
ANAUS - Em meio à pandemia da Covid-19, especialmente na segunda onda, parte da população ignorou as medidas restritivas e preferiu abandonar os cuidados de prevenção para participar de aglomerações - seja em festas no final de ano - ou em eventos clandestinos particulares. No Amazonas, por exemplo, entre setembro de 2020 e abril de 2021, os órgãos do sistema de Segurança Pública efetuaram a detenção de 496 pessoas que participavam de festas clandestinas - sendo seis delas em municípios do interior do Estado - mesmo com um decreto governamental que proibia a circulação de pessoas. No mesmo período, 47 festas clandestinas foram fechadas pelos órgãos de Segurança Pública e a estimativa é que nesses locais estavam reunidas mais de
36
www.revistacenarium.com.br
20,9 mil pessoas. Nas festas, foram apreendidas duas armas de fogo, além de 378 unidades de drogas, entre comprimidos de ecstasy, LSD, cocaína, maconha e óxi. Entre as detenções, estão as das 60 pessoas que participavam de um festival em uma embarcação de luxo pelos rios da Amazônia e que foi encerrado pelas forças de Segurança Pública do Amazonas, após denúncias. O grupo de turistas brasileiros e estrangeiros, que chegou a ir até uma aldeia indígena, estava aglomerado, não usava máscaras de proteção e ingeria bebida alcoólica durante a abordagem policial. O caso ganhou repercussão internacional.
PELA VIDA De junho de 2020 a 18 de abril de 2021, 2.683 estabelecimentos foram vistoriados. Desses, 750 foram fechados e 93 interdita-
dos por descumprirem as regras impostas por decretos governamentais. Os dados fazem parte da Operação Pela Vida, com ações desenvolvidas no âmbito da Central Integrada de Fiscalização (CIF), que reúne servidores do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-AM), além de policiais militares, civis, bombeiros, Defesa Civil, técnicos da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), Visa Manaus, órgãos de trânsito e a Marinha do Brasil, no caso de fiscalizações em flutuantes. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM), a central de denúncias 190 recebe, em média, 600 denúncias de festas clandestinas e/ou aglomerações por fim de semana. Os responsáveis pelas festas clandestinas e presentes em aglomerações respondem pelo crime de desobediência
MEDIDAS DE RESTRIÇÃO DESCUMPRIDAS
Parte da população “ está construindo
uma terceira alça epidêmica, com a falta de adesão às medidas de distanciamento social e de prevenção” Cristiano Fernandes, diretorpresidente da FVS-AM.
Nos demais Estados da Amazônia Legal o cenário de desrespeito às medidas de restrição e prevenção à Covid-19 é similar ao presenciado no Amazonas. No Maranhão, a Polícia Militar fechou mais de 30 bares que estavam se organizando para realizar festas em municípios próximos a São Luís. No Mato Grosso - que registra ocupação de mais de 90% dos leitos de UTI - policiais militares foram agredidos ao dispersar uma aglomeração em uma festa clandestina, além conter uma festa com 60 pessoas na casa de um defensor público, que foi detido. Enquanto no Acre, no dia 23 de abril, o governo ampliou as medidas de restritivas
com proibição de ocupação e permanência de pessoas, em qualquer número em espaços públicos e privados destinados à recreação e ao lazer, em Manaus, o prefeito David Almeida fez o contrário: ampliou o horário de comércio no Complexo Turístico Ponta Negra e ainda tornou uma faixa da via exclusiva em espaço para atividades físico-esportivas aos domingos. Para o pesquisador da Fundação de Medicina Tropical (FMT) do Amazonas, Marcus Lacerda, não é o momento de relaxar as medidas de circulação de pessoas. “Enquanto não estivermos com pelo menos 70% da população vacinada, não é o momento para relaxar. O governo tem tentado bloquear as aglomerações, mas não é fácil. As pessoas querem se aglomerar”, apontou o pesquisador. 37
CENARIUM PANDEMIA DEREVISTA COVID-19
ECONOMIA & SOCIEDADE
nação há, ainda, a insegurança gerada em parte da população a respeito da eficácia dos imunizantes.
CICLO VACINAL Especialistas ressaltam a importância das pessoas que já tomaram a primeira dose do imunizante contra a Covid-19 comparecerem, no prazo determinado, para tomar a segunda dose e, assim, completarem o ciclo vacinal.
Marcus Lacerda, médico Infectologista, pesquisador da Fundação de Medicina Tropical (FMT) e especialista em saúde pública da Fiocruz, é um dos coordenadores do estudo Covac Manaus
Crédito: Ricardo Oliveira
Esperança na ponta da agulha M
Camila Carvalho - Da Revista Cenarium
ESTUDO Na tentativa de garantir a eficácia da estratégia vacinal, vários estudos estão sendo conduzidos por instituições de pesquisas para identificar, entre outros, a efetividade dos imunizantes aplicados e em quanto tempo será necessário aplicar doses de reforço. Em Manaus, um estudo, intitulado Covac Manaus, com 10 mil servidores públicos da Educação, Saúde e Segurança Pública está
O estudo é coordenado pela médica infectologista da Fundação de Medicina Tropical (FMT) e Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação da UEA, Maria Paula Mourão, e pelo médico infectologista e pesquisador da FMT e especialista em saúde pública da Fiocruz, Marcus Lacerda, e conta com a participação de 200 pessoas, entre pesquisadores, técnicos e equipe de apoio. “Antecipamos as duas doses da vacina para uma população que não estava sendo vacinada, um grupo de 18 a 49 anos com comorbidades, para analisarmos a eficácia da vacina nas pessoas com doenças pré-existentes. Esse grupo será acompanhado durante 12 meses para que possamos entender até quando a vacina garantirá a proteção e faremos a vigilância de novas variantes, caso elas apareçam”, explicou o pesquisador Marcus Lacerda.
A medida de maior impacto, que seria uma “ alta cobertura vacinal no país, encontra-se inviabilizada por falta de vacinas”
Bernardino Albuquerque, pesquisador da Fiocruz.
Para o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Bernardino Albuquerque, uma das formas de conter a transmissão do vírus e, ainda, o aparecimento de novas variantes é garantir a vacinação da população.
Caminhando, mas ainda em passos lentos, segundo levantamento divulgado no dia 22 de abril de 2021 pela revista Rolling Stone, o Brasil ocupava o 56º lugar no ranking mundial que considera doses aplicadas a cada 100 habitantes.
“O aparecimento de variantes está diretamente relacionado à continuidade da transmissão, portanto, todas as medidas até então direcionadas a interromper as cadeias de transmissão devem ser implementadas; infelizmente, a medida de maior impacto, que seria uma alta cobertura vacinal no
www.revistacenarium.com.br
INVESTIMENTOS Desde o início da pandemia de Covid-19 no Amazonas, o Estado já investiu R$ 14.056.769,78 para apoiar pesquisas estratégicas direcionadas ao combate do novo coronavírus. “A Fapeam tem como missão apoiar, fomentar, pesquisas tanto básicas como aplicadas, para aumentar o estoque de conhecimentos e as respostas que nós buscamos em relação a vários problemas amazônicos. Nesse momento, especialmente, as respostas que buscamos estão relacionadas ao enfrentamento da Covid-19”, destacou a diretora-presidente da Fapeam, Márcia Perales. Além dos R$ 2 milhões para o estudo Covac Manaus, o restante dos recursos investidos foram direcionados para outros 34 projetos de pesquisa exclusivos para estudos estratégicos voltados para o combate do novo coronavírus, além de investimentos na Rede Genômica de Vigilância em Saúde (Regesam), por meio do Programa de Apoio à Consolidação das Instituições Estaduais de Ensino e/ou Pesquisa (Pró-Estado), que permitiu o primeiro sequenciamento do genoma completo do SARS-CoV-2 na Região Norte.
No total, 5 mil pessoas receberam doses do imunizante Coronavac, do Instituto Butantan, e outras 1.025 pessoas serão apenas acompanhadas ao longo do período. “Um resultado importante é que tivemos zero eventos colaterais graves. Estamos verificando a proteção entre a primeira e a segunda dose e, após todos receberem as duas doses teremos resultados”, apontou Lacerda.
POPULAÇÃO X TOTAL DE VACINADOS ESTADO
ANAUS – “A vacinação tem que ser o nosso foco”. A frase é do pesquisador da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas (FMT-AM) Marcus Lacerda, mas reflete a esperança do povo brasileiro.
38
A vacinação é apontada por especialistas e pesquisadores como a esperança para vencermos a Covid-19, mas ainda amargamos um número baixo de imunizados
“A vacina só terá eficácia com as duas doses. Não adianta tomar a primeira dose e achar que já está tudo bem. É preciso ficar atento aos prazos para tomar a segunda dose e, aí sim, garantir a imunização”, apontou o diretor-presidente da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), Cristiano Fernandes.
sendo desenvolvido por pesquisadores da FMT, Fiocruz, Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com apoio do governo do Amazonas, via Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapeam), que aportou R$ 2 milhões, além de parceria das Secretarias de Estado e municipal de Saúde (SES) e (Semsa); de Segurança Pública (SSP); de Educação e Desporto (Seduc); e da FVS.
país, encontra-se inviabilizada por falta de vacinas”, afirmou Albuquerque. De acordo com dados do Ministério da Saúde, até 25 de abril de 2021, 37.988.023 de doses de imunizantes foram aplicadas em brasileiros. O número corresponde a pouco mais de 18% da população de 211 milhões de habitantes que receberam, pelo menos, a primeira dose da vacina contra a Covid-19. Do total de vacinados, 4.128.907 estão na Amazônia Legal, mas o número reflete apenas 14% da população dos nove Estados da região. Aliada à incerteza da vaci-
Apenas 14% da população dos nove Estados da Amazônia Legal foi vacinada até 25 de abril, segundo o Ministério da Saúde
POPULAÇÃO
8.602.865 Pará 7.075.181 Maranhão 4.144.597 Amazonas Mato Grosso 3.484.466 1.777.225 Rondônia 1.572.866 Tocantins 881.935 Acre 845.731 Amapá 605.761 Roraima TOTAL
28.990.627
DOSES APLICADAS
PRIMEIRA DOSE
SEGUNDA DOSE
1.144.387 1.085.645 709.252 522.806 216.554 231.957 122.050 115.617 102.689
814.279 792.998 523.146 374.317 161.322 163.821 94.449 82.936 64.844
330.108 292.347 186.106 148.489 55.232 68.136 27.601 32.681 37.845
4.128.907
2.977.663 1.150.944
Fonte: Ministério da Saúde. Acesso em: 25/04/2021
Crédito: Ruan Souza | Semcom
39
ECONOMIA & SOCIEDADE
ARTIGO – MARCUS LACERDA
Homo persona Marcus Lacerda*
Novo coronavírus tem gerado variantes em pouco tempo, o que dificulta o enfrentamento da pandemia. Imagem capturada no Centro de Pesquisa Integrada (IRF) do Niaid em Fort Detrick, Maryland Crédito: Niaid | Fotos Públicas
Após duas ondas devastadoras da Covid-19, especialmente nos Estados da Amazônia Legal, riscos ainda existem e cuidados devem ser redobrados Camila Carvalho – Da Revista Cenarium
M
ANAUS - A pandemia da Covid19 já dura mais de um ano e, em duas ondas de contágio, devastou o mundo econômica e socialmente, além de aflorar as desigualdades entre nações, Estados e dentro dos países, sem contar com os impactos na saúde física e mental. Até abril de 2021, 14.237.078 pessoas no Brasil tinham sido contaminadas com o vírus. Dentre elas, 386.416 perderam a vida para a Covid-19, 12.711.103 estão recuperadas e 1.139.559 ainda estão em acompanhamento. Até o final de abril, o País tem batido recordes diários de novos contaminados, no número de internados e mortes em decorrência da Covid-19 ou de suas sequelas. O mundo, de forma alguma, voltará a ser o mesmo. Mudamos os hábitos, adotamos novas medidas de controle e prevenção e diversos protocolos sanitários e médico-hospitalares, mas nada tem sido tão eficaz quanto a vacinação e o distanciamento social. Na economia, segundo o Boletim Observatório Covid-19 da Fiocruz, as pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que, desde abril de 2020, a maioria das pessoas de 14 anos ou mais não tem uma ocupação no mercado de trabalho, ainda que informal e por apenas uma hora
40
www.revistacenarium.com.br
semanal ou mesmo em afastamento temporário. Esta realidade é inédita no Brasil. Dados do IBGE apontam, ainda, que entre fevereiro de 2020 (mês que antecede as primeiras mortes por Covid-19 identificadas no País) e janeiro de 2021, a população de empregados com carteira assinada no setor privado, inclusive domésticos, foi reduzida em 4,2 milhões de pessoas. Já são mais de 14,3 milhões de cidadãos desempregados no País, segundo o IBGE. Na Amazônia Legal, os nove Estados acumulam uma taxa de 15,2% de desemprego. O cenário foi ainda agravado pelo distanciamento social e as restrições de circulação. O reflexo da crise sanitária e econômica pode ser sentido no adoecimento mental da população. De acordo com pesquisa realizada pelo Ipsos - terceira maior empresa de pesquisa e de inteligência de mercado do mundo - para o Fórum Econômico Mundial com 30 países, o Brasil é o quinto país no ranking entre os que os entrevistados relataram mudança para pior na saúde mental. No total, 53% dos entrevistados relataram alterações negativas na saúde mental, incluindo, tristeza, ansiedade e depressão. O dado foi tornado público pelo jornal Valor Econômico.
