Revista Cenarium - Ed. 39 - Setembro/2023

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AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO

Calor extremo, seca severa, agravamento de queimadas, fumaça e ar irrespirável traduzem efeitos da crise climática global e montam cenário alarmante no qual só a intervenção conjunta dos poderes pode mitigar impactos

ISSN 2764 8206 782764 9 820605 039
SETEMBRO DE 2023 • ANO 04 • Nº 39 • R$ 24,99

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Ebulição, retrocesso e consciência

O anúncio de reativação das usinas termelétricas pelo vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, no dia 3 de outubro, para garantir a segurança energética da Região Norte do País em decorrência da seca histórica dos rios da Amazônia mostra o quão desprevenidos estamos no trato com a crise climática, ao retornarmos ao uso de uma matriz altamente poluente, e como esse cenário reforça a ideia de que o Brasil e o mundo não esperavam lidar com a ebulição global, apesar de todos os avisos.

Há mais de cem anos, foram reportados ao mundo os riscos do aquecimento global e de como essa condição poderia alterar o curso das águas e a qualidade do ar. Svante Arrhenius (1859-1927) considerou, pela primeira vez, em 1896, a capacidade humana de mudança do clima ao afirmar que a adição de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera aqueceria a temperatura média da Terra. A pesquisa de Arrhenius foi reforçada, décadas depois, por outros estudiosos, que apontavam para urgências.

O Acordo de Paris (2015), que estabeleceu um marco legal para a redução das emissões de gases do efeito estufa, não foi suficiente para os líderes das nações cumprirem promessas. Saímos do aquecimento para a crise climática e, agora, vivemos em ebulição, termo usado, em julho deste ano, pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

Nesse contexto histórico, o Brasil figurava entre os países, até agora, que menos emitiam CO2, com 80% de suas matrizes energéticas oriundas de fontes limpas (hidrelétrica, eólica e solar). A seca no Norte, causada pelo El Niño, pode alterar esse sistema de forma inesperada, com a queima em maior escala de combustíveis fósseis para evitar uma crise energética, agravando, ainda mais, a crise climática. O cenário parece assustador, e de fato é.

É o momento da sociedade, que, agora, sente o impacto desta crise batendo à porta de casa, tomar consciência de que as decisões regionais e mundiais iniciam a partir de uma ação individual, e perceber que não se pode mais fechar os olhos para a nova realidade. Se o plantio é opcional, a colheita será obrigatória.

Viver insalubre

Imagine acordar às 5h sendo despertado pelo calor que não cede ao ar-condicionado e por um forte cheiro de madeira queimada, sentindo o gosto de fumaça na boca, a garganta coçando, tosse e dificuldade para respirar. Ao abrir a janela, a paisagem encoberta por uma névoa densa e fedida. Agora, imagine tudo isso somado à falta de água para beber e se lavar. É assim que têm passado seus dias uma boa parte dos moradores da Amazônia, no chamado ‘verão amazônico’ deste ano.

No Amazonas, os efeitos das mudanças climáticas, impulsionados pelo El Niño, converteram a região em um cenário quase que apocalíptico, com temperaturas na casa dos 40 °C, umidade baixa, queimadas e fumaça se espalhando livremente e uma estiagem severa. Tudo ao mesmo tempo.

É como disse o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, ‘comemos poeira’ (até literalmente) e o tempo do aquecimento global já é passado, entramos na “era da ebulição”. O planeta está em estado de fervura, está fervendo. E nós, estamos sendo cozidos a vapor ou defumados.

Com tantos acontecimentos climáticos ocorrendo simultaneamente no Amazonas, nada mais lógico do que o colocarmos no centro da reportagem de capa desta edição. Mas, os eventos extremos do clima não são exclusividade do Estado. Há seca no Norte e Nordeste, e ciclones e alagamentos no Sul. Há temperaturas altas onde deveria estar frio no inverno e, às vezes, faz frio onde deveria estar quente.

O clima está descontrolado e não se comporta mais como a humanidade aprendeu a lê-lo. E, nesse caso, ter o conhecimento sobre o comportamento do clima, sobre quando haverá frio, ou calor, ou quando haverá cheia e seca, está intimamente ligado a nossa sobrevivência.

A Amazônia está em ebulição. O Amazonas está em ebulição. São uma espécie de microcosmo do que ocorre em escala planetária. Resta, agora, o desafio de tentar desacelerar o processo de autodestruição engatilhado, enquanto ainda há tempo, se é que há. Reduzir a emissão de gases do efeito estufa é urgente. Estamos em um viver insalubre.

Editorial
Paula Litaiff Diretora-Geral Márcia Guimarães Gestora de Conteúdo

Leitor&Leitora

�� Representatividade

“Por falar da Amazônia e sempre quebrar os estereótipos que o resto do País tem sobre a nossa floresta, eu considero a CENARIUM AMAZÔNIA uma grande revista e de uma representatividade gigante. As matérias são bem trabalhadas, detalhadas e sem esconder o quanto nosso povo e nossa floresta sofrem, muitas vezes, com o descaso de políticos”.

Thais Matos

Manaus-AM

�� Explorar o conhecimento

�� Raízes amazônicas

“A REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA é o resultado do trabalho de jornalistas que têm suas raízes na Amazônia, o que, naturalmente, se reflete na sua abordagem singular. Ela não apenas apresenta uma visão autêntica da vida na região, mas também se destaca ao fornecer informações atualizadas de maneira acessível. Em um mundo onde a desinformação se espalha amplamente, a revista se torna uma fonte valiosa de conhecimento, enfatizando que a verdade é encontrada nas palavras bem fundamentadas”.

Izabela Melo

Manaus-AM

�� Falar de si

“Banhar-se nos rios e cachoeiras da Amazônia é benção que os territórios indígenas nos proporcionam. A REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA tem um papel importante na promoção de debates que são fundamentais aos povos originários na Região Norte do País. Somos rios, matas, bichos, comunidades, ancestralidade e também cidadãos brasileiros. Viabilizar que pessoas nortistas falem de si, possibilita o combate a violências que nos exterminam ao longo dos séculos. Yê yê ô”.

Harmonya Jabutt (Caní Jakson)

- multiartista, psicólogue e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI-Ufam).

Manaus-Am

MANDE SUA MENSAGEM

A CENARIUM AMAZÔNIA é uma fonte confiável e enriquecedora de informação e entretenimento. Ela mantém os leitores engajados e informados, e eu mal posso esperar para continuar explorando suas páginas e descobrindo novas perspectivas sobre o mundo que nos cerca. Parabéns a toda a equipe, pelo excelente trabalho!

Fabian Campos

São Paulo-SP

��

Conteúdo envolvente

“Excelente revista! A CENARIUM sempre traz conteúdo informativo e envolvente. Leitura obrigatória!”

Diego Fernandes

Campinas-SP

�� Guia para entender a Amazônia

“A CENARIUM AMAZÔNIA brilha, ao destacar questões cruciais da Amazônia. Suas notícias informativas e equilibradas são um guia indispensável para compreendermos melhor essa região tão vital”.

Sílvio Rosa Brasília-DF

�� E-mail: cartadoleitor@revistacenarium.com.br | WhatsApp: (92) 98564-1573

��
Crédito: Acervo Pessoal

Sumário

Setembro de 2023 • Ano 04 • Nº 39 22 18 63
Crédito: Ricardo Oliveira Crédito: Joédson Alves Ag. Brasil
► MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE Foz do Amazonas: ‘cabo de guerra’ pelo petróleo ......... 06 ► CENARIUM+CIÊNCIA Projeto Curupira combate desmatamento 10 ► PODER & INSTITUIÇÕES Ameaça à soberania amazônica 12 Mulheres indígenas marcham por demarcação ............ 14 STF condena primeiros réus pelos ataques aos Três Poderes 16 Supremo derruba tese do Marco Temporal 18 ► ARTIGO – LUIS EDUARDO MENDES DANTAS O papel da Procuradoria de Meio Ambiente 21 ► ECONOMIA & SOCIEDADE AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO Crise climática: alerta para desastres amazônicos 22 Vazante severa no AM 30 Queimadas impactam saúde em Manaus 36 ‘Difícil respirar’ ................................................................ 40 Calor extremo .................................................................. 42 Mortes de botos e ameaça a humanos 46 Emergência: ‘170 mil pessoas afetadas’ 50 USINA DO AZULÃO Eneva é alvo de denúncia: povos tradicionais relatam ameaças de morte 54 Empresa ignora MPF e faz audiências para projeto 60 ► ENTREVISTA DARLAN ROSA Zé Gotinha: um caso de amor do Brasil 63 ► POLÍCIA & CRIMES AMBIENTAIS Força Nacional segue em terra Yanomami .................... 69 ► ARTIGO – ROSANE GARCIA Por que não uma negra? 70
Crédito: Fellipe Sampaio | SCO STF

Foz do Amazonas: ‘cabo de guerra’ pelo petróleo

Ambientalistas rebatem parecer da AGU que libera exploração petrolífera sem avaliação ambiental; parecer do Ibama é contrário

BELÉM (PA) – O parecer da  Advocacia-Geral da União (AGU), publicado na última semana de agosto, conclui que a ausência da chamada Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) não pode impedir a concessão de licenciamento ambiental para exploração de petróleo na bacia da Foz do Rio Amazonas, no Amapá. Entretanto, para ambientalistas da região, o posicionamento da AGU é equivocado, dada a importância da AAAS para a prevenção de danos ambientais no ecossistema.

O engenheiro florestal Carlos Augusto Pantoja, do Coletivo Campesino Amazônico (Coca), argumenta que a AAAS é um instrumento de planejamento econômico e ambiental essencial, que permite analisar os projetos de produção de gás natural e petróleo em regiões ainda não exploradas. Além disso, é um “ganho da sociedade para apontar erros de concepção de projetos e prever acidentes como vazamentos e impactos na biodiversidade local”.

“A Avaliação Ambiental de Área Sedimentar permite que a gente possa entender, de forma mais ampla, o funcionamento

da natureza e propor adequações sobre as atividades petrolíferas, ligando tais informações com o contexto socioambiental das regiões em que se pretende instalar projetos de extração de petróleo. É assim que o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] aponta se as ações estão corretas ou não, e lança as recomendações para as tomadas de decisões dos projetos”, explica Pantoja.

A falta da AAAS foi o principal argumento utilizado pelo Ibama para negar, em maio, o licenciamento ambiental solicitado pela Petrobras para realizar atividade de perfuração marítima no local. Segundo o ambientalista, fazem parte da AAAS dois instrumentos de avaliação: o Termo de Referência (TR), contendo as especificações técnicas para a coleta e análise das informações e o Estudo Ambiental de Área Sedimentar (EAAS), um documento multidisciplinar com foco na avaliação das condições e características socioambientais da área.

“O EAAS considera a relação das atividades de exploração e produção de

Flávia Guedes, mobilizadora da frente de bacias hidrográficas e oceanos do Instituto Mapinguari.

“As bacias hidrográficas da Amazônia sempre foram negligenciadas e, atualmente, carecem de muitas informações e dados científicos”
Daleth Oliveira – Da Revista Cenarium Amazônia
06 www.revistacenarium.com.br MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE

Exploração de petróleo na bacia da foz do Amazonas

Bacia da Foz do Amazonas compreende o litoral do Amapá e do Pará Crédito: Agência Câmara
07 REVISTA CENARIUM
Fonte: Petróleo Hoje

petróleo e gás natural com a vida dos territórios. Sem essa avaliação, danos previsíveis podem ser subestimados ou mesmo negligenciados. É necessário que a população e, principalmente, os povos indígenas, pescadores, extrativistas e pessoas das áreas urbanas participem desta construção”, diz o pesquisador.

DADOS

Flávia Guedes, mobilizadora da frente de bacias hidrográficas e oceanos do Instituto Mapinguari, afirma que mesmo com o posicionamento da AGU apon-

tando a AAAS como dispensável, a voz do Ibama tem que falar mais alto nesta briga de narrativas. “A autarquia responsável pelo licenciamento ressaltou a necessidade da AAAS, portanto, se suas exigências esclarecem as necessidades da avaliação ambiental de área sedimentar, é importante que assim se cumpra”, declara.

Ela considera ainda que a AAAS tem possibilidade de dar uma luz para mais informações sobre o ecossistema amazônico, sendo benéfica não apenas na segurança de uma possível exploração do petróleo, mas para a ciência.

“As bacias hidrográficas da Amazônia sempre foram negligenciadas e, atualmente, carecem de muitas informações e dados científicos. Então, é extremamente necessário compreender que a região possui uma alta sensibilidade, tendo proximidade com locais que abrigam alta biodiversidade e sendo ainda extremamente importante para populações tradicionais. Uma região de tamanha importância necessita de dados e informações precisas que podem ser levantados diante da AAAS”, argumenta Flávia Guedes.

Plataforma da Petrobras do tipo semissubmersível
08 www.revistacenarium.com.br MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE
Crédito: Geraldo Falcão | Agência Petrobras

Avaliação ambiental dispensável juridicamente

O parecer da AGU foi solicitado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que defende a exploração de petróleo na área. O principal questionamento era se, baseado na Portaria Interministerial MME-MMA N.° 198/2012, quando foi instituída a Avaliação Ambiental de Área Sedimentar, a AAAS é obrigatória para a concessão do licenciamento à Petrobras.

Para o parecer, a AGU se baseou em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a viabilidade ambiental de um empreendimento deve ser atestada no próprio licenciamento e não pela Avaliação Ambiental de Área Sedimentar.

O Artigo 22 da portaria determina que os estudos produzidos no âmbito da AAAS, bem como as decisões emanadas de seu processo de aprovação pela Comissão Interministerial, “deverão ser considerados pelos órgãos do Sistema Nacional

do Meio Ambiente [Sisnama], quando do licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural”.

Diante disso, Rafael Feldmann, advogado especialista em Direito Ambiental, analisa que, de fato, a AAAS não é indispensável. “Segundo a Portaria 198, a AAAS é um documento propositivo que vai ajudar nas diretrizes, mas é uma obrigação do Estado brasileiro, e aponta que a avaliação não é essencial para a obtenção da licença ambiental”, explica.

“Outro ponto é que as regras feitas pela portaria, criada em 2012, são provisórias. Nós estamos em 2023, ou seja, 11 anos depois da publicação. Em todo esse tempo, nenhuma AAAS foi feita. Temos apenas dois projetos da AAAS que estão em andamento, um na bacia de Sergipe-Alagoas e outro na bacia do

Solimões. Em 11 anos, essas AAAS não foram finalizadas. Entretanto, nesses 11 anos, você teve projetos sendo licenciados no Brasil inteiro sem AAAS. Então, dizer que a AAAS é um estudo obrigatório e prévio para o licenciamento ambiental na Foz do Amazonas, juridicamente, é errado, porque isso nunca aconteceu antes. Nós temos várias bacias espalhadas pelo Brasil e todas deveriam ter AAAS, mas em 11 anos ninguém fez”, comenta o advogado.

Rafael concorda que a AAAS qualifica o licenciamento ambiental, por isso, é ideal que seja feita. “Mesmo sendo ideal, ela não é obrigatória e o parecer da AGU diz exatamente isso. Seria ótimo se tivesse sido feito e, sinceramente, eu espero que seja feito para várias bacias sedimentares, porque quanto mais dados e informação a gente tem, melhores serão as análises e decisões”, finaliza.

“A Avaliação Ambiental de Área Sedimentar permite que a gente possa entender, de forma mais ampla, o funcionamento da natureza e propor adequações sobre as atividades petrolíferas”
Carlos Augusto Pantoja, engenheiro florestal do Coletivo Campesino Amazônico (Coca).
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Crédito: Reprodução Acervo Pessoal

Projeto Curupira combate desmatamento

Pesquisadores da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) trabalham na criação de novo sistema de monitoramento inteligente para coibir derrubada de árvores

Da Revista Cenarium Amazônia*

MANAUS (AM) – Um projeto batizado de Curupira (ser mitológico guardião da floresta), desenvolvido pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), pretende ajudar no combate ao desmatamento, trazendo esperança para a preservação ambiental. Liderado pelo Laboratório de Sistemas Embarcados (LSE/HUB), o Curupira planeja criar um sistema de monitoramento inteligente para áreas de floresta fechada, rios e zonas urbanas, proporcionando uma nova abordagem na detecção de ameaças e ataques ao ecossistema.

Desenvolvido por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores, o projeto já passou por testes-piloto em área de floresta

CENARIUM+CIÊNCIA
Sistema de monitoramento Curupira durante teste em área de mata na cidade de Manaus
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Crédito: Divulgação | UEA

em Manaus. Ele é capaz de identificar sons de anomalia no ambiente florestal, como o barulho de motosserras, que podem indicar ameaças ao ecossistema.

