Moniba: design narrativo em publicação híbrida

Page 1



PAULA CRUZ

design narrativo em publicação híbrida

UFRJ | Centro De Letras e Artes (CLA) Escola De Belas Artes (EBA) Departamento De Comunicação Visual | BAV Projeto e monografia de graduação em Comunicação Visual Design | 2016.1 Orientadora: Julie Pires Co-orientador: Nilson Gamba


PAULA CRUZ graduou-se em Comunicação Visual Design na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 2016. Atravessou o Atlântico para viver em ares holandeses e descobrir os mestres da tipografia, impressão e design neerlandeses. Estudou na Willem de Kooning Academy em Rotterdam, nomeada em homenagem ao ex-aluno pintor. Paralelamente aos estudos, constroi projetos autorais que unem design, texto e pesquisa, tais como livretos, cartazes e contos ilustrados. Suas iniciativas possuem como objetivo enobrecer o conteúdo através da forma e para tal utiliza referências tradicionais e contemporâneas.

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cruz, Paula. Moniba: design narrrativo em livro híbrido. Rio de Janeiro: 2016. 52 p.p., 40 ils. ISBN 978-85-7503-553-5 1. Projeto gráfico.   2. Ficcção. 09-10558

Índices para catálogo sistêmico: 1. Projeto gráfico  686.2252

CDD  686.2252


Esta monografia está em suas mãos porque recebi ajuda de pessoas valiosas durante todo o percurso. Este projeto seria outro sem todo o auxílio que recebi durante estes últimos meses. Agradeço primeiramente aos meus pais, Rosangela Oliveira e Nelson Alcantara, que me criaram com amor, cuidado e sabedoria. Devo tudo que sou a eles. Pedro Caricchio, que me inspira, me acalma e me transforma. Minha pessoa favorita, meu crítico favorito, meu revisor paciente. Tão bom morrer de amor e continuar vivendo. Julie Pires e Gamba Jr., por iluminarem o caminho nebuloso. Mayara Lista, minha orientadora extraoficial, praticamente a madrinha deste projeto. Diogo Saraiva, amigo precioso e confidente de truques. Claudia Vieira, pelos conselhos homeopáticos e pela revisão da monografia. Aline Mielli, que me disse o que eu precisa ouvir nos momentos de indecisão. Dayane Costa, pelas palavras reconfortantes e conselhos nesta monografia. Tudo deu certo, enfim! Devo agradecer também aos amigos Thaís Veque, Taíssa Maia, Daniel Cruz, Iara Cunha, Beatriz Paixão, Renato Paixão, Igor Arume, Loise Lobo, Lívia Prata, Lucas Gomes, Tarso Moura, Bernardo Ramalho e Leandro Amorim. Obrigada por compartilharem suas dicas e seu tempo comigo. A montagem da publicação impressa foi feita com cuidado e carinho pelos funcionários da Copyhouse, depois do expediente, em plena sexta-feira à noite. Muito obrigada. Aos professores Irene Peixoto, Nair de Paula Soares, Elizabeth Jacob, Leonardo Ventapane, Ary Moraes e Marcus Dohmann, que proporcionaram meu crescimento como estudante e profissional ao longo desses anos na UFRJ.



RESUMO CRUZ, Paula. MONIBA: o design narrativo em publicação híbrida. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Visual – Design) Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Projeto gráfico e ilustrado de uma história elaborada em meio impresso e digital a fim de compreender as diferentes possibilidades que suportes distintos proporcionam. Design, ilustração e narrativa relacionam-se de maneira dinâmica para exploração e criação em âmbito visual e narrativo. O projeto procura potencializar a estrutura de cada suporte narrativo, evidenciando suas qualidades e diferenças. Busca-se também averiguar possíveis rumos do design e da narrativa em mídias virtuais, tanto em questões de mercado quanto de tecnologia e experiência do usuário. O ensaio imagético tem como finalidade investigar as possibilidades do design na narrativa textual-visual aplicadas em mídias tradicionais e contemporâneas — livros, e-readers, tablets — a fim de entender qual a relação entre suporte e conteúdo; suas possibilidades, diferenças e semelhanças serão colocadas em análise e prática. A trama da história criada para o projeto aborda direitos da mulher, igualdade de gênero e representatividade feminina. Palavras-chave: publicação híbrida, narrativa, ilustração, representatividade feminina.

ABSTRACT CRUZ, Paula. MONIBA: narrative in hybrid publication. Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Graphic and illustrated project of a narrative in printed and digital media elaborated in order to understand what are the different possibilites caused by these distinct content holders. Design, illustration and narrative connect dynamically to explore and create in visual and narrative scope. This project intends to enfasize the structure of each plataform, demonstrating qualities and differences. This essay also inquires what are the most likely approaches of design and narrative in digital media, as well as it explores market standards, technology and user experience. The imagetic dissertation investigates the possibilities of design in a textual-visual narrative applied in traditional and contemporary medias —books, e-readers, tablets — for the purpose of understand what is the relation between plataform and content; its possibilities, differences and similarities will be analised and worked. The story developed appeals to women’s rights, gender equality and women representation. Key-words: hybrid publication, narrative, illustration, women representation.


INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6

CAPÍTULO II 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5

CAPÍTULO III 3.1 3.2 3.3 3.4

13

O DESIGN DE LIVROS  17 Breve história dos suportes narrativos  17 Um olhar sobre o livro impresso  20 Novas fronteiras: publicação digital  22 Publicações híbridas  27 Criando um livro  32 Designer como autor  37

NARRATOLOGIA  43 Definição  43 Tipos de conflitos   44 A mitologia dentro da narratologia  45 Jornada do herói  46 Para além da jornada  50

ILUSTRAÇÃO  53 Definição  53 O livro ilustrado  55 Público e dupla audiência  57 Relação entre texto e imagem  59


DESENVOLVIMENTO

CAPÍTULO IV 4.1 4.2 4.3 4.4 4.5 4.6

CAPÍTULO V 5.1 5.2 5.3 5.4 5.5 5.6 5.7 5.8 5.9

CAPÍTULO VI 6.1 6.2 6.3 6.4

CONCLUSÃO

O percurso projetual  61

A HISTÓRIA  71 Enredo básico: argumento  71 Escolha do enredo  72 Escolha do título da narrativa  72 Empoderamento feminino e representatividade  73 Aplicação da jornada  74 Camadas de leitura  75

PROJETO GRÁFICO HÍBRIDO  79 Metodologia de criação visual  79 Pesquisa iconográfica  79 Identidade visual  81 Criação de personagens  90 Suportes  98 Espelho e diagrama da publicação  99 Técnica utilizada  118 Elaboração da capa  129 Tipografias e caligrafia  131

O PROJETO FINAL  133 Apresentação geral do projeto híbrido  133 Publicação impressa  134 Publicação no e-reader  180 Publicação no tablet  196

E agora?  211

Glossários de verbetes  214 Anexo: dicionário touch gesture  218 Bibliografia  220


10


Há duas forças no mundo: uma é a espada e a outra é a caneta. Há uma terceira força, mais poderosa: a das mulheres. MUHAMMAD ALI JINNAH político muçulmano, fundador do Paquistão



INTRODUÇÃO

Alguns temas reverberam desde que a memória recorda. No meu caso são as histórias. A comédia, a tragédia, os quadros, os quadrinhos. A narrativa me consola e me diverte, recorre ao conhecimento e à compreensão interna. O amor pelas histórias transborda e recai no seu suporte — o livro. O meu hábito de leitura vai além, percorre o encantamento e chega ao vício. Como boa leitora, desde cedo aprendi a respeitar o espaço de uma história e o poder de um projeto gráfico na construção do universo textual. Este respeito está intimamente ligado à percepção do formato do livro: o impacto do design, ilustração, e do papel de uma narrativa visual como parceira aos aspectos textuais de uma história. O amor pela narrativa tornou-se ainda maior quando comecei meus estudos de graduação nas áreas visuais. Percebi a manifestação cada vez maior e recorrente de histórias visuais nos meus próprios trabalhos, de forma que eu não poderia encarar esta ocorrência constante como simples acaso. As questões que explicito no parágrafo anterior ocorreram no decorrer dos meus vinte e poucos anos. Nasci no começo da década de 90, no começo da dita Revolução tecno-científica-informacional: a internet crescia a passos largos, o computador tornou-se leve e pessoal, veio o e-mail, as redes sociais, os websites interativos, uma indústria de videogames. O mundo virtual expandiu-se para além do esperado. A década de 1990 transformou a comunicação da mídia em massa. O mundo tornou-se mais globalizado; distâncias de milhares de quilômetros diminuiram para pixels na tela. Os meios impressos adaptaram-se à uma velocidade de circulação de forma inédita. No decorrer dos 20 anos seguintes, periódicos como The New York Times criaram sites e aplicativos, atualizados numa frequência e facilidades bem maiores do que o jornal impresso. Esta virtualização da informação que antes era basicamente impressa demonstra o contraponto entre as transformações no meios digitais e impressos. Os jornais, veículos culturais e informacionais, abraçaram o meio digital rapidamente, principalmente pela demanda da constante atualização de acontecimentos globalizados.