RISCO Para cientistas, pesquisadores e gestores, a vacinação é a esperança para a cura, mas o afrouxamento das medidas restritivas, desrespeito às normas pela população e baixa cobertura vacinal podem acarretar o surgimento de novas variantes. “O risco de aparecimento de uma nova variante existe e é factível de acontecer, já que esse fato ocorre como forma de defesa do vírus, principalmente, quando ele é submetido à pressão na transmissão. O objetivo é gerar linhagens diferentes que possam ultrapassar barreiras garantindo a sua sobrevivência. Essa modificação pode gerar novos atributos em relação a uma cepa circulante como: maior transmissibilidade, maior capacidade de determinar doença grave, ser resistente aos anticorpos formados numa infecção prévia gerando as reinfecções, ou mesmo, escapando da ação das defesas geradas por uma vacina”, explicou o pesquisador da Fiocruz, Bernardino Albuquerque. O diretor-presidente da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), Cristiano Fernandes, afirmou que mesmo com a queda no número de casos, o cenário ainda é crítico. “Enquanto houver a circulação da doença, do vírus, o cenário sempre será crítico. Precisamos ter, na nossa avaliação, a magnitude desse problema e os possíveis cenários que podem surgir a partir dessas análises e do comportamento da resistência. Estamos percebendo a população com um comportamento completamente fora do esperado, parece que esqueceu o que vivenciamos em dois ou três meses atrás e isso tem reflexos que podem construir uma nova alça epidêmica e não sabemos o que esperar”, alertou. O futuro permanece incerto. Apesar de pesquisadores, cientistas e gestores apontarem que caminhamos para uma terceira onda da Covid-19, nossas ações, como sociedade, podem promover uma mudança de rumos capaz de nos levar ao fim da pandemia.
C
ada vez mais, estudos e revisões de casos, em todo o mundo, têm demonstrado que a Covid-19 não é uma doença grave em crianças. A razão para isso ainda é desconhecida. Alguns acreditam que vacinas contra outras doenças poderiam dar uma proteção cruzada contra o vírus. Diferenças na quantidade de hormônios entre crianças e adultos também podem explicar. O fato é que durante os piores cenários da pandemia, hospitais infantis não relataram superlotação. Em Nova Iorque, casos de uma rara síndrome inflamatória sistêmica foram descritos em crianças e associados ao contato prévio com o vírus. Por aqui, mesmo com uma vigilância armada, esses casos foram raros. Certamente, se a pandemia tivesse predileção por ceifar a vida de crianças, nenhum decreto governamental de lockdown seria necessário: pais e mães desesperados estariam trancados em casa, protegendo seus filhos, como em uma cena bíblica, quando a décima praga do Egito matava os primogênitos. E apenas quando morreu o filho do Faraó, algo foi feito. Mas, a discussão sobre as crianças da pandemia não para por aí. Há muitas décadas, por esforço ininterrupto da Unesco, o direito que todas elas têm de frequentar uma escola tem avançado, mesmo em países pobres. Hoje, crianças de todas as classes sociais têm mais chance de fazer ascensão de classe social, frequentar universidades, concluir uma pós-graduação e, finalmente, mudar a iniquidade do sistema, estando dentro dele. Este é um direito fundamental, em países que vislumbram a educação como forma de investimento econômico de longo prazo.
No Brasil, a pandemia que escancarou nossas maiores feridas e fragilidades como nação, também abriu um importante e necessário debate: a educação é uma atividade prioritária? Com a lamentável e letal escassez de vacinas, foram vacinados, no primeiro momento os profissionais da saúde, para que pudessem cuidar dos doentes que não foram vacinados. Passado este primeiro momento, vacinamos idosos e pessoas com comorbidades. Segue-se, na atualidade, o debate sobre a vacinação de grupos profissionais, cada um com seu lobby junto aos governos locais. Profissionais de segurança pública já começaram a ser vacinados em várias partes do País. Isso permitiu a justa reivindicação de outros profissionais considerados expostos a aglomerações de risco: motoristas do transporte público, balconistas, agentes funerários e os profissionais que trabalham na educação; afinal, não apenas de professores é feita uma escola. Até que o imbróglio seja resolvido, nosso fosso da desigualdade social se alarga. Escolas privadas, onde estudam os filhos dos ricos, mantêm aulas virtuais desde o início da pandemia. Todos têm uma internet de qualidade e pais em home office, que ajudam seus filhos na frente de computadores modernos, com poltronas ergonômicas. Nos períodos de diminuição de casos, professores de escolas privadas, sem estabilidade empregatícia, retornam às aulas presenciais, em um sistema híbrido, seguindo normas sanitárias. Afinal, crianças são mais aderentes a orientações de segurança do que os adultos. Na escola pública interrompida, alunos sem tecnologia não têm chance. Em casa, sozinhos, viram vítimas de padrastos que os espancam até à morte, ou desenvolvem
Crédito: Acervo pessoal
Ainda corremos riscos
carências alimentares. No Brasil, a escola não é apenas um luxo; é o ambiente seguro onde crianças estão protegidas e onde, muitas delas, fazem sua principal refeição. Governadores e prefeitos são continuamente chamados de Herodes ou assassinos de professores, quando consideram o debate. Se o Brasil não conseguiu ainda entender que os profissionais da educação são nossa maior prioridade, este país perpetuará os mesmos erros do passado e condenará os humildes ao analfabetismo e à marginalidade. Depois da perda de vidas, este será nosso maior retrocesso. A pequena Tereza, de oito meses, nasceu durante a pandemia, em Manaus. Seus pais se trancaram em casa. Ela foi criada sem ver o sol e aprendeu a ver as pessoas com máscaras. Quando sai, o excesso de luz a incomoda. Certamente, seu cérebro não será capaz de interpretar expressões labiais. É uma criança que se comunicará melhor pela cor dos olhos e cheiros. Estamos diante de uma nova geração de infantes, com importantes sequelas emocionais, pela perda precoce de seus avós, pela angústia que observam no rosto dos pais falidos, ou por assistirem de perto o aumento do alcoolismo doméstico. Em latim, sapiens é aquele que pensa e persona significa máscara. Caminhamos para aprender menos e usar mais máscaras, caminhamos rumo à evolução do Homo sapiens a Homo persona. (*)Marcus Lacerda é médico infectologista e pesquisador 41
Conexão com o público
Crédito: Victória Sales
ECONOMIA & SOCIEDADE
Leitor ganha espaço de participação nas edições impressas da CENARIUM Victória Sales – Da Revista Cenarium
M
ANAUS - Com o intuito de ampliar e aperfeiçoar ainda mais a interação com seus leitores, a REVISTA CENARIUM lançou um novo canal de comunicação, intitulado Carta do Leitor. A iniciativa vai integrará plataformas de comunicação como o WhatsApp, por meio do número (92) 98564-1573, e o e-mail: cartadoleitor@revistacenarium.com.br. Por meio dessa nova ferramenta, o leitor vai poder mandar sugestões de pautas, elogios e críticas. Além de detalhar comen-
que consome as notícias que nós levamos diariamente seja nosso maior parceiro e, por isso, decidimos criar esse canal, para que a gente possa senti-lo ainda mais perto de nós. Além de ter um retorno do trabalho que nós exercemos”, destacou. Paula ressaltou ainda que poder investir nessa comunicação sempre foi uma prioridade para a revista. “Ter esse retorno, sugestões e, até mesmo, as críticas, é muito importante para toda a equipe. Por meio desse canal de comunicação, será possível
Nosso maior objetivo com a CENARIUM é fazer “ com que o público que consome as notícias que nós levamos diariamente seja nosso maior parceiro” Paula Litaiff, diretora-executiva da REVISTA CENARIUM. tários sobre os conteúdos, os participantes podem indicar como aprimorar, ainda mais, o conteúdo editorial da CENARIUM. As manifestações serão publicadas na seção Carta do Leitor, que será lançada nas edições impressas da revista.
passar ainda mais as informações de uma forma em que o público goste e aceite. Por isso, nossa prioridade é tornar esse relacionamento melhor”, afirmou Paula.
De acordo com a diretora-executiva Paula Litaiff, o novo canal de comunicação vai aproximar ainda mais a equipe da revista com o público que consome o material. “Nosso maior objetivo com a CENARIUM é fazer com que o público
“Esta relação do leitor com a CENARIUM será muito importante até mesmo para renovar ideias sobre textos futuros. Manter um relacionamento mais estreito com o público que consome o material da revista é muito importante. Agora, pode-
42
www.revistacenarium.com.br
PREFERÊNCIAS DO PÚBLICO
remos identificar pontos que podem ser mudados e pontos que podem melhorar cada vez mais”, reforçou Paula.
VISÃO DIGITAL Segundo o especialista em Jornalismo de Dados e Marketing Digital e consultor, Raphael Cortezão, a visão do público como uma massa de pessoas que apenas consome passivamente o conteúdo da mídia ficou para trás ainda na década de 1990. Já que há tempos, as pessoas têm buscado se sentir mais ouvidas, mais contempladas e representadas nas publicações jornalísticas. “Tenho reforçado, nos últimos anos, a necessidade de a imprensa entender e utilizar, cada vez mais e melhor, instrumentos de participação ativa da sociedade não só no consumo, mas também na produção da informação, por isso é tão importante estreitar essa relação com o público leitor”, afirmou Raphael. O consultor destaca ainda que a credibilidade dos veículos de mídia deixou de ser automática. “Agora, ela precisa ser conquistada diariamente. Abrir espaço para que as pessoas participem ativamente do processo de construção e melhoramento das notícias representa um ganho não só para o veículo de mídia, mas também para o amadurecimento do exercício de participação democrática dos cidadãos”, finalizou Cortezão.
O aplicativo WhatsApp será um dos canais de comunicação dos leitores com a REVISTA CENARIUM, por meio do número (92) 98564-1573. Cartas também podem ser enviadas para o e-mail: cartadoleitor@revistacenarium.com.br
43
ECONOMIA & SOCIEDADE
Inflação em alta e renda em baixa
Aumento da inflação é mais visível em produtos como alimentos e bebidas
Com novo aumento da inflação, desempregados tentam sobreviver com o auxílio reduzido pelo Governo Federal Matheus Pereira – Da Revista Cenarium
M
ANAUS – Com nova previsão de aumento consecutivo da inflação de 4,85% para 4,92%, especialistas em economia apontam que a alta do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) deve dificultar ainda mais a situação de boa parte da população desempregada, afetada pela redução do
Crédito: Marcelo Camargo | Agência Brasil | Fotos Públicas
falta de renda da população, o que influi nos fatores de aumento de preços e, por consequência, no aumento da inflação”, explicou o profissional. A economista Denise Kassama destaca que o País já estava em um processo de crise econômica desde 2014 e buscava a
A existência do auxílio emergencial é prova “ da falta de renda na população, o que influi nos
fatores de aumento de preços e por consequência no aumento da inflação” Orígenes Martins, economista. Auxílio Emergencial pago pelo Governo Federal de R$ 600 para até R$ 150. De acordo com o economista Orígenes Martins, os índices de mercado, entre outras coisas, têm na lei de oferta e demanda seu principal fator. “A existência do auxílio emergencial é prova da 44
www.revistacenarium.com.br
recuperação quando a pandemia eclodiu. Denise explica ainda que a situação de crise na saúde mundial trouxe junto vários indicadores negativos, como o desemprego e a inflação e que a alta de preços dos produtos, principalmente alimentos, tem relação também com a alta do dólar.
“Quando o dólar está alto, ele favorece as exportações, pois o ganho será maior em reais para o exportador. Então, considerando o cenário de pandemia, onde todas as atividades econômicas tiveram dificuldades para se desenvolver plenamente, inclusive a agrícola, temos uma safra inferior, em que o produtor destinou maior parte para exportação para que assim pudesse maximizar seus ganhos (ou minimizar suas perdas), sobrando uma parcela menor para o mercado interno. A oferta menor e uma demanda crescente empurraram os preços para cima”, explicou Kassama.
consumir alimentos. Por isso, o impacto é maior”, determinou.