“O Curupira foi projetado para ouvir apenas os sons que identificam perigo na floresta, filtrando os ruídos naturais. Isso nos permite agir rapidamente diante de ameaças vindas de motosserras, por exemplo, e tomar medidas cabíveis para proteger o ambiente florestal”, explicou o Prof. Dr. Raimundo Claudio, coordenador do Laboratório de Sistemas Embarcados (LSE/HUB). Ele acrescenta que a iniciativa destaca a capacidade de pesquisa e desenvolvimento da UEA.

Para o reitor da UEA, Prof. Dr. André Zogahib, o projeto é um marco na proteção ambiental para a universidade. “Isso mostra como o Brasil vem despontando na questão da proteção ambiental, reforçando, ainda mais, a nossa relação para a promoção de políticas públicas essenciais dentro da nossa universidade pública brasileira”, afirmou.

O alcance dos dispositivos Curupira é estendido por meio de uma rede de comunicação, permitindo que

compartilhem informações entre si e enviem alertas para um roteador central localizado a até 15 quilômetros de distância. Esse roteador encaminha os dados para análise em um programa de computador, possibilitando a visualização e ação apropriada em tempo real.

PARCERIA

Tiago Orives, diretor de operações da Hana Eletronics, empresa que financiou o projeto, ressalta a importância dessa colaboração entre a iniciativa privada e a universidade. “Nossa parceria com a UEA nos permitiu aplicar tecnologia de ponta em prol da preservação ambiental. É essencial unir esforços para garantir o futuro de nossas riquezas naturais”, afirmou Orives.

Thiago Almeida, gerente do Curupira, acrescentou que o projeto é um exemplo de como a tecnologia pode ser adaptada à nossa realidade, com dispositivos inteligentes capazes de identificar ameaças específicas da região amazônica. “Estamos promovendo ações concretas para proteger nossa floresta e contribuir para políticas públicas voltadas à preservação ambiental”.

(*) Com informações da Assessoria.

“O Curupira foi projetado para ouvir apenas os sons que identificam perigo na floresta, filtrando os ruídos naturais. Isso nos permite agir rapidamente diante de ameaças”
Prof. Dr. Raimundo Claudio, coordenador do Laboratório de Sistemas Embarcados (LSE/HUB).
Crédito: Divulgação UEA
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Crédito: Divulgação | UEA

Ameaça à soberania amazônica

Tentativa da França entrar na OTCA representa risco de perda de poder de países amazônicos sobre a região, apontam analistas

MANAUS (AM) – O desejo da França de aderir à Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), expressado pelo presidente francês Emmanuel Macron no final de agosto deste ano, tem repercutido entre ambientalistas e especialistas em Relações Internacionais, que apontam interesses políticos por parte do chefe do governo francês e uma ameaça à soberania dos países amazônicos sobre a região.

Macron pediu aos oito países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Guiana, Equador e Suriname, que “aceitem” a França na organização.

Como justificativa, ele argumenta que o país europeu faz parte da Amazônia por meio da Guiana Francesa, que abriga 1,1% da floresta amazônica, mas não assinou o acordo de cooperação. O tratado não permite a incorporação de novos membros, mas é possível que outros governos participem de cúpulas.

Para o coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Católica de Brasília (UCB), José Romero Pereira Júnior, Macron tenta fazer uso de um discurso político que atinge hoje, na Europa, uma parcela da população que defende a sustentabilidade, e que é bastante considerável.

“Fazendo uma espécie de populismo ambiental, forçando a mão da França a entrar no tratado, algo que é muito compatível com os interesses políticos dele [de Emmanuel Macron], ele reflete expectativas locais na França”, explica, pontuando, ainda, que a intenção de Macron se “choca” com interesses brasileiros e de outros países em preservar algum grau elevado de autonomia sobre a região amazônica.

“De certa maneira, vai de encontro, se choca mesmo, até com a inspiração original do trabalho, que envolveu e envolve até hoje países em desenvolvimento na região amazônica, que estão preocupados com

Tratado não permite adesões

O presidente da França, Emmanuel Macron, manifestou interesse pelo ingresso na OTCA Marcela Leiros – Da Revista Cenarium Amazônia
12 www.revistacenarium.com.br PODER & INSTITUIÇÕES
Crédito: Mateus Moura

o desenvolvimento sustentável da região, com as possibilidades de melhoria de vida e o aproveitamento, de forma sustentável, dos recursos amazônicos. Eles têm também uma preocupação com a ingerência externa e a sua própria soberania sobre as áreas da região”, enfatiza.

COLONIZADOR X COLONIZADO

A Guiana Francesa é um território subordinado à França, por isso, integra a União Europeia, mesmo estando localizada na América do Sul. A socioambientalista Muriel Saragoussi explica um dos motivos pelos quais a OTCA não admitiu a adesão da Guiana Francesa anteriormente: é porque o país, apesar de estar ao lado de outros países soberanos, ainda “pertence” a um território europeu.

“O tratado não admitiu, desde o princípio, essa adesão justamente porque tinha essa questão como pano de fundo. É importante que a França continue como ela é hoje, como um observador do tratado, como um convidado a participar das reuniões. Mas seria muito mais importante que a França resolvesse essa dicotomia de ser um país que tem colônia em pleno século 21”, defende ela.

Saragoussi pontua, ainda, que a participação do país europeu na OTCA seria interpretada como uma validação do papel

Interesse

No dia 28 de agosto, em um discurso de política externa aos embaixadores franceses reunidos em Paris para a sua conferência anual, Macron expressou o interesse em aderir à OTCA. “Declaro solenemente que a França é candidata a participar da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica e a desempenhar um papel pleno nela, com uma representação associando estreitamente a Guiana Francesa”, disse.

O pedido foi formalizado três semanas após a Cúpula da Amazônia, realizada em Belém (PA), no início deste mês, onde o presidente francês não compareceu, mesmo tendo sido convidado pelo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

de colonizador da França sobre a Guiana, além do risco da tentativa de influência do governo sobre a América Latina.

“A questão se a França tem ou não direito sobre essa participação esbarra nessa questão de nós, como países soberanos, em busca de consolidação das democracias da América do Sul, não podermos avalizar uma colonização. Então, acho que não é uma questão de direito, o ideal seria que a Guiana Francesa tivesse uma total autonomia da dita metrópole e, eventualmente, inclusive, se tornasse um país”, afirma a socioambientalista.

“A França é um país que financia uma série de atividades, por exemplo, na África. Na América Latina, a França tem muito menos influência e eu acho que ser parte do tratado talvez seja uma forma de ganhar

“É importante que a França continue como ela é hoje, como um observador do tratado, como um convidado a participar das reuniões. Mas seria muito mais importante que a França resolvesse essa dicotomia de ser um país que tem colônia em pleno século 21”

uma espécie de populismo ambiental, forçando a mão da França a entrar no tratado, algo que é muito compatível com os interesses políticos dele [de Emmanuel Macron], ele reflete expectativas locais na França”

José Romero Pereira Júnior, coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Católica de Brasília.

influência em outro continente”, explica, ainda.

ACORDO DE COOPERAÇÃO

Apesar dos riscos apresentados, Muriel Saragoussi salienta que uma cooperação entre a França, por meio da Guiana Francesa, e os países da OTCA poderia ser um propulsor para um desenvolvimento tecnológico e sustentável na região amazônica.

“É importante que a gente tenha decisões que incluam a OTCA junto à França, porque é importante a manutenção da floresta, o desenvolvimento da bioeconomia, o uso de alta tecnologia, como lançamento de foguetes, para toda a região. Então, acho que esses são elementos interessantes de serem discutidos e debatidos, inclusive, com a própria França”, finaliza.

Muriel Saragoussi, socioambientalista.
“Fazendo
Crédito: Arquivo Pessoal
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Crédito: Júlio Pedrosa

Mulheres indígenas marcham por demarcação

3ª Marcha das Mulheres

Indígenas reuniu mais de 5 mil participantes e teve como um de seus principais objetivos a defesa dos territórios

Mayara Subtil – Da Revista Cenarium Amazônia

BRASÍLIA (DF) – Nem mesmo o calor ou a baixa umidade relativa do ar impediram as lideranças femininas de percorrerem no dia 13 de setembro os 4 quilômetros que separam o local onde acamparam em Brasília (DF), perto do Eixo Monumental da Esplanada dos Ministérios, região central da capital do Brasil.

As mais de 5 mil mulheres e meninas de vários cantos do País tomaram as principais ruas da Capital Federal durante o último dia da 3ª Marcha das Mulheres Indígenas. A organização do ato é da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e o tema desta edição é “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade através das raízes ancestrais”.

A movimentação rumo ao Congresso Nacional começou por volta das 9h. Com danças e cantos, as indígenas cruzaram os cartões-postais de Brasília com reivindicações dirigidas à cúpula dos Três Poderes.

O ponto final da mobilização pacífica foi o gramado em frente ao Senado e à Câmara Federal, área onde pressionaram pela demarcação das terras e chamaram a atenção para a necessidade de indíge-

nas aumentarem presença em espaços de poder.

“Nós já vimos que faz diferença ter mulheres indígenas no Congresso Nacional. E é por isso que nossa marcha, mulheres, tem que voltar pra casa com esse pacto entre nós. Para nas próximas eleições, nós termos mulheres parlamentares nos nossos Estados e nós termos mais mulheres deputadas federais aqui, no Congresso Nacional”, disse a ministra dos Povos Originários, Sonia Guajajara.

A presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, enfatizou a relevância das mulheres indígenas em todas as esferas de atuação da sociedade.

“As mulheres indígenas são resistentes, são resilientes, são sábias por natureza. Temos secretárias, coordenadoras, professoras, advogadas. Nós somos guerreiras e não desistimos nunca da nossa luta. Nós somos as soluções para as crises que estão aí, para as crises climáticas, para as crises humanitárias, para as crises sociais. E nós estamos ajudando a reconstruir o nosso País”, disse a presidente da Funai.

PALAVRAS DE ORDEM

As lideranças femininas ainda ecoaram palavras de ordem no combate à violência de gênero, aos impactos das mudanças climáticas e sobre a tese do Marco Temporal. A tese define que uma terra só pode ser demarcada se houver provas de que os indígenas estavam naquele território na época da promulgação da Constituição de 1988.

Enquanto ruralistas a defendem por segurança jurídica, indígenas alegam que

muitas comunidades foram expulsas de seus territórios de origem e não tinham condições de estar neles em 1988.

Se for reconhecida pelos magistrados, a tese do Marco Temporal vai valer para todos os processos de demarcação que forem contestados nos tribunais.

“O Marco Temporal vem afetar o nosso corpo enquanto mulher, os nossos territórios, e nós queremos que essa tese seja enterrada de vez”, declarou a líder indígena Keilyane Wapichana, de Roraima.

Dayane Rikbaktsa, do Mato Grosso
14 www.revistacenarium.com.br PODER & INSTITUIÇÕES
Crédito: Alex Rodrigues | Ag. Brasil

Da Revista Cenarium Amazônia*

Para além da pauta conjunta, extraída dos desafios enfrentados coletivamente, cada mulher presente ao ato carregou consigo, também, uma justificativa para marchar nas ruas da Capital Federal.

“Lutamos por mais respeito e consideração às mulheres. E também em defesa de nossos territórios”, justificou a estudante secundarista Samara Cristina Paramirim de Oliveira Martim, 17 anos, que deixou a Terra Indígena Jaraguá, na cidade de São Paulo, convencida de que a união de tantas mulheres é capaz de dar mais visibilidade a temas caros às comunidades indígenas. “É importante estarmos juntas. Cada uma de nós tem sua força, mas juntas somos mais fortes. Só assim conseguimos construir algo”, acrescentou.

Dez anos mais velha que a jovem paulistana, a artesã Larissa Xerente passou 12 horas em um ônibus, junto com outras 23 mulheres indígenas de sua etnia, para superar a distância entre Tocantinia (TO) e Brasília. Escolhida representante da aldeia Formosa, da TI Xerente, Larissa considera que recebeu uma oportunidade que cada vez mais mulheres indígenas almejam.

“Hoje, há muitas mulheres querendo participar de vários movimentos, incluindo o indígena. Infelizmente, ainda encontramos alguns obstáculos. Fui indicada e vim certa de que, quando saímos para denunciar o que acontece em nossas comunidades, para reivindicar as demandas de nossos grupos, que são muitas, recebemos voz para tentar solucionar problemas que ocorrem há anos”, explicou Larissa, antes de elencar aspectos

como saúde, educação e mais igualdade entre gêneros.

Já Dayane Rikbaktsa representa a Curva, uma das aldeias da TI Rikbaktsa, em Mato Grosso. Ela defende que, em última instância, o movimento luta pela preservação da vida, costumes e terras indígenas, mas destaca a diversidade dos temas discutidos no acampamento montado junto ao Centro Ibero-Americano de Culturas, antigo Complexo Cultural Funarte.

“A principal luta dos povos indígenas é em prol dos nossos territórios, para não deixar que nossas terras sejam invadidas e buscar resolver os problemas existentes, como a invasão por madeireiros e a expansão da agropecuária, mas há também questões localizadas”, afirmou.

(*) Com informações da Agência Brasil.

Mulheres indígenas em marcha por direitos, em Brasília (DF)
‘Juntas somos mais fortes’
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Crédito: Fabio Rodrigues-Pozzebom
Ag. Brasil

STF condena primeiros réus pelos ataques aos Três Poderes

Os três primeiros condenados receberam penas diferentes de prisão e devem pagar, ainda, indenização, no valor de R$ 30 milhões, por danos morais coletivos

BRASÍLIA (DF) – O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, no dia 14 de setembro, as três primeiras ações penais instauradas contra pessoas envolvidas nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro deste ano. Por maioria, o colegiado seguiu o voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, e condenou Aécio Lúcio Costa Pereira, Thiago de Assis Mathar e Matheus Lima de Carvalho Lázaro pela prática dos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Os três réus foram acusados pelo Ministério Público Federal (MPF), respectivamente, no âmbito das Ações Penais (APs) 1060, 1502 e 1183, todas julgadas

procedentes pela Corte. Para Aécio Lúcio e Matheus Lima foi imposta a pena de 17 anos de prisão, e para Thiago Mathar a sanção foi de 14 anos. Os três foram condenados também ao pagamento de 100 dias-multa, cada um, no valor de 1/3 do salário mínimo.

Eles ainda terão que pagar indenização a título de danos morais coletivos no valor de R$ 30 milhões, a ser quitado de forma solidária com todos os que vierem a ser condenados.

Aécio Lúcio Costa foi o primeiro a ser condenado. Pereira é ex-funcionário da Sabesp (companhia de saneamento de São Paulo) e foi preso em flagrante dentro do Congresso, pela Polícia do Senado.

O julgamento começou na quarta, 13, e foi retomado no dia seguinte. O jul-

gamento agendado pela ministra Rosa Weber ocorreu no plenário, presencialmente. Os primeiros acusados têm idades entre 24 e 52 anos e são de cidades no Paraná e em São Paulo.

Na quarta, primeiro dia do julgamento, houve a apresentação do relatório e dos pronunciamentos tanto da PGR e defesa do primeiro réu. Em seguida, o relator, ministro Alexandre de Moraes, apresentou seu voto, e pediu pela condenação a uma pena de 17 anos, sendo 15 anos e 6 meses em regime fechado.

Já o revisor dos processos, ministro Kassio Nunes Marques, divergiu de Moraes e votou, na quarta, pela condenação do primeiro réu julgado no caso a uma pena de 2 anos e 6 meses, em regime aberto, descontado os meses que ele já ficou preso.

Aécio Lúcio Costa Pereira, 51, o primeiro condenado, foi enquadrado por cinco crimes e pegou pena de 17 anos de prisão Da Revista Cenarium Amazônia*
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Crédito: Reprodução
Redes Sociais

DOIS DIAS DE JULGAMENTO

Ao retomar a sessão, na quinta, Cristiano Zanin votou pela condenação para condenar o réu a 15 anos de prisão. Destes, seriam 13 anos e seis meses de reclusão, 1 ano e seis meses de detenção.

Zanin considerou que, durante os atos, houve um “contágio mental que transformou os aderentes em massa de manobra”, em que “os componentes da turba passam a exercer enorme influência aos outros, provocando efeito manada”.

Em seguida, André Mendonça defendeu a condenação do réu a uma pena de 7 anos e 11 meses de prisão pelos crimes de associação criminosa e abolição violenta do Estado democrático de Direito. Ele descartou a condenação pelo crime de golpe de estado, o que gerou discussão entre os ministros Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Zanin. O debate come-

çou quando o ministro Cristiano Zanin interveio no voto do colega e disse que a tentativa já seria suficiente para a classificação do crime.

Edson Fachin seguiu integralmente o voto de Moraes, assim como Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Rosa Weber.