Introdução 13


Termos sublinhados constam no Glossário, ou direcionam para página em que são mencionados ¹ O projeto Gutenberg foi criado em 1971 por Michael Hart na Universidade de Illinois. Uma verdadeira atitude transgessora e visionária, já que a internet da época era usada por, se muito, 100 pessoas no mundo inteiro. O projeto continua em constante atualização. www.gutenberg.org

Os âmbitos online e offline afetaram não só os usuários e como eles se comportam com suas coisas e não-coisas, mas também a própria estrutura dos objetos e seu conteúdo. O mundo virtual tornou possível arquivar toda a obra de William Shakespeare em apenas 25 kb. Não é de se espantar que os suportes narrativos tenham se modificado num piscar de olhos. Logicamente, sites arquivaram obras de domínio público disponibilizadas na íntegra para o público em escala global — o projeto Gutenberg¹ é uma verdadeira biblioteca babilônica online. A portabilidade da leitura digital demonstrou com mais evidência do que nunca que histórias não são presas a uma encadernação. Embora a ideia de livros digitais exista desde 1970, a circulação desses produtos tornou-se possível somente após a democratização da internet e a invenção do computador pessoal. Ainda assim, o formato dos livros pouco mudou: e-readers possuem tamanho semelhante a livros impressos, e alguns de seus atributos são referências diretas ao parente físico, como o folhear de páginas simulado em animações. Ultimamente, percebo também a influência dos audio books e podcasts, uma espécie de revival das antigas rádio novelas. Neste projeto, porém, me concentrarei na influência e relevância de publicações híbridas, já que pretendo falar sobre o visível na narrativa; audio books, obviamente, não possibilitam esta abordagem. Por que tratar de publicações híbridas? Como designer, penso que é fundamental pensar no suporte como contexto. Tanto o livro quanto o e-book tem suas próprias características narrativas e, embora possa apenas transportar conteúdo, penso que seja mais interessante utilizar atributos próprios do suporte para reforçar a mensagem. Talvez esta seja uma visão específica de uma profissional que trabalhe com a transposição de ideias em formatos físicos, digitais, visuais. Alguns escritores contemporâneos extraem do livro sua potencialidade narrativa, perpassando os limites entre ser escritor, gráfico e designer, como Jonathan Safran Foer em Tree of Codes. Normalmente o escritor está concentrado basicamente na estrutura textual. Não é o meu caso, pois pretendo evidenciar o suporte narrativo através do olhar do designer. Percebo que normalmente os e-books têm uma abordagem renegada pelo design. Costumam ser apenas versões digitais dos livros impressos, sem quaisquer adaptações. Incomoda-me perceber que as diferenças entre um suporte digital e outro impresso não sejam levadas em consideração, especialmente no que concerne ao design gráfico. Se pensarmos apenas num dos elementos que diferem obra física e impressa, como a dobra do livro impresso, inexistente no e-book, já temos dois suportes totalmente distintos. Por que tratar duas mídias distintas de forma similar? Esta é uma das minhas indagações ao criar este projeto. Pretendo entender e explorar os suportes narrativos a fim de evidenciar e distinguir suas qualidades. Como uma designer que optou pelo vasto mundo dos impressos, posso dizer que aprecio a materialidade dos artefatos. Gosto de tatear verniz soft touch, amo o cheiro de livros novos, enfim, sinto a necessidade de ter um livro em minhas mãos. Hoje percebo que meu amor aos impressos não interfere e sobretudo não anula a relação com e-readers. Qual a relação entre os modos de leitura nestes dois suportes? Este é outro ponto chave que será abordado futuramente nestas páginas. As mudanças entre mídias são tão fortes que há certa resistência pelo público, especialmente o mais velho. É de se entender o estranhamento que o peso da internet e do virtual tenha em pessoas com mais de 50 anos. O tempo de adaptação destas é muito maior do que a de um jovem bombardeado desde a infância e adolescência pelo computador e videogames. Desta forma, o foco num público juvenil neste projeto é mais do que coerente. A geração Z, que compreende os nascidos entre o fim de 1992 e 2010, cresceu rodeada por um mundo virtual complexo.

14


São nativos digitais, que não presenciaram o mundo sem o computador — diferente de qualquer geração até então. Portanto, encaram mudanças tecnológicas com naturalidade, curiosidade. Em suma, estão mais dispostos a narrativas interativas e digitais, exatamente o caso dos livros híbridos. Além disso, trabalhar com projetos infanto-juvenis traz uma possibilidade de experimentação tanto na forma quanto no conteúdo. Jovens leitores têm menos preceitos de como deve se comportar um livro impresso e quais as barreiras entre digital e físico. Criar um projeto para público jovem carrega certas responsabilidades. É um público que está vivendo sua formação cidadã e seu amadurecimento emocional. Sendo assim, escolhi como tema narrativo central a representação feminina para abordar questões fundamentais como identidade, personalidade e igualdade de gênero. Me recordo que durante a infância o meu principal contato com histórias foi ligado às narrativas protagonizadas por princesas, todas situadas no mesmo grupo convencional sobre o papel da mulher, tanto na sociedade quanto na vida doméstica e amorosa. A única animação que assisti que se diferenciava disso foi Mulan (1998), a história de uma guerreira chinesa que se alistou no lugar do pai e lutou na guerra. Esta história teve um grande impacto em mim quando criança, pois me mostrou que mulheres não têm restrições e que são tão capazes quanto os homens. É este sentimento que pretendo passar com este projeto: falar com jovens garotas que há um mar de opções para além do estereótipo da princesa cor de rosa. Somado a isso, nos últimos anos entrei em contato com algumas indagações que me feriram como leitora e mulher. Percebi que mesmo lendo 40 livros por ano nem 1/3 deles era escrito por mulheres. Desses livros, poucas eram as protagonistas femininas. As personagens retratadas eram planas, superficiais e sem evolução, normalmente estepes para o protagonista masculino. Pouquíssimas eram retratadas em cargos profissionais importantes. Este fenômeno não se restringe aos livros – está em todos os canais culturais. Como pensadora de imagens, ao refletir sobre a visualidade contemporânea, penso que tenho a oportunidade de ajudar a reverter este cenário. Acredito que parte do meu papel como designer envolve responsabilidade social e hoje percebo que parte da minha trajetória, tanto profissional como autoral, será voltada para a representatividade feminina.

Introdução 15

Mulan. Direção de Tony Bancroft. São Paulo: Disney/Buena Vista distribuidora, 1998. 85 min. dvd, Ntsc, son., color. Dublado. Port.



CAPÍTULO I

O DESIGN DE LIVROS

1.1  BREVE HISTÓRIA DOS SUPORTES NARRATIVOS Por que não chamar este capítulo de “Breve história do livro”? Porque a história do livro, de fato, não começa com livros. Antes da produção do papel e da consolidação do códice como encadernação, a humanidade registrou suas histórias em diferentes meios e suportes, passando por inúmeras transformações. Segundo Roger Chartier (chartier, 2001:28), podemos categorizar a história do livro em três tipos de mudanças: morfológica, no âmbito que confere às estruturas do livro em si; técnica, referindo-se aos meios de reprodução e distribuição; e cultural, que se refere a formas de leitura e a relação entre livro e leitor. Estas mudanças ocorreram tanto simultânea quanto separadamente, e serão abordadas no decorrer deste capítulo. Muitos autores consideram que a história do livro e da escrita está diretamente relacionada à descoberta de placas de argila na antiga Mesopotâmia (região que abriga Iraque e Síria). Estes objetos contêm os primeiros registros comerciais que se têm notícia. Para muitos autores, é também neste momento que se inicia a história do livro, pois continham representação gráfica, desde a pictográfica à fonográfica, e eram superfícies isoladas que posteriormente uniam-se num conjunto fechado – basicamente o que ocorre atualmente com cadernos de um livro. Ao criar registro num material portátil e físico (as placas de argila), o homem estabeleceu um sistema visual que poderia ser lido e compreendido por outros. Esta compreensão entre escritor e leitor através da escrita sedimentou a capacidade do homem de documentar seus passos. A transcrição de uma linguagem para um suporte de fácil transporte é um grande avanço no que confere ao registro histórico, pois possibilita a comunicação com pessoas distantes e gerações posteriores.

Capítulo I O design de livros 17


Conforme Julie Pires¹ (2005): 1

pires, j. 2005: p. 22

Naquele instante a escrita manteve uma estreita ligação na relação entre ferramenta -> suporte -> morfologia. Da necessidade de inscrição surgiu uma forma de expressão que aceitou as ferramentas disponíveis para a sua execução, criando de um sistema com características próprias de registro: a escrita cuneiforme. Essas placas de argila eram moldadas em tamanhos e formas diversas e, enquanto moles, desenhadas com um estilete que fazia marcas em forma de cunhas – forma pela qual estes registros receberam o nome de escrita “cuneiforme” do latim cuneus (cunha). Mesmo que em placa de argila, já neste momento percebe-se alguns elementos do layout de página, como diagramação e estrutura de grid, para delimitar conteúdo e separar informações. Esta é uma evidência de que a história dos suportes narrativos apresenta elementos congruentes entre si no quesito design. Podemos aplicar esta lógica do design editorial posteriormente. Se o designer editorial é profissional que pensa no suporte narrativo como um projeto completo, podemos considerar os escribas egípcios os primeiros do ramo. Os escribas realizavam simultaneamente texto e ilustração em rolos de papiro colados uns aos outros. O surgimento do papiro foi essencial à civilização. Foi utilizado não só por egípcios, mas também por gregos, romanos, bizantinos, arameus e árabes. Feito a partir de uma planta – Cyperus papyrus – encontrada facilmente ao longo do rio Nilo, era prático, leve e maleável. O papiro era uma folha única que podia medir até 48 centímetros de comprimento por 43 centímetros de largura. Quando coladas umas às outras, formava-se grandes rolos. Estes recebiam hastes de madeira ou marfim nas pontas para melhora do manuseio. Assim era produzido o volumen. Numa análise sobre este suporte, é essencial ressaltar sua praticidade frente às placas de argila. Ainda assim, era um material de curta duração, já que era produzido a partir de matéria prima vegetal. Outra desvantagem é ter apenas um dos lados da folha disponível para escrita. Até este momento, temos então dois entendimentos sobre livros e novas tecnologias. O primeiro ponto é perceber que o surgimento do livro ocorre a partir da escrita e seus diferentes suportes, estes modificando-se conforme os meios de reprodução e suas respectivas mudanças no decorrer do tempo. O segundo ponto refere-se à separação da ideia de livro do formato códice e, consequentemente, da utilização da escrita alfabética baseada numa estrutura linear feita por palavras, frases e parágrafos. Os aspectos que formam um livro já eram utilizados em suportes anteriores ao códice encadernado, como demonstrado nos parágrafos anteriores sobre placas de argila e papiros. O livro foi, num processo gradual durante os séculos, caracterizado como objeto de leitura. Cada suporte carrega suas peculiaridades e, por isso, proporciona diferentes leituras. Do mesmo modo, cada leitor possui uma relação individual e própria quando lê, pois a relação com o livro e a leitura difere conforme contextos históricos e condições sociais. Conforme Pires² (2005):

2

pires, j. 2005: p. 25

O conceito de “livro” se abre à medida que uma mesma Epopéia de Gilgamesh pode ser escrita e lida em plaquetas de argila, em rolos de papiro ou em códices impressos. Embora, seja