POPULAÇÃO MAIS POBRE
Vivendo em meio a essa ‘bola de neve’ de aumento dos preços dos produtos e diminuição da renda, inclusive do próprio auxílio emergencial, que foi de R$ 600 e R$ 1.200 (mães solteiras) em 2020 para R$ 150 e R$ 375 (mães solteiras) em 2021, a dona de casa Elci Cunha relata que o benefício oferecido pelo governo federal não é suficiente para comprar o necessário. “Achei que ficou bem complicado com a diminuição do auxílio. As coisas estão muito caras. São vários os produtos em que percebemos o aumento, mas o que é mais visível é a carne, o óleo e o feijão”, contou.
Denise aponta ainda que a inflação só não foi maior, porque itens como vestuário e calçados não tiveram aumento, mas que o aumento foi visível nos alimentos e bebidas, o que faz com que o problema seja ainda maior. “Devemos levar em consideração que em questão de necessidade, uma família pode consumir menos itens de vestuário, mas não pode deixar de
Denise Kassama aponta que o auxílio ofertado pelo governo corresponde a uma cesta básica em Manaus, que, dependendo do tamanho da família, pode durar apenas uma semana. “A situação se agrava mais ainda se considerarmos que este auxílio beneficiou uma parcela menor da população, em uma taxa de desemprego alta e crescendo”, sentenciou.
Crédito: Marcos Santos | Usp Imagens | Fotos Públicas
Geração de emprego como solução Orígenes Martins explica que, como o próprio nome diz, o auxílio emergencial não é uma solução, mas apenas uma ajuda suplementar e que, com a diminuição do valor em 2021, a situação depende ainda mais da urgência na criação de empregos. “Solucionar esta situação só vai ser possível quando tivermos programas de geração de empregos que permitam que a renda se normalize e o consumo volte a ser fator não inflacionário”, explicou Martins. Além da criação de empregos, a economista Denise Kassama destaca que o Brasil parece ir na direção oposta da maioria dos países que buscam recuperação econômica. “Enquanto a maioria dos países no mundo está estruturando políticas de incentivo à produção e consumo interno, o Brasil continua com a agenda liberal, estimulando a abertura do mercado para que produtos importados possam competir com os produtos nacionais. O resultado dessa política é o que estamos observando: aumento dos índices de pobreza extrema e o retorno do Brasil ao mapa da fome”, finalizou. 45
ECONOMIA & SOCIEDADE
Mulheres empreendem na Amazônia, por meio da reciclagem Bruno Pacheco – Da Revista Cenarium
M
ANAUS – No País que produz cerca de 80 toneladas de lixo por ano, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), empreender com reciclagem se tornou uma renda lucrativa para um grupo de mulheres da Amazônia. Em meio ao amontoado de papelões em um galpão de reciclagem localizado próximo à Reserva Floresta Adolpho Ducke, no bairro Cidade de Deus, Zona Norte de Manaus, estão as catadoras
trabalhadores que atuam com a atividade na capital e no interior do Estado, a reciclagem se tornou o principal negócio da família e da amiga. Nem o desânimo com os julgamentos alheios foi capaz de impedi-la de trabalhar. “A princípio, comecei a reciclar por necessidade. Começamos em uma área que tem aqui no Fuxico [região comercial na Zona Leste de Manaus], com meu pai e minha mãe. O meu marido, Halysson Martins, largou o trabalho para me ajudar.
Acham que a gente não é capaz, mas a gente “ prova que é” Suelen Ramos, uma das coordenadoras do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Suelen Ramos, a sua filha Yasmin Ramos e a amiga Rosângela Ferreira de Castro que, por meio da coleta de materiais reutilizáveis, garantem o sustento diário e ajudam na contribuição para salvar o meio ambiente. Desde 2008, Suelen Ramos, de 39 anos, é catadora de materiais recicláveis e, desde 2009, faz parte do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), onde, atualmente, é uma das coordenadoras. Em 2014, quando decidiu fundar a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis – Nova Recicla, para garantir o direito e organização dos 46
www.revistacenarium.com.br
Antes, trabalhávamos com padaria, mas passou a ficar difícil. Quando eu engravidei do meu segundo filho, fazer pão de madrugada e cuidar de menino se tornou complicado, foi quando me falaram que catar papelão estava dando dinheiro”, relatou Suelen. Hoje, Suelen é graduada em Gestão Ambiental, pela Faculdade Salesiana Dom Bosco. Ela conta que, no início, amigos e vizinhos estranhavam o fato de ela estar catando materiais e começaram a ajudá-la com doações de alimentos e dinheiro. À época, por volta de 2008, segundo ela, a catação de materiais ainda não era uma
80 milhões O Brasil gera quase 80 milhões de toneladas de lixo por ano, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) de 2019.
11,3 milhões O Brasil é o 4º maior produtor de lixo plástico no mundo, de acordo com o Fundo Mundial para a Natureza (WWF, na sigla em inglês). São 11,3 milhões de toneladas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia.
200 toneladas A Nova Recicla funciona em dois galpões com o apoio de 35 trabalhadores associados que coletam cerca de 200 toneladas de material reciclável todos os meses, atendendo quase 4 mil casas de 10 bairros de Manaus.
atividade popularmente conhecida na sociedade. Apesar da profissão de catador de materiais recicláveis ser reconhecida pelo Ministério do Trabalho desde 2002, só em 2011 foi regulamentada pelo Projeto de Lei 6822/10 do Senado Federal, que define o catador como o profissional autônomo ou associado de cooperativas. O quilo do papelão era vendido por ela pelo preço de sete centavos, um trabalho dificultado pelos ‘atravessadores’, que são conhecidos como exploradores e que revendiam o material por um valor quase três vezes maior para as indústrias de reciclagem. Suelen explica que a falta de experiência com o ramo a fez perder em renda, mas que por meio de cursos e palestras sobre a área, ela pôde conhecer o real valor dos materiais e garantir os direitos dos profissionais. Hoje, em Manaus, o quilo de papelão gira em torno de R$ 0,90 a R$ 1,00.
A Nova Recicla, segundo Suelen, surgiu para garantir os direitos dos profissionais e as associações que também atuam no meio. Atualmente, a entidade funciona por conta própria em dois galpões com o apoio de 35 trabalhadores associados que coletam cerca de 200 toneladas de material reciclável todos os meses, atendendo quase 4 mil casas de 10 bairros de Manaus.
Desafios Como uma das coordenadoras do MNCR, que é composto por 27 associações e cooperativas de catadores no Amazonas, e representa cerca de 1 mil pessoas que atuam no ramo, Suelen salienta que precisou enfrentar desafios para mostrar que é capaz de estar à frente de um empreendimento. “Acham que a gente não é capaz, mas a gente prova que é”, afirma. “Quero cada vez melhorar mais, provar que dá para você se organizar e ir além”, declara. Em 2020, quando a pandemia da Covid-19 se instalou, o trabalho dos catadores precisou ser interrompido por quatro meses em Manaus. Na época, os cooperados viviam de ajuda com a doação de cestas básicas. As coletas só retornaram após solicitação da associação à prefeitura. “Fazemos a coleta duas vezes na semana. Por conta da Covid-19, a gente não pôde manter o contato com os comunitários. Mas, nós recolhemos os materiais que são deixados pelas pessoas em um certo horário. Quando tem muito material, os moradores ligam e vamos lá”, destaca Yasmin Ramos, de 20 anos. A vice-presidente da Nova Recicla, a artesã Rosângela Ferreira de Castro, de 45 anos, conta que o processo de coleta de materiais recicláveis ajuda tanto os moradores que desejam descartar produtos, quanto os trabalhadores que fazem o recolhimento e, ainda, o meio ambiente. “O meio ambiente agradece, pois nós olhamos muitas pessoas que não têm consciência. Elas pegam o material reciclável e jogam na rua mesmo. A gente passa pelas ruas e, ao mesmo tempo em que coletamos, nós mobilizamos as pessoas. Para mim, é muito gratificante fazer parte desse movimento”, diz Rosângela.
Crédito: Ricardo Oliveira
Lixo que dá lucro
“A partir do momento que tivemos contatos de empresas de papelão, como a Placibrás da Amazônia (PCE), eles nos deram todo o suporte, tanto de equipamentos quanto de logística para melhorarmos nosso trabalho, inclusive, passando a pagar o preço real do produto. Passamos a receber o preço final, sem precisar de atravessador”, pontuou.
Suelen, Yasmin e Rosângela estão investindo no ramo da reciclagem, para mudar de vida
Benefício ambiental Segundo dados do Panorama dos Resíduos Sólidos, da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) de 2019, o Brasil gera quase 80 milhões de toneladas de lixo por ano. Um estudo feito pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF, na sigla em inglês), no relatório “Solucionar a Poluição Plástica – Transparência e Responsabilização”, mostra que o País é o 4º maior produtor de lixo plástico no mundo, com 11,3 milhões de toneladas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia. A pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Produção, Logística e Administração (Geppla), do Instituto Federal do Amazonas, Elizany Monteiro, que é mestre em Ciências Ambientais e Sustentabilidade na Amazônia, salienta que um dos instrumentos criados para auxiliar no enfrentamento da questão do lixo foi a Agenda 2030, um plano de ação que envolve toda a sociedade. O seu 12º objetivo sugere proposta de mudança nos padrões de consumo e produção com destaque para a redução substancial da geração de resíduos por meio da prevenção, redução, reciclagem e reuso. “Nesse contexto, as usinas de reciclagem tomam grande importância, uma vez que nasceram para suprir uma demanda gerada por fatores como a urbanização desordenada e a má gestão de
resíduos gerados. Vários estudos apontam que empreendimentos, como o da Associação Nova Recicla, além de promoverem o retorno de matérias-primas ao setor produtivo, contribuem, sobremaneira, para a gestão ambiental, por meio da mitigação de impactos negativos gerados pelo descarte irregular de resíduos, como o plástico e o papelão que causam enchentes e alagamentos, causando doenças e mortes aos seres vivos”, destaca. Elizany Monteiro avalia que a sociedade está presenciando uma das consequências da má gestão ambiental com a pandemia da Covid-19 que, para ela, obrigará a população a repensar as formas de produção, consumo e descarte dos resíduos. Nesse processo de mudanças, salienta ela, as usinas de recicláveis farão parte de um desenvolvimento sustentável, apesar de serem também uma expressão da precarização do trabalho, e nem sempre atenderem condições dignas. Para a especialista, a mitigação dos problemas decorrentes do descarte irregular de resíduos depende de investimento em Educação Ambiental e do fortalecimento de organizações produtivas de catadores em cooperativas e associações. “O que requer esforços de toda a sociedade”, concluiu Elizany.
47
ARTIGO – CARLOS SANTIAGO
Produção de motos no Polo Industrial de Manaus aumentou em 116,4%, em março Com informações da assessoria
M
ANAUS – Fabricantes de motocicletas em Manaus dobraram a produção em março, mas acumulam queda nos três primeiros meses do ano. Enquanto produziram 125.556 motos em março, aumento de 116,4% em relação a fevereiro (58.014 motocicletas), fabricaram 237.201 unidades de janeiro a março, volume 20,3% menor que no mesmo período de 2020 (297.599 unidades). Os dados são da Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo). O menor volume de produção nos meses de janeiro e fevereiro é atribuído ao agravamento da crise sanitária em Manaus. De acordo com o presidente da Abraciclo, Marcos Fermanian, a perspectiva é boa e a associação espera que, aos poucos, a relação entre oferta e demanda volte a ser equilibrada. “Depois de dois meses, as fábricas retomaram suas operações normalmente, seguindo os protocolos sanitários. Com isso, voltamos ao patamar de produção que deve se manter nos próximos meses e esperamos atender à demanda do mercado, reduzindo a fila de espera por motocicletas”, afirma. Dentro dessa expectativa, Fermanian destaca que a Abraciclo mantém sua previ-
50
www.revistacenarium.com.br
são de produzir 1,060 milhão de motocicletas em 2021, o que representa uma alta de 10,2% na comparação com as 961.986 fabricadas no ano passado.