VOTO DE BARROSO

Já o ministro Luís Roberto Barroso votou pelos crimes de associação criminosa armada, dano qualificado pela violência contra o patrimônio público, deterioração do patrimônio tombado e golpe de estado. Ele sugeriu uma pena de 10 anos de reclusão, 1 ano e 6 meses de detenção e multa.

O ministro descartou o crime de abolição violenta do Estado democrático de Direito, por considerar que as condutas praticadas já estariam inclusas no crime de golpe de estado.

Ele disse que a democracia brasileira “correu um risco real no dia 8 de janeiro” e que as suas articulações “transcorreram subterraneamente, em detalhes que vamos conhecer posteriormente”.

Em seu voto, a ministra Rosa Weber repetiu a frase de Moraes de que o que houve no dia 8 “não foi uma aventura, um passeio no parque”, e sim, “um domingo de devastação, o dia da infâmia”.

“Houve devastação do patrimônio físico e cultural do povo brasileiro, um total desprezo pela coisa pública. Quem entrou no prédio do STF duas horas depois da invasão viu tudo às escuras”, disse, acrescentando que estava acompanhada, na ocasião, dos ministros Barroso e Toffoli.

(*) Com informações da Folhapress e do site do STF

“Houve devastação do patrimônio físico e cultural do povo brasileiro, um total desprezo pela coisa pública. Quem entrou no prédio do STF duas horas depois da invasão viu tudo às escuras”
Rosa Weber, ministra do STF, em seu voto. Plenário do STF destruído após ataque de 8 de janeiro deste ano
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Crédito: Fellipe Sampaio | SCO STF

Supremo derruba tese do Marco Temporal

Tribunal decidiu que demarcação independe de que comunidades estivessem ocupando ou disputando a área na data de promulgação da Constituição Federal Da Revista Cenarium Amazônia*

BRASÍLIA (DF) – O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, no dia 21 de setembro, a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Por 9 votos a 2, o Plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031).

No dia 27 de setembro, o plenário definiu também a tese que servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 226 casos semelhantes que estão suspensos à espera dessa definição.

O julgamento começou em agosto de 2021 e é um dos maiores da história do STF. Ele se estendeu por 11 sessões, as seis primeiras por videoconferência, e duas foram dedicadas exclusivamente a 38 manifestações das partes do processo, de terceiros interessados, do advo-

Crédito: Fellipe Sampaio | SCO STF
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Indígenas acompanhando julgamento no STF REVISTA CENARIUM 19

gado-geral da União e do procurador-geral da República.

A sessão foi acompanhada por representantes de povos indígenas no Plenário do STF e em uma tenda montada no estacionamento ao lado do Tribunal. Após o voto do ministro Luiz Fux, o sexto contra a tese do marco temporal, houve cantos e danças em comemoração à maioria que havia sido formada.

ANCESTRALIDADE

Primeiro a votar nesta tarde, o ministro Luiz Fux argumentou que, quando fala em terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, a Constituição se refere às áreas ocupadas e às que ainda têm vinculação com a ancestralidade e a tradição desses povos. Segundo ele, ainda que não estejam demarcadas, elas devem ser objeto da proteção constitucional.

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Ao apresentar seu voto, a ministra Cármen Lúcia ressaltou que a Constituição Federal, ao traçar o estatuto dos povos indígenas, assegurou-lhes expressamente a manutenção de sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas. Para a ministra, a posse da terra não pode ser desmembrada dos outros direitos fundamentais garantidos a eles. Ela salientou que o julgamento trata da dignidade étnica de um povo que foi oprimido e dizimado por cinco séculos.

CRITÉRIOS OBJETIVOS

O ministro Gilmar Mendes também afastou, em seu voto, a tese do marco temporal, desde que assegurada a indenização aos ocupantes de boa-fé, inclusive quanto à terra nua. Segundo ele, o conceito de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, que baliza as demarcações, deve observar objetivamente os critérios definidos na Constituição e atender a todos.

POSSE TRADICIONAL

Última a votar, a presidente do STF, ministra Rosa Weber, afirmou que a posse de terras pelos povos indígenas está relacionada com a tradição, e não com a posse imemorial. Ela explicou que os direitos

desses povos sobre as terras por eles ocupadas são direitos fundamentais que não podem ser mitigados.

Destacou, ainda, que a posse tradicional não se esgota na posse atual ou na posse física das terras. Ela lembrou que a legislação brasileira tradicionalmente trata de posse indígena sob a ótica do indigenato, ou seja, de que esse direito é anterior à criação do Estado brasileiro.

O julgamento foi acompanhado por representantes de povos indígenas no Plenário do STF e em uma tenda montada ao lado do Tribunal. Após o voto

(TRF-4), para quem não foi demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença em que fora determinada a reintegração de posse.

Na resolução do caso concreto, prevaleceu o entendimento do ministro Edson Fachin (relator), que deu provimento ao recurso. Com isso, foi anulada a decisão do TRF-4, que não considerou a preexistência do direito originário sobre as terras e deu validade ao título de domínio, sem proporcionar à comunidade indígena e à Funai a demonstração da melhor posse.

(*) Com informações do STF

Aprovação no Senado

Marcela Leiros – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – Dezesseis senadores da Amazônia, do total de 27 parlamentares, votaram a favor do Projeto de Lei (PL) n.º 2.903/2023, que estipula que os povos indígenas só têm direito sobre as terras que ocupavam ou já disputavam no dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. A proposta do Marco Temporal tramitou no Senado, mesmo com a tese considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A aprovação ocorreu no dia 27 de setembro.

geral do CIR.

do ministro Luiz Fux, o sexto contra a tese do marco temporal, houve cantos e danças em comemoração à maioria que havia sido formada.

CASO CONCRETO

O caso que originou o recurso está relacionado a um pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) de reintegração de posse de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como de tradicional ocupação indígena. No recurso, a Funai contesta decisão do Tribunal Regional da 4ª Região

O levantamento da votação foi realizado no site do Senado, considerando apenas os nove Estados da Amazônia Legal (Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Tocantins, Mato Grosso, Maranhão, Roraima e Rondônia). Fora os 16 votos a favor, apenas sete senadores votaram contra o Projeto de Lei. Dois senadores não compareceram e outros dois estavam em missão.

No geral da votação, o PL do Marco Temporal foi aprovado por 43 votos a favor e 21 contrários. O PL foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa Legislativa e, agora, segue para sanção da Presidência da República. Antes de chegar ao Senado, o texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, com apoio da bancada ruralista e do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), em maio deste ano.

“Nossa luta é pela sobrevivência, pela preservação de nossas tradições e pela garantia de que as futuras gerações indígenas possam desfrutar das terras que nos foram negadas”
Edinho Macuxi, coordenador
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O papel da Procuradoria de Meio Ambiente

AProcuradoria de Meio Ambiente do Estado do Amazonas tem sua atuação voltada para a preservação e defesa do meio ambiente e do patrimônio histórico cultural do nosso Estado. Logo, o ofício desta Especializada é viabilizar juridicamente políticas públicas estatais voltadas ao interesse coletivo de preservação do bioma amazônico, sempre considerando os interesses da população amazonense, atual e futura, e o desenvolvimento sustentável.

As principais pautas tratadas são o equilíbrio entre desenvolvimento econômico do Estado do Amazonas e a preservação ambiental, bem como a manutenção das populações tradicionais em suas terras, mediante regularizações fundiárias de forma coletiva, e manutenção da mata em pé.

Também é de se destacar a atuação desta Procuradoria em defesa dos atos praticados pelos órgãos fiscalizadores, a fim de garantir que as ilicitudes sejam devidamente reprimidas e punidas, assegurando que tais punições sejam de fato concretizadas e aplicadas, impedindo o

avanço da degradação ambiental e, por fim, garantindo o caráter pedagógico das sanções.

Ademais, é de ressaltar a atuação extrajudicial na resolução de conflitos fundiários e ambientais, mediando as situações rotineiramente apresentadas, buscando-se sempre a melhor solução para as populações tradicionais e para a preservação do meio ambiente.

Além disso, esta Procuradoria se utiliza dos instrumentos jurídicos necessários para garantir que o planejamento estratégico desenvolvido pelos órgãos técnicos ambientais sejam devidamente concretizado, sem que haja obstáculos de ordem externa.

Esta é a Procuradoria de Meio Ambiente, sempre compromissada em manter sua atuação firme no propósito de defesa do meio ambiente e preservação do bioma amazônico.

(*) Luis Eduardo Mendes Dantas é procurador do Estado do Amazonas, procurador-chefe da Procuradoria do Patrimônio Imobiliário e Fundiário (PPIF) e procurador-chefe da Procuradoria do Meio Ambiente (PMA). Pós-graduado em Direito Constitucional, pela Universidade Candido Mendes (Ucam).

ARTIGO – LUIS EDUARDO MENDES DANTAS
Luis Eduardo Mendes Dantas
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Crédito: Divulgação PGE

Crise climática: alerta para desastres amazônicos

Cheias históricas, secas recordes, temperaturas acima do normal e fogo na floresta. Mudanças climáticas globais refletem na ocorrência mais frequente de eventos extremos na Amazônia

SÃO PAULO (SP) – Populações ribeirinhas, comunidades indígenas e outros habitantes de diversas regiões do Brasil, em especial da Amazônia, sofrem consequências dos eventos climáticos extremos em todo o mundo, em 2023. Um exemplo é o cenário de setembro no Amazonas, que concentrou altas temperaturas e baixa umidade. A combinação inflamável contribuiu para espalhar queimadas e levar fumaça densa para cidades como Manaus. Associada a essa equação caótica, há ainda a falta de chuvas e a consequente estiagem severa dos rios. O resultado desses eventos são problemas como carência de água potável e o desabastecimento de alimentos e outros suprimentos básicos, pela dificuldade logística do transporte, de acordo

com especialistas ouvidos pela  REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA.

As duas metrópoles da Amazônia –Manaus e Belém – figuram no topo entre as cidades que mais “vão ferver até 2050”, de acordo com estudo feito pela CarbonPlan e o jornal The Washington Post, que calculou quantos dias de calor cada cidade poderá enfrentar nesse futuro próximo. O Brasil enfrentou, na última semana de inverno, temperaturas ultrapassando os 40 °C na maior parte do País. Tais picos de calor, segundo os especialistas, devem se tornar cada vez mais comuns, em um futuro próximo.

A capital do Estado do Pará terá quase sete meses de temperaturas extremas, até 2050. Já a capital amazonense tem o maior valor absoluto entre as capitais brasileiras:

Alessandra Leite – Especial para a Revista Cenarium*
ECONOMIA & SOCIEDADE AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO 22 www.revistacenarium.com.br
Crédito: Ricardo Oliveira

O chamado ‘verão amazônico’ tem registrado temperaturas recordes

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258 dias, o equivalente a quase nove meses. O estudo da CarbonPlan e do jornal The Washington Post não possui uma lista em ranking das cidades, embora permita a consulta a diversos centros urbanos com grande população.

No final de julho deste ano, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, falou do descontrole sobre as mudanças climáticas e anunciou que o planeta já vive uma “era da ebulição”, ao insistir na urgência de conter a aceleração das alterações no clima.

António Guterres, secretáriogeral da Organização das Nações Unidas (ONU).

“A única surpresa é a velocidade das mudanças climáticas, que já estavam aqui. É assustador e é apenas o início. A era do aquecimento global acabou. A era da ebulição global chegou”, afirmou.

Constatada a crise climática mundial, agravada pelo El Niño em 2023, que aquece de forma anormal o oceano Pacífico na sua porção equatorial provocando alterações no clima, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ino-

Impactos

Climatologista e coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden, José Antônio Marengo chama a atenção da sociedade para os grandes impactos econômicos, sociais e de migração relacionados às tormentas que a região amazônica pode sofrer, com destaque para Manaus, sobretudo porque os rios são as “rodovias” naturais do Amazonas, e fenômenos como secas e inundações podem causar prejuízos incalculáveis à população.

“Temos observado que a frequência de inundações em Manaus tem aumentado, na última década. Agora, está cho-

vendo menos na estação seca, demora mais para chover”, disse Marengo. Ele explica que o El Niño favorece as altas temperaturas e, consequentemente, as secas, aumentando o risco de fogo e a diminuição dos níveis dos rios.

Com os acontecimentos recentes devido às alterações climáticas, o especialista destaca a preocupação com o comprometimento do transporte, a impossibilidade de entrada dos navios turísticos e, até mesmo, a necessidade de os alimentos serem levados de helicóptero para as regiões mais remotas, já que não existem estradas ou ferrovias.

“É assustador e é apenas o início. A era do aquecimento global acabou. A era da ebulição global chegou”
Retrato da seca no Amazonas Crédito: Ricardo Oliveira
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Crédito: Paulo Bahia | Cortesia
AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO ECONOMIA & SOCIEDADE
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AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO ECONOMIA & SOCIEDADE

vação (MCTI), produziu uma nota técnica com informações atualizadas sobre a evolução e os potenciais impactos decorrentes do fenômeno 2023-2024, em especial, no contexto das cidades, dos reservatórios para a geração de energia e/ou para abastecimento humano, da saúde pública, da agricultura e do risco de incêndios. Há, ainda, sugestões de ações de prevenção aos desastres.

Entre os efeitos conhecidos do El Niño, nos padrões regionais do clima no Brasil, estão incluídos desde secas nas regiões Norte e Nordeste do País até chuvas excessivas na Região Sul. O documento explica que as secas aumentam as chances de quebras de safras agrícolas e ocasionam a redução dos níveis dos reservatórios hídricos, trazendo impactos para a geração de energia elétrica e às condições de

navegação fluvial, além de potenciais riscos aos ecossistemas.

EFEITO ESTUFA

O El Niño é um fenômeno natural, que, neste ano, está ocorrendo com maior intensidade, mas não é ele o responsável pelo caos climático vivido no mundo, no Brasil e, em especial, na Amazônia. O El Niño é um agravante para os efeitos das mudanças climáticas causadas pela intervenção humana no planeta ao longo dos séculos.

Para o climatologista e ambientalista Alexandre Costa, não há nenhuma dúvida quanto à principal força motriz de tais alterações: o aumento da intensidade de efeito estufa, ocasionado pela ação humana, hoje muito maior do que nos tempos pré-industriais.

“Esse processo está associado à acumulação de gases de efeito estufa na atmosfera, por emissões humanas, e aí a gente inclui em especial o CO2, o dióxido de carbono produzido pela queima de combustíveis fósseis e desmatamento, além de outros gases, como metano, cujas fontes principais são a agropecuária, especialmente a criação de rebanhos de animais ruminantes, as operações de petróleo e gás e a decomposição de resíduos”, explana.

Conforme informou o climatologista e coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden, José Antônio Marengo, os desastres climáticos a que o mundo assiste agora, eram uma projeção do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas para as próximas décadas que foi antecipado. “Estamos vendo algo que não seria para agora e claro

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Fumaça em Manaus encobre paisagem natural da cidade

Savanização

Climatologista e coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden, José Antônio Marengo destaca ainda a preocupação com a possível savanização da Amazônia, que seria um ponto “de não retorno”, no qual o colapso de fato aconteceria, mudando o clima e tornando algo quase impossível de reverter.

“Atualmente, a Amazônia se comporta como sumidouro de carbono, absorve. Mas algumas regiões do leste da Amazônia, mais no leste do Pará, demonstram ter áreas com estação seca mais longa e início tardio das chuvas. Então, nesses locais, já está sendo liberado CO2. Estão se comportando como fonte de CO2”, explica.

Bombeiros tentam apagar queimada Crédito: Ricardo Oliveira
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Crédito: Ricardo Oliveira

AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO

Caminho: fontes sustentáveis

É consenso entre os especialistas entrevistados pela CENARIUM AMAZÔNIA que a saída possível se dá pela redução do uso dos derivados de petróleo e a adesão gradativa às energias sustentáveis, além de se ter um consumo mais inteligente, de modo a pressionar cada vez menos os recursos naturais. É o que menciona o coordenador-geral de Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Gilvan Sampaio, em consonância com os demais especialistas ouvidos pela reportagem.

“A sociedade de consumo que nós vemos hoje tem um uso exacerbado dos recursos naturais. É essa mudança de comportamento que deve acontecer. Ou seja, um consumo dos recursos naturais de maneira mais inteligente”, pondera.

Para Sampaio, a colaboração internacional é essencial para que se promova uma descarbonização da economia, em um acordo de utilizar cada vez menos as fontes associadas a combustíveis de origem fóssil e usar cada vez mais as fontes renováveis. “Essa é a principal tarefa das colaborações internacionais”.

que isso afeta todas as cidades, incluindo Manaus. A tendência para as ondas de calor é uma realidade”, ressaltou.

Marengo alerta para a combinação das ondas de calor, como as enfrentadas em Manaus, com a seca, aumentando assim o risco de incêndio nas florestas mais próximas à capital. O resultado disso são as nuvens de fumaça densa que têm deixado a cidade encoberta em diversos dias e prejudicado a saúde da população.