18


necessário ressaltar que a leitura deste texto é modificada à medida que encontra um leitor diferente, em suportes distintos e condições sociais e culturais peculiares. É certo que cada versão guardará suas características, mas como podemos negar que sejam “livros” os conhecidos exemplares da literatura egípcia denominados Livros dos mortos, escritos em hieróglifos do século XIII a.C., 19ª dinastia faraônica. A data do surgimento do códice é imprecisa. Porém, pode-se dizer que sua definitiva afirmação ocorreu no final do século III, quando o formato carregou textos clássicos de Homero, Horácio, entre outros. A generalização do códice começou apenas no século IV do calendário cristão, pois proporcionava um objeto fácil de ser transportado e, sobretudo, de ser escondido em vestes – conteúdos proibidos eram transportados pelas autoridades do Império Romano desta forma. Além disso, o códice era considerado pelos cristãos um suporte adequado, pois diferenciava a religião das demais culturas pagãs da época. O códice foi destinado quase inteiramente para criação de cópias dos textos do Antigo Testamento e algumas passagens do Novo Testamento. As cópias de tratados teológicos, textos litúrgicos e escritos mágicos eram destinados ao formato do rolo. Percebe-se que esta diferenciação de formatos foi uma escolha intencional pelos cristãos primitivos, feita principalmente para diferenciar o cristianismo de religiões de tradição hebraica, que utilizavam normalmente o rolo. Desta forma, podemos associar o formato do códice como uma escolha política e religiosa, ligada à divulgação da Palavra de Deus. Entretanto, a mudança do suporte ocorreu também para possibilitar textos mais extensos e melhorar o manuseio do objeto. O livro em rolo (volumen) precisava das duas mãos para ser desenrolado e lido. A leitura ocorria de forma panorâmica, porém aos pedaços. Assim, o texto era apresentado aos poucos, distribuído em colunas, o que causava limitação na leitura. Por outro lado, o códice possibilita escrita e leitura simultâneas. Outras características como sumário, paginação e índice são ganhos importantes. Estas mudanças geram novas práticas de leitura, proporcionando novas noções em torno da ideia do livro. Conforme Pires³: Para Cavallo, “...no caso do rolo, tal noção mostrava-se bastante estável porque estava ligada a convenções definidas de técnica e conteúdo; ela podia, de fato, associar imediatamente o objeto a uma obra, se ela estivesse encerrada num único livro-rolo ou distribuída em vários livros-rolos.” Mas, com o códice era possível reunir diversos textos, muitas vezes de conteúdos distintos, em um mesmo livro. Ao contrário do rolo, que se destinava a uma mesma obra, ou parte dela, o conteúdo de um códice poderia vir a englobar várias obras do mesmo autor, um conjunto de escritos da mesma natureza ou, muitas vezes, uma aglomeração de “livros”, fato curioso a demonstrar que a noção de “livro”, naquele momento, se assemelhava mais ao rolo do que ao códice. (CAVALLO, apud: Pires, 2005, p. 30) A mudança do volumen para o codex foi uma mudança de navegação e interação no suporte. Se antes o rolo era percorrido horizontalmente, no códice a estrutura é essencialmente vertical. Em comparação aos e-books, é uma mudança semelhante. A navegação num e-book tem configurações diferentes ao livro impresso: e-books não possuem paginação fixa, são navegados por porcentagem de leitura, apresentam interatividade e som. Estas reconfigurações do suporte do rolo ao códice ocorreram gradualmente, assim como os hábitos de leitura. O códice sedimentou a leitura silenciosa, solitária e individual. O suporte do livro também foi sendo reconfigurado pelos padres medievais, desenvolvido a partir de produção artesanal, demorada e cara. Os livros produzidos na época eram grandes, decorados com folhas de ouro e encadernados

Capítulo I O design de livros 19

³ pires, j. 2005: p. 30.


de folhas de pergaminhos. Seu conteúdo era considerado sagrado, embora alguns manuscritos contem a epopeia de Homero e diálogos de Platão. A mudança para suporte do códice tem parte fundamental nos meios das técnicas de reprodução. Explico: a primeira grande dispersão intelectual, isto é, ampliação do conhecimento em relação ao contingente populacional, deve muito ao advento da imprensa. Gutenberg (1398-1468) diminuiu o tempo de produção do livro ao formular a impressão tipográfica por volta de 1440. Antes, as informações eram reproduzidas por monges copistas em seus scriptoriums, um processo que durava até mesmo décadas. Não bastasse este longo tempo de reprodução, os livros eram pesados e enormes, e consequentemente intransportáveis: permaneciam em locais fechados e privados, disponíveis somente aos padres e nobres (alfabetizados). A impressão tipográfica surgiu como uma melhora no tempo de produção. A estética da Bíblia de 42 linhas de Gutenberg foi propositalmente concebida para assemelhar-se a um livro feito à mão por monges copistas. Na mente do impressor alemão, a revolução era uma questão logística,e não de layout de página.

⁴ mcluhan, M. 2001: p . 73

Mesmo assim, a recepção do livro impresso de Gutenberg foi vista com maus olhos por parte do público, como se a impressão tipográfica fosse uma cópia indigna dos manuscritos iluminados. Esta é uma situação que evidencia a síndrome do espelho retrovisor, formulada por Marshall Mcluhan⁴ na década de 60 – é a de que a humanidade caminha para o futuro com os olhos no passado. Isto se torna ainda mais claro quando notamos a história do design de produto. O computador pessoal, por exemplo, surgiu baseado na combinação da televisão com uma máquina de escrever, e somente na última década teve início a navegação por interface touch screen. Antes disso, seu sistema interagia como a televisão e a máquina de escrever: pelo teclado ou por botões. Esta mesma lógica aplica-se aos e-books, que surgem não só com o mesmo nome do objeto formado pelo códice, como também contêm até hoje simulações do impresso, tais como o folhear de páginas.

1.2  UM OLHAR SOBRE O LIVRO IMPRESSO O livro como o conhecemos atualmente reside ainda no formato do códice, de folhas dobradas e organizadas por cadernos e fólios, formulado há milhares de anos por gregos e romanos. É um formato prático, econômico, democrático. Entretanto, porque o códice é um formato praticamente intocado, supostamente imutável?

O que é um livro? Embora pareça algo simples, definir o que é um livro é complicado. Em um primeiro momento podemos pensar numa descrição como: o livro é um objeto de conteúdo textual produzido normalmente em manufatura e pertence a quem o compra. É uma ideia correta, porém trata do assunto apenas em sua materialidade. Este pensamento também demonstra a afirmação ao códice, já que normalmente nos referimos como “livro” a um agrupamento de cadernos costurado ou colado a partir de folhas dobradas. Como visto anteriormente, a história do livro vai além do códice, perpassando outros suportes. O termo “livro” pode ser também para definir uma obra, um discurso documentado. Um livro é um discurso direcionado ao público, legitimado e autorizado oficialmente pelo editor ou livreiro para ser veiculado publicamente.

20


Este dois âmbitos evidenciam um percurso material e imaterial ao que chamamos de livro. De certa forma, publicações digitais reafirmam esta dualidade. Penso que causem estranheza justamente por reafirmarem a imaterialidade das coisas.

A estrutura do livro Um livro é formado de vários elementos. Se falamos do formato físico, ou seja, da encadernação do códice, percebe-se estruturas ligadas diretamente à montagem e sustentação do objeto do livro. Algumas propriedades oriundas da encardenação mantêm-se anacronicamente em publicações, normalmente por convenção à tradição. Veremos isto mais adiante. Conforme Haslam⁵, No que confere à materialidade do livro, dividimos a estrutura do objeto nos elementos que compõem o suporte e o volume do objeto.

⁵ haslam, A. 2007: p. 20

lombo  Onde as páginas são grampeadas, coladas ou costuradas. A medida da lombada é feita a partir da soma da espessura de todos os cadernos do miolo unidos.

cabeceado  Pedaço de tecido colado na parte interna do lombo em um livro de capa dura. Serve para fortalecer e proteger as folhas do livro.

charneira  Tira feita de couro ou pano aplicada para formar a guarda-espelho. seixas (superior, inferior e laterais)  Projeção da capa dura que se estende além dos refiles. pastas (frontal e de verso)   Em livros de capa dura, são as partes formadas por placa de cartão, material de revestimento e folha de guarda. Em livros de brochura são a brochura em si.

1

2 3

1 2

4

3 4 19

5

5 18

6 7 17

6

8 9 10 11

7

12 16

8

11

11 13

13 14 15

14

16

9

17 18 10

12

15

19

Cabeça Lombo Cabeceado Charneira Seixa superior Pasta frontal Capa Seixa lateral Placa Seixa do pé Guardas Pé Falsa folha de rosto Folha de rosto Base Virada Quarta capa Pasta do verso Miolo

Capítulo I O design de livros 21

Esquema adaptado de haslam. 2015: p. 20


capa  Parte frontal revestida de material mais rígido (papel de alta gramatura, cartão, couro, entre outros) grampeado, colado ou costurado ao miolo. A capa serve para proteção, embalagem e chamariz do livro. Normalmente apresenta título e nome do autor, além de logo da editora.

quarta capa  Verso do livro. Normalmente apresenta sinopse, logo da editora, código de barras ou informações sintéticas do livro.

falsa folha de rosto  Primeira página do miolo. Normalmente contém título e nada mais. É uma página com poucos elementos pois é gasta rapidamente, devido à ligação física com a guarda e ao frequente manuseio. Ainda assim, a falsa folha de rosto tem uso opcional, mesmo que remeta à uma tradição do mundo editorial.

folha de rosto  Contém título da obra, subtítulo, autor, editora, cidade/estado, ano de lançamento e número da edição. É a página de identificação da obra.

guardas  Folhas de papel encorpado que conectam o miolo com a capa. São características de livros de capa dura. Porém, utiliza-se informalmente o termo “guardas” para as partes internas de capa em livros de brochura.

cabeça  Parte superior do miolo. miolo  Formado por cadernos, que são compostos por folhas dobradas e refiladas. Cadernos são feitos em múltiplos de quatro páginas. O miolo apresenta o conteúdo do livro em si, e pode ser costurado ou grampeado. É evidente que a maior parte destes elementos não possui equivalente em publicações digitais, simplesmente por não ser necessário no mundo digital. No que consta às semelhanças entre publicação impressa e e-book, podemos apontar apenas a capa como ponto em comum. Ainda assim, capas de e-books não protegem ou enclausuram o objeto; possuem como função principal criar identidade visual ao conteúdo textual. Elementos como falsa folha de rosto e folha de rosto são mantidos em e-books por convenção e hábito. A publicação já é identificada em menus superiores ou inferiores. Os aspectos do projeto gráfico são conectados à estrutura de informação e hierarquia de conteúdo, como paginação e capítulos. No contexto digital, alguns desses elementos são reconfigurados. Por exemplo, em e-books não há paginação propriamente dita: há porcentagem de leitura. Como a diagramação e tamanho de fonte são customizáveis, o número de páginas é alterado com frequência.