VENDAS NO VAREJO Em março, foram licenciadas 62.262 motocicletas, alta de 8,5% na comparação com fevereiro, quando foram emplacadas 57.384 unidades. Em relação ao mesmo mês de 2020, que teve 75.372 unidades comercializadas, houve retração de 17,4%. “O varejo sofreu as consequências da suspensão temporária das operações de algumas fabricantes em janeiro e fevereiro. Além disso, diversas empresas associadas precisaram readequar seus turnos em função do toque de recolher do Estado do Amazonas devido à pandemia. A recuperação da produção alcançada em março deve refletir positivamente nos resultados de abril”, avalia Fermanian. Com 29.504 unidades e 47,4% de participação no mercado, a Street foi a categoria mais emplacada em março. Na sequência, vieram a Trail (12.273 unidades e 19,7% de participação) e a Motoneta (7.948 unidades e 12,8%). No primeiro trimestre, os emplacamentos totalizaram 205.444 unidades, volume 16,8% inferior às 246.848 motocicletas licenciadas no mesmo período do
A vida sem graça de um Homo sapiens
No trimestre, volume de produção de motocicletas foi 20,3% menor que no mesmo período de 2020
ano passado. As posições no ranking por categorias foram as mesmas apuradas no levantamento mensal: Street, em primeiro lugar, com 98.676 unidades e 48% de participação do mercado, seguida pela Trail (40.088 e 19,5% do mercado) e Motoneta (28.037 unidades e 13,6%). Com 23 dias úteis, a média diária de vendas em março foi de 2.707 motocicletas – é o pior resultado para o mês, desde 2003, que registrou 3.240 emplacamentos/dia. De acordo com levantamento da Abraciclo, na comparação com fevereiro, que teve 20 dias úteis, houve queda de 5,6% (2.869 motocicletas emplacadas/ dia). Em relação a março do ano passado, com 22 dias úteis, a queda foi de 21% (3.426 emplacamentos diários).
1,060 milhão A previsão da Abraciclo é de produzir 1,060 milhão de motocicletas em 2021.
10,2% A estimativa de produção de motocicletas representa uma alta de 10,2% na comparação com as 961.986 unidades fabricadas em 2020.
Crédito: Divulgação
Polo de Duas Rodas ganha fôlego
Crédito: Divulgação | Suframa
ECONOMIA & SOCIEDADE
Carlos Santiago*
A
quele membro da espécie Homo sapiens, já no final da vida, em confinamento em casa, imposição desta pandemia causada pelo novo coronavírus, lembrou-se das fases de sua vida e dos dilemas que enfrentou para alcançar setenta anos com boa vida financeira e do esforço para construir uma família que não parecia disposta a visitá-lo, depois da enfermidade, sem nunca ter feito uma reflexão sobre a nossa vida humana e modo de civilização que construímos. Quando criança, ele passou pelo medo de ficar distante dos pais, buscava a atenção total de alguém para colocar comida na boca; fazia parte de seu mundo os monstros sociais imaginários, como o bicho-papão e as bruxas malvadas, que ficam matutando na sua cabeça, além do medo do escuro e das sombras. Ele foi capaz ainda de acreditar até no voo de elefante e em Papai-Noel. Na adolescência, o medo do futuro, da rejeição e das cobranças da sociedade se intensificaram. O espírito de criança e de jovem estavam presentes no corpo e nas decisões. Contestou valores familiares, mas tinha medo da perda dos pais. Era uma fase de dúvidas e de busca de certezas. O Homo sapiens foi capaz de acreditar em Deus e no diabo. Amava muito e, também, sabia odiar, a rejeição foi difícil de aceitar.
Na vida adulta. A profissão promissora, a família perfeita, uma vida segura e de paixões eram meios para alcançar a felicidade, uma espécie de momento sublime da existência da nossa espécie. Época do medo da morte, do medo do fracasso e de acreditar e de negar os modelos políticos e econômicos num mundo insensato e cheio de horrores e de infelicidades. Todas as formas de crenças foram abraçadas como respostas aos dilemas da vida real. Na velhice, o Homo sapiens sente medo da solidão, do abandono e da falta de apoio da família e dos amigos. O além da vida terrena ganha novo significado. Deuses ganharam dimensões. A ideia de paraíso celestial ficou com espaço diário. Os músculos não respondem mais, a imunidade estava baixa e amar passou a ser somente uma empatia. Não espera nada da vida, gasta o dinheiro, quando tinha, para receber atenção. Agia pouco, pensava muito. Depois de uma “longa” passagem pela terra do Homo sapiens, em muitos momentos, a criança não saiu de suas atitudes e do pensar, nem a adolescência quando das incertezas, muito menos na fase adulta bajulador de fé e a busca de paixões, o Homo sapiens nunca teve totalmente numa única fase, porque elas estiveram sempre nos seus gestos e na alma.
Mas, ele nunca percebeu o planeta além dos seus próprios medos e interesses materiais e de alma. Nunca entendeu a importância dos mares, das florestas e de cada animal que existe nos ecossistemas. Jamais quis saber do universo que representa os outros seres vivos na terra. A vida dele era sempre um olhar para si mesmo e para a família. Ele morreu dias depois do agravamento da Covid-19 sem nunca perguntar a si mesmo aonde quer chegar o Homo sapiens na Terra? Qual o sentido em tudo que fazemos? Por que da destruição do planeta e de outras formas de vida? Homo sapiens é o grande problema do nosso planeta? Esse Ser somente entendeu o mundo a partir dos problemas e dos dilemas da própria espécie. Antes de morrer, enviou um recado ao seu filho, que tem o mesmo nome dele, pedindo a ele que seguisse o caminho do pai. O filho, até hoje, passa pelas fases de medos, de afirmações e de busca de bens materiais e momentos de felicidade. E assim a espécie Homo sapiens segue sem as preocupações sobre aonde quer chegar a civilização humana. (*) Carlos Santiago é sociólogo, analista político e advogado.
51
POLÍCIA & CRIMES AMBIENTAIS
REVISTA CENARIUM
Rio de Papel Após denúncias, MPF-AM retoma investigação contra Sovel por crime ambiental Alessandra Leite – Da Revista Cenarium
M
ANAUS – O Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM) pediu o desarquivamento do processo contra o Grupo Sovel da Amazônia, indústria de papel localizada na Colônia Antônio Aleixo, Zona Leste de Manaus, responsável pelo derramamento de resíduos tóxicos no Igarapé do Oscar, em uma ação que vem ocorrendo, ao menos, desde o ano de 2007. O pedido foi feito no dia 6 de abril, em manifestação à Justiça, após o recebimento de novas denúncias. Moradores do entorno da indústria ouvidos pela reportagem da REVISTA CENARIUM pediram para não serem identificados por temerem represália, mas afirmaram que há muito tempo os peixes se afastaram do local devido à poluição. Ainda assim, apesar dos riscos, muitos dos moradores insistem na pesca, por ser o único meio de sobrevivência. De acordo com o MPF-AM, a retomada da ação questiona providências sobre a execução das sentenças que condenam a empresa a recuperar o igarapé, que integra a microbacia hidrográfica do Lago do Aleixo e está localizado no perímetro tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões, ambos rios federais. Em 2020, um parecer técnico do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) informou que o lago era utilizado pelos moradores do entorno para consumo, após tratamento convencional. O local também servia de entretenimento com a prática de natação e mergulhos, além de gerar meio de subsis-
52
www.revistacenarium.com.br
Crédito: Ricardo Oliveira
R$ 330 mil
R$ 10 mil
O Ipaam expediu multas no valor total de R$ 330 mil para a Sovel, após denúncias e reportagem da REVISTA CENARIUM.
O MPF-AM está requerendo na Justiça o pagamento de indenização pelos danos causados pela poluição, no valor de R$ 10 mil.
Poluição de rios e igarapés Segundo o ambientalista Carlos Durigan, a poluição de rios e igarapés com resíduos de papel e papelão gera aumento de acidez nos ambientes aquáticos e redução dos níveis de oxigênio, o que afeta toda a fauna aquática, além de causar degradação e contaminação das águas por compostos químicos. “Isso causa problemas para toda a biodiversidade aquática e prejudica todas as pessoas que vão consumir essa água e que vivem ao longo desses rios e igarapés e, portanto, terão a saúde prejudicada, tanto pela ingestão da água quanto pela proximidade dessas áreas impactadas. Durante o período seco, esse material pode entrar na atmosfera e acabar sendo inalado”, explicou Durigan.
tência, a partir da irrigação de plantações e pesca, dentre outras atividades.
PROCESSO Há oito anos, o MPF-AM, por meio da 7ª Vara Federal do AM, processou a Sovel da Amazônia por “suposto despejo de material tóxico sem o tratamento adequado no igarapé”. Em outubro de 2019, na Ação Civil Pública (ACP), foi requerida, com urgência, a suspensão imediata do despejo de efluentes no lago do Oscar ou em qualquer outra área do lago do Aleixo, mesmo que esteja fora do perímetro tombado pelo Iphan. Com isso, a Justiça Federal julgou parcialmente os pedidos e condenou a empresa a executar um sistema de tratamento de efluentes eficiente, capaz de suportar a carga orgânica lançada pela empresa, especialmente no período da seca do rio/lago, além de recuperar a área poluída descrita pelo órgão. No documento, foi citado o Plano de Recuperação da Área Degradada (Prad), aprovado pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), que previa assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) celebrado entre as partes para executar medidas compensatórias aos danos ambientais. Por fim, o pagamento de indenização com valor mínimo de R$ 10 mil, passível de aumento.
REINCIDÊNCIA
Moradores do entorno do Igarapé do Oscar são obrigados a conviver com a poluição causada pela indústria de produção de papel
Em junho de 2007, o fotojornalista da REVISTA CENARIUM, Ricardo Oliveira, 53
POLÍCIA & CRIMES AMBIENTAIS
REVISTA CENARIUM
Crédito: Ricardo Oliveira
Durante o período “ seco, esse material pode entrar na atmosfera e acabar sendo inalado”
Crédito: Ricardo Oliveira
Carlos Durigan, ambientalista.
Ipaam ‘deu ok’, depois multou Imagem de ribeirinho dentro de uma canoa remando em meio à densa cobertura de papel foi registrada pelo fotojornalista Ricardo Oliveira, em 2007
já registrava os altos índices de poluição causada pelo acúmulo de despejos líquidos nas águas do local, como a celulose. A imagem mostra um ribeirinho dentro de uma canoa e que, a cada remada, revela a densa cobertura pelo papel triturado e eliminado na natureza pela empresa Sovel.
ATUALIZAÇÃO À época, a ação também requereu a aplicação de multa diária de R$ 5 mil para cada medida, em caso de descumprimento. De acordo com o MPF-AM, o processo transitou em julgado em janeiro de 2020, já que não houve recurso apresentado à Justiça por nenhuma das partes envolvidas, ou seja, os prazos para implementação das medidas determinadas passaram a contar a partir daquela data. No entanto, conforme informações da assessoria de comunicação do MPF-AM, após 54
www.revistacenarium.com.br
Ambientalista Carlos Durigan alerta que poluição de resíduos de papel afeta fauna aquática e prejudica a saúde de moradores da região
a Justiça Federal certificar que o processo transitou em julgado, caberia à Justiça remeter as ações ao Ministério Público, para que as providências fossem tomadas, fato que não ocorreu.
DESDOBRAMENTO No dia 10 de abril, o MPF-AM ingressou com uma ação de cumprimento de sentença contra a Sovel. O documento é assinado pelo procurador Igor da Silva Spindola. Na ação, o órgão requer a intimação da empresa para que, no prazo de 15 dias, comprove, documentalmente, a execução de sistema de tratamento de efluente eficiente, capaz de suportar a carga orgânica lançada pela empresa, principalmente no período da seca do lago. O MPF-AM também solicita que a indústria elabore e execute o “Plano de Recuperação da Área Degradada (Prad)”
que deverá ser aprovado pelo Ipaam, apresentando o cronograma de providências destinadas à elaboração e implementação do projeto. Além disso, a procuradoria quer que a Sovel realize o pagamento de indenização pelo dano interino ou intermediário, assim como pelo dano residual, no valor de R$ 10 mil e, ainda, a incidência da empresa nas penas de “litigância de má-fé”, em caso de descumprimento injustificado da ordem judicial, sem prejuízo de sua responsabilização por crime de desobediência, segundo o artigo 536, parágrafo 3°, do Código de Processo Civil. O conceito de “litigância de má-fé”, no Direito Processual, diz respeito a tudo aquilo que se faz de forma intencional, com maldade. As condenações para a ocasião são multas e pagamento de indenizações, por exemplo.
‘Tudo regularizado’, diz empresa Procurada pela reportagem da REVISTA CENARIUM, no dia 7 de abril, a Sovel da Amazônia se limitou a informar que o “Ipaam já verificou a situação e que tudo está regularizado”. Naquele dia, a equipe de jornalismo foi ao local e presenciou a inveracidade da resposta da empresa. Em seu site, a Sovel afirma ter um sistema de gestão certificado pelo Forest Stewardship Council ® , “que garante respeito e benefício atingindo todos os níveis da cadeia produtiva, florestas e materiais a serem recuperados, até os trabalhadores e comunidades de produtores até os consumidores”, além de exibir o selo do manejo florestal sustentável. O Forest Stewardship Council – em tradução literal do inglês Conselho de Manejo Florestal – é uma Organização Não Governamental (ONG) internacional, que promove o manejo florestal ambientalmente apropriado, socialmente benéfico e economicamente viável das florestas do mundo.