Para Marengo, os países, incluindo o Brasil, precisam honrar os compromissos do Acordo de Paris, para a redução da emissão dos gases de efeito estufa nos países.

Edição: Márcia Guimarães

Inundações recentes atingem os Estados do Amazonas e Acre
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ECONOMIA & SOCIEDADE

Migração Ambiental

Deslocamentos migratórios causados por eventos climáticos

Entre 2008 e 2019

21,5 milhões de novos deslocamentos média anual

Em 2022

60,9 milhões de deslocamentos

Até 2050

216 milhões de pessoas forçadas a migrar Segundo projeção do Banco Mundial

Recorde de

32,6 milhões associados a desastres ambientais

Registro do Global Report on Internal Displacement (Grid)

Regiões mais afetadas

▪ África Subsaariana

▪ Leste Asiático

▪ Pacífico

▪ América Latina

Banco Mundial e Grid.

Fontes:
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Crédito: Jorge Araújo | Fotos Públicas

Vazante severa no AM

Maior estiagem dos últimos dez anos muda

paisagem e rotina de moradores em Manaus

Ívina Garcia – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – Do alto da Avenida Ernesto Costa, no bairro Colônia Antônio Aleixo, Zona Leste de Manaus, a união entre o barroso Rio Solimões e o escuro Rio Negro se destaca no horizonte. Acostumados a ter o Encontro das Águas como paisagem diária, os moradores agora dividem a vista com o cenário devastador daquela que já é considerada a maior seca do Amazonas dos últimos dez anos, segundo medições do Porto de Manaus.

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SOCIEDADE 30 www.revistacenarium.com.br
Crédito: Ricardo Oliveira
AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO
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Imagem de drone capta a seca do Rio Negro, no Porto do Cacau Pirêra, no município de Iranduba, no Amazonas

AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO ECONOMIA & SOCIEDADE

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Construtor naval, Ygson Dantas possui uma empresa de construção de barcos às margens do Lago do Aleixo

Dois quilômetros de areia e lama seca dividem a rua do rio, que, antes, chegava à beira do penhasco, ocupando todo o espaço do lago e era utilizado como meio de locomoção. O longo caminho de terra cortado por um filete de água com a profundidade de 20 centímetros é reflexo da ausência de chuvas e do período de calor intenso no Estado.

O Lago do Aleixo é banhado pelas águas do Rio Negro e tem como principais atividades econômicas a pesca e o turismo aquático, voltados para o lazer e para a alimentação. O local também é ponto de saída para passeios que levam ao Encontro das Águas.

O construtor naval Ygson Dantas, que mora e trabalha no entorno do Lago do Aleixo há 22 anos, conta que a mudança na paisagem ocorreu abruptamente.

“Na quarta-feira (20 de setembro), eu estava na ponta daquele barco, quando foi [sic] dois dias depois aquele lugar onde andamos de barco agora estava em terra”, contou.

SECA HISTÓRICA

Dados coletados pela REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA no medidor oficial do Porto de Manaus mostram que a cota do Rio Negro chegou a 16,41 metros no dia

27 de setembro, com uma vazante de 33 metros no volume do rio. Em 2022, na mesma data, o rio media 22,21 metros, registrando uma vazante de 22 metros, com o dia mais grave registrado em 12 de outubro, quando o rio desceu 26 metros, com uma cota de 18,55 metros.

A atual medição ainda não superou a seca histórica de 2010, quando o Rio Negro chegou à cota mínima de 13,63 metros, registrada no dia 24 de outubro daquele ano. Apesar disso, a estimativa da Defesa Civil do Amazonas é de que o nível do rio reduza ainda mais até o fim de outubro, por conta do período sazonal e ultrapasse a medição recorde.

RETIRADA DE FLUTUANTES

Morador da região, Antônio Silva, 70, contou à reportagem que nunca tinha visto uma seca como a que está vivendo agora. “Tá bem pior que o ano passado”. Além da estiagem, os donos dos flutuantes estão preocupados com a retirada dos empreendimentos do local. Segundo Antônio, equipes da Prefeitura de Manaus, por meio da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas), estiveram no local e avisaram que, em breve, os flutuantes também devem ser retirados do Lago do Aleixo.

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Crédito: Ricardo Oliveira

AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO ECONOMIA & SOCIEDADE

Imagem do
de
seca e fumaça 34 www.revistacenarium.com.br
Porto
Manaus revela
Impactados municípios do Amazonas estão em estado de emergência 19 municípios do Amazonas estão em estado de alerta 35 ▪ Atalaia do Norte ▪ Benjamin Constant ▪ Amaturá ▪ São Paulo de Olivença ▪ Santo Antônio do Içá ▪ Tonantins ▪ Tabatinga ▪ Manaus ▪ Manaquiri ▪ Envira ▪ Itamarati ▪ Eirunepé ▪ Ipixuna ▪ Tefé ▪ Coari ▪ Jutaí ▪ Maraã ▪ Uarini ▪ Pauini ▪ Anamã ▪ Anori ▪ Caapiranga ▪ Careiro ▪ Careiro da Várzea ▪ Codajás ▪ Iranduba ▪ Manacapuru ▪ Novo Airão ▪ Boca do Acre ▪ Beruri ▪ Humaitá ▪ Manicoré ▪ Novo Aripuanã ▪ Nova Olinda do Norte ▪ Borba ▪ Guajará ▪ Carauari ▪ Juruá ▪ Alvarães ▪ Fonte Boa ▪ Japurá ▪ Barreirinha ▪ Boa Vista do Ramos ▪ Nhamundá ▪ Urucará ▪ São Sebastião do Uatumã ▪ Parintins ▪ Maués ▪ Rio Preto da Eva ▪ Itacoatiara ▪ Silves ▪ Itapiranga ▪ Urucurituba ▪ Autazes municípios do Amazonas estão em estado de atenção
municípios do Amazonas estão em estado normal 2 ▪ Lábrea ▪ Canutama ▪ São Gabriel da Cachoeira ▪ Santa Isabel do Rio Negro ▪ Barcelos ▪ Presidente Figueiredo ▪ Apuí
Municípios
5
Fonte: Boletim Informativo do dia 29 de setembro, sobre a Operação Estiagem 2023.
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Crédito: Ricardo Oliveira

Queimadas impactam saúde em Manaus

Fumaça intensifica problemas respiratórios e altera rotinas, na capital do Amazonas

Marcela Leiros – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – A fumaça que tem deixado Manaus encoberta, originada das queimadas na capital e em outras localidades do Amazonas, impacta diretamente na saúde de quem tem problemas respiratórios e até de quem não sofre de doenças das vias aéreas. Isso ocorre porque o calor intenso dessa época do ano, somado à redução da umidade do ar e à emissão de poluentes pela fumaça, provoca sintomas que vão desde tosse até irritação nos olhos, afetando a rotina da população.

Uma das pessoas que sentem diretamente o impacto da fumaça é Luiz Edu-

ardo Pereira de Araújo, de 10 anos. Ele sofre, há cerca de um mês, com tosse e falta de ar, o que já o afastou da escola por dez dias, com atestado médico.

“Eu começo a passar mal, sinto falta de ar. E se a fumaça for preta, ela deixa minha visão um pouco embaçada, aí não consigo nem enxergar direito”, conta o menino, que já passou pelo pronto-socorro, pelo menos, duas vezes no período e conversou com a reportagem no Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (Caic+) Josephina de Mello, localizado na Zona Sul de Manaus, onde estava para mais uma consulta.

A mãe, Dilse Cordovil Pereira, relata que próximo à residência onde moram, no conjunto João Paulo 2, bairro Cidade de Deus, há um ponto de queimada. Com a intensa fumaça, eles evitam ficar em casa ou precisam ficar “trancados” no quarto do imóvel.

“Quando a gente chega em casa, ele já começa a tossir, ele tosse muito. Aí a gente passa o dia todo na Cidade Nova, na casa da minha sogra, e só vamos para casa no final do dia, para dormir”, conta Dilse, afirmando que doenças respiratórias, como a asma, foram descartadas e os médicos foram categóricos: a causa dos

Manaus encoberta pela fumaça, em setembro deste ano
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Crédito: Ricardo Oliveira | Cenarium Amazônia

sintomas é a fumaça. “Quando estamos em casa, a gente tranca ele no quarto, fica lá até amenizar mais a fumaça”.

CRISE RESPIRATÓRIA

A assessora de comunicação Rafaely Mendonça também sentiu o impacto da fumaça, o que intensificou seus problemas respiratórios. Ela precisou se ausentar do trabalho para ir a uma unidade de saúde, além de interromper afazeres domésticos.

“Meus olhos estão ardendo e as costas doendo. Teve um momento, durante a noite, que eu espirrava sem parar, até quase ficar sem ar”, conta. “Com os olhos ardendo e muita dor de cabeça, fica difícil trabalhar. Ontem, tive o dia todo com crises, não consegui fazer nada, só espirrava o dia todo, fora que o corpo dói, não dá para arrumar a casa, ou fazer trabalho doméstico porque qualquer coisa a crise volta, ou pode piorar. No meu caso, como tenho rinite, se pegar em poeira, eu pioro”.

Assim como Rafaely Mendonça, a dona de casa Deisiane Justiniano Almeida, de 36 anos, também altera sua rotina, para evitar o agravamento dos sintomas. “O que eu

Luiz Eduardo Pereira de Araújo, de 10 anos; criança sofre com sintomas há cerca de um mês

Queimadas – Situação de emergência

Com o alto número de queimadas no Amazonas e previsão de que a estiagem deste ano seja prolongada e mais intensa, o governador do Estado, Wilson Lima (União Brasil), assinou, no dia 12 de setembro, decreto de Situação de Emergência Ambiental em municípios das regiões sul do Estado e Metropolitana de Manaus.

Será repassado R$ 1,1 milhão para remunerar a atuação de 153 brigadistas, em nove municípios do Estado, no combate a focos de queimadas dentro do “arco do desmatamento”, no sul do Amazonas, onde estão os municípios que concentram o maior número de focos de

sinto é dor na face, ardência no nariz, tosse seca e dor de cabeça. Sempre sinto isso, mas tem piorado, recentemente”, completa.

COMBINAÇÃO DE FATORES

O pneumologista David Luniere lembra que, nesse período, ocorre costumeiramente a redução da umidade, deixando o

calor, além de reforço nas operações já em andamento, como as Tamoiotatá e Aceiro, que contam com efetivo de 339 agentes estaduais e da Força Nacional. Caberá à Sema a articulação com os demais órgãos públicos para a definição e execução das estratégias de combate ao desmatamento ilegal e de queimadas não autorizadas, e ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) a coordenação da execução operacional das ações de resposta às ocorrências. O Corpo de Bombeiros também montou uma sala de situação para controle do Painel do Fogo, que monitora, via satélite, os focos de calor.

ar mais “seco”, com a ausência de chuvas e o aumento da temperatura. Manaus registrou o dia mais quente do ano no dia 1º de outubro, com os termômetros marcando 39,5ºC. Com a fumaça, ainda há a emissão de poluentes no ar.

“Esses dois fatos, ar seco e poluentes no ar, fazem com que ocorra uma irrita-

Crédito: Ricardo Oliveira |
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Cenarium Amazônia

“O que eu sinto é dor na face, ardência no nariz, tosse seca e dor de cabeça. Sempre sinto isso, mas tem piorado, recentemente”

Deisiane Justiniano Almeida, dona de casa.

ção da mucosa respiratória das pessoas, fazendo com que elas apresentem alguns sintomas, como tosse, dor ou desconforto torácico, queixa de sensação de falta de ar, percepção de chiado no peito, irritação na garganta, com presença de pigarro e rouquidão. Os olhos também não são poupados, podendo apresentar lacrimejamento, irritação no globo ocular, com vermelhidão e coceira”, explica.

Dicas de como evitar ou amenizar sintomas

Uso de medicação regularmente

Para quem tem alguma doença respiratória, usar regularmente e não apenas quando lembrar.

Umidificar o ar

Usar o aparelho no ambiente domiciliar ou de trabalho, de preferência aqueles em que é possível trocar a água do aparelho. Em caso de não haver um umidificador, usar baldes ou panelas, com água dentro.

Nebulização, inalar ou fazer lavagem nasal com soro fisiológico

Ideal para quem tem maior irritação na mucosa, principalmente de vias superiores (nasal), já que o ar seco pode levar ao aumento dos espirros e sangramentos.

Evitar a exposição ou contato ao poluente da fumaça

Na rua, usar máscara para evitar aspiração dos macropoluentes da fumaça.

Quem não sofre de doenças pulmonares, mas apresenta sintomas pela exposição à fumaça

Manter as janelas fechadas ou abrir a janela e ligar o ventilador, para que circule o ar; nos veículos, também fechar a janela; uso de colírio lubrificantes no globo ocular, em caso de irritação; procurar assistência médica, em caso de sintomas mais intensos.

Crédito: Ricardo Oliveira | Cenarium Amazônia
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Fonte: David Luniere, pneumologista.
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3.519 focos

temperaturas FOCOS DE CALOR TEMPERATURA Manaus 2023 Amazonas 2023 1º de agosto a 11 de setembro 9.399 2022 1º de agosto a 11 de setembro 12.905 27,16% de queda De 21 a 27 de agosto 257 De 1º a 10 de setembro 339 Agosto inteiro 328 Fontes: Sema/AM, Inpe e Inmet 39,5 ºC 1º de outubro (até o fechamento da edição) Recorde Manaus 2023
focos de incêndio Amazônia Maior número de queimadas em 16 anos 4
de incêndio
floresta Recorde histórico na Amazônia junho de 2007
Fogo e altas
3.075
focos
por hora na
Junho de 2023 39

‘Difícil respirar’

Qualidade do ar em Manaus tem variado entre “muito ruim” e “péssima”

MANAUS (AM) – A qualidade do ar em Manaus foi considerada como “muito ruim” a “péssima” no dia 28 de setembro, de acordo com consulta à plataforma do Sistema Eletrônico de Vigilância Ambiental (Selva), e moradores da cidade relatam dificuldades para respirar, além de dores de cabeça e cansaço. Na noite do dia 27 e durante a madrugada do dia 28, a fumaça tomou conta, mais uma vez, da cidade.

Conforme a plataforma, a qualidade do ar estava péssima, principalmente nas zonas Sul, Centro-Sul e Oeste. Na Zona Leste da cidade, principalmente nas regiões dos bairros São José Operário e Coroado, a qualidade foi considerada muito ruim. A escala da plataforma categoriza o ar da cidade entre “bom”, “moderado”, “ruim”, “muito ruim” e “péssimo”.

A neblina que cobre Manaus impacta diretamente na saúde, causando descon-

fortos e até problemas respiratórios. Nas redes sociais, moradores da cidade reclamam dos efeitos da fumaça. “Manaus está sob fumaça mais uma vez, cheiro forte de queimada e isso vem de ações conscientes. Tá [sic] insuportável e difícil respirar tranquilo”, publicou uma internauta na rede social X, antigo Twitter.

“Morrendo de enxaqueca por conta do inferno dessa fumaça que tá [sic] em Manaus. Meu Deus, socorro”, publicou outra internauta.

“Sem energia a noite inteira, não voltou até agora. Acordei com a garganta travada e os olhos secos. Isso é fumaça de queimadas e calor em Manaus”, disse outro.

CAUSA HUMANA

No dia 26 de setembro, o Corpo de Bombeiros do Amazonas confirmou que um incêndio de mais de três quilômetros de extensão avançava por uma área de

vegetação no distrito de Cacau Pirêra, no município de Iranduba, a 27 quilômetros de Manaus. Mais de 40 bombeiros atuavam no local. Dois dias depois, ainda era possível ver, de Manaus, as chamas e a fumaça da queimada de grande proporção.

Segundo os bombeiros, o incêndio é proveniente de ação humana e o vento, somado às altas temperaturas registradas, teve influência direta na rápida propagação das chamas.

“Alguém que passou por aqui, fez uma fogueira de forma negligente ou até mesmo criminosa. Por isso, mais uma vez, a gente pede que, em hipótese alguma, você faça fogo. O clima está muito propício à propagação de incêndios, então, certamente, foi atuação de uma pessoa que iniciou isso aqui”, declarou o comandante-geral do Corpo de Bombeiros do Amazonas, coronel Orleilso Muniz.

Marcela Leiros – Da Revista Cenarium Amazônia Crédito: Reprodução Selva
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Crédito: Ricardo Oliveira
EM EBULIÇÃO

As queimadas têm deixado a qualidade do ar muito ruim em Manaus

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Calor extremo

Países precisam diminuir CO₂ para controlar temperatura, aponta climatologista

BRASÍLIA (DF) – Nunca o planeta viveu um cenário com tantos gases de efeito estufa sobrecarregando a atmosfera, uma sequência longa de recordes diários de calor, a redução das extensões da camada de gelo da Antártica e do Ártico, além de um El Niño atípico, deixando os mapas dos oceanos cada vez mais vermelhos.

À REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA , o climatologista Francisco Eliseu Aquino declarou que, a menos que o mundo alcance zero emissões líquidas de CO2, as temperaturas continuarão em alta. “Ondas de calor e recordes de tem-

Estados brasileiros afetados pelo alerta vermelho da onda de calor Mayara Subtil – Da Revista Cenarium Amazônia
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Crédito: Inmet

“Ondas de calor e recordes de temperatura se tornam cada vez mais intensos e frequentes. Nos cabe lidar com esse cenário. Precisamos aumentar e muito a nossa resiliência”

Climatologista Francisco Aquino diz que é preciso pôr em prática meta global de emissão dos gases de efeito estufa

peratura se tornam cada vez mais intensos e frequentes. Nos cabe lidar com esse cenário. Precisamos aumentar e muito a nossa resiliência. É pôr em prática o esforço global de diminuição até 2035, a redução dos gases de efeito estufa em 50% e, quem sabe, uma redução quase próxima a zero em 2050”, disse o também chefe do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS).

A Organização das Nações Unidas (ONU) alertou, recentemente, que o mundo precisará reduzir suas emissões em 43% até 2030, e 60% até 2035, em relação a 2019, para viabilizar a neutralidade das emissões em 2050, passo essencial para conter o aquecimento em 1,5 °C. Mas sobre os compromissos climáticos atuais

dos países para conter o aquecimento global neste século, o quadro não é bom. Conforme o último relatório da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima (UNFCCC), apesar de terem elevado a ambição de suas promessas de redução das emissões de gases de efeito estufa, os comprometimentos atuais das nações seguem garantindo um aquecimento acima dos 2°C definidos pelo Acordo de Paris como limite máximo ao aumento de temperatura em relação aos níveis pré-industriais. Se nada for feito, surgirão novos riscos: perda de biodiversidade, escassez de água em terras áridas, eventos climáticos mais extremos, além da produtividade dos sistemas alimentares. E a intensa onda de calor que afeta o Brasil, neste

Segundo Natalie Unterstell, é necessário que os governos estaduais brasileiros façam um processo participativo e inclusivo de discussão das metas da NDC na região amazônica. “É particularmente importante olhar do ponto de vista amazônico. Já que a região tem uma grande participação nas emissões, a gente precisa fazer uma conversa dos amazônidas para o Brasil, que enfrente não só os desafios da redução das emissões, mas da transformação da economia, de bem-viver. A NDC pode ser um plano de investimento, um verdadeiro plano de investimento verde”, concluiu.

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Crédito: Reprodução | Senge-RS

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Alerta vermelho

Daleth Oliveira – Da Revista Cenarium Amazônia

BELÉM (PA) – O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) aumentou o grau de alerta devido à onda de calor no Brasil para nove Estados, entre eles, o Pará. Em comunicado publicado no dia 20 de setembro, o órgão informou que os Estados se encontravam sob um aviso de “grande perigo” devido às temperaturas acima da média.

A onda de calor iniciou no dia 17 e atingiu o ápice no fim de semana seguinte, com temperaturas na casa dos 40 °C no interior do País. Os nove Estados afetados, foram: Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Pará, Goiás, Mato Grosso do Sul e Tocantins. Esse alerta permaneceu em vigor até as 18h de domingo, 24, naquele fim de semana.

ÁREAS AFETADAS

Antes da elevação para o alerta vermelho, um aviso de nível laranja (que significa perigo) estava em vigor para sete Estados: Tocantins, São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Goiás. Com o calor excessivo, o Inmet aconselhou que as pessoas bebessem bastante água, evitassem atividades físicas, se protegessem do sol nos horários mais quentes, usassem hidratante para a pele e umidificassem o ambiente. Afinal, o aumento da temperatura pode reduzir a umidade relativa do ar, levando a problemas respiratórios, ressecamento da pele e desconforto.

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ano, é resultado das mudanças climáticas. “Estamos registrando, ao longo de 2023, recordes de temperatura em todos os continentes e nos dois hemisférios. Por isso que durante todo o inverno observamos temperaturas acima da média com alguns recordes”, complementou Francisco Eliseu Aquino.

MEDIDAS

Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, esclareceu à  REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA que uma das estratégias, sobretudo do Brasil, é descarbonizar. “Tem que desacelerar o ritmo das emissões atuais. Nós conseguiríamos chegar em 2030 com 80% de emissão, se reduzíssemos radicalmente o desmatamento em todos os biomas brasileiros, aumentássemos a restauração florestal na casa dos 4 milhões de hectares e, por fim, colocássemos um preço no carbono, ou seja, instituíssemos um mercado regulado”, detalhou.

O Brasil anunciou na Cúpula de Ação Climática a correção do compromisso que havia sido reduzido no governo Bolsonaro. Para corrigir o que ficou conhecido como “pedalada climática”, houve uma alteração percentual — de 37% para 48% até 2025, e de 50% para 53% até 2030.

“Tenho a satisfação de anunciar hoje que vamos atualizar nossa contribuição nacionalmente determinada no âmbito do Acordo de Paris, a NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada]. Vamos retomar o nível de ambição que apresen-

tamos originalmente na COP 21 e que tinha sido alterado no governo anterior”, leu Marina em nome do presidente Lula, durante a cúpula.

A Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) brasileira de 2015 tinha a meta de reduzir em 37% as emissões do País até 2025, em relação a 2005. Ainda indicava que as emissões poderiam ser reduzidas em até 43%, em 2030. “Entendemos que o governo atual não está fazendo nada mais do que sua obrigação de reafirmar o que, até hoje, foi a melhor oferta colocada pelo Brasil na mesa do clima”, reforçou Natalie.

Segundo o climatologista Francisco Eliseu Aquino, reduzir o desmatamento na Amazônia é o mesmo que reduzir os impactos climáticos no Brasil e no mundo. Além disso, a preservação da floresta contribui para a preservação da economia do País.

“É desmatamento zero, recuperação de áreas de preservação, proteção de margens de rio, implementação de todo o regramento ambiental, planejamento de cidades, de economia, de cenários futuros de desenvolvimento do nosso País”, disse.

Para se ter uma ideia, uma árvore em pé é capaz de absorver carbono da atmosfera, produzir alimentos, abrigar espécies e proporcionar serviços ambientais. Mas cada uma que tomba diminui a habilidade do bioma amazônico em produzir chuva ao País, por exemplo. Se é queimada, pior ainda, pois libera para a atmosfera o CO2, que demorou décadas para estocar.

Um alerta vermelho é emitido quando há a expectativa de um fenômeno meteorológico de “intensidade excepcional, com grande probabilidade de ocorrência de grandes danos e acidentes, com riscos para a integridade física ou mesmo à vida humana”.

Os alertas do Inmet coincidem com uma onda de calor atípica no Centro-Sul do País. Esse fenômeno é impulsionado pelo fenômeno El Niño mais intenso deste ano e pela Crise do Clima, que torna eventos climáticos extremos mais frequentes.

Temperatura extrema em cidade brasileira O
que significa alerta vermelho?
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Crédito: Nelson Antoine MCTI

Mortes de botos e ameaça a humanos

Após a morte de animais, pesquisadores alertam para risco a humanos em crise climática

MANAUS (AM) – A crise climática que assola o País tem deixado um rastro de devastação na fauna e flora. Pesquisadores consultados pela REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA

apontam que os humanos já são as novas vítimas, tanto nas zonas rurais quanto nas regiões urbanas. A morte de cinco pessoas pelo calor excessivo, em São Paulo, e a passagem de um ciclone no Rio Grande do Sul, mostram como as mudanças climáticas representam riscos iminentes à população.

A bióloga e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Sandra de Souza Hacon explica que as altas temperaturas e as ondas de calor podem causar um estresse térmico, quando o corpo humano não consegue dissipar a temperatura de maneira eficiente, levando a um desequilíbrio nas funções fisiológicas. Isso pode ser particularmente perigoso para pessoas com comorbidades, como diabete e problemas cardíacos, além de idosos e crianças.

“Um indivíduo saudável pode não apresentar sintomas clínicos, mas as pessoas mais vulneráveis podem sofrer uma série de efeitos adversos e, em casos graves, um estresse térmico que pode levar à síncope”, detalhou a pesquisadora. Em São Paulo, além dos óbitos, a capital registrou o dobro de atendimentos ambulatoriais e internações causados pela exposição ao

calor, de janeiro a julho, na comparação com o mesmo período de 2022.

SECA DEIXA EM ALERTA

Se para a população urbana as ondas de calor são um fator de alerta, nas comunidades ribeirinhas da Amazônia outro risco vem das águas. Um paradoxo no qual a principal fonte de vida pode representar um risco de morte. O pesquisador em Saúde Pública Felipe Naveca, da Fiocruz, destaca que a crise climática abre caminho para uma série de ameaças à saúde dos ribeirinhos.

“Tudo o que a gente faz, que afeta o meio ambiente, pode nos trazer problemas graves e afetar o ecossistema que estava em equilíbrio”, pontuou.

Estados como o Amazonas e o Acre, ambos da Amazônia, têm enfrentado uma estiagem que promete bater recordes. No

Yana Lima – Da Revista Cenarium Amazônia Boto morto em lago no município de Tefé, interior do Amazonas
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Crédito: André Kumark Instituto Mamirauá

primeiro, falta apenas 1,66 metro para o Rio Negro bater o nível histórico de seca. A estiagem severa fez com que o Estado decretasse emergência em 55 municípios. No segundo Estado, a capital, Rio Branco, entrou em emergência após o nível do Rio Acre marcar 1,41 metro na cidade.

Naveca explica que as alterações nos ecossistemas podem aumentar o contato humano com vetores, como insetos transmissores de doenças como a malária. Já a escassez de água também pode levar à concentração de patógenos, aumentando as chances de doenças transmitidas pela água, como hepatites virais (hepatite A e E) e infecções bacterianas, como a leptospirose.

O pesquisador mencionou ainda a ameaça do rotavírus, causador da diarreia. Estes agentes podem se espalhar mais facilmente em populações já debilitadas pela falta de alimentação adequada e as condições representam riscos que podem levar à morte. Há, ainda, o perigo do surgimento de novas doenças.

“Além disso, a crise climática pode criar condições propícias para o surgimento de novas doenças e aumentar a ocorrência de doenças raras, que não seriam tão pre-

valentes em um ambiente equilibrado”, pontua Felipe Naveca.

bro deste ano. A suspeita é o aumento da temperatura na água no Lago Tefé e Médio Solimões, já que resultados prévios apontam que, em alguns pontos, ultrapassou 39 °C (Graus Celsius), nível preocupante para ecossistemas aquáticos.

Fleischmann explica que a degradação das carcaças de animais contamina a água, o que deixa a população local sem água potável para plantar e sem poder pescar para comer. “Não sabemos, ainda, se há algum patógeno, algum problema, alguma contaminação na água, que tenha causado essa mortandade. Estamos investigando isso”, pontua.

Sandra de Souza Hacon, bióloga e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

ANIMAIS SÃO VÍTIMAS

Direto da região do Médio Solimões, em Tefé (a 523 quilômetros de Manaus), o pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Ayan Fleischmann, faz parte da ação emergencial para salvar botos no município. Mais de 100 animais, entre botos-vermelhos e tucuxi, morreram, entre 23 e 29 de setem-

O instituto está monitorando a qualidade das águas do Lago Tefé, incluindo a medição da temperatura, qualidade da água e batimetria (profundidade) em trechos críticos. Amostras de água estão sendo enviadas para São Paulo e Rio de Janeiro, para identificar possíveis contaminantes e toxinas.

“Estamos acompanhando diariamente a qualidade da água aqui do Lago Tefé e do Médio Solimões para poder informar toda essa cadeia de agentes e instituições que estão se estruturando para lidar com essa crise”, destaca Fleischmann.

Carcaças de botos mortos contaminam Lago Tefé
“Um indivíduo saudável pode não apresentar sintomas clínicos, mas as pessoas mais vulneráveis podem sofrer uma série de efeitos adversos e, em casos graves, um estresse térmico, que pode levar à síncope”
“Não sabemos ainda se há algum patógeno, algum problema, alguma contaminação na água, que tenha causado essa mortandade. Estamos investigando isso”
Ayan Fleischmann, pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
Crédito: André Kumark
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| Instituto Mamirauá

Emergência: ‘170 mil pessoas afetadas’

Governador do AM, Wilson Lima decreta situação de emergência no Estado

Yana Lima – Da Revista Cenarium Amazônia O governador do Amazonas, Wilson Lima, na primeira reunião do comitê de crise
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Crédito: Divulgação | Secom

MANAUS (AM) – O governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), decretou estado de emergência em todo o Amazonas e anunciou a criação de um comitê especial para gerenciar a crise causada pela estiagem. O anúncio foi feito no dia 29 de setembro, em coletiva de imprensa na sede do governo.

Wilson Lima afirmou também que, além de pedir auxílio ao governo federal, está buscando o apoio de outros Estados, como Mato Grosso do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. “Mais de 170 mil pessoas já estão sendo afetadas pelos efeitos da estiagem no Estado”, declarou.

Mato Grosso do Sul foi o primeiro Estado a responder positivamente ao apelo do Amazonas. Eles informaram que, no próximo domingo, enviarão uma aeronave equipada com um helibalde, um dispositivo utilizado no combate a incêndios florestais.

“Quero fazer um agradecimento ao Estado do Mato Grosso do Sul, que está encaminhando para o Estado do Amazonas um helicóptero para combater os incêndios. Esta aeronave deve chegar, agora, no início da semana. (…) Da mesma forma como estamos conversando com os governos de São Paulo e Rio de Janeiro, para ceder outras aeronaves e estruturas para nos ajudar neste trabalho”.

Além disso, o governador do Amazonas solicitou o apoio da Força Aérea Brasileira (FAB) para distribuir, aproximadamente, 50 mil cestas básicas às comunidades remotas, distantes das regiões metropolitanas do Estado.

REFORÇO

Para reforçar as ações de combate à crise, o Governo do Amazonas pediu a presença de agentes da Força Nacional e do Prevfogo, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Revonáveis (Ibama). Além disso, foi assinado um contrato para a realização da dragagem dos rios, um processo que envolve a remoção de sedimentos e detritos dos leitos dos rios. O início deste processo está previsto para ocorrer no Rio Solimões, próximo à cidade de Itacoatiara, distante 270 quilômetros de Manaus.

Segundo o governador, no decreto de emergência, constará a suspensão da necessidade de licença ambiental, perfuração de poços e a isenção no Restaurante Popular, nos municípios mais afetados. O governador anunciou ainda o lançamento de edital para credenciamento de produtores no Programa de Regionalização da Merenda Escolar, no qual serão investidos R$ 8 milhões.

O comitê de gerenciamento se reuniu ainda no dia 29, pela primeira vez. O grupo é presidido pelo governador, coordenado pela Defesa Civil, e tem como membros representantes de secretarias e autarquias ligadas à estiagem. O grupo se reuniu com representantes de Poderes e

setor produtivo para apresentar um panorama atual da crise.

Nesta semana, o governador se reuniu com representantes do governo federal, que, embora tenha garantido apoio ao Estado, não deu detalhes sobre o aporte federal. Ainda não foi informado o montante de recursos e a resposta a outras demandas do Amazonas, como o adiantamento de benefícios do governo federal, como o Seguro Defeso, e recursos de emendas parlamentares.

“Estamos preocupados com três aspectos: a questão humanitária, o combate às queimadas e a atividade econômica”, destacou Wilson Lima.

Crédito: Ricardo Oliveira
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A mortandade de milhares de peixes é uma das consequências da estiagem severa

AMAZÔNIA EM EBULIÇÃO

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Crédito: Ricardo Oliveira

Adrisa De Góes – Da Revista Cenarium

Amazônia

MANAUS (AM) – A mortandade de milhares de peixes e espécies dos rios amazônicos tem sido um dos principais impactos da severa estiagem deste ano. Na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Lago do Piranha, por exemplo, no Rio Paranã Campinas, localizada no município de Manacapuru (distante 68 quilômetros de Manaus), moradores afirmam que a mortandade de peixes causada pela seca dos rios deixou a água que abastece a comunidade imprópria para o consumo.

No dia 26 de setembro, várias espécies de peixes mortos emergiram à beira do

Peixes morrem aos milhares

lago, devido à diminuição do volume da água e, por consequência, do nível do oxigênio. Cenas semelhantes foram vistas em diversos locais do Amazonas.

À  REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA, o presidente da comunidade Braga, Noé Marques de Souza, disse que a única fonte de abastecimento de água na região é o Lago do Piranha e que comunitários têm sofrido os impactos da morte de centenas de peixes. Apesar de receber tratamento com produtos químicos, a água ainda permanece com odor fétido.