1.3  NOVAS FRONTEIRAS: PUBLICAÇÃO DIGITAL Definição Publicações digitais são arquivos em formato digital – normalmente configurados em linguagem html ou css – apresentando conteúdo para ser lido em equipamentos eletrônicos, tais como computadores, e-readers, celulares e tablets. Os e-books são vistos como padrão no contexto de publicações digitais, embora estas apresentem

22


os mais diferentes formatos: podem ser também sites, blogs, aplicativos de celular... Estes diferentes formatos apresentam peculiaridades próprias. Os e-books possuem layout fluido, que pode ser configurado conforme gosto do usuário quando lido em e-reader ou em software de leitura específico para isso. E-books funcionam essencialmente offline, para deleite individual. As publicações digitais em blogs ou aplicativos reconfiguram a relação entre usuário e meio; em blogs os comentários de leitores são parte essencial da publicação, que cresce conforme sua propagação e participação do público. Estas diferenças serão esmiuçadas mais adiante. Ainda em tempo: por que escolhi a nomenclatura “publicação digital”? Por que não chamá-los de “livros digitais”? Antes de tudo, a palavra “livro” está intimamente ligada à encadernação do códice. Embora a ideia de “livro” esteja também relacionado a discurso e outros âmbitos que escapam da materialidade do objeto, ainda assim é uma metonímia muito forte e presente. “Livro digital” é, portanto, um termo confuso. Além disso, trata-se de uma nomenclatura anacrônica, porque aponta, de uma forma ou outra, ao objeto formado pelo códice. Se esta relação não fosse tão forte, poderíamos chamar A Epopeia de Gilgamesh de “placa de argila digital” sem causar estranheza. Utilizar o termo “livro digital” remete em parte a algo que publicações digitais não são – elas são algo próprio, um fenômeno independente, e como tal devem caminhar para uma linguagem genuína e singular. Sendo assim, usarei nesta monografia o termo “e-book”, pois já é consagrado no mercado como o arquivo .epub ou .mobi vendido em livrarias online. Para considerações gerais, utilizarei “publicação digital”.

Histórico Comparado ao consagrado formato do códice, já em vigência há cinco séculos, o e-book tem um histórico modesto. Tem-se o ano de 1971 como sua data de nascimento oficial: era lançado o Projeto Gutenberg, uma biblioteca online que reúne gratuitamente até hoje obras do domínio público. O primeiro e-book foi lançado naquele mesmo ano, como eText #1, num projeto visionário para criar versões eletrônicas de trabalhos literários, a fim de disseminar a informação mundialmente. Estamos falando do mesmo ano em que foi lançado o primeiro disquete pela IBM, Laranja Mecânica estreava no cinema e Apollo 14 era a terceira nave espacial a pousar na lua. Apenas três anos depois a internet seria disponibilizada ao público, em pequeníssima escala, com a criação do protocolo TCP/IP por Vinton Cerf e Bob Kahn. Naquela época, a internet não tinha as proporções e o significado que tem hoje: era, na realidade, uma rede privada. Isto foi modificando-se no decorrer das décadas seguintes. No ano do lançamento do Projeto Gutenberg, a internet era mais um esboço do que qualquer outra coisa. Conforme Marie Lebert⁶ (2009) [em tradução livre]: A pré internet foi criada em 1969 nos Estados Unidos, como uma rede de contatos do Pentágono. A internet decolou com o TCP/IP de Vinton Cerf e Bob Kahn. Isto expandiu a internet como uma rede que ligava agentes governamentais americanos, universidades e centros de pesquisa. Depois da invenção da web em 1989-90 por Tim Berners-Lee no Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (CERN), em Geneva, Suíça, e do lançamento do primeiro browser, Mosaic (um ancestral do Netscape), em novembro de 1933, a internet começou a se expandir, primeiro nos Estados Unidos, graças aos investimentos do governo, depois na América do Norte e então mundialmente. Como a web era de fácil uso (ligava documentos e páginas com hyperlinks), a internet agora poderia ser usada por qualquer um, e não apenas por especialistas em computação. Em agosto de 1989, o Projeto Gutenberg publicou seu décimo livro completo: The King James Bible

Capítulo I O design de livros 23

⁶ lebert, 2009: p. 14


(1769), com 5 mb para todos os arquivos. É interessante notar como o computador era lento na época, e como digitar um livro inteiro era um processo demorado. O ritmo de produção virtual crescia conforme os anos. Em 1994, a média de livros produzidos mensalmente no Projeto Gutenbert era em torno de 8; enquanto em 1996 este número cresceu para 32 publicações mensais. Em 2003 já haviam 10.000 e-books disponíveis no site. É somente em meados de 1994 que se dá o boom da internet, com uma ampliação drástica da quantidade de usuários. Foi neste ano que surgiu o World Wide Web Consortium (W3C). Conforme Lebert⁷: O World Wide Web Consortium (W3C) foi fundado em outubro de 1994 para desenvolver tecnologias interoperáveis (especificações, guias, software, e ferramentas) para a web, por exemplo especificações de linguagem (HTML, XML e outros) e para agir como um fórum de informação, comércio, comunicação e entendimento coletivo.

⁷ lebert, m. 2009: p. 15.

Concomitante ao processo online, os e-books do Projeto Gutenberg eram copiados em cds e dvds graças ao custo extremamente baixo para tal. Esta é uma preocupação real no mundo digital, onde a documentação de arquivos é extremamente frágil, já que a constante atualização de softwares resulta numa rápida defasagem de formatos eletrônicos. Por mais que sejam guardados e documentados, arquivos digitais dependem de softwares para serem lidos e abertos corretamente. Por exemplo, arquivos criados no começo da década de 90 para Microsoft Word 2.0 podem apresentar incompatibilidade em qualquer pacote Microsoft Office atual. Sendo assim, a constante atualização de softwares gera uma grande ostracização de arquivos antigos, que se perdem num limbo de processadores ultrapassados e linguagens antiquadas de informática. Este background da internet é necessário para demonstrar o contexto de e-books e, sobretudo, a popularização dos mesmos. Ambos são exemplos da democratização da informação digital. Assim como a internet, os e-books foram criados décadas antes de serem usufruídos pelo público em massa. As bibliotecas online foram criadas por volta de 1998, utilizando websites como vitrines virtuais de seu catálogo. Até os anos 2000, a informação na internet não era disponibilizada em outras línguas senão o inglês. Em 1995 é lançada a livraria online Amazon.com por Jeff Bezos em Seattle, nos Estados Unidos. Diferenciando-se de lojas de livros convencionais, a Amazon não foi criada como uma loja física. Todos seus produtos são vendidos exclusivamente online, embora agora, após décadas de sucesso, algumas poucas lojas físicas tenham sido inauguradas nos Estados Unidos. A Amazon possui um grande papel na história dos e-books pois criou um e-reader próprio da empresa, além de deter direitos de extensões de arquivos como .azw e .kf8. A popularização de publicações digitais ou print on demand ocorreu em meados de 1997. Os avanços de técnicas de impressões digitais proporcionaram impressões mais fáceis e mais baratas do que imprimir em máquinas de fotocópias. Os computadores disponibilizavam softwares com recursos de artes gráficas e interações entre texto e imagem. A digitalização facilitou e agilizou o processo impresso. Concomitantemente, publicações online tornaram-se uma solução barata frente aos livros impressos. Há aproximação entre os mundos digital e físico, seja na preparação de arquivos finais ou um sendo complemento ao outro. Desde então, o processo de digitalização de livros impressos e criação de e-book está em constante crescimento. Livrarias físicas tomaram conta da web em 1998, investindo em vitrines virtuais em seus websites e lojas. Desde 1996 jornais e revistas têm sido projetados em websites. Atualmente o

24


Projeto Gutenberg aumentou consideravelmente, criando-se subdivisões por país e disponibilizando mais de 100.000 e-books gratuitamente. De forma geral, o formato do códex foi reestruturado. Caminhou do mundo da coisa ao da não-coisa. O livro digitalizou-se. Como explica Chartier (2008): A novidade atual é que essa relação entre as várias classes de objeto e os tipos de discurso explodiu, uma vez que há uma continuidade textual que se dá ao ler na tela, e a inscrição material nessa superfície ilimitada não corresponde mais a esses tipos de objeto (os rolos da Antiguidade, os códex manuscritos ou o livro impresso a partir de Gutenberg). (...) O problema do livro eletrônico está posto com a rematerialização dentro de uma ordem de objetos, como o e-book ou o computador portátil, que são objetos únicos para todas as classes de textos. A partir daí, a referida relação se põe em termos novos.

Entrevista com Roger Chartier. Tradução: Luciana S. Salgado. Entrevista originalmente concedida para o site La Vie des Idées em 29 de setembro de 2008. Acesso em 29 de juhlo de 2016.

A grande questão de publicações digitais está relacionada a séculos de história do livro impresso enquanto objeto e discurso. Porém, mesmo que apresente ligação com o mundo impresso, os e-books são fenômenos à parte. A relação entre suporte e conteúdo no contexto digital é genuína, embora até então tenhamos dificuldade em entender isto. Esta nova estrutura de e-books corresponde a uma nova maneira de ler e se relacionar com o texto.

Layout e estrutura: como funciona? No decorrer deste capítulo, foi abordada uma breve história dos suportes narrativos tradicionais. Embora cada um destes suportes tenha suas especificidades, todos carregam conteúdo essencialmente textual, ou seja, um texto formado de palavras, que são formadas de letras. A forma que este texto   Esquema daptado de de bruijn, m. et al. 2015: p. 31

ESTRUTURA Um pequeno <strong>jabuti xereta<strong> viu dez cegonhas felizes

ESTILOS TABLET

LAPTOP

SMARTPHONE

font style: regular font size: 18px

font style: bold font size: 100px

font style: italic font size: 10px

REPRESENTAÇÃO VISUAL Um pequeno

jabuti xereta viu dez cegonhas felizes

Um pequeno jabuti xereta viu dez cegonhas felizes

Um pequeno jabuti xereta viu dez cegonhas felizes

Capítulo I O design de livros 25


Esquema de de bruijn, m. et al. 2015: p. 34

IOS

DISTRIBUIDOR

iTunes App Store Distribuidor independente de EPUB

FORMATO EPUB

iBooks PDF

Aplicativo ANDROID

Google Play Distribuidor independente de EPUB

EPUB PDF

Aplicativo

KINDLE

Amazon Appstore da Amazon Distribuidor independente de EPUB

Mobipocket

Loja da Kobo

EPUB

AZW PDF

KOBO

PDF

era apresentado mudou conforme o tempo, pois houve adaptações não só quanto ao contexto linguístico, mas também quanto ao contexto formal do alfabeto e do texto em si. Mudanças e acréscimos como espaços entre palavras, ascendentes e letras maiúsculas são formas de se pensar na estruturação do texto como imagem, tendo em mente facilitar o entendimento e melhorar a hierarquia de informação. O mesmo ocorre ao pensarmos na estrutura do códice, que contém parágrafos e capítulos para estruturar o conteúdo no suporte. A lógica segue em publicações digitais, baseadas nesta linguagem. As estruturas de html e css servem para formatação de parágrafos, estilos de caracteres e hierarquia de informação. Esse processo é chamado de markup, funcionando através de códigos e programação básica. Há códigos e tags específicos para formatação de texto, tais como itálico (<em>), bold (<strong>), headlines (h1, h2, h3), estilos (font-style; font-size), entre tantos outros. O texto eletrônico é trabalhado nesta lógica, pois seus elementos estruturais são formatados para o resultado final: a representação visual do texto.