Por meio do Instagram, o Ipaam publicou, no dia 31 de março, uma nota sobre recorrentes denúncias que vem recebendo nos últimos dias, por meio das redes sociais, sobre um “suposto derramamento de efluentes industriais de processo produtivo da fábrica localizada nas adjacências do Lago da Colônia, no bairro Colônia Antônio Aleixo. De acordo com a publicação do órgão de fiscalização, foram encaminhados técnicos ambientais até o local para apurar a denúncia e, posteriormente, tomar as providências cabíveis. Ainda segundo a nota, não foi constatada qualquer alteração na localidade. “O Ipaam busca atender todas as denúncias, e, para que nossos técnicos ambientais identifiquem com mais agilidade os ilícitos ambientais é de extrema importância que as denúncias contenham detalhes minuciosos”, diz um trecho da postagem. O órgão incluiu o e-mail e o número de telefone (92) 2123-6729, meios pelos quais qualquer cidadão pode fazer as denúncias sob a proteção do anonimato. No dia seguinte à publicação da reportagem da REVISTA CENARIUM, a Gerência de Fiscalização Ambiental (Gefa) do Ipaam expediu multas no
valor total de R$ 330 mil e embargou a atividade de reciclagem de papel e papelão da Sovel da Amazônia Ltda. O embargo durou pouco e, no dia 9 de abril, a juíza plantonista do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) Kathleen dos Santos Gomes suspendeu, em caráter liminar, a interdição das atividades. Com a decisão, a empresa foi liberada para manter suas atividades enquanto prepara defesa, em um prazo de 20 dias. Conforme a decisão da juíza plantonista, a empresa alegou ter sofrido três autos de infração no último dia 8 de abril, data em que obteve o prazo de 20 dias para apresentação da defesa, contudo, teve suas atividades de reciclagem de papel/papelão suspensas, bem como o funcionamento da caldeira utilizada no processo produtivo de reciclagem. Em um trecho do documento, a medida de segurança requerida pela empresa Sovel justifica que “a paralisação de suas atividades causará impactos socioeconômicos em plena pandemia, quando emprega diretamente, aproximadamente, 300 colaboradores”. Com a liminar, a empresa passou a ter o direito de funcionar, enquanto o prazo para interposição de recurso administrativo esteja em andamento. 55
POLÍCIA & CRIMES AMBIENTAIS
REVISTA CENARIUM
‘Arma’ do agronegócio
34 ANOS DE DESMATAMENTO Fonte: Projeto MAPBIOMAS
Fogo usado no desmatamento é prática apoiada pelo governo federal, indica dossiê Marcela Leiros – Da Revista Cenarium
Além desses pontos, o documento divulgado em 14 de abril mostra como fundos de pensão internacionais, como o Teachers Insurance and Annuity Association of América – traduzido do inglês, Associação de Seguro e Renda para Professores da America – College Retirement Equities Fund (TIAA-CREF) e o fundo de investimentos da Universidade de Harvard (Havard Management Co.), adquirem ilegalmente centenas de milhares de hectares de terras agrícolas no País, ocasionando a expulsão violenta de comunidades tradicionais, o desmatamento, incêndios e outros danos sociais e ambientais. Outros pontos detalhados no dossiê são a violação de direitos humanos na exploração do trabalho escravo – relacionada à grilagem, desmatamento e saqueio de madeira -, e como as comunidades tradicionais da Amazônia e Cerrado utilizam o fogo em complexos sistemas de produção de roças, criação animal e 56
www.revistacenarium.com.br
extrativismo, contradizendo acusações de que povos indígenas e comunidades tradicionais fazem uso do fogo de forma indiscriminada.
ARCO DO DESMATAMENTO De acordo com o Dossiê “Agro é Fogo”, a grilagem de terras consiste em duas fases interligadas: a apropriação da terra “no chão” (invasão e controle ilegais de terras públicas) e a atribuição de aparência de legalidade “no papel” (parte mais burocrática). Entre 1985 e 2019, 90% do desmatamento no Brasil ocorreu para a abertura de áreas de pastagens e monocultivos e 10% para outros usos, segundo o Dossiê. De 2000 a 2014, mais de 80% da expansão da soja no Cerrado do Centro-Oeste foi sobre áreas de pastagem e outras culturas, impulsionando o avanço de áreas de pastagens sobre a floresta amazônica, em especial no norte do Mato Grosso e sul do Pará. As rodovias que conectam o Brasil Central à Amazônia acabam sendo eixos desse movimento. A partir da década de 1960, a Belém-Brasília (BR-153) e a Cuiabá-Porto Velho (BR-364) são consideradas marcos do chamado “arco do desmatamento”, região composta por 256 municípios nos quais a destruição da floresta historicamente se concentra e onde se costumavam focar as políticas públicas de combate ao desmatamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
A região vai do oeste do Maranhão, sul e sudoeste do Pará, passando pelo norte do Mato Grosso, Rondônia até o Acre, uma faixa localizada ao longo da área de transição Cerrado-Amazônia. E como desmatamento e grilagem caminham juntos, a transição Cerrado-Amazônia é também a região de maior intensidade de conflitos no campo no País. Além desse arco de desmatamento, a expansão da fronteira agrícola sobre a Amazônia tem se aproveitado da mesma BR-364 e de rodovias abertas durante o Regime Militar que avançam sobre a floresta, como a BR-319 (Manaus-Porto Velho) – com projeto de repavimentação no atual programa público de infraestrutura – e a BR-163 (Cuiabá-Santarém) – que foi o palco principal do “Dia do Fogo”, em 2019, quando produtores rurais atearam fogo na Amazônia.
DINÂMICA DA DESTRUIÇÃO No mesmo período, a dinâmica de expansão da fronteira agrícola no Cerrado dentro do Matopiba – região formada por áreas majoritariamente de Cerrado nos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – foi distinta. Ali, nos chapadões que cobrem o Oeste da Bahia, Sul do Piauí e do Maranhão, na divisa com o Nordeste do Tocantins, o Cerrado é devastado para dar lugar a campos de soja: mais de 60% da ampliação da área de soja na região, entre 2000 e 2014, ocorreu por meio do desmatamento de vegetação nativa.
AGRICULTURA PASTAGEM Crédito: Guilherme Reis
M
ANAUS – O fogo é utilizado para encobrir a invasão de terras públicas, crimes ambientais e ainda finalizar o processo de desmatamento em territórios que servem para pastagens ou monocultura. Essa é a conclusão do “Dossiê Agro é Fogo: grilagens, desmatamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal”, lançado pela Articulação Agro é Fogo, que indicou ainda como a presidência do País e o parlamento têm legislado em favor do agronegócio.
1985 90% Entre 1985 e 2019, 90% do desmatamento no Brasil ocorreu para a abertura de áreas de pastagens e monocultivos.
10% De acordo com o “Dossiê Agro é Fogo”, 10% do desmatamento ocorreu para outros usos.
80% De 2000 a 2014, mais de 80% da expansão da soja no Cerrado do Centro-Oeste foi sobre áreas de pastagem e outras culturas.
2019 Articulação ‘Agro é Fogo’ A Articulação “Agro é Fogo” reúne cerca de 30 movimentos, organizações e pastorais sociais que atuam há décadas na defesa da Amazônia, Cerrado e Pantanal e seus povos e comunidades, e surgiu como reação aos incêndios florestais que assolaram o Brasil nos últimos dois anos, como o “Dia do Fogo”, em 2019, e os incêndios que devastaram o Pantanal, em 2020. Segundo o Greenpeace – Organização Não Governamental ambiental –, durante os dias 10 e 11 de agosto de 2019, aconteceu no Pará o “Dia do Fogo”, quando produtores rurais da região se mobilizaram para atear fogo na Amazônia. Em 2020, o Pantanal nos Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul sofreu a maior devastação da história do bioma. O governo matogrossense afirmou que perícias realizadas na região dos incêndios constataram que foram provocados por ação humana, assim como no Mato Grosso do Sul, onde a Polícia Federal (PF) constatou que os incêndios começaram em quatro fazendas de grande porte em Corumbá, no interior do Estado. Edição: Carolina Givoni 57
MUNDO E CONFLITOS INTERNACIONAIS
REVISTA CENARIUM
Defesa indígena Marcela Leiros – Da Revista Cenarium
M
ANAUS – O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não foi o único brasileiro a participar da Cúpula de Líderes sobre o Clima, realizada nos dias 22 e 23 de abril. A indígena Sinéia do Vale, da etnia Wapichana, também participou do evento e destacou a necessidade de respeitar direitos e territórios dos povos indígenas para garantir o desenvolvimento de técnicas que contribuam para o combate às mudanças climáticas. Líder do Conselho Indígena de Roraima (CIR),
ras de conservação contra o desmatamento e a degradação. Os indígenas têm que ter os direitos assegurados por leis”, destacou Sinéia Wapichana, ao participar da reunião. O debate ocorreu em um painel moderado pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos e focado na ação da sociedade civil e de governos locais no combate a mudanças climáticas. Contou apenas com a presença de representantes femininas, como a prefeita de Paris, na França, Anny Hidalgo, a governadora do
Os indígenas têm sido barreiras de conservação “ contra o desmatamento e a degradação. Os indígenas têm que ter os direitos assegurados por leis” Sinéia Wapichana, líder do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Sinéia lembrou ainda que “a mudança climática não é algo que vai acontecer, é algo que está acontecendo”. “Políticas públicas para assuntos climáticos são importantes. Isso significa que os povos indígenas, não só no Brasil, mas no mundo, podem ter seus direitos assegurados, porque quando falamos de conservação florestal, principalmente na Amazônia, nós estamos falando sobre áreas de conservação florestal e terras indígenas. Os indígenas têm sido barrei58
www.revistacenarium.com.br
Novo México, Michelle Lujan Grisham, a prefeita de Novo México, no México, Claudia Sheinbaum, e a presidente do Congresso Nacional de Indígenas Americanos, Fawn Sharp, entre outras. Sinéia Wapichana também lembrou da importância de chamar a atenção do Brasil e do mundo para a reponsabilidade de que todos os recursos financeiros e fundos sejam efetivos e ajudem realmente as pessoas. “Nós temos que ser vigilantes para que todas as leis no Brasil sejam imple-
Jair Bolsonaro, presidente do Brasil. Em seu discurso no encontro mundial, Sinéia Wapichana alertou para a relação entre a proteção dos povos indígenas e as mudanças climáticas Crédito: Reprodução Youtube
Brasil tem metas a cumprir Também no dia 22, Bolsonaro afirmou que vai duplicar os investimentos em órgãos de fiscalização e combate a crimes ambientais no Brasil. Bolsonaro ainda disse, em seu discurso por meio de videoconferência no encontro mundial, que o País reduzirá em 43% as emissões de gás carbônico até 2030 e terá neutralidade climática até 2050. A preservação da Amazônia também teve destaque especial no discurso. O presidente não anunciou nenhuma meta a curto prazo para a redução do desmatamento em 2021, conforme estava programado inicialmente. “Apesar das limitações orçamentárias do governo, determinamos o fortalecimento dos órgãos ambientais duplicando os recursos destinados às ações de fiscalização, mas é preciso melhorar a vida dos mais de 23 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia, a região mais rica do País em recursos naturais, mas que apresenta os piores índices de desenvolvimento humano. A solução desse paradoxo amazônico é condição essencial para o desenvolvimento sustentável da região. Devemos aprimorar a governança da terra e tem como isso se tornar realidade, abrindo a economia e valorizando efetivamente a floresta e a biodiversidade”, afirmou o presidente. Ao fazer balanço da Cúpula do Clima, Biden disse que os anúncios feitos por Bolsonaro durante seu discurso no evento foram “notícias encorajadoras”. “Ouvimos notícias encorajadoras nos anúncios de Argentina, Brasil, África do Sul e Coreia do Sul”, disse o líder norte-americano.
mentadas e cuidadas, porque quando falamos de clima não podemos esquecer de direitos territoriais. Então, mudanças climáticas, como o Acordo de Paris chama esse tópico, nós chamamos de ‘transformação do tempo’ que já começou a ter impacto na vida social e cultural dos povos indígenas”, lembrou a líder indígena.
seus principais objetivos estimular países a aumentar a ambição nacional climática em várias frentes e recolocar os EUA na liderança climática global, depois dos retrocessos do governo de Donald Trump. A cúpula, realizada de forma virtual, reuniu 40 líderes mundiais.
O discurso de Sinéia Wapichana, diferente do que era esperado, não teve críticas ao governo federal ou ao presidente Jair Bolsonaro, que discursou no evento pela parte da manhã. No entanto, ela não deixou de acentuar o fato de que “as políticas públicas no Brasil não são efetivas”, referindo-se à necessidade de que direitos, terras e fronteiras indígenas sejam respeitadas e asseguradas.
Biden pediu aos países que trabalhem juntos em uma transição para a energia limpa. “Nações que trabalham juntas para investir em uma economia mais limpa colherão as recompensas para seus cidadãos”, disse o presidente democrata.