“Ainda que a gente pegasse a água do lago, abastecesse a caixa d’água e fizesse o tratamento com sulfato e cloro, ainda ficava com cheiro e gosto ruim, de coisa

podre, mas a gente tinha que usar, era o jeito, não tinha de onde tirar. A gente pediu ajuda da prefeitura, que trouxe cestas básicas e água portável para a comunidade e é o que ainda está nos mantendo”, afirmou o líder comunitário.

Ainda segundo o presidente da comunidade do Braga, as pessoas da localidade utilizam a água do lago para beber, cozinhar e tomar banho, além de outros serviços domésticos. Ele explica que, por necessidade, a água continuou a ser consumida após a mortandade de peixes, o que acarretou problemas de saúde aos comunitários. “Algumas pessoas da região, que se utilizam desse lago, tiveram dor de estômago e diarreia”, disse.

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Crédito: Ricardo Oliveira

Eneva é alvo de denúncia: povos tradicionais relatam ameaças de morte

Lideranças e Comissão

Pastoral da Terra (CPT) informam que pessoas armadas e ligadas à empresa, responsável pela Usina Termelétrica

Azulão, na Bacia do Amazonas, rondam comunidades próximas ao empreendimento à procura de líderes e verbalizam ameaças

Márcia Guimarães – Da Revista

Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – Lideranças de povos tradicionais e Comissão

Pastoral da Terra (CPT) - Prelazia de Itacoatiara denunciaram a órgãos federais que pessoas ligadas à empresa Eneva S/A, responsável pela Usina Termelétrica Azulão, na Bacia do Amazonas, têm rondado comunidades próximas ao empreendimento, com armas em punho e verbalizando ameaças de morte a lideranças indígenas e de comunidades tradicionais. A denúncia se baseia em relatos e registros feitos pelas próprias lideranças, segundo a CPT, que acompanha o conflito entre as populações da região e a

empresa. Conforme a comissão, há, ao menos, cinco lideranças ameaçadas de morte, até o momento. O empreendimento impacta diretamente populações tradicionais nos municípios de Silves e Itapiranga, no Amazonas.

“Eles queimaram minha casa”, disse uma das lideranças ameaçadas ouvida pela reportagem, que terá sua identidade preservada por questões de segurança.

De acordo com informações da CPT, no dia 16 de agosto deste ano, quando membros da comissão chegavam à Comunidade Aldeia Gavião Real, em Silves, para fazer o mapeamento das aldeias, as lideranças os informaram que uma caminhonete branca, modelo Amarok, com homens que se identificaram como funcionários da Eneva, havia acabado de sair da localidade e que estavam à procura do cacique da aldeia. “Segundo os relatos, os funcionários da empresa tiraram fotos da casa do cacique, do barracão da aldeia e de outros lugares. Relataram também que não era a primeira vez que pessoas supostamente ligadas à Eneva estariam rondando a aldeia”, afirma Jorge Barros, membro da CPT - Prelazia de Itacoatiara. A reportagem ouviu um indígena morador da aldeia que confirmou esses relatos.

O relato mais grave, de acordo com Barros, foi feito por um jovem indígena, que contou que, no mês de julho deste ano, viu uma picape branca e um carro cinza

cheios de homens armados próximos ao ramal de acesso à aldeia. Segundo o rapaz, ele havia ido caçar, ouviu o barulho dos carros e foi olhar quem era. Ele conta que viu três homens saindo dos carros, com armas nas mãos, que, segundo o rapaz, eram revólveres e uma arma parecida com espingarda. Segundo o jovem, um dos carros usados pelo grupo armado era igual ao que foi visto, posteriormente, com os homens que se identificaram como funcionários da Eneva.

Segundo Barros, o jovem disse que se escondeu no mato, uns 15 metros longe da margem da estrada de onde os carros estavam. Ele contou que ouviu os homens falarem claramente o nome do cacique da aldeia e de mais duas lideranças. Segundo a denúncia, os homens “diziam que iriam acabar com o problema e que queriam ver quem iria ter coragem para falar alguma coisa”. Esse jovem acredita que estão querendo assassinar o cacique, em virtude dele questionar a exploração do gás.

Segundo a CPT, as denúncias foram encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF), à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que estão acompanhando o caso.

Questionado pela reportagem se confirmava o recebimento da denúncia, o MPF, por meio de sua assessoria de comunicação, informou que “confirma o rece-

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MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE ECONOMIA & SOCIEDADE USINA DO AZULÃO

Vista aérea do Campo do Azulão, onde a empresa Eneva é a responsável pelo empreendimento

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Crédito: Reprodução Eneva

USINA DO AZULÃO

MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE ECONOMIA & SOCIEDADE

Poços de gás localizados próximos a comunidades indígenas

Liderança ouvida pela reportagem.

bimento das denúncias mencionadas”. Informou ainda que, “o órgão ministerial já acionou o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Amazonas e comunicou órgãos públicos sobre a situação”.

Também questionada se confirmava o recebimento da denúncia de ameaças de morte e quais medidas de proteção foram tomadas, a Funai informou, por meio da assessoria de comunicação, que “recomendou ao órgão ambiental do Amazonas (Ipaam), a suspensão do curso do processo de licenciamento ambiental do empreendimento, até que seja devidamente regularizado o Componente Indígena, vez que as licenças foram emitidas sem a devida consulta ao órgão indigenista”.

A reportagem também solicitou informações ao MPI sobre o recebimento das denúncias e medidas tomadas para a proteção das pessoas ameaçadas e comunidades locais. Não houve resposta, até o fechamento desta edição.

TENTATIVA DE CRIMINALIZAÇÃO

Além das ameaças de morte, aponta Barros, há ainda uma tentativa de criminalização. “As sessões da Câmara Municipal de Silves viraram espaço de ataques contra os indígenas. Dizem que os indígenas são farsantes, que não existem indígenas na região de Silves e Itapiranga. Desqualificam a luta dos povos, o tempo todo”, afirma.

RISCO AO MODO DE VIDA

A presença de poços de extração de gás próximos às comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas é ainda uma ameaça ao modo de vida desses povos tradicionais. De acordo com informações da CPT, o empreendimento está preju-

“Eles queimaram minha casa”
Crédito: CPT Itacoatiara Crédito: CPT Itacoatiara 56 www.revistacenarium.com.br
Crédito: CPT Itacoatiara

Impactos da exploração de gás sobre comunidades de Silves e Itapiranga

Blocos de extração de gás estão sobrepostos a territórios indígenas, à área do Acordo de Pesca, Portaria Ibama n.º 2 de 28/01/2008, e ao Aquífero Alter do Chão, e afetam diretamente os rios Urubu, Amazonas e Uatumã. Prejudicam a pesca, a caça e colocam em risco às águas.

Prejudica o acesso a alimentos

Os animais estão fugindo e a floração das espécies nativas não é mais como antes.

A presença de máquinas e do fogo da queima do gás afasta as caças e os pássaros e há escassez de frutas.

Riscos à qualidade da água

Ameaça de contaminação do aquífero de Alter do Chão, do Lago do Canaçari, dos rios Sanabaní e Urubu, dos lagos do Anebá e Curuá e de todos os igarapés e mananciais da região.

Destruição

de registros históricos

Poços de gás próximos às comunidades ameaçam a integridade de sítios arqueológicos e cemitérios indígenas.

Ameaças de morte

Indígenas denunciam presença de homens armados rondando as comunidades e procurando por lideranças.

Fonte: Comissão Pastoral da Terra – Prelazia Itacoatiara.
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CENARIUM

Procurada pela reportagem para se manifestar sobre os relatos de ameaças de morte, a Eneva S/A informou, por meio de nota enviada por sua assessoria de imprensa, que “repudia toda e qualquer prática violenta, seja de funcionários diretos, indiretos e/ou fornecedores”. “Valorizamos as regiões em que estamos presentes e mantemos um diálogo transparente e pacífico com as comunidades locais. Mantemos um processo periódico de comunicação com os representantes locais, marcado pela abordagem totalmente pacífica e sem nunca ter identificado incidente de qualquer natureza”, diz a empresa, na nota.

A Eneva informou ainda que “destaca que todos os processos de licenciamentos de seus empreendimentos na Amazônia cumprem rigorosamente as leis e os regulamentos”. Também segundo a empresa, seus empreendimentos “permitem contribuir com o desenvolvimento, com a inegociável preservação da vida e do meio ambiente, com a geração de empregos e

dicando o acesso a alimentos, oferece riscos à qualidade da água e pode destruir registros históricos.

O empreendimento, segundo a CPT, impacta sete aldeias em Silves (Curuá, 12 famílias; Gavião Real II (Conceição), 14 famílias; Livramento, 100 famílias; Mura Carará, 19 famílias, Santo Antônio, 14 famílias; São Francisco, 27 famílias; Vila Barbosa, 49 famílias) e duas em Itapiranga (Vila Izabel, 14 famílias).

A CPT informa que há blocos de gás sobrepostos a territórios onde há aldeias do povo Mura, em Silves e Itapiranga, e que há, também, indígenas dos povos Baré, Sateré-Mawé e Munduruku que vivem nessas aldeias. “Os blocos de gás estão sobrepostos a estes territórios, a diversos sítios arqueológicos, à área do Acordo de Pesca, Portaria Ibama n.º 2 de 28/01/2008, a cemitérios indígenas, ao Aquífero Alter do Chão, e afetam diretamente os rios Urubu, Amazonas e Uatumã”, disse Jorge.

Outro Lado

oportunidades e com o alinhamento às novas matrizes econômicas para a região”.

A Eneva encerra sua nota, dizendo que é a “maior operadora privada de gás natural onshore do Brasil e empresa integrada de energia”, que “segue as melhores práticas de governança, está listada no Novo Mercado da B3 desde 2007 e integra a carteira do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE B3), sendo listada entre as companhias com o melhor desempenho em práticas de sustentabilidade em suas operações. A companhia é signatária do Pacto Global das Nações Unidas (ONU)”.

IPAAM

Citado pela denúncia da CPT como um órgão que atua em favorecimento da empresa Eneva, o Ipaam também foi procurado pela reportagem e informou, por meio de nota, que “atua de maneira isenta e em obediência à legalidade”. Ainda segundo o órgão, “o licenciamento ambiental segue rigorosa instrução admi-

“Os povos vivem da caça, da pesca e do extrativismo. A Terra para eles é “mãe e filha”, uma troca mútua de cuidado. Se a exploração contaminar as águas, o ar, o chão, a floresta, como vão sobreviver?”, acrescenta o integrante da CPT, referindo-se à ameaça ao modo de vida dos povos tradicionais.

Ainda de acordo com Jorge Barros, os indígenas têm relatado que a fauna e a flora das regiões impactadas hoje pela exploração do gás eram áreas muito ricas, mas, que, desde 2022, tem se observado que os animais estão fugindo e que a floração das espécies nativas não é mais como antes. “Contam também que, desde quando as máquinas começaram a trabalhar e o fogo da queima do gás começou a aparecer continuamente, as caças e os pássaros estão sumindo, e não se acha mais quase nada de fruta no mato, que essa situação piorou, do mês de junho de 2023 para cá. Os barulhos ficaram mais intensos”, destaca o membro da CPT.

nistrativa com procedimento legal previamente estabelecido, que impede qualquer tipo de favorecimento”.

“O Ipaam esclarece, ainda, que desconhece a existência de terras indígenas e comunidades tradicionais próximas ao empreendimento, pois durante a instrução administrativa não foi identificado nenhum registro. As análises técnicas prévias realizadas no perímetro não apontam a existência de Terras Indígenas (TI) na localidade, o que vem a ser um ponto primordial para a concessão de licenças ambientais”, concluiu o órgão, na nota. A CPT explica que não há terras demarcadas, mas há territórios historicamente ocupados por indígenas. Documentos da Funai atestam a presença das comunidades indígenas e que há um processo de homologação do território em andamento.

A reportagem também tentou ouvir o deputado Sinésio Campos e a Prefeitura de Silves sobre a acusação de favorecimento. Não houve retorno até o fechamento desta edição.

“São muitas as ilegalidades e violações de direitos e pode-se afirmar que a exploração de gás nessa região do Amazonas “é um dos maiores erros já cometidos pelo Estado brasileiro”
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Jorge Barros, membro da CPT, Prelazia de Itacoatiara.
USINA DO AZULÃO MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE ECONOMIA & SOCIEDADE

QUILOMBOLAS E RIBEIRINHOS

Ainda segundo a CPT, as comunidades tradicionais que residem às margens do Lago do Canaçari, dos rios Sanabaní e Urubu, dos lagos do Anebá e Curuá e de todos os igarapés e mananciais, e às margens da Rodovia AM-363 também são afetadas pelos mesmos problemas enfrentados pelos indígenas.

“Quanto ao povo quilombola, os lagos e rios dessa região são quase todos interligados. No Lago de Serpa, no município de Itacoatiara, existe uma comunidade quilombola já certificada pela Fundação Palmares e cujo território encontra-se em processo de titulação. O Lago de Serpa é interligado ao Rio Urubu, Rio Amazonas e outros igarapés afetados pela exploração do gás, dessa forma essa comunidade quilombola também é afetada”, disse Barros.

FAVORECIMENTO

A CPT e lideranças locais também acreditam em favorecimento do poder público à empresa. “Acompanhamos essa realidade dos povos com muita preocupação, pois o que se percebe é que há um possível favorecimento e apoio do Poder Público, através do Ipaam [Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas], da Comissão de Geodiversidade, Recursos Hídricos, Minas, Gás, Energia e Saneamento da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, na pessoa do deputado Sinésio Campos, de vereadores e da prefeitura do município de Silves ao projeto de exploração de gás e óleo da Eneva”, afirma Jorge Barros, membro da CPTPrelazia de Itacoatiara, que acompanha o conflito, desde o início.

Para Jorge, “são muitas as ilegalidades e violações de direitos e pode-se afirmar que a exploração de gás nessa região do Amazonas “é um dos maiores erros já cometidos pelo Estado brasileiro”. “Não se tem dúvidas que há interesse político em questão, pois um projeto como esse, que coloca em risco a vida de tantos povos e de todo um ecossistema sem nenhuma timidez, só pode prosperar se houver o apoio do Estado”, disse.

Documento da Funai que atesta a presença de povos indígenas em comunidades de Silves e que assinala haver um processo de homologação do território em andamento
Crédito:
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Documento Funai Atesta Indígenas

USINA DO AZULÃO

Empresa ignora MPF e faz audiências para projeto

Ministério Público Federal recomendou cancelamento de audiências públicas sobre usina termelétrica, por descumprimento de procedimentos obrigatórios e falta de transparência. MPI e Funai apontam irregularidades

Jefferson Ramos e Ívina Garcia – Da Revista Cenarium Amazônia*

até que fosse elaborado o Estudo de Componente Indígena (ECI), procedimento obrigatório para a concessão de licença ambiental, que visa garantir o direito dos povos indígenas impactados pelo empreendimento, além da realização de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais da região, como previsto na Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Apesar das irregularidades apontadas, as reuniões foram agendadas nos municípios de Silves e Itapiranga, cidades afetadas pelo empreendimento. O Ipaam também foi alvo da recomendação, por mediar as duas audiências.

participação democrática e transparente nas audiências, nem há motivo de urgência para justificar a realização de tais reuniões.

As audiências foram realizadas nos dias 2 e 3 de setembro para apresentar o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) para ampliação do campo de Azulão, localizado nos dois municípios.

MANAUS (AM) – A empresa Eneva S/A ignorou recomendação do Ministério Público Federal (MPF) e realizou audiências públicas, nos dias 2 e 3 de setembro, para tratar do projeto de ampliação da Usina Termelétrica Azulão, na Bacia do Amazonas, mesmo com irregularidades apontadas pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). As irregularidades foram identificadas no processo de licenciamento ambiental e na consulta aos povos indígenas e tradicionais da região, que indicam não haver informações para participação transparente e democrática da população afetada.

No dia 1º de setembro, o MPF recomendou à Eneva e ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) que as audiências públicas convocadas para os dias 2 e 3 deste mês fossem canceladas

Segundo o MPF, MPI e Funai, o adiamento das audiências era necessário diante do risco de acirramento de conflitos e ameaças contra os povos indígenas e tradicionais da região.

O projeto da Eneva, empresa responsável pela usina, prevê que o novo empreendimento de exploração de gás seja instalado a 200 quilômetros de Manaus (AM), no município de Silves, com potencial impacto na vida de, aproximadamente, 190 famílias indígenas e nas comunidades tradicionais que vivem na região, como populações ribeirinhas e extrativistas.

Em sua recomendação, o MPF segue a mesma linha de irregularidades apontadas pela Funai e MPI. Além disso, conforme aponta a recomendação, não foram disponibilizadas à população local as informações necessárias para uma efetiva

De acordo com informações do MPF, as populações afetadas reclamam que não foram informadas sobre a realização das audiências, demonstrando a ausência de publicidade e transparência do tema. O EIA-Rima publicado na página do Ipaam menciona apenas os territórios indígenas homologados na região, sem fazer nenhuma referência aos demais territórios indígenas e tradicionais existentes no município de Silves e Itapiranga.