Formatos

⁸ mod, c. Book: A Futurist’s Manifesto in Desinging books in the digital age. 2012. Acesso em 8 de setembro de 2016.

Os formatos dos e-books e publicações variam conforme seu suporte. Diferem-se, sobretudo, em como os arquivos são reajustáveis aos suportes e também como se comportam de maneira interativa ou não. Conforme Craig Mod⁸, podemos categorizar formatos de arquivo em três propósitos e usos.

formatáveis  .epub, .mobi, html  O conteúdo não possui ligação com o formato do suporte. Não há mudanças quando as palavras são reajustadas de tamanho ou espaçamento entre linhas. É o caso de romances clássicos, por exemplo, onde o texto foi concebido em parágrafos e frases, com modulação tradicional. Estes formatos são utilizados em e-readers como Kobo e Kindle.

26


Esquema de de bruijn, m. et al. 2015: p. 31

Website Web app Aplicativo (híbrido)

NAVEGAÇÃO

CUSTOMIZAÇÃO

iBooks Author EPUB3 EPUB2

PDF

STANDARD PLAIN

RIQUEZA

LAYOUT

definitivos  .pdf, .epub3 (html5/css3)  Possuem layouts fechados, estabilizados. A estrutura da página normalmente está conectada com o conteúdo textual. São formatos utilizados para se ler em computadores ou tablet, porém sem grande interação com o usuário. Interativos  iOS/Android, epub3 (html5/css3)  Apresentam interatividade com o usuário, tendo componentes como vídeos, hyperlinks e narrativas não lineares. Utilizados em suportes de alta tecnologia como celulares e tablets. Cabe ainda dizer aqui que os formatos de publicações digitais encostam em questões complicadas quanto a estratégias mercadológicas. É comum formatos de arquivos serem desenvolvidos especialmente para empresas, que assim detêm controle de informação e de produtos. Por exemplo, arquivos .azw e .kf8 são propriedade da Amazon, e funcionam apenas em dispositivos e aplicativos Kindle, e-reader exclusivo da loja. Devo ressaltar também que decidi abordar as questões visíveis de publicações digitais, tendo em mente trabalhar o projeto gráfico visual de publicações híbridas. Neste recorte não estão os audiobooks que, embora tenham questões de visualidade e cultura visual em si, não contêm aspectos visíveis a serem trabalhados.

1.4  PUBLICAÇÕES HÍBRIDAS Em termos de produção, livros normalmente são vistos como um produto impresso único, o qual possui uma versão digital adaptada e redimensionada da versão impressa. O processo é separado, e o formato do e-book é subestimado como uma mídia narrativa. O livro híbrido não está nesse espectro. Publicações híbridas trabalham exatamente para repensar o papel das publicações na indústria e mercado editoriais. Mais do que uma adaptação do mundo físico ao mundo virtual, publicações híbridas confrontam e repensam os métodos tradicionais de mercado, distribuição e produção. Quais serão estas transformações? Qual a potencialidade do e-book? O que isto significa em termos práticos?

Capítulo I O design de livros 27


Concomitantemente, há um quê de glamourização do livro impresso, por seu valor como objeto. Quando ouvi pela primeira vez sobre e-books, encarei a ideia com certo desprezo, já que meu amor aos livros também é um amor ao objeto do livro. Hoje percebo que este sentimento é nada mais do que o embate típico entre o mundo das coisas e o mundo das não-coisas. ⁹ flusser, v. 2007: p. 54

Como explica Vilém Flusser (2007)⁹, estamos acostumados ao mundo das coisas porque vivemos rodeados delas em nossos ambientes: casa, móveis, veículos, sapatos, roupas e livros. Essa materialidade das coisas nos é confortável porque, além de marcar uma presença física, conecta-se a nós pelo fato de serem finitas, de estarem sujeitas à morte. Por outro lado, as não-coisas são informações imateriais, como softwares, dados no computador, imagens eletrônicas na tela. São inapreensíveis, ou seja, são informações inconsumíveis. As publicações digitais estão dentro deste espectro. Estamos tão acostumados a viver rodeados de coisas que a ideia de um livro virtual parece, à primeira vista, desprezível. É por isto também que a aceitação de e-books vem ocorrendo gradualmente, já que o deslocamento do nosso horizonte de interesse das coisas para as não-coisas é algo sem precedentes na história.

Definição Conforme De Bruijn et al10, publicação híbrida é uma publicação lançada em diferentes formatos, tanto impresso quanto eletrônico, preferencialmente num fluxo que minimize o trabalho de modificação em cada suporte. Num mundo de suportes eletrônicos distintos, é preciso que a mesma publicação seja bem projetada para um iPad, Kindle, Kobo, Smartphones (Android ou iPhone) e também no livro impresso. No mundo das coisas e não-coisas, a publicação híbrida não é uma opção: é uma necessidade.

Diferenças entre suportes eletrônicos

10

de bruijn, m. et al. 2015: p. 134

Há diversas maneiras de se ler publicações eletrônicas. Por serem portáteis e práticos, e-readers e tablets são as opções mais populares, embora seja possível também ler em celulares smartphones, através de aplicativos, e em computadores e laptops.

e-readers  Kindle, Kobo  Dispositivo eletrônico portátil, com layout fluido e relativamente barato. Possui tela monocromática oriunda da tecnologia chamada de papel eletrônico (e-paper), cujo consumo de bateria é muito baixo – e-readers aguentam até 2 meses sem necessidade de recarregar energia. A tela e-ink funciona através do posicionamento magnético de pequenas partículas pretas, sem utilizar luz. Como não usa luz pra formar imagens, a energia da bateria é gasta somente na mudança de tela, ou seja, no reposicionamento de pontos. Por não emitir luz, a leitura prolongada no e-reader é agradável aos olhos, assemelhando-se ao papel. Entretanto, é uma tecnologia que não suporta imagens em movimento, por serem complexas demais.

tablets  Feitos de telas coloridas LCD, são ótimos para leitura de publicações de arte e design. Permitem imagens em movimento, áudio e interatividade do usuário e alguns dos modelos mais novos disponibilizados pela Apple ou Samsung têm qualidade semelhante a monitores profissionais usados por designers e fotógrafos. Porém, causam grande fatiga no olho e gastam bateria rapidamente.

celulares smartphones  Possuem basicamente as mesmas qualidades e defeitos que os ta-

28


blets, porém apresentando telas menores. Em celulares, e-books são lidos através de aplicativos, que podem ser licenciados por lojas como Amazon ou Kobo, ou serem leitores genéricos de formato .epub.

computadores e laptops  Ler em computador pessoal ou laptop é algo menos natural do que em tablets ou e-readers devido a questões de ergonomia e hábito de leitura dos usuários. Possuem os mesmos problemas de leitura em um tablet: fatiga do olho e alto consumo de bateria. Ainda assim, computadores e laptops são atraentes quando pensamos em publicações digitais que usufruem da web como suporte, tais como webcomics, periódicos online e blogs. Demonstradas as principais diferenças entre os suportes, é preciso evidenciar que cada um deles tem relações distintas com o usuário, principalmente por questões que advêm de suas distinções técnicas. O layout de publicações digitais proporciona diversas formas de customização, assim como diferentes níveis de navegação e riqueza. Apesar de e-readers permitirem alta customização pelo usuário – como mudar margem, tamanho de entrelinha, escolha de tipo ou tamanho de fonte –, a estrutura é relativamente simples e plana, sedimentada em códigos de .epub2 ou .epub3. Websites e webapps tendem a ser altamente customizáveis, ao mesmo tempo que apresentam um layout mais rico, tendo mais elementos e possibilitando maior interação entre texto e imagem, além de permitir interatividade e colaborar para construções de hipertextos complexos, moldados a partir de escolhas do usuário. Estas diferenças ressaltam as peculiaridades de cada suporte, e evidenciam como publicações digitais possuem propriedades específicas. As possibilidades de alteração pelo leitor são enormes. No caso do designer, é possível uma grande experimentação em termos de projeto visual. É curioso notar a relação entre quem lê e quem projeta neste caso: as liberdades de customização do leitor são proporcionados pelos modelos de publicação projetados pelo designer. Normalmente, o layout é pensado em um sistema fechado, sem proporcionar alterações posteriores pelo usuário. Este cenário é reconfigurado em publicações digitais, que normalmente consideram fatores como customização e eventuais alterações do consumidor. Isto proporciona uma mudança na relação designer e usuário, gerando mais interação entre ambos. Esquema adaptado de de bruijn, m. et al. 2015: p. 32

Cor E - READERS

CELULARES SMARTPHONES TABLETS

LIVROS

Imagens em movimento

Vida útil

Fatiga no olho

Legibilidade na luz solar

Custos de produção

Formato

$

ELECTRONIC PAPER

$

TELA TFT

$$ Capítulo I O design de livros 29

TINTA


OUTPUT

CONTEÚDO

1

TRADICIONAL

fluxo de trabalho tradicional fluxo de trabalho tradicional fluxo de trabalho tradicional

RESULTADO FIXO

Fluxo de trabalho de publicação única

2

ONE-TO-MANY

fluxo de trabalho híbrido fluxo de trabalho híbrido

RESULTADO REFORMULÁVEL

Workflow de múltiplas publicações

3

ONE-TO-DATABASE abordagem de banco de dados

Customizável   Esquema de de bruijn, m. et al. 2015: p. 27

INFINITAS PUBLICAÇÕES

Tipos de produção Segundo De Bruijn, hoje existem basicamente três maneiras de se criar publicações híbridas quando se pensa na cadeia de produção de um projeto.

one-to-one  Processo tradicional de se fazer livros e e-books, onde um arquivo de edição e design exporta apenas um arquivo de arte final para produção. O layout é fixo. Cada produto final é feito separadamente, e a versão digital é normalmente uma adaptação da versão impressa.

one-to-many  A publicação pode variar de aparência e layout conforme a mídia e o suporte em que é apresentada. Há um arquivo de edição e criação que exporta a arte final para vários formatos, podendo gerar versão impressa, e-book, apps, websites, entre outros. O layout é variável, ajustável pelo usuário quando em e-book, e responsivo quando em websites e webapps. Assim sendo, o livro não é um produto único, e a produção de todos os arquivos finais ocorre simultaneamente.

one-to-database  Neste caso, o livro não é um livro convencional, pois não é uma unidade fechada e delimitada. Aqui a publicação é a junção de vários fatores independentes, oriundos de uma base de dados abrangente. Estes dados podem ser qualquer tipo de informação, como compilado de notícias, artigos, comentários em blogs, vídeos, históricos de pesquisas de usuários, estatísticas, entre outros. Estes podem ser reunidos e utilizados conforme a vontade de quem possua acesso à base de dados, ou seja, podem ser publicações impressas, digitais, interativas.