Em seu discurso, Sinéia ressaltou que falar sobre adaptação às mudanças climáticas pode dar a entender que se trata de adaptar-se a algo que não queremos, mas, nesse caso, seria lutar contra mudanças que não queremos ver. Ela destacou ainda que associações como o CIR têm planos para lutar contra as mudanças climáticas na perspectiva dos indígenas.
LIDERANÇA DE BIDEN A Cúpula de Líderes Climáticos convocada pelo presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, teve entre
Crédito: Marcos Corrêa Pr | Fotos Públicas
‘Quando falamos de clima, não podemos esquecer de direitos territoriais’, afirma indígena brasileira na Cúpula do Clima
“
Devemos aprimorar a governança da terra e tem como tornar realidade, abrindo a economia e valorizando efetivamente a floresta e a biodiversidade”
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, se comprometeu a reforçar o orçamento de órgãos ambientais e reduzir a emissão de gases
Expectativa x realidade Um dia depois de prometer mais verba para fiscalização ambiental, Bolsonaro cortou recursos para a área relacionada a mudanças do clima, que perdeu R$ 5,2 milhões, e para controle de incêndios florestais, que ficou com menos R$ 6 milhões, além de aprovar cortes para outras áreas. O presidente sancionou, no dia 23 de abril, o Orçamento de 2021 com alguns vetos. O incremento prometido por ele no encontro internacional não está na programação para o ano e, no ato de sanção, o presidente cortou quase R$ 240 milhões da pasta do Meio Ambiente. O apoio a Unidades de Conservação federais teve uma redução de R$ 1 milhão na verba para o ano. A área de fomento a projetos de desenvolvimento sustentável e conservação do meio ambiente perdeu R$ 3 milhões. O maior corte - mais de R$ 200 milhões - foi para planejamento e ações para melhoria da qualidade ambiental urbana. Além de não aparecer no Orçamento, a promessa de duplicar recursos para a fiscalização ambiental dependerá de corte em outras áreas para encaixar os recursos extras, já que a previsão orçamentária está no limite do teto de gastos – norma que impede o crescimento de despesas acima da inflação. Os vetos e o bloqueio no orçamento do Ministério do Meio Ambiente indicam, portanto, um cenário de aperto nos gastos federais em 2021.
59
Crédito: Jorge Araújo | Fotos Públicas
MUNDO E CONFLITOS INTERNACIONAIS
Comida jogada fora Um total de 931 milhões de toneladas de alimentos foram para o lixo em 2019, diz ONU Com informações da Agência Brasil
REVISTA CENARIUM
R
IO DE JANEIRO – Cerca de 931 milhões de toneladas de alimentos – 17% do total disponível aos consumidores em 2019 – foram para o lixo de residências, do comércio varejista, de restaurantes e de outros serviços alimentares, segundo pesquisa da Organização das Nações Unidas (ONU). O montante equivale a 23 milhões de caminhões de 40 toneladas carregados, o que, segundo a entidade, seria suficiente para circundar a Terra sete vezes. O Índice de Desperdício de Alimentos 2021, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e da organização parceira WRAP, do Reino Unido, analisa sobras alimentares em pontos de venda, restaurantes e residências – considerando partes comestíveis e não comestíveis, como ossos e conchas. Foram observadas, ao todo, 152 unidades em 54 países. De acordo com o documento, o desperdício de alimentos é um problema global e não apenas de países desenvolvidos. As perdas de alimentos foram substanciais em quase todas as nações onde o desperdício foi medido, independentemente do nível de renda. A maior parte desse desperdício, segundo o relatório, tem origem em residências – 11% do total de alimentos
disponíveis para consumo são descartados nos lares. Já os serviços alimentares e os estabelecimentos de varejo desperdiçam 5% e 2%, respectivamente.
a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU deste ano será uma oportunidade de lançar “novas e ousadas” ações para enfrentar o desperdício alimentar.
Em termos globais per capita, 121 quilos de alimentos são desperdiçados por consumidor a cada ano. Desse total, 74 quilos são descartados no ambiente doméstico. O desperdício tem impactos ambientais, sociais e econômicos significativos, assinala o relatório. Entre 8% e 10% das emissões globais de gases de efeito estufa, por exemplo, estão associadas a alimentos não consumidos, considerando as perdas em toda a cadeia alimentar.
Segundo a ONU, o total de 690 milhões de pessoas afetadas pela fome ao longo de 2019 deverá crescer de maneira acentuada por conta da pandemia de Covid-19. Além dessa parcela da população global, existem também, de acordo com a entidade, 3 bilhões de pessoas incapazes de custear uma dieta saudável.
MUDANÇA CLIMÁTICA A diretora-executiva do Pnuma, Inger Andersen, avalia que a redução do desperdício de alimentos ajudaria a reduzir as emissões de gases de efeito estufa, retardaria a destruição da natureza, aumentaria a disponibilidade de comida e, assim, reduziria a fome, além de contribuir para economizar dinheiro em um momento de recessão global. “Se quisermos levar a sério o combate à mudança climática, à perda da natureza e da biodiversidade, à poluição e ao desperdício, empresas, governos e cidadãos de todo o mundo devem fazer a sua parte para reduzir o desperdício de alimentos”, disse, ao destacar que
Uma das sugestões apontadas no relatório é que os países incluam o desperdício de alimentos nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês) no âmbito do Acordo de Paris, enquanto fortalecem a segurança alimentar e reduzem os custos para as famílias. O documento também defende a prevenção do desperdício de alimentos como uma área primária a ser incluída nas estratégias de recuperação da Covid-19. Cerca de 14 países já possuem dados sobre o desperdício doméstico de alimentos coletados de forma compatível com o índice do Pnuma. Outros 38 países têm dados sobre o desperdício doméstico que, com pequenas mudanças na metodologia, cobertura geográfica ou tamanho da amostra, permitiriam a criação de uma estimativa compatível.
17% As 931 milhões de toneladas de alimentos que foram para o lixo equivalem a 17% do total disponível aos consumidores em 2019.
23 milhões O montante de alimentos jogados fora equivale a 23 milhões de caminhões de 40 toneladas carregados, o suficiente para circundar a Terra sete vezes.
60
www.revistacenarium.com.br
61
ENTRETENIMENTO & CULTURA
REVISTA CENARIUM
Não são apenas “ bonecas de pano. Elas
As bonecas de We’e’ena são comercializadas pela internet, via redes sociais da artista, que levam seu nome. A primeira leva da produção, em dezembro de 2020, fez tanto sucesso que esgotou. Em abril, em comemoração ao mês indígena, quando se celebra no dia 19 o Dia do Índio, a artista lançou uma nova coleção, com modelos diferentes, sendo sete femininos e três masculinos, que também esgotaram.
carregam uma história de resistência” We’e’ena Tikuna, artista plástica e nutricionista. We’e’na Tikuna e suas bonecas levam para o mundo a cultura do povo Tikuna do Amazonas
Muito mais que um brinquedo Crédito: Divulgação Acervo Pessoal
We’e’ena Tikuna e Luakam Anambé transformam histórias de resistência e ancestralidade da Amazônia em bonecas indígenas vendidas pela internet Alessandra Leite - Da Revista Cenarium
M
ANAUS – Bonecas de pano que carregam consigo a história de resistência dos povos indígenas, a ancestralidade e a espiritualidade. É o que costuram a artista plástica e nutricionista We’e’ena Tikuna, 33 anos, com as miniWe’e’ena Tikuna, e a artista Luakam Anambé, de 52 anos, com as bonecas Anaty. Duas mulheres indígenas da Amazônia, que encontraram na beleza do brinquedo uma forma de traduzir culturas milenares, ao mesmo tempo em que geram renda e dão visibilidade aos povos a que pertencem. Nascida no Amazonas, We’e’ena criou as miniWe’e’ena Tikuna em dezembro
62
www.revistacenarium.com.br
de 2020. Com origem no Pará, a artista Luakam Anambé, de 52 anos, deu forma às bonecas Anaty em 2013, inspirada na neta, que tem o mesmo nome, e a partir de um brinquedo negado na infância. As duas histórias têm muito em comum e a cada peça produzida, concretizam-se sonhos considerados impossíveis para muitas meninas de origem indígena. We’e’ena, que além de artista plástica e nutricionista é também cantora, palestrante, designer de moda, ativista dos direitos indígenas e YouTuber, explica que cada peça produzida por ela retrata a expressão do divino manifestada nos grafismos, que são considerados códigos
de comunicação não só entre os Tikuna, mas em todas as etnias. Com o conceito de educar as crianças acerca das outras culturas, as miniWe’e’ena Tikuna têm o intuito de fortalecer a causa indígena como uma forma de representar a “verdadeira história” desses povos, diz a artista. “Uma fã me sugeriu produzir as bonecas indígenas e eu acolhi a ideia. Pensei que todos gostavam das minhas outras peças, mas elas eram de exclusividade dos adultos. Abracei a ideia como uma forma de representar a nossa verdadeira história. Como um instrumento de fortalecimento
Com peças voltadas para o mundo da moda, We’e’ena conta que as bonecas nasceram das criações de seu primeiro desfile, no ano de 2019. As miniWe’e’ena foram vestidas com miniaturas das roupas exibidas na coleção de looks da We’e’ena Tikuna Arte Indígena lançadas no Brasil Eco Fashion Week. As bonecas também trazem as pinturas e grafismos tikuna.
LUAKAM E ANATY As bonecas hoje costuradas por Luakam Anambé estiveram nos sonhos da artista desde os seus oito anos de idade, quando a dona da casa onde trabalhava como empregada doméstica negou a ela o brinquedo. Mas o desejo só tomou forma em 2013, quando nasceu a neta dela, Anaty, que significa “menina” em tupi-guarani. Inspirada na menina e para curar o trauma de infância, Luakam criou a sua marca com o nome da neta e vestiu as bonecas com roupas e pinturas em alusão ao povo Anambé. Do brinquedo negado até os dias atuais, mais de 40 anos de superação se passaram na vida de Luakam e hoje a artista não só tem a sua própria marca de bonecas, como investe a renda da venda dos brinquedos em projetos que pretendem levar a possibilidade de sonhos realizados às meninas de sua aldeia natal, na comunidade de Piquiateua, no interior de Viseu, no Pará. Em abril de 2020, a artista tinha a intenção de vender cem bonecas em uma feira temática no Rio de Janeiro, onde vive atualmente, quando foi surpreendida pelo
Teve dia que eu, minha filha e minha neta fomos “ dormir sem ter o que comer. Mas um dia minha neta fez um vídeo das bonecas e postou nas redes sociais, quando o inesperado aconteceu” Luakam Anambé, artista indígena. cancelamento do evento devido à pandemia de Covid-19 que acabara de chegar ao Brasil. Luakam conta que havia investido toda a sua pouca economia na confecção das cem bonecas, ficando sem dinheiro até para comprar comida. “Teve dia que eu, minha filha e minha neta fomos dormir sem ter o que comer. Foi desesperador. Mas, um dia, minha neta fez um vídeo da produção das bonecas e postou nas redes sociais, quando o inesperado aconteceu: uma organização em Brasília comprou 200 bonecas de uma só vez. O dobro do que pensávamos vender na feira”, relembra a artista. Hoje, as bonecas Anaty são vendidas pela internet, no site da marca - www.bonecasindigenasanaty.com.br. Com o recurso da venda das bonecas durante toda a pandemia, quando ela e a filha aprenderam a conduzir os negócios via internet, Luakam conseguiu comprar um terreno em Viseu, local onde a obra da sede da marca será iniciada no próximo mês de julho. “Dia 11 de maio agora estou saindo do Rio de Janeiro e vou passar
Crédito: Divulgação Acervo Pessoal
da causa indígena, para que os pais tenham a oportunidade de educar seus filhos ensinando mais sobre a nossa cultura, de que não existem apenas bonecas brancas e magras. Não são apenas bonecas de pano. Elas carregam uma história de resistência”, salienta We’e’ena.
duas semanas entre Belém e minha aldeia Anambé, nas margens do Moju. Por meio da associação de lá, nós vamos criar um projeto para a aldeia. Hoje, 5% da renda de cada boneca vendida a gente deposita em uma conta separada para a construção da nossa sede”, contou a indígena, no final de abril. De acordo com Luakam, enquanto a sede do projeto não fica pronta, uma sala foi cedida para que as meninas da comunidade sejam recebidas. “Temos distribuição de cestas básicas desde o ano passado. Fazemos pequenas ajudas com remédios e exames, quando as pessoas da nossa comunidade precisam com urgência e não conseguem no sistema de saúde”, relata. Com previsão de ser inaugurada em dezembro de 2021, a sede da marca da artista indígena já conta com parceiros tanto na iniciativa privada quanto no poder público. “Nesta viagem agora estou levando o projeto para dar entrada na prefeitura de Viseu. Estamos em um momento de buscar parcerias”, disse. Edição: Márcia Guimarães
Bonecas Anaty dão visibilidade ao povo Anambé do Pará
63
ENTRETENIMENTO & CULTURA
REVISTA CENARIUM
Quarta filha de Nutchametü rü Metchitücü, We’e’ena, cujo nome quer dizer “Onça que atravessa para o outro lado do rio”, foi morar na comunidade indígena criada por seus pais na capital do Amazonas, para que os filhos não perdessem os costumes e a tradição de povo originário. Alvo de muitos preconceitos e sofrendo com um “choque cultural muito grande”,
pintura corporal. É a expressão artística mais intensa das nossas pinturas”, explica. Aos 19 anos, mudou-se para São Paulo, onde graduou-se em Nutrição, mais uma de várias paixões. Motivada pela morte de uma senhora na comunidade, vítima de diabetes – doença, até então, desconhecida por eles – We’e’ena quis estudar de que forma os alimentos podiam deixar as
“
O seu sangue grita, mesmo que você não queira assumir a sua identidade, o sangue grita”.