A recomendação do MPF foi enviada ao Ipaam e à Eneva S/A com prazo de 24 horas, a contar do recebimento da notificação, para informar se acatariam à recomendação e para realizar o encaminhamento ao MPF de esclarecimentos detalhados acerca das providências adotadas.

A medida tomou por base informações colhidas no inquérito conduzido pelo MPF sobre os possíveis impactos a povos indígenas e comunidades tradicionais decorrentes da exploração de petróleo e gás na Bacia do Amazonas.

Questionado pela REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA sobre que providências tomará diante do não atendimento da recomendação, o MPF informou que

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MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE ECONOMIA & SOCIEDADE

está analisando as medidas cabíveis em relação ao caso.

A reportagem procurou a Eneva, por meio da assessoria de imprensa, que afirmou, por meio de nota, que “o licenciamento ambiental do projeto termelétrico tem na realização das audiências públicas passos importantes e imprescindíveis de diálogo transparente com a sociedade civil, em especial com as comunidades de Silves, Itapiranga e municípios da região do interior do Amazonas”.

“A partir dessa etapa, fundamental para conferir transparência ao processo, é pos-

sível coletar sugestões e recomendações para que se aprimorem as ações previstas”, afirmou a empresa.

A Eneva destacou, por meio da assessoria de imprensa, que as audiências “foram divulgadas ampla e previamente, com engajamento da sociedade civil e em parceria com os órgãos públicos competentes”. Segundo nota da assessoria, os encontros em Silves e Itapiranga reuniram, ao todo, mais de 700 pessoas, em setembro, “com grande interação entre os presentes, de forma pacífica e clara, em aproximadamente oito horas de diálogo”, ressaltou.

Empreendimento impacta, aproximadamente, 190 famílias indígenas e de comunidades tradicionais, como populações ribeirinhas e extrativistas.

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Crédito: Reprodução YouTube Eneva Campo do Azulão visto por um ângulo de frente
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USINA DO AZULÃO

MEIO AMBIENTE & SUSTENTABILIDADE ECONOMIA & SOCIEDADE

ACOMPANHAMENTO

A assessoria de comunicação do Ministério Público do Amazonas (MP-AM) informou que o órgão acompanhou as audiências públicas, representado pelo promotor de Justiça Márcio Pereira de Mello.

“As audiências públicas são de grande importância para ouvir sobre os anseios da comunidade diretamente afetada pelo empreendimento e para esclarecer dúvidas, devendo ser levada em consideração pelo órgão ambiental responsável pelo licenciamento. O Ministério Público se posiciona ao lado da comunidade, na defesa dos direitos coletivos e do meio ambiente, não somente no dia da audiência pública, mas se encontra à disposição da população nas promotorias de Silves, Itapiranga e demais unidades ministeriais”, disse o promotor, segundo texto divulgado pela assessoria do MP-AM.

Questionada pela reportagem sobre a avaliação do MP a respeito da conduta adotada nas audiências, a assessoria de comunicação afirmou que “a comunidade demonstrou receptividade quanto à implantação do Projeto Campo do Azulão III, tendo em vista o investimento a ser realizado na região e geração de emprego e renda”. Contudo, destacou que “é necessário também ouvir as populações tradicionais afetadas, e avaliar os impactos na fauna e flora, sendo importante o fortalecimento da estrutura do Ipaam, órgão responsável pelo licenciamento”.

RESERVA

Outro procedimento em trâmite no Ministério Público Federal acompanha o processo de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Saracá-Piranga, no município de Silves –onde a termelétrica planeja ser instalada juntamente com todo o complexo do Azulão – e a garantia dos direitos das comunidades envolvidas.

Desde 2022, indígenas e populações tradicionais apontam uma série de problemas referentes à implantação do “Complexo do Azulão” na região. Eles reclamam que não foram consultados sobre o projeto, o que contraria a Convenção n.º 169 da OIT.

O artigo 6º do normativo, incorporado à legislação brasileira, determina aos governos o dever de consultar previamente e respeitando a cultura de cada população, povos indígenas e tradicionais em qualquer caso de medidas administrativas ou legislativas que potencialmente afetem seus interesses. O problema levou duas associações locais a ajuizarem ação civil pública na Justiça exigindo a realização da consulta e do estudo de componente indígena.

Além de não terem informações sobre as decisões referentes à implantação do

projeto, as comunidades carecem de esclarecimentos acerca de eventuais impactos nos seus modos de vida, bem como sobre medidas compensadoras, mitigadoras ou indenizatórias.

O MPF informa que também recebeu informações do Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos do Amazonas (PPDDH/AM) e de lideranças da região sobre pressões e ameaças recebidas por indígenas e representantes de povos tradicionais locais, em razão das críticas à construção do empreendimento.

Órgãos federais

Após ser questionada pelo Ministério Público Federal, a Funai confirmou que não foi elaborado estudo sobre os impactos ambientais e sociais do empreendimento na vida das populações indígenas da região, nem realizada consulta prévia e informada nos moldes do previsto pela OIT.

A Funai também informou que pediu ao Ipaam e à Eneva S/A, em junho deste ano, as documentações necessárias para a verificação do perímetro completo das atividades e as distâncias em relação às terras indígenas, mas que, até o momento, não obteve resposta. No início deste mês, a Funai reiterou à empresa e ao instituto ambiental do Amazonas a necessidade de suspender o processo de licenciamento ambiental, em razão das irregularidades.

No dia 30 de agosto, o Ministério dos Povos Indígenas também enviou

ao Ipaam, à Eneva S/A e às prefeituras de Silves e Itapiranga ofício alertando sobre o que considerou como graves irregularidades detectadas e solicitou o cancelamento das duas audiências públicas do início de setembro. Segundo o ministério, a ausência de informações adequadas sobre o empreendimento inviabiliza a realização das reuniões.

Segundo o MPI, os problemas têm impedido a participação efetiva nos debates das etnias Mura, Munduruku e Gavião, assim como de integrantes das Aldeias Vila Barbosa, São Francisco, Curuá e Mura-Karará. O Ministério ressalta, ainda, o clima de aflição e incerteza nas aldeias e o acirramento de conflitos na região, em razão da falta de informações concretas sobre a implementação do Complexo do Azulão.

(*) Com informações da assessoria.

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Crédito: Reprodução YouTube Eneva

Zé Gotinha: um caso de amor do Brasil

Símbolo da saúde no País completou 37 anos em setembro e tem papel importante no sucesso do Programa Nacional de Imunização, que comemorou 50 anos também em setembro. Conheça o criador do Zé Gotinha e a história de um dos personagens mais queridos do Brasil

Guimarães – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – Conheci o jornalista, publicitário, escultor e artista multimídia Darlan Rosa, 77, quando ele esteve em Manaus, em fevereiro deste ano, para o Prêmio United Earth Amazônia, voltado à preservação ambiental e para o qual ele criou a escultura do troféu. O desejo de fazer esta entrevista nasceu quando soube que era ele o criador do Zé Gotinha, personagem nascido na campanha do Brasil para erradicar a poliomielite. Me encantei com a sua história e carreira. O Zé Gotinha, esse já era para mim como um amigo de infância.

Em setembro, Darlan e Zé Gotinha ganharam bastante espaço no noticiário e nas propagandas do governo federal.

No dia 18 de setembro, foram celebrados os 50 anos do Programa Nacional de Imunização (PNI) e, também neste mês, o personagem completou 37 anos. A visibilidade é reconhecimento a quem ajudou a consolidar o sucesso da vacinação no Brasil, referência mundial por sua eficiência. O último caso de poliomielite, por exemplo, foi registrado em 1989. É também sinal do momento atual de resgate das vacinas, desprezadas em anos anteriores, o que levou o País ao retrocesso em índices de imunização e ao retorno de doenças, como o sarampo. Zé Gotinha até desfilou em carro aberto no evento cívico de 7 de Setembro, em Brasília (DF), sendo muito aplaudido pelo público.

Darlan Rosa, um dos primeiros rascunhos do personagem e o Zé Gotinha atual Márcia Crédito: José Cruz | Ag. Brasil Crédito: Joédson Alves | Ag. Brasil
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Crédito: Acervo Pessoal ENTREVISTA DARLAN ROSA ECONOMIA & SOCIEDADE

Como parte dessa retomada, via Ministério da Saúde, Darlan produziu e lançou, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, em 1º de setembro, o livro infantil “Zé Gotinha — Herói Nacional”, que fala sobre vacinas e conta um pouco da trajetória do personagem. A publicação está disponível impressa e em formato digital, no site do ministério.

Darlan não só criou o Zé Gotinha, em 1986, como batalhou, durante dois anos, para que o Ministério da Saúde o aceitasse como símbolo da campanha de vacinação contra a poliomielite. Percorrendo todos os Estados do País para conquistar os corações dos vacinadores e propondo um concurso para as crianças escolherem o nome do bonequinho feito de gotas, o artista convenceu as autoridades e, assim, o Zé Gotinha já nasceu como um caso de amor do Brasil, amado por Darlan, abraçado pelos vacinadores e adorado pelas crianças. Curiosidade: o primeiro nome dele era Vax.

O trabalho no Ministério da Saúde também levou Darlan a conhecer a Amazônia profunda, em viagens de barco, levando às comunidades um projeto de arte-educação que usava o teatro para educar sobre malária, dengue, Aids e outras doenças. Foram seis viagens em um ano e ele chegou a fazer o percurso entre as cidades de Afuá, no Pará, e Coari, no Amazonas. “É um ‘senhor percurso’, passei um aperto na pororoca”, lembra.

Em nossa conversa, perguntei a Darlan se ele diria que tem algo de Zé Gotinha e se o Zé Gotinha tem algo dele. “Segundo a lei de direito autoral, a criatura é extração do caráter do criador. Respondendo sua pergunta, as pessoas dizem que ele tem muito a ver comigo. E eu também acho”, respondeu.

Nas próximas linhas, leia a entrevista que nasceu do nosso bate-papo.

CENARIUM AMAZÔNIA - Como o projeto de concepção do Zé Gotinha chegou a você?

DARLAN ROSA – O Brasil firmou um compromisso com as Nações Unidas de erradicar a poliomielite até 1990. Em

1986, fui convidado a fazer uma logomarca para esse compromisso, nada a ver com campanha. Eu é que tive a ideia da campanha, porque, até 1971, eu tinha um programa na televisão onde eu contava histórias para as crianças e fazia várias campanhas voltadas ao público infantil. Me ocorreu a ideia que se poderia, através dessa logomarca, criar um personagem para fazer uma campanha de combate à pólio. Fiquei muito animado com isso e fui ver um dia de vacinação em um posto de saúde. Vi que era uma coisa muito tensa, as crianças tinham muito medo da vacina. Aí, tive a ideia de fazer da vacinação um dia de alegria e trazer a criança como protagonista desse evento. A criança seria sensibilizada a lembrar os pais do dia da vacinação. Para isso, eu precisava de um personagem que pudesse se comunicar com as crianças.

lancei agora, na Bienal do Rio de Janeiro, mostra toda essa evolução.

CA – A ideia inicial, então, era criar uma logo que seria usada em documentos do Ministério da Saúde, algo assim? DR – Essa era a ideia, a princípio. Aí, quando apresentei o bonequinho, como sendo símbolo da campanha, o ministério não gostou muito. Me disseram: “não, eu quero um logotipo, que a pessoa olhe e saiba que se trata do compromisso de erradicação da pólio”. Aí coloquei o bonequinho andando sobre os anos de 1986 até 1990, isso foi a logomarca. Como na pólio, a criança não consegue se locomover, ou caminha com dificuldade, aí tem um sentido. Mas fiquei insistindo para usar o bonequinho para as campanhas de publicidade. O ministério tinha muito receio de que se o boneco fracassasse na comunicação, como o Brasil precisava vacinar 25 milhões de crianças na campanha, seria um prejuízo muito grande. Além do que, algumas pessoas do ministério achavam que não tinha sentido associar uma fantasia com vacina, que é ciência, achavam que seria ridículo. Então, levei dois anos para convencer o ministério a usar o boneco nas campanhas.

CA – Como nasceu a ideia dos traços do personagem?

DR - Conversei com uma vacinadora dizendo que estava pensando em fazer um personagem para ser símbolo da vacinação contra a pólio e perguntei: “o que você acha?” E ela falou assim: “então você procure fazer um personagem muito simples, para que qualquer pessoa possa desenhar, porque aqui nós temos que fazer cartazes quase todos os dias comunicando locais de vacinação e outras coisas”. Naquela época, os cartazes eram feitos com pincel atômico, à mão. Então, quando concebi o Zé Gotinha, o primeiro boneco não tinha nem mãozinha, nem pezinho, que era para as vacinadoras poderem desenhá-lo. Aí, depois, quando surgiu a ideia de fazer um boneco para ir para o posto de saúde, aí, sim, teve duas mãozinhas. O livro que

CA – E como você conseguiu convencer o ministério?

DR – Eu falei pro ministério: “vamos fazer um concurso para as crianças darem um nome ao personagem e, aí, vamos ver se realmente ele tem capacidade de mobilizar as crianças. Só que vieram 11 milhões de cartas. Aí não havia mais dúvidas. As cartas foram enviadas a todas as secretarias de Saúde dos Estados e municípios. A triagem foi feita estadual e municipalmente. Só que a gente percebeu que o nome Zé Gotinha era recorrente. Então, a comissão julgadora achou, por bem, selecionar todos os que tinham sugerido o nome Zé Gotinha e sortear uma carta para premiar uma criança que escolheu o nome. O prêmio foi uma casa e uma caderneta de poupança. E, assim, o nome surgiu como uma necessidade de testar o personagem.

“A criança seria sensibilizada a lembrar os pais do dia da vacinação. Para isso, eu precisava de um personagem que pudesse se comunicar com as crianças”
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CA – O concurso foi a única estratégia para convencer o ministério?

DR – Teve uma outra coisa muito importante. Durante os dois anos em que o ministério não aceitava o personagem nas campanhas, através de um convênio com o Unicef, eu viajei todos os Estados levando uma oficina para ensinar as vacinadoras, os profissionais de saúde, a fazer cartazes usando o personagem. Eu fazia palestra, explicava o que era o personagem, quais eram as vantagens dele, e houve um entusiasmo muito grande por parte desses profissionais, porque havia uma reclamação deles de que as campanhas eram feitas no Sul e, em 1986, a TV não cobria a Amazônia, nem todas as cidades do interior. Às vezes, se fazia uns comerciais aqui e as imagens não eram decodificadas pela cultura local. O rádio era um dos principais instrumentos de divulgação das campanhas, os locutores faziam mobilização dentro da linguagem deles. Aí os Estados começaram a fazer pressão no ministério para colocar o Zé Gotinha nas campanhas, porque já estavam usando o personagem nos cartazes desde 1986. Em 1988, ele entrou de vez.

CA – Como surgiu a ideia de fazer o personagem no formato de gota?

DR – Como a ideia era fazer com que qualquer pessoa pudesse desenhar o perso-

nagem e como a vacina da pólio eram duas gotinhas, então, primeiramente, eu ensinava as pessoas a desenharem duas gotas no papel, uma em cima da outra, como se elas estivessem caindo. Em uma gotinha você colocava os olhos e a boquinha e, na de baixo, você puxava os braços e as pernas. Uma coisa muito simples de fazer. Acho que essa simplicidade do boneco é que acabou conquistando as pessoas. Então, você vê, o nome foi dado pela população infantil, a ideia foi suportada, incentivada e abraçada pelos profissionais de saúde.

CA – Qual a importância desse envolvimento da população para a perpetuação do personagem?

DR - Durante esses 37 anos, não poucas vezes, o ministério resolveu não usar o Zé Gotinha nas campanhas, mas os Estados nunca deixaram de usar. Agora, nós nunca tivemos um blecaute tão grande quanto o do governo anterior, que aí não se usou de jeito nenhum o Zé Gotinha, porque não teve, de fato, campanha de vacinação.

CA – O governo passado chegou a criar umas representações, com mais de um personagem, uma família do Zé Gotinha, você viu? O que achou?

DR – Vi sim. Inclusive, agora, nessa gestão, pedi à ministra Nísia Trindade que acabasse com essa questão da família do Zé

Gotinha, porque isso é um absurdo, sabe. A família do Zé Gotinha. A vacina não tem família, vacina é vacina. E, depois, a gente entra em um problema muito sério de que família não é só homem e mulher, casal não é só homem e mulher. Então, ficou acertado que a gente não usaria mais família. As pessoas inventam muito, sabe, cada pessoa quer ter uma ideia diferente sobre o personagem. Eu não acho isso de todo ruim, não, porque isso faz com que ele fique vivo e que as pessoas tenham um certo pertencimento com ele.