Tipos de gêneros em publicações híbridas O modo como são produzidas as publicações híbridas está diretamente conectado ao seu conteúdo.

30


É necessário explicar que nem todo conteúdo permite um bom projeto híbrido, pois alguns livros impressos são pensados a fim de tirar partido da materialidade do livro. Outros, entretanto, carregam um conteúdo que é bem distribuído tanto em mídias digitais quanto impressas. Sendo assim, a facilidade e praticidade de produção em projeto híbridos está relacionada ao gênero da publicação, ao conteúdo. Abaixo constam alguns exemplos de gêneros e seus respectivos desafios.

publicação acadêmica  Nível de adaptação relativamente simples, já que publicações como artigos e teses são essencialmente textuais, com linearidade e hierarquias bem determinadas. Entretanto, por seguirem algumas regras de formatação e diagramação, e-books científicos são disponibilizados majoritariamente como arquivos de layout fixo, com extensão .pdf. Ainda assim, há plataformas específicas para distribuição e leitura de tais textos. catálogo de arte/design  Apresenta nível de adaptação simples, pois possui conteúdo predominantemente visual, já que o texto é normalmente utilizado em legendas de imagens, tendo função de apoio. Em questão de mídias digitais, apresentam grandes ganhos, pois os novos modelos de tablets possuem qualidade e resolução de tela comparável à monitores profissionais, tendo mais fidelidade a cores do que versões impressas. Possuem a vantagem de também ser possível incluir propriedades como zoom, links, vídeos ou até mídia interativa. Ainda assim, normalmente possuem layout fixo, pois a imagem, mesmo sendo mais importante, tende a depender do texto.

livro de artista/designer  Nível de adaptação complicado, pois normalmente este gênero oferece uma reflexão sobre o meio em que está inserido, tendo características próprias ao formato. Em livros impressos, o livro de artista tira proveito da materialidade do livro, de seus aspectos táteis e visuais. Em e-books, apresenta jogos de programação ou hierarquia de elementos, hyperlinks e formas de interagir com o usuário. Sendo assim, um e-book normalmente não condiz com sua versão impressa, já que a conversão e adaptação de características dos meios é muito difícil. Além disso, a interação entre texto e imagem costuma ser não convencional, tornando ainda mais difícil a produção one-to-many.

periódico de arte/design  Imagens têm um papel principal, embora a relação entre texto e imagem seja equilibrada. Entretanto, é comum o texto se tornar imagem e a imagem se tornar texto, apresentando diferentes níveis de quantidade textual. Neste caso o layout tende a ser fixo, apesar de depender do quanto a diagramação pode ser modificada em relação ao conteúdo.

PUBLICAÇÃO DE PESQUISA

CATÁLOGO DE DESIGN/ARTE

PUBLICAÇÃO DE DESIGNER/ARTISTA

PERIÓDICOS DE DESIGN

NOVOS GÊNEROS

Conteúdo principal Tipo de layout

?

Quantidade textual

?

Dificuldade de adaptação

? Capítulo I O design de livros 31


novos gêneros  “Novos gêneros” pode parecer uma definição evasiva, porém expressa as mudanças que publicações híbridas trazem ao mercado editorial. Elas modificam as ideias do que consideramos um livro, pois podem ser blogs, base de dados, panfletos, séries de tweets, poemas, webcomics, entre outros. Sua dificuldades de adaptações se restringem a cada caso.

Novas possibilidades e desafios Publicações híbridas oferecem novas possibilidades, principalmente para o mercado editorial, ramo acadêmico e registro histórico. Uma das formas mais utilizadas se dá a partir do escaneamento de livros impressos para serem convertidos em mídias digitais. Este é um recurso básico que possibilita a criação e manutenção de um grande acervo, uma biblioteca virtual composta por informações e histórias anteriormente de acesso difícil e remoto. Esta é a ideia principal de projetos como Project Gutenberg, the Million Book Project, Google Books e The Open Concent Alliance. Em questão de arquivamento e pesquisa, as publicações digitais são um ganho considerável, pois constroem uma base de dados online com grande (poderíamos talvez até dizer infinita) vida útil. No que confere ao mercado, este novo panorama é um grande facilitador para os escritores e autores independentes, que podem publicar online, via mídia impressa ou ambos. Esta é uma mudança importante no mercado, já que impulsiona um cenário alternativo de publicação, reforçando o que já vinha acontecendo desde a década de 60 nos movimentos de contracultura e posteriormente no de zines. Atualmente o autor pode ser também o editor, designer e divulgador, ao passo de que poderá produzir, lançar e divulgar sua obra gratuitamente na internet, por vias digitais. Como será visto mais adiante, o e-book apresenta menos etapas de custo, tornando-se ainda mais atraente ao pequeno empreendedor. Em questões acadêmicas, as publicações digitais colaboram para dispersão e democratização do conhecimento, pois são distribuídas em nível global e de forma gratuita. Ainda que restritas aos layouts fixos, publicações acadêmicas apresentam ganhos específicos quando em mídias digitais. É mais fácil catalogar artigos e teses em acervo pessoais e públicos, além de permitir maior facilidade para marcar citações, figuras, dados e outros fatores habituais em metodologia de pesquisa, como fichamentos e catalogação de bibliografia. Para além destes cenários já apresentados, cogita-se também um novo paradigma quanto ao formato do livro: seu layout e conteúdo reconfiguram-se conforme os novos suportes. Elementos como colofão, sumário e paginação, tradicionais e clássicos para o livro impresso, tornam-se anacrônicos em mídias digitais, que possuem áudio, vídeo, hyperlinks. Como reconfigurá-los é um dos novos desafios das publicações digitais e híbridas. Estes novos desafios incluem também pensar em como o layout é exposto em diferentes mídias, tanto digitais quanto impressas, e como tirar partido de cada suporte.

1.5  CRIANDO UM LIVRO 11

haslam, A. 2007: p. 13

Segundo Andrew Haslam em O Livro e o Designer II11, A produção de um livro impresso inclui participação de várias expertises e vários profissionais. A indústria editorial é colaborativa e sempre envolverá o trabalho em equipe. O processo de criação de livros impressos inclui uma série de profissionais integrados que atuam em

32


etapas divididas basicamente em: produção de conteúdo, criação, regulamentação e promoção, produção, distribuição e vendas.

I. Produção de conteúdo autor  Escreve uma obra literária inédita, detendo os direitos autorais desta. O autor pode apresentar originais já finalizados para um agente literário ou casa editorial, mas pode também trabalhar em conjunto com o editor ou ilustrador. No caso de livros infantis, autor e ilustrador podem ser a mesma pessoa. O mesmo se aplica para o design de livros autorais ou livros de arte.

agente literário  Contratado pelo autor, o agente realiza orientação e assessoria todo o processo de publicação. Representa o autor e administra seus interesses conforme a proposta da obra literária. É ele quem apresenta a proposta do livro aos editores, gerencia adiantamentos e direitos autorais e analisa o contrato do autor. Normalmente agentes literários se especializam num determinado gênero de livro e ganham uma remuneração percentual sobre as parcelas dos direitos autorais.

editor  Chamado em inglês de “publisher”, é o responsável pela publicação de uma obra, trabalhando na formação do conteúdo e assumindo todos os custos do projeto, desde tradução e ilustrações até custo gráfico e de distribuição. Pode ser uma pessoa física (editor) ou uma pessoa jurídica (editora). Pode ter uma relação direta ou indireta com o autor, trabalhando por intermédio do agente literário ou fazendo acordos para produção de coedições — algo comum com editores internacionais. No que confere à formação de conteúdo, o editor trabalha na reestruturação do texto, corrigindo partes confusas e auxiliando o autor com o texto. Desta maneira, o editor deve possuir boa habilidade de escrita, conhecimento gramatical, noções de tipografia e projeto gráfico, administração de cronogramas e produção editorial. Quanto às vendas, as casas editorais têm um percentual ganho por preço de capa. Este percentual é acordado entre varejista e casa editoral, e pode variar entre 30% a 50%. A casal editorial sempre tem o mesmo ganho percentual por venda de livro; já o varejista pode variar o preço dos livros a partir de lucro e oportunidade, procura e venda. Isto demonstra que casas editoriais possuem um ganho fixo, independentemente do livro ser impresso ou digital. Logo, aos olhos da editora, não é rentável investir em publicações digitais. Esta é uma das causas que culminam em e-books com projetos gráficos fracos, ou meras adaptações de suas versões impressas.

consultor/revisor técnico  Contratado pelas editoras por seu conhecimento especializado sobre determinado assunto abordado na obra que será lançada. Contribuem com ideias e suas opiniões sobre a pertinência das informações contidas no original. Podem também participar das etapas de revisão ao longo de todo o processo editorial.

revisor  Realiza o esmiuçamento do texto, buscando erros conceituais, gramaticais e ortográficos. A revisão pode ser realizada em duas etapas: na finalização do texto original, a fim de terminá-lo conceitualmente, e na revisão final com projeto gráficos finalizados, a fim de buscar erros mais técnicos como viúvas, hifenização e erros de digitação. Ao contrário do consultor gráfico, não trabalha diretamente na criação do texto.