Cresci assim, no entreviver de duas culturas, “ das tradições da aldeia aos costumes da cidade”
Luakam Anambé, artista indígena.
We’e’na Tikuna, artista plástica e nutricionista. ela diz que decidiu enfrentar os desafios e não se curvar. Repetiu de ano várias vezes, por não saber falar nada de português na época. Até os 12 anos teve apenas contato com a língua Tikuna.
Da aldeia às passarelas de São Paulo
W
e’e’na Tikuna morou na aldeia onde nasceu, na Terra Indígena Tikuna Umariaçu, região do Alto Rio Solimões, no Amazonas, até os 12 anos de idade, quando o pai – após um massacre em que mais de 20 indígenas morreram em uma disputa com garimpeiros e madeireiros – resolveu mudar-se com a família para Manaus, para que todos pudessem aprender a língua portuguesa, ter uma profissão e defender a própria cultura no futuro.
64
www.revistacenarium.com.br
“Cresci assim, no entreviver de duas culturas, das tradições da aldeia aos costumes da cidade. Meu pai foi trabalhar como vigilante para nos manter. Mas, na nossa comunidade, há uma tradição de artista, o povo Tikuna é de artistas. Na comunidade, aprendemos várias atividades como artesanato, música, fazíamos reuniões para estudar nossa cultura. Assim, eu comecei a me impor, travar minha história de resistência junto aos meus pais e parentes”, relata. “A arte me dá felicidade, me dá condições. As pessoas da capital de pedra passaram a respeitar a minha cultura”. Aos 16 anos, We’e’ena ganhou uma bolsa de estudos pelo Instituto Dirson Costa de Arte e Cultura da Amazônia, onde formou-se em Artes Plásticas e, de lá, não parou mais. “Passei a fazer várias exposições em Manaus. Minhas obras foram selecionadas. A arte foi me colocando naquele lugar, pois todo indígena é, em essência, um artista. O nosso grafismo, a nossa pintura corporal, estudei para aprimorar a técnica. Nós, os povos indígenas, utilizamos a pintura corporal como meio de expressão ligado às diversas manifestações culturais. Para cada festa, há uma pintura específica: luta, caça, casamento, morte. Todo ritual é retratado na
pessoas doentes. “Vim de uma tradição de pajés. Meu avô era curandeiro. Então, escolhi uma forma de ajudar os meus parentes a se alimentarem melhor na cidade. Na aldeia, tudo era orgânico, comíamos os alimentos dentro do tempo de maturação. Hoje, estou clinicando virtualmente devido à pandemia”, comenta.
PASSARELAS We’e’ena também tem obtido êxito nas passarelas. “Lancei, em 2019, a minha grife de roupas no Brasil Eco Fashion Week e, em 2020, fui convidada pela produção para fazer uma nova coleção. Mas, nem todas as pessoas podem ter a minha coleção de roupa, pois as peças são autênticas do meu povo e feitas para pessoas que verdadeiramente se identificam com a nossa causa. Por causa desse desconhecimento da nossa verdadeira história, nasceram as bonecas miniWe’e’ena Tikuna, que vieram para ajudar a fortalecer a nossa luta indígena”, ressalta. Muito ativa na internet, em suas redes sociais, We’e’ena segue em busca do sonho de contar a história do seu povo para a sociedade dos brancos e ser respeitada mundo afora. “Quando a gente conhece a nossa história, a gente aprende a defendê-la. Foi assim que começou minha conexão com a moda, de trazer isso para o mundo do branco. Minha moda nasce do não conhecimento da verdadeira história dos povos indígenas”.
de brincar, hoje tem a chance, criada por ela própria, de mudar a vida de tantas outras meninas. “Eu nunca parei de pensar naquela boneca. Pensei que o nosso limite seria o céu e ainda penso assim até hoje. Sabia que um dia cresceria e teria condições de fazer a minha própria boneca”, relata.
História de superação
A
os oito anos de idade, Luakam, cujo nome de batismo é Maria do Socorro Borges, viu uma boneca, pela primeira vez na vida, enquanto acompanhava a “patroa”, em uma feira. Inocente, perguntou à mulher para quem trabalhava na casa, se ela poderia comprar a boneca para ela brincar. Recebeu um não como resposta. Ela precisava limpar a casa e cuidar de um bebê de quatro meses. Foi trabalhar na casa daqueles fazendeiros porque a mãe não tinha condições de criar 11 filhos.
sustentar os filhos. Separou-se aos 19 anos, de um casamento que foi obrigada a aceitar aos 14, e decidiu que precisava fazer algo para mudar o seu destino. Um dia, voltando do trabalho, parou em frente a um ateliê e ficou olhando para dentro, curiosa por saber como aquelas mulheres trabalhavam. Pediu para fazer um teste e ouviu da dona o questionamento “se índio sabia costurar”.
“Os anos se passaram e eu nunca esqueci aquela boneca. Minha vontade gritava dentro do peito, porque eu queria decolar, mas em Viseu eu sabia que não iria conseguir. Pensava que precisava ir para o Rio de Janeiro ou São Paulo”, conta a artista e hoje empreendedora, Luakam Anambé. O sonho ficou guardado no coração, com a certeza, segundo Luakam, de que “a hora iria chegar”.
Luakam, que havia aprendido a costurar sozinha na máquina emprestada de uma amiga, surpreendeu a proprietária do estabelecimento e começou a trabalhar no dia seguinte. Fez biquínis, vestidos e todo tipo de roupa, mas ainda faltava algo: a boneca. “Eu escutava essa voz dentro de mim, para eu não desistir, porque a hora ia chegar. Chegaria um tempo em que meu carro-chefe seria a boneca e eu iria sobreviver e manter a minha família dessa forma”, relembra.
Durante muitos anos, Luakam trabalhou como empregada doméstica para
A criança indígena que teve a infância roubada pelo trabalho e fora proibida
LIVRO INFANTOJUVENIL A história de Luakam e da boneca Anaty foi transformada em um livro voltado para crianças, pelas mãos da escritora mineira Nádia Afonso. Lançado no dia 10 de maio, a obra infantojuvenil terá 5% do valor da venda de cada livro revertidos para a construção da sede da marca no interior do Pará. “O livro Luakam e a boneca Anaty conta a história da minha vida, desde que vi uma boneca pela primeira vez e não pude comprar, o percurso que fiz do Pará até o Rio de Janeiro, as dificuldades e todo esse processo de superação”, diz a artista. O livro pode ser adquirido tanto no site da Editora Cria quanto na página da boneca Anaty - www.bonecasindigenasanaty.com.br. Segundo Luakam, a obra irá, em breve, ser comercializada na Itália, por meio de uma parceria com uma editora. “Acredito que vamos, com muita luta, chegar além do que imaginamos. Algumas situações não podem esperar e nós estamos fazendo tudo para arrecadar o valor necessário para amparar nossa comunidade”, afirma a artista, que deverá ter outras obras inspiradas em sua história em breve, desta vez para o público adulto. 65
ENTRETENIMENTO & CULTURA
REVISTA CENARIUM
“
Ancião realiza cerimônia em respeito aos mortos enterrados sob a Praça Dom Pedro II
Esse memorial é muito importante para nossa gente e vai servir, não só para nós, mas para as novas gerações, que vão ter o respeito de toda a gente” Carmelindo Moraes, o “Mindu”, 82 anos, indígena Kokama.
Crédito: Ruan Souza | Semcom
e sagrado, porque lá estão enterrados os antepassados de Manaus e grande parte da população não sabe que ali é um cemitério indígena, com uma profunda relação com a ancestralidade.
Memorial resgata presença dos povos indígenas no nascimento da cidade de Manaus
Lugar Sagrado Crédito: Ricardo Oliveira
Aldeia da Memória Indígena resgata sacralidade da Praça Dom Pedro II, no Centro de Manaus Alessandra Leite – Da Revista Cenarium
“
É um reconhecimento muito importante para nós que, de certo modo, sempre vivemos na invisibilidade. Aqui descansam os nossos ancestrais que vivem e habitam em nós” Marcivania Saterê-Maué, dirigente da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime). 66
www.revistacenarium.com.br
M
ANAUS – Após 350 anos de silêncio, invisibilidade e profanação de um solo sagrado, a inauguração da Aldeia da Memória Indígena de Manaus, na noite do dia 19 de abril, deu início a um tempo de resgate e respeito à memória dos indígenas que pereceram e estão enterrados no local, que hoje dá lugar à Praça Dom Pedro II, localizada no Centro da capital amazonense. A cerimônia fez parte das celebrações pela passagem do Dia do Índio, pretendendo destacar a presença e a importância dos povos tradicionais para a formação cultural e social da cidade. Com caráter declarativo e imaterial em relação ao passado e à história da cidade de Manaus, o Memorial, nas palavras do presidente do Conselho Municipal de Cultura (Concultura), o escritor e poeta Tenório Telles, é uma espécie de voz da memória
na cidade, cujos ecos estavam esquecidos e, portanto, não havia o reconhecimento da sociedade sobre a importância e a sacralidade do local.
Além do caráter imaterial do memorial, há um conjunto de ações concretas sendo elaboradas para o resgate histórico, como o retorno dos indígenas ao local, por meio de eventos culturais, de danças ritualísticas que serão feitas regularmente na praça, a presença dos povos com a venda de artesanato, a contratação de indígenas como guias turísticos, de modo que eles possam testemunhar para os visitantes a sua própria história, dentre outras. “Será um trabalho pedagógico, de esclarecimento, para que as pessoas tenham deferência pelos mortos que ali estão”, destaca Telles. Além do memorial, também foi entregue um mural de 34 metros, pintado pelo artista Fábio Ortiz, com quatro imagens
“O memorial tem esse sentido de recuperação da história, dessa memória. Por isso o nome é Aldeia da Memória Indígena de Manaus, em uma referência ao fato de que nos séculos 16 e 17, bem como nos séculos anteriores, existiam populações que habitavam aquele espaço, especialmente os índios Passés, os Baniwa, Barés, Manaós, os Tarumãs, entre outros. Esse espaço indígena foi, aos poucos, com a presença hegemônica dos colonizadores, sendo ocupado e essa população foi sendo, de algum modo, assimilada”, explicou. Telles explica que, por meio de símbolos, como uma placa declaratória, o memorial vai esclarecer que o lugar é histórico
retiradas de livros históricos: o mapa das calhas dos rios; o guerreiro Ajuricaba; os manaós e o cemitério indígena na visão do colonizador. “Em contato com o colonizador, nós fomos obrigados a negar os nossos pajés, os nossos especialistas. Essa terra é a nossa terra, não é somente um cemitério indígena é uma aldeia e seus espíritos reinam e se comunicam com a gente”, disse o antropólogo com graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) João Paulo Barreto Tukano, na inauguração do memorial. O antropólogo também chamou a atenção para a importância da ocupação dos espaços. “Não como coitados, mas como produtores de saberes”, disse. Ao completar, dialogou sobre o uso do espaço. “Um espaço de fazeres, embora eu não saiba se, neste momento, eu estou em um sonho ou na realidade”, disse o Tukano.