CA – E como você vê essas outras representações do personagem?

DR – Eu fico colecionando pela internet, tem o Zé Gotinha bombado, tem Zé Gotinha...

CA – Teve um com uma arma na mão...

DR – Esse aí eu repudiei e deu uma briga boa, porque o problema foi o conceito. Na hora que você pega um governo que faz apologia da arma e coloca uma arma na mão do personagem, eu não gostei e fui à luta com isso. E isso entrou pelo Twitter e chegou a viralizar mundialmente. Entrei pesado e acabou que o tiro saiu pela culatra, porque eu consegui matéria num jornal de Tóquio, no Le Monde, num jornal alemão, no El País, Times, uma rádio chamada RCB, que é uma rádio americana

“Como a ideia era fazer com que qualquer pessoa pudesse desenhar o personagem e como a vacina da pólio eram duas gotinhas, então primeiramente, eu ensinava as pessoas a desenharem duas gotas no papel”
Rascunho da marca criada para o Ministério da Saúde
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Crédito: Acervo Pessoal

ENTREVISTA DARLAN ROSA ECONOMIA & SOCIEDADE

pública, como é a BBC, eles fizeram um programa de meia hora sobre o projeto, sobre as campanhas, eu fui duas vezes ao Globo News, tive uma página inteira na mesma semana no sábado e outra no domingo na Folha, e dei entrevista no Bial sobre esse evento da seringa. Então, na verdade, isso trouxe o Zé Gotinha à tona, de uma forma ao contrário. O Flávio Bolsonaro deu um tiro no pé.

CA – Você acha que agora há um novo momento para o Zé Gotinha?

DR – Agora, eu vejo com bons olhos que esse governo está usando o personagem como um dos eixos de gestão, que a saúde vem em primeiro lugar, tendo que resgatar as vacinas. Os níveis de vacinação caíram muito. Então, é preciso correr atrás disso. O PNI, que está fazendo 50 anos, é considerado um dos maiores programas de vacinação do mundo. E você vê que, no desfile de 7 de Setembro, quando o Zé

Gotinha apareceu, ele foi ovacionado, roubou a cena. Embora seja um símbolo de saúde, tenho a impressão de que vai evoluir para um símbolo de governo, sabe. Porque, se você pensar bem, o que é a saúde? A saúde é vacina, medicina, remédios, emprego, bem-estar, moradia. A saúde passa por todo o hall que o governo cuida e o broche do Zé Gotinha já está na lapela de todos os ministros.

CA – Qual é o papel do Zé Gotinha no sucesso das campanhas de imunização?

DR – O Zé Gotinha foi criado dentro do PNI, que tinha um setor de educação em saúde. Eu já tinha essa pegada de educação, porque tudo que sempre fiz na vida teve esse objetivo de educação para crianças. Então, o Zé Gotinha não foi pensado apenas como um personagem de mobilização para as campanhas de vacinação. A mobilização era uma das atribuições

dele, mas ele foi criado como um projeto educativo e continuado. A gente acreditava que a criança que estava sendo vacinada hoje, daqui a dez, 15 anos, tinha chance de ser pai e mãe, e ela também ia trans-

mitir isso para o seu filho. Essa era a nossa crença e por isso fizemos muito material educativo. Acho que o grande sucesso desse personagem é que ele é um projeto educativo. Você não imuniza a população toda só com campanha. O que tem que ser atacado mesmo é a vacinação de rotina,

“Cada pessoa quer ter uma ideia diferente sobre o personagem. Eu não acho isso de todo ruim não, porque isso faz com que ele fique vivo”
Darlan posa em Brasília, em frente a uma de suas esculturas
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Crédito: Joédson Alves | Ag. Brasil

Zé Gotinha atual ganha abraço de crianças

garantir que todas as crianças até 5 anos estejam com todas as vacinas da infância e que os adolescentes continuem com suas vacinas pertinentes e os adultos também.

CA – Então você acha que o projeto Zé Gotinha, como um todo, contribuiu para que o PNI tivesse bons resultados ao longo dos anos?

DR – Com certeza. Quase todos os municípios têm o Zé Gotinha no posto de saúde. Ele é símbolo da vacinação. Então, com certeza é um personagem que tem uma importância capital. Inclusive, nessa matéria feita na rádio americana, eles entrevistaram vários médicos, educadores, especialistas no Brasil e eles foram unânimes em afirmar que a vacinação no Brasil, o sucesso do PNI, tem muito a ver com esse personagem. Há dois anos, o PNI editou um livro sobre a história da vacinação no Brasil e nas Américas e eu fiquei surpreso com a declaração do diretor da OMS em Washington à época, que disse que ele pessoalmente levou o projeto do

incentivada e abraçada pelos profissionais de saúde”

Zé Gotinha a todos os países da América Latina e eles, ou utilizaram o personagem, ou utilizaram a ideia de mobilizar criança para a vacinação.

CA – Você imaginava que o Zé Gotinha teria todo o alcance que acabou tendo? Porque eu diria que ele já extrapolou o papel de símbolo da saúde e passou a ser um símbolo do Brasil...

DR – Está no imaginário das pessoas. Para ser bem honesto, eu não imaginava que fosse ser tanto assim, até porque tinha receio que, no Brasil, as coisas não costumam ter continuidade. Mas você vê, o Zé Gotinha tem 37 anos, é um recorde. Realmente, me surpreendeu. Tudo que fiz

na vida foi voltado para criança e o que tenho feito para criança, dá certo. Eu tinha certeza de que o Zé Gotinha daria conta do recado, mas o que me surpreende é que todo mundo leva ele para frente.

CA – Sobre os ‘Zés Gotinhas’ que você vê na internet, que você disse que coleciona, qual foi o que mais te chamou a atenção?

DR – Foi um Zé Gotinha bombado. Era um jovem, que deve fazer fisiculturismo, todo musculoso, aí ele botou uma cabeça de Zé Gotinha, uma malha mostrando a musculatura e publicou na internet, uma coisa bem-humorada. De vez em quando, tem umas coisas meio ‘deprê’, mas aí eu acho que tudo isso movimenta.

CA – E o que você acha que faz do Zé Gotinha essa figura tão querida e abraçada pela população brasileira?

DR – Eu me pergunto sobre isso e, realmente, não consigo imaginar. Talvez por ele ser fofinho, redondinho, por ser uma

“Você vê, o nome foi dado pela população infantil, a ideia foi suportada,
67 REVISTA CENARIUM
Crédito: Tânia Rêgo | Ag. Brasil

ENTREVISTA DARLAN ROSA

ECONOMIA & SOCIEDADE

CA – Nesse sentido, o personagem tem papel importante no combate às fake news?

imuniza

figura… Porque é o seguinte, as crianças, de modo geral, quando elas pegam um boneco, gostam de colocar roupa, vestir, e mesmo imaginar que aquele boneco possa viajar, voar, ser um super-herói. E o Zé Gotinha, por ser uma figura muito simples, dá margem a se inventar sobre ele. Então, acho que é isso.

CA – Nesse momento de retomada da vacinação, você acredita que o Zé Gotinha pode ajudar a melhorar os índices de vacinação novamente?

DR – Com certeza. Porque você tem um governo que está mostrando essa vontade de cuidar da saúde, de vacinar. Hoje em dia, se você tem só a imagem do Zé Gotinha, você já está falando de vacina, não precisa ter nada escrito, nem estar se falando nada. Então, quanto mais ele aparecer, das formas mais diversas, nas situações mais diversas, isso está criando uma comunicação favorável para a corrente da vacina. E, agora, o ministério lançou o Movimento Nacional de Vacinação, que é justamente para reforçar com a população a vacinação de rotina, para que percebam que é o único caminho para se proteger. A pandemia mostrou para a gente que ela só foi arrefecendo quando chegou a vacina, e isso em um curto período de tempo. Com a pandemia, se falou muito de vacina, infelizmente, teve muitas fake news também. Por isso, acho que a gente deve ter um material educativo e levar para as escolas, como matéria mesmo de estudo. Para combater as fake news, só informação mesmo.

DR – Como o Zé Gotinha tem a simpatia da população, quando ele transmite uma informação, tem uma credibilidade. Inclusive, fiquei decepcionado porque, durante a pandemia, ele poderia ter lançado um programa informativo, educativo. Ele poderia estar dizendo para as pessoas ficarem em casa, lavarem as mãos, usarem máscara. Eu ainda fiz uma campanha por minha conta, nas minhas redes sociais, com o título “Fique vivo enquanto eu não chego”, vivo em dois sentidos, de fique esperto e de ficar vivo mesmo. Tentei ver se o governo pegava, mas, infelizmente, não havia clima.

CA – O que você espera para o Zé Gotinha daqui para frente?

DR – O que espero dele, primeiro, vida longa ao personagem, porque é importante que ele esteja aí no ar. Mas gostaria de ver um programa educativo nas escolas, usando o personagem. Esse livro que lancei agora, ele resgata o projeto de 1988, já foi um primeiro passo. Inclusive esse livro foi feito pelo ministério. Eu publiquei uma história em quadrinhos, em 1988, que é mais ou menos a história desse livro de agora. Só que atualizei e fiz em forma de livro infantil, que acho que é mais próprio para ser utilizado. Foi lançado na Bienal e tem uma versão on-line no site do ministério. O ministério também está fazendo uma exposição de arte com o Zé Gotinha.

Acesse o livro

Paixão pela educação e pelas artes

Darlan Rosa tem 77 anos e é um mineiro, nascido na cidade de Coromandel, radicado em Brasília (DF), desde 1967. Ainda criança, aprendeu a desenhar e a lidar com as tintas trabalhando com o pai em sua fábrica de ladrilhos. É jornalista e publicitário, por formação. Em Brasília, muito jovem, atuou na televisão como produtor, diretor e apresentador de programa infantil. Atuou também como professor universitário.

Além de criar o Zé Gotinha, trabalhou internacionalmente na criação de animações para campanhas de saúde em vários países. Em Angola, trabalhou na erradicação da pólio, com

comunicação oral, reunindo 1 milhão de entregadores de mensagem oral, que levavam mensagens sobre a erradicação da pólio, durante as missas, comícios, nas feiras, em uma mobilização “boca a boca”.

Atualmente, Darlan tem se dedicado às esculturas, e, segundo ele, sua obra escultórica está em vários países, sendo 34 obras em nove países. Possui mais de 50 obras exibidas no Brasil e no exterior. Muitas delas estão em Brasília, onde é autor de um parque de esculturas no Centro Cultural Banco do Brasil, no qual as crianças brincam dentro das esculturas.

“Acho que o grande sucesso desse personagem é que ele é um projeto educativo. Você não
a população toda só com campanha. O que tem que ser atacado mesmo é a vacinação de rotina”
MINISTÉRIO DA SAÚDE
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“Zé Gotinha – Herói Nacional”

Força Nacional segue em terra Yanomami

Roraima: atuação de militares é renovada por mais três meses

BOA VISTA (RR) – O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) prorrogou por mais 90 dias a atuação da Força Nacional em Roraima. A portaria foi publicada no Diário Oficial da União de 5 de setembro, sendo assinada pelo ministro Flávio Dino. O efetivo vai atuar no período de 5 de setembro a 3 de dezembro de 2023, em apoio aos órgãos de segurança pública de Roraima, nos municípios de Boa Vista e Pacaraima.

“A operação terá o apoio logístico do órgão demandante, que deverá dispor da infraestrutura necessária à Força Nacional de Segurança Pública”, diz trecho da portaria.

O quantitativo de policiais que irão reforçar a segurança no Estado ainda não foi definido, mas, conforme o documento, o efetivo será decidido em planejamento da Diretoria da Força Nacional de Segurança Pública, da Secretaria Nacional de Segurança Pública, e do Ministério.

A Força Nacional atua em Roraima desde agosto de 2018, quando 30 homens foram enviados a Boa Vista em razão da crise migratória, que trouxe milhares de venezuelanos ao Estado. O número de agentes, no entanto, aumentou em agosto de 2019, quando houve um tumulto entre brasileiros e venezuelanos em Pacaraima, no interior de Roraima, e 1,2 mil estrangeiros foram expulsos da cidade.

A Força Nacional atua na cidade em apoio aos órgãos de segurança pública, em atividades e “serviços imprescindíveis à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, em caráter episódico e planejado”, conforme trecho da portaria.

Desde janeiro deste ano, a Força Nacional atua também na Terra Indígena Yanomami, em razão da crise sanitária provocada pela invasão de garimpeiros, que deixou

indígenas doentes, com malária e desnutrição. Eles atuam na proteção das bases da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e na segurança dos 68 polos de atendimento médico no território indígena.

Especialistas apontam que a invasão do garimpo predatório, além de provocar o aumento de doenças, causa violência, conflitos armados e devasta o meio ambiente. A atividade ilegal aumenta o desmatamento, poluição de rios devido ao uso do mercúrio, e causa prejuízos para a caça e a pesca. Tudo isso impacta nos recursos naturais essenciais à sobrevivência dos indígenas na floresta.

A Terra Indígena Yanomami (AM/RR) tem o maior número de pessoas indígenas do País, com 27.152 habitantes, o equivalente a 4,36% do total em terras indígenas no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).

Efetivo da Força Nacional irá atuar nas cidades de Boa Vista e Pacaraima Winicyus Gonçalves – Da Revista Cenarium Amazônia
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&
Crédito: Marcelo Camargo | Ag. Brasil
POLÍCIA
CRIMES AMBIENTAIS

Por que não uma negra?

Apopulação negra é maioria no País — 56,1% ou 113,8 milhões, confirmados pelo último Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As mulheres negras são 44%, ou seja, 50 milhões de pretas e pardas. A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Rosa Weber, se aposentou. Até agora, há uma disputa pela vaga aberta com a sua despedida do STF. Os homens da Alta Corte têm candidatos. As únicas duas mulheres do Supremo — ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia — defendem que a vaga seja preenchida por uma mulher negra.

A escolha será do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atualmente ocupado em ampliar, positivamente, a imagem do Brasil no cenário internacional e garantir a aprovação dos projetos de governo no Congresso, formado, em sua maioria, pela extrema-direita, que não nutre simpatia por negros, negras e todos os demais segmentos da sociedade que não sejam brancos. Uma negra no STF seria um indicativo de mudança.

Nunca, em 132 anos, uma jurista negra chegou ao Supremo, onde os homens brancos têm hegemonia, em total dissonância da realidade populacional.

Não há paridade de gênero na composição do STF. Ainda que isso não tenha sido declarado ou, claramente, admitido, o modelo patriarcalista é nítido e prevalece nos critérios de escolha. O racismo e a misoginia velados se revelam na composição dos tribunais e em outras instâncias de poder. Impossível supor que em conjunto de 50 milhões de mulheres negras, nenhuma tenha formação e capacidade de chegar à Alta Corte. Entre os 11 integrantes do STF, nove são homens, perpetuando a concepção conservadora de que eles têm mais competência, saber jurídico e expressão na sociedade. Ao longo da sua história, desde o Império, o Supremo teve três ministros negros — Pedro Lessa (1907-1921), Hermenegildo de Barros (1917-1931) e Joaquim Barbosa (2003-2014), que foi o primeiro a presidir a Alta Corte.

Ellen Gracie Northfleet, magistrada no Rio de Janeiro, foi a primeira mulher a ser nomeada ministra do STF, em 23 de novembro de 2000, pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Ela abriu caminho para que outras juízas ocupassem o mesmo cargo. Gracie chegou à presidência e despediu-se do Supremo antes de completar 70

anos, idade para a aposentadoria compulsória.

O presidente Lula bem que poderia ser mais ousado e o primeiro presidente a nomear a primeira mulher negra para substituir Rosa Weber. Ele faria um ato inédito. Sinalizaria, ainda que modestamente, que o Supremo pode ser plural, tanto etnicamente quanto em gênero. Daria um bom exemplo às demais cortes superiores e um passo para que haja mais equidade étnico-racial e de gênero no Judiciário brasileiro e em todos os espaços de decisão.

O momento político exige que se rasguem sofismas que reforçam a misoginia, o racismo e as diversas expressões de preconceitos e discriminações. O País precisa de alternativas que o aproximem dos valores civilizatórios compatíveis com o século XXI, por meio de atos e decisões concretas. Chega de discurso vazio, sem rebate na realidade. Por que não uma negra no Supremo Tribunal Federal?

(*) Rosane Garcia, nascida no Rio de Janeiro, mas residindo em Brasília há 62 anos, é jornalista há 41 anos. Ela trabalhou nos jornais Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil e, atualmente, ocupa o cargo de subeditora de Opinião, no Correio Braziliense.

ARTIGO – ROSANE GARCIA
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Crédito: Divulgação

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO AMAZONAS

ANOS
’’
73 anos de dedicação por um Amazonas mais íntegro e transparente.

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