II. Criação visual diretor de arte  Responsável pela conexão visual do livro com seu público, trabalha juntamente

Capítulo I O design de livros 33


com o ilustrador e designer para garantir que o projeto gráfico atenda às características de conteúdo propostas pelo editor. Geralmente possui experiência em design, pois fica à sua mercê todo o visual do projeto. Realiza a conexão conceitual e visual entre ilustrações, identidade visual do livro e projeto gráfico do mesmo. O diretor de arte fará as orientações no que confere a convenções tipográficas, capas, formatos, logos e assim por diante.

designer  Responsável pelo projeto gráfico do livro, que inclui obrigatoriamente capa, quarta capa e projeto de miolo, mas pode conter também ilustrações, mapas, imagens referenciais, notas, etc. O projeto gráfico de um livro inclui não só o formato do livro e seu acabamento, mas também criação de grid, seleção de tipografia, tratamento de imagens e estilo de layout da página. O elo entre todos os elementos visuais do livro é responsabilidade do designer, assim como o conceito visual do projeto. O designer trabalha junto com o autor e o ilustrador a fim de refinar a visualidade do livro e garantir a compreensão do conteúdo. pesquisador de imagens  Responsável por obter imagens que serão utilizadas no livro, assim como pela permissão dos direitos autorais das mesmas. Recorrem normalmente a bancos de imagens, além de arquivos de museus e coleções. Esta é outra tarefa editorial que pode recair no escopo do designer. ilustrador, fotógrafo, cartógrafo  Geralmente são freelancers e trabalham por projeto contratado, sendo remunerados por pagamento fixo ou por um valor fixo somado a um percentual de direitos de reprodução. Certos livros, como livros ilustrados, livros de artistas e quadrinhos, têm um trabalho visual tão importante que designers, autores e editores trabalham em conjunto com estes freelancers.

III. Regulamentação e promoção gerente de licenciamento  Trata do licenciamento de direitos autorais de terceiros. O custo da licença é altamente variável, pois depende do tamanho das imagens, o tipo de uso (editorial, ou editorial e comercial), em quantos idiomas será utilizado e a quantidade de reproduções. Por exemplo, se o uso editorial se refere ao uso da imagem como referência visual descritiva, esta não pode ser usada para fins de propaganda comercial. Por outro lado, uma imagem editorial pode ser usada em jornais, mas não em um panfleto ou banner. É também função do gerente de licenciamento administrar direitos de textos e imagens publicados no catálogo da editora em que trabalha.

gerente de direitos autorais  Administra os contratos de direitos autorais de ilustradores, fotógrafos, autores, etc. Como também trabalha junto ao departamento de marketing e de distribuição e exportação de livros, é responsável por identificar coeditores estrangeiros e como os direitos autorais do livro funcionarão no exterior.

gerente de marketing  Promove a distribuição do livro, promoção e venda de direitos autorais. Desenvolve estratégias para melhorar o posicionamento da editora e seus lançamentos no mercado.

IV. Produção e impressão revisor de provas conforme conteúdo  Realiza a correção do texto final, já diagramado no projeto gráfico, buscando erros conceituais, gramaticais e ortográficos, como viúvas, hifenização e

34


erros de digitação. São responsáveis pela aprovação da cópia corrigida de todo livro antes do mesmo ser produzido pela editora na impressão final. Atualmente, esta tarefa é realizada pelo editor e pelo designer, e o revisor de prova é uma profissão em declínio. Porém, quando solicitada, normalmente é o mesmo revisor que trabalhou na etapa de produção de conteúdo, fazendo aqui uma revisão geral e final do livro.

gerente de produção gráfica  Supervisiona a qualidade da prova de impressão, modificando o projeto num caráter técnico e visual. É sua responsabilidade conferir o ajuste de cores, saturação, valores e registro da impressão. Possui uma boa rede de fornecedores, e administra cronogramas de produção e entrega. Normalmente o diretor de arte e o designer também participam da produção gráfica e em muitos casos assumem o papel de produtor gráfico.

impressor  Terminada a finalização da produção editorial, os arquivos finais são enviados digitalmente a uma gráfica, normalmente realizando também o acabamento do livro. Este é o começo da produção industrial do livro. Certas gráficas realizam apenas a produção do livro, sendo preciso contratar também uma empresa de acabamento gráfico. É comum livros serem impressos numa gráfica e processos de encadernação e acabamento ser realizado por empresas diferentes.

encadernador  Especialista em acoplar o miolo ao livro à capa brochura, dura ou flexível. É comum que o encadernador envie um protótipo em branco do livro que demonstre papel, número de páginas e espessura da lombada que o livro final apresentará. Este protótipo é chamado de boneca. empresa de acabamento gráfico  Responsável por quaisquer atividades de produção que ocorrem após a impressão, tais como colagem, encadernação, laminação, corte, vinco e dobra. Esta etapa pode ser tanto feita artesanalmente quanto por máquinas especializadas, dependendo do tipo de acabamento que o livro terá.

V. Distribuição gerente de distribuição  Controla toda a logística que envolve o estoque e a reposição de livros para distribuidores e livrarias. Muitas das vezes é um trabalho árduo, já que envolve lidar com preços, transportadoras e quantidades de livros para lugares próximos e distantes. Esta é uma das etapas fundamentais de conceber um livro, pois o sucesso do mesmo depende bastante de sua disponibilidade de compra nos pontos de venda.

divulgadores  Têm como função anunciar e promover o livro. Um bom divulgador tem uma boa relação com distribuidores e conhece hábitos de compra e gostos do público. Muitos trabalham por comissão, ou seja, ganham uma porcentagem a cada livro vendido, e, portanto, seus ganhos são diretamente proporcionais ao volume de vendas.

VI. Vendas varejista  Comerciante que realiza compras a pequenas quantidades, diferente do atacadista. O varejo é feito com venda direta ao comprador final, sem intermediários. No mercado editorial, a demanda de varejistas e livreiros independentes tem diminuído graças aos enormes descontos oferecidos pelas grandes redes de livrarias. Mesmo assim, varejistas menores têm apostado na demanda de um público específico e fiel, como acontece nos quadrinhos. O mercado de livros opera também

Capítulo I O design de livros 35


ETAPAS DE PRODUÇÃO EDITORIAL

1

2

PRODUÇÃO DE CONTEÚDO

agente literário

autor

consultor ou revisor técnico

editor

revisor

agente literário

autor

consultor ou revisor técnico

editor

revisor

CRIAÇÃO VISUAL

diretor de arte

designer

pesquisador de imagens

ilustrador, cartógrafo ou fotógrafo

diretor de arte

designer

pesquisador de imagens

ilustrador, cartógrafo ou fotógrafo

no sistema de clubes de livros, que entrega diretamente ao público os livros, sem precisar de uma loja física ou livraria. Outro mercado de varejo com bastante peso ocorre na internet: lojas oferecem grandes descontos, como Amazon ou Submarino, que possuem um modelo de negócios formado basicamente por estoque e transportadoras.

Diferenças na produção de livros e e-books Grande partes dos profissionais contratados para produção de um livro se mantém no processo digital. Apenas as etapas semifinais correspondentes à impressão e acabamento são eliminadas. A distribuição ainda ocorre, de forma mais simples e barata, através da internet por lojas virtuais especializadas (como Amazon ou Kobo store) ou plataformas independentes. O papel do varejista também se mantém, embora facilitado. Embora não tenham custos de impressão, produção gráfica, distribuição, acabamento ou encadernação, e-books são vendidos atualmente no Brasil a preços semelhantes de suas versões impressas. Por que isto ocorre? Os custos para produzir um e-book, aos olhos da editora, são basicamente os mesmos para produzir um livro impresso. Os preços desses produtos no Brasil estão conectados à estratégia e posicionamento das editoras, que não possuem interesse em investir no mercado editorial digital por ser novo e arriscado.

36


3

4

REGULAMENTAÇÃO E PROMOÇÃO

PRODUÇÃO

gerente de licenciamento

gerente de direitos autorais

revisor de conteúdo

gerente de marketing

gerente de licenciamento

gerente de direitos autorais

5

gerente de produção gráfica

encadernador

DISTRIBUIÇÃO

impressor

empresa de acabamento gráfico

revisor de conteúdo

6

VENDAS

gerente de distribuição

varejista

divulgadores

gerente de distribuição digital

divulgadores

varejista

gerente de marketing

Do ponto de vista do pequeno empreendedor, publicações digitais são uma oportunidade para deter controle total do projeto, além de diminuir custos finais. Para autores independentes, é um mundo de possibilidades, pois facilita a distribuição e propagação do trabalho.

1.6  DESIGNER COMO AUTOR As etapas de produção e os profissionais ditos anteriormente são essenciais para o livro impresso. No livro digital, o cenário é reconfigurado, pois algumas etapas da produção editorial tradicional são eliminadas, como impressão e transporte do produto físico. Nesse contexto, o autor tem uma autonomia surpreendente, podendo até mesmo lançar livros por si só, sem precisar de uma equipe, principalmente com o auxílio da internet e plataformas específicas de autopublicação. Antes de entrar em detalhes mais técnicos, é necessária a definição do que seria autoria. Como visto na cadeia de produção do livro, o autor é quem detém os direitos autorais da obra, sendo o dono intelectual do produto. Inusitadamente, a ideia de autor é relativamente recente – pesquisas de obras de arte milenares, como na arte oriental, demonstram o anonimato como algo recorrente. Quem seria o autor da epopeia de Gilgamesh, uma das histórias mais antigas já escritas? Poderia se dizer que não há registro. Até meados da Idade Média, as histórias eram narradas por canções e contações de histórias: o veículo oral das obras era altamente popular, justamente pelo público medieval ser analfabeto. Este fator

Capítulo I O design de livros 37


contribuiu não só para a desimportância do indivíduo e criação coletiva, mas também para que a figura do autor continuasse anônima. A criação de histórias era, portanto, ao mesmo tempo de todos e de ninguém, pois eram narrativas conhecidas e passadas de geração em geração com ajustes e adições do intérprete. A oralidade até então estava conectada também ao teatro, que enxergava com maus olhos textos teatrais impressos. Feito para ser encenado, o teatro não é escrito para um leitor. Tal qual foi escrito por Chartier12 (1999): 12

É a priori ilegítimo separar o texto teatral daquilo que lhe dá vida: a voz dos atores e a audição dos espectadores. A personagem no texto dramático é criada a partir da interpretação do ator, criando, assim, ficção. Neste caso, o ator funciona também como autor, pois participa ativamente da criação da narrativa. O texto é apenas um dos elementos no cerne teatral, que inclui também iluminação, vestuário, cenografia, ação.

chartier, r. 1999: p. 27

Histórias narradas oralmente, se por atores, bardos ou contadores de histórias, são uma manifestação da desimportância da autoria até então. O que constitui, então, o surgimento do autor? Conforme Foucault13 (2002): 13