A VOZ DOS ANCIÃOS Na inauguração da Aldeia da Memória Indígena, foram exibidos depoimentos de anciãos indígenas em um telão. Entre eles, o do kokama Carmelindo Moraes, o “Mindu”, 82 anos, que mora em Manaus, desde 1984. Nascido em um seringal, no município de São Paulo de Olivença – a 975 quilômetros da capital – filho de indígenas aldeados, Mindu trocou a vida de seringueiro, pescador e coletor, pela de pedreiro na construção civil na capital, onde constituiu uma família com nove filhos e 14 netos. Ele disse sentir orgulho em saber que no subsolo da praça Dom Pedro II, onde gravou sua fala para a inauguração do memorial, estão sepultadas várias gerações de indígenas, os seus ancestrais. “Esse memorial é muito importante para nossa gente e vai servir, não só para nós, mas para as novas gerações, que vão ter o respeito de toda a gente”, disse. Mindu lembrou que só as autoridades e grandes comerciantes são considerados fundadores de Manaus e que espera que isso mude no futuro. A dirigente da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime), Marcivania Saterê-Maué, salienta a importância da criação do memorial e a atuação dos indígenas, como protagonistas. “Nosso grande problema na cidade foi sempre a invisibilidade, a negação de que Manaus tem suas raízes indígenas”, diz a líder, destacando que as falas dos indígenas, em uma inauguração, são um marco histórico. Para a líder indígena, o Santuário é uma conquista sem precedentes. “É um reconhecimento muito importante para nós que, de certo modo, sempre vivemos na invisibilidade. Aqui, descansam os nossos ancestrais que vivem e habitam em nós”, salientou.
Presidente do Conselho Municipal de Cultura, Tenório Telles, discursa na inauguração da Aldeia da Memória Indígena Crédito: Ricardo Oliveira
67
DIVERSIDADE
REVISTA CENARIUM
Machismo
apresentam 6% e o primeiro lugar da Região Norte é Roraima, com 7%. Os Estados do eixo Sul, Sudeste e Centro-Oeste apresentaram maior desigualdade, como o Mato Grosso, com 30% de diferença salarial, seguido de Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, todos com 28%. Os dados do Dieese tiveram como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
S.A.
Relações de gênero no mercado de trabalho: imposição de postura e um ‘código’ de vestimenta para assegurar respeito
MANIFESTAÇÕES COMUNS
Priscilla Peixoto – Da Revista Cenarium Crédito: Ricardo Oliveira
M
ANAUS – De forma explícita ou velada, o machismo no mercado de trabalho é uma realidade para a maioria das mulheres. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo Instituto Patrícia Galvão, em dezembro de 2020, 40% das mulheres já haviam sido xingadas ou já tinham ouvido gritos no mercado de trabalho, contra apenas 13% dos homens.
lho, com preparação inferior à minha, foi contratado para a mesma função que eu, porém recebendo muito mais. Questionei meu chefe, que me alegou motivos nada plausíveis. Passaram-se uns quatro meses, fui demitida e fiquei sabendo que o meu ex-chefe também demitiu outra moça, alegando que o trabalho envolvia viagens
Um homem de terno é respeitado no ambiente “ de trabalho. Uma mulher de tailleur é ‘aceitável,
feminina, respeitável’ e, ainda assim, será assediada” Amanda Pinheiro, 35, advogada. A pesquisa apontou ainda índice de 40% em relação às mulheres que passam por supervisionamento excessivo. A análise mostrou também que, para 92% dos entrevistados, as mulheres passam por mais situações de constrangimento e assédio no ambiente de trabalho, circunstância que não é tão comum para os homens. A amazonense e consultora empresarial Michelle Guimarães, de 35 anos, sentiu na pele os efeitos do machismo enraizado no ambiente de trabalho. O caso da consultora é um dos mais comuns – ocupar o mesmo posto de trabalho com salário inferior pelo simples fato de ser mulher. “Passei por situações que marcaram muito. Lembro que um colega de traba68
www.revistacenarium.com.br
e era mais viável para homens. Não ficou nenhuma mulher na equipe”, conta a consultora.
DIFERENÇAS SALARIAIS ENTRE AS REGIÕES Levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 2019, mostrou que, no último trimestre daquele ano, os homens ganharam, em média, R$ 2.495 e mulheres receberam R$ 1.958, rendimento 22% menor. A análise apontou que entre os profissionais com ensino superior, o índice de diferença salarial chegava a 38%. Homens com salário médio de R$ 6.292 e mulheres, R$ 3.876.
Crédito: Ricardo Oliveira
92% Pesquisa do Instituto Patrícia Galvão mostrou que, para 92% dos entrevistados, as mulheres passam por mais situações de constrangimento e assédio no ambiente de trabalho.
45 De acordo com dados da SSP-AM, 45 casos de assédio no trabalho contra mulheres foram registrados em 2019.
5% De acordo com o Dieese, o Amazonas está entre os Estados das regiões Norte e Nordeste que apresentam menor desigualdade salarial entre gêneros, com diferença de 5%.
No quesito chefia e liderança das corporações, a diferença foi de 29%. O sexo feminino recebia, até então, R$ 29 por hora trabalhada, enquanto o masculino recebia R$ 40, em média. Ainda de acordo com a pesquisa, o Amazonas está entre os Estados das regiões Norte e Nordeste que apresentam menor desigualdade salarial entre gêneros, com uma diferença de 5%. Amapá e Alagoas
As ‘piadas’ de gênero estão entre as manifestações mais recorrentes de machismo nos locais de trabalho. Colocar a capacidade da colega de trabalho em questão subjugando sua intelectualidade, diminuir o mérito do trabalho realizado por uma mulher e a constante interrupção da fala também são comuns. Esta última manifestação é tão comum, que já possui até uma expressão em inglês própria para defini-la: “manterrupting” – interromper com constância a fala de uma mulher, provocando constrangimento e a desmerecendo. Outro sofrimento vivido pelas mulheres no ambiente de trabalho é o assédio. Conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM), de janeiro até novembro de 2019, 45 casos de assédio a mulheres foram registrados em Manaus. Michelle lembra que já foi assediada por um colega de trabalho após uma reunião e que ainda recebeu um telefonema da companheira dele com ameaças de agressão. “Fui vítima de machismo e desrespeito cometido por ele durante o exercer da minha profissão e ainda fui vítima de machismo cometido por outra mulher. Para mim, é muito pior perceber que é mais fácil colocar a culpa na outra mulher”, lamentou Michelle. Mesmo com avanços, ainda se faz necessária a luta pelo respeito, diz Michelle. “Só queremos trabalhar e ser vistas como profissionais. Demorei, mas aprendi a me impor. Hoje, adoto códigos que me fazem ser entendida, seja em uma forma de falar mais incisiva, seja em um aperto de mão mais firme. Ainda me chateio muito, pois o certo seria não ter que recorrer a nada disso. Mas, não desisto. Nosso espaço existe e tem que ser ocupado por nós”, afirma. Edição Márcia Guimarães
A consultora empresarial Michelle Guimarães conta que viveu situações de assédio e desvalorização salarial
VESTIMENTA COMO “ESCUDO” As roupas que usamos costumam expressar nosso estilo e estado de espírito. Quando o assunto é compor o look para trabalhar, a maioria das mulheres se vê em um embate frente ao espelho - encontrar uma composição que passe profissionalismo, sem perder o gosto pessoal e se sentir bonita e confortável consigo mesma. Para a advogada, e consultora engajada em causas feministas, Amanda Pinheiro, 35 anos, a mulher, ainda que trajando vestes aceitáveis pelo tal padrão imposto pelo mercado, certamente vai passar por alguma situação onde a temática e a culpabilidade vai cair sobre a roupa, pois não há vestimenta adequada e segura para uma mulher no mercado de trabalho, pelo simples fato de nenhum look ou composição neutra conseguir resolver um problema estrutural.
“Vemos que não é questão de traje, mas da idealização do corpo da mulher como objeto de desejo e satisfação sexual. Em diversos casos de assédio sexual e estupro, verifica-se que as roupas das vítimas estão entre as impostas como discretas ou aceitáveis, dentro de um falso puritanismo”, comenta Amanda. Amanda chama a atenção para o terno, que remete à ideia de fortaleza e masculinidade no mundo do trabalho. “Um homem de terno é respeitado no trabalho. Uma mulher de tailleur é ‘aceitável, feminina, respeitável’ e, ainda assim, será assediada. Se uma mulher se vestir com um terno em corte menos curvilíneo, será questionada quanto à sexualidade e, ainda assim, será assediada, ou seja, ficamos em segundo plano até nas roupas, tendo que nos adaptar dentro de uma vestimenta para conseguirmos o mínimo de respeito”, relata.
RELAÇÕES HUMANAS A psicóloga e consultora em Recursos Humanos e de Gestão Estratégica de Pessoas, Adriana Maciel, 38 anos, explica que é possível atenuar a realidade machista estrutural desde a seleção dos candidatos a uma vaga. “O primeiro ponto que tem de ser trabalhado é desfazer a cultura do patriarcado enraizada”, explica a profissional. Estabelecer a igualdade de gênero, eliminar salários desiguais e promover a equidade desde a seleção são outros fatores que auxiliam no combate à diminuição de ações machistas nas organizações. “Outro ponto de extrema importância é a preocupação da mulher que é mãe. Uma vez
que ela passa por uma entrevista de emprego e se depara com a pergunta: ‘Você tem filhos?’ ‘Com quem eles ficam?’, isso já é uma atitude machista. Quer dizer que, por eu ter filho, eu não posso trabalhar?”, questiona Adriana. Ela explica que as empresas têm buscado evitar esta pergunta, até porque a criação dos filhos é responsabilidade também dos pais. Eventos, oficinas, palestras e cursos também são bem-vindos, principalmente se voltados para temáticas de inclusão, diversidade e igualdade de gênero, até porque, de acordo com Adriana, ninguém está totalmente isento de expressar uma atitude machista, mesmo que sem querer. “Isso já vem de tantas gerações e ninguém está imune”, afirma. 69
ARTIGO – REGIANE PIMENTEL
Crédito: Divulgação
Afinal, por que precisamos do feminismo? Regiane Pimentel*
E
u costumo muito ouvir de mulheres a frase: “ah, mas eu não preciso do feminismo”. Amada, você precisa sim, sem ele nem viva você estaria. Homens ocupam lugar de privilégio desde que o mundo é mundo. Essa posição que eles usufruem é a regra de nossa sociedade machista e sexista, os mantêm seguros, faz com que eles ditem as regras. Por que você acha que eles iam querer deixar o mundo diferente? O mundo parece com os homens e eles fazem isso acontecer. Eles votam de acordo com os seus interesses, diferente de nós, que temos uma enorme dificuldade de votar em mulheres, por exemplo. O feminismo aborda e questiona esse privilégio que é dado aos homens dentro de nossa sociedade. Isso abrange nossas leis, nosso ambiente de trabalho, nosso convívio familiar, e tantos outros espaços. Essa questão do privilégio masculino está enraizada em todas as camadas possíveis socioeconômicas e serve para nos manter em posição inferior e manter esse status que eles fazem questão de não abrir mão. Esse lugar de privilégio que é dado ao homem, essa presunção de superioridade que a nossa sociedade patriarcal lhes con-
cede, os autoriza a achar que somos suas propriedades e lhes devemos obediência, e está diretamente ligada aos casos de agressões e violência doméstica. Não há um perfil para esse agressor como se imagina, independe de classe ou raça. A violência contra a mulher é um problema social. A violência doméstica também está ligada à romantização do casamento, essa ideia de que a mulher precisa de um homem, de que só será feliz e completa com um parceiro, isso tudo é gatilho para que mulheres aguentem relações abusivas e fracassadas achando que esse é o seu dever ou que nasceu para isso. Volto a repetir, não precisamos de ninguém. Pelo amor de Deus, somos seres completos e individuais. O casamento é uma das instituições mais opressoras que existem, mas vamos deixar esse tema para, quem sabe, um próximo artigo. Segundo o Fórum Econômico Mundial, o Brasil é um dos quatro piores países da América Latina para ser mulher. Somos maioria com nível superior e maioria também nas universidades, porém ainda ganhamos menos realizando os mesmos serviços e a mesma carga horária que os homens.
Quero ressaltar que as leis foram construídas por homens e para os homens. Nosso sistema jurídico é extremamente patriarcal. Ainda tem a questão do serviço doméstico não remunerado, que anula as mulheres. Bom, o movimento feminista vem questionando, há muitas décadas, todas essas pautas que citei acima. Muitas mulheres lutam para sermos vistas como seres humanos, para que nossos direitos sejam respeitados. Há milhares de mulheres fortes abrindo espaços para nós.
ÀS 20H TODA TERÇA E QUINTA-FEIRA
O feminismo questiona as estruturas patriarcais, o machismo e o sexismo como formas de opressão. Tem levantado várias questões nesse sentido, tem lutado para nos tirar dessa submissão social e política que nos foi imposta, e é por isso que o feminismo incomoda tanto os homens. Você pode até não concordar com o feminismo, mas não podemos negar jamais o quanto esse movimento é importante e luta pela emancipação das mulheres em todas as camadas sociais. No mínimo, devemos respeitá-lo. (*) Regiane Pimentel é bacharel em Direito, ativista social e feminista amazônida.
ASSISTA EM:
WWW.REVISTACENARIUM.COM.BR 70
www.revistacenarium.com.br
PARA A ANTICIÊNCIA
A NOVA EDITORIA DA REVISTA CENARIUM
SAIBA MAIS EM:
WWW.REVISTACENARIUM.COM.BR