Essa noção de autor constitui o momento forte da individualização na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também e na das ciências.

foucault, m. 2002: p. 33

Na modernidade, junto ao crescimento e certa popularização de universidades e do registro escrito, houve a necessidade de se atribuir responsabilidade (e culpa) por transgressões no discurso e nascimento do texto. A noção de existir um autor representa os aspectos ideais da modernidade, como universalidade, verdade e razão – sendo estes aspectos do legado renascentista, que evidencia o humanismo e o individualismo. Mais do que marcar propriedade, a noção de autoria surgiu como mediação de discursos. A criação até então era vista como um ato divino: uma transcrição da palavra de Deus. O escritor estava redigindo palavras Dele e, portanto, estas deveriam seguir a conduta católica. Citando Chartier (1999)14: 14

A primeira afirmação de sua identidade esteve ligada à censura e à interdição dos textos tidos como subversivos pelas autoridades políticas ou religiosas.

chartier, r. 1999: p. 23 - 31

A propriedade de uma obra não protegia o autor: condenava-o. Na época, a noção de autoria estava intimamente ligada à construção e perpetuação de interesses religiosos. Tudo que fosse contrário aos dogmas cristãos era proibido – seus autores eram investigados ou condenados. Ao definir autores, a Igreja pôde domesticar e dominar discursos, conferindo autoridade, autenticidade, valor e até eternidade a certos conteúdos. Algumas dessas características permanecem até hoje quando se fala de autoria. Atualmente, a questão do autor é um ponto que levanta discussão, pois, na configuração pós moderna, a própria ideia de um “autor” é antiquada. Roland Barthes, em seu texto A morte do Autor (1968), reconfigura esta questão em dois pontos fundamentais: 1) a ideia de que toda produção textual refere-se a uma massa de escritos que a antecede, uma “massa de citações”. Neste aspecto, um texto é sempre referencial a outro, e que todo este material confronta-se e complementa-se simultaneamente; e 2) O autor não é detentor do significado final e completo do texto. Barthes argumenta que

38


assim que o autor sai de cena, o leitor surge como protagonista, sendo este quem define o significado das múltiplas interpretações e possibilidades de uma obra. Desta forma, o próprio leitor descobre diferentes níveis de leitura e define o que está nas entrelinhas. Conforme Barthes (1988)15: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.

barthes, R. 1988: p. 70 15

Considero esta ruptura revolucionária, pois inverte a relação de poder entre quem produz e quem usufrui conteúdo, dando ao público um posicionamento completamente novo. Penso também este ser um aspecto fundamental da criação de conteúdo para novas gerações, que podem transitar por hyperlinks e ter diferentes camadas de leitura graças ao mundo virtual. Desta forma, a Morte do Autor é um fator teórico que deve ser explorado em publicações híbridas. No caso do design gráfico, conforme Poynor (2010)16, o termo “designer como autor” tornou-se comum apenas em meados dos anos 80 e 90. Numa breve linha do tempo, pode-se dizer que até os anos 60 o design era visto como uma atividade essencialmente anônima, sem assinatura do designer que a projetava. O valor e prospecção dos trabalhos pertenciam ao cliente. Nos anos 1980, à medida que o senso de autonomia dos designers crescia com o pós-modernismo, o design experimental chamava atenção para si, colocando seus criadores em holofotes. A ideia do pós-modernismo no design gráfico evocava a importância do leitor tal como Barthes a evidenciara, incentivando a participação do público na leitura e apreensão de imagens e textos. Contudo, curiosamente os próprios designers pós-modernos tomaram para si o centro das atenções. Surgiram designers que vendiam-se praticamente como rockstars, atraindo até mesmo a atenção da mídia em massa: é o caso de Neville Brody, David Carson, Philippe Stark, Sagmeister, entre outros. Este é um fenômeno essencialmente norte-americano, já que a cultura dos Estados Unidos glorifica celebridades, e este fator também facilitou o surgimento do design autoral. Desde os anos 2000, a tendência tem sido evidenciar a importância e presença do designer, uma profissão subjugada. Este posicionamento funciona como uma valorização do próprio fazer design, algo que é ainda hoje mal entendido tanto na teoria quanto no mercado. Sendo assim, os designers têm reafirmado suas próprias perspectivas e interpretações dos problemas que solucionarão, questionando e até mesmo recriando briefings. A visão do designer para solucionar problemas evidencia que a profissão vai além da problemática visual, englobando também considerações acerca de serviço, logística e comportamento de público. Considera-se também que criar design não é, e nunca foi, um processo realmente neutro, porque as soluções aplicadas se relacionam com aspectos culturais, gosto pessoal, viés artístico, posições políticas e contexto histórico do profissional contratado. O designer tem se mostrado mais do que um tradutor visual a serviço da vontade de quem paga pelo projeto. Estas perspectivas do próprio trabalho contribuem para que o designer tenha um trabalho cada vez mais autoral, pois evidencia o estilo, o raciocínio e as soluções de cada indivíduo. A solução proposta é o resultado de tudo que o profissional vivenciou em questões de pesquisa, raciocínio e cultura. Este posicionamento do designer, como autor, também está conectado a uma legitimação da profissão que, por ser relativamente recente, é ainda mal entendida pelo público. A questão da autoria torna-se também uma busca pela valorização e entendimento, tanto no meio acadêmico quanto mercadológico. Mesmo assim, é capcioso configurar todo e qualquer trabalho de design gráfico como um trabalho autoral. Como visto anteriormente, o trabalho do autor é essencialmente de produção intelectual,

Capítulo I O design de livros 39

16 poynor, r. 2010: p. 119


com um envolvimento próximo ao conteúdo da obra. O papel do designer-autor é também um papel de escritor e pesquisador. Alguns profissionais operam forma e conteúdo em nível tão simbiótico que a expressão visual é única, forte e consistente, evidenciando estilo e visão de mundo próprias. Como dito por Noble e Bestley (2013)17: 17

A noção de autoria está na possibilidade de que os designers possam também atuar como mediadores - que possam assumir a responsabilidade pelo conteúdo e contexto de uma mensagem, assim como pelos meios de comunicação mais tradicionais.

noble, i., bestley, r. 2013: p. 22

A meu ver este é o grande diferencial de um designer-autor, pois demonstra o abismo entre diagramar e conceber um livro. Ao mesmo tempo, há um paradoxo entre evidenciar o designer-autor no contexto contemporâneo da Morte do Autor. Penso que paradoxos não são condenáveis. Apenas explicitam contextos complexos, cheios de áreas cinzentas. Neste caso, a reafirmação do autor é válida desde que não enclausure as interpretações do leitor. O texto é vivo, e cabe também ao autor perceber que sua obra é construída de visões do outro. No contexto de publicações digitais, o designer tem ainda mais chances de se portar como autor. É ainda mais fácil deter o controle do conteúdo, criação e produção do livro. O designer possui autonomia como nunca até então. Uma análise da etapa de produção de livros digitais deixa isto ainda mais evidente.

40




CAPÍTULO II

NARRATOLOGIA

2.1 DEFINIÇÕES Narratividade, narratologia, narrador, narração, narrativa. A cacofonia destas palavras quase pressupõe denominação semelhante a termos do mesmo campo, porém essencialmente distintos. A narratividade aborda a sucessão de eventos e transformações, responsáveis pela produção de sentido dentro de um discurso, tanto textual quanto visualmente. O conceito abrange as qualidades intrísecas aos textos narrativos. A narratividade é uma qualidade de textos narrativos de todas as épocas, excluindo preconceitos estético-axiológicos. Conforme o pesquisador Nilton Gamba Jr.¹ (2013): O enquadramento funcional do conceito de narratividade serve, no primeiro momento, para balizar sua definição com a de literariedade. A literariedade fixa-se numa concepção autotélica do fenômeno literário e a narratividade não se ativa somente em textos literários, mas também em textos não literários, e até não verbais como nas artes plásticas, o discurso híbrido (icônico-verbal) da história em quadrinhos ou o cinema, por exemplo.

¹ jr., G. 2013: p. 55

O que difere, então, narratividade de narratologia? Conforme Ana Cristina Lopes e Carlos Reis² (1988): A narratologia é uma área de reflexão teórico-metodológica autônoma, centrada na narrativa (v.) como modo (v.) de representação literária e não-literária, bem como na análise dos textos narrativos, e recorrendo, para tal, às orientações teóricas e epistemológicas da teoria semiótica. Mesmo nas mais genéricas definições da narratologia, reconhece-se sua especificidade: “a narratologia é a ciência que procura formular a teoria das relações entre texto narrativo, narrativa e história” (Bal, 1977:5); (...).

Capítulo II Narrativa  43

² lopes., A., reis, C. 1988: p. 79


Sendo assim, pode-se afirmar que, enquanto a narratividade é uma característica das narrativas, a narratologia é o estudo da narrativa. Pois bem: o que é narrativa? A palavra abrange várias ideias. Pode ser um enunciado, o ato de relatar, um conjunto de conteúdos relacionados por um enunciado ou um modo, que forma a tríade lírica, narrativa e drama. Esta última aborda conceitos interessantes associados a história e discurso, sendo, portanto, uma abordagem relevante a este projeto de graduação. A narrativa é essencialmente dinâmica, pois implica na articulação entre tempo e pela maneira que a história é narrada, ou seja, pelo jeito que se apresenta o discurso. Ela também pode apontar a relação entre personagem, responsável pelas ações, e cenário, ambientação onde ocorre a trama. Acho interessante ressaltar que toda narrativa apresenta um narrador, embora ele possa ser ou não personagem da trama. O narrador é quem apresenta o discurso, podendo ser classificado quanto à sua participação na história em si: a. narrador personagem: foco narrativo em 1ª pessoa. O narrador é personagem; b. narrador observador: foco narrativo em 3ª pessoa. O narrador não participa da história; c. narrador onisciente: foco narrativo em 3ª pessoa. O narrador é personagem e participa dos eventos da história, embora mantenha-se em tom distante e/ou impessoal. Já a narração pode ser definida ao mesmo tempo como um processo de enunciação ou um modo literário, tal como o modo dramático ou modo lírico, sendo o modo narrativo relacionado com a concepção de retórica, de preparação do argumento. No tema deste estudo, abordarei a narração nesta primeira definição, como uma sequência de fatos. O texto narrativo é baseado em ação, espaço, conflito e tempo (cronológico e/ou psicológico). Algumas narrativas envolvem estes elementos em escala mais tradicional, com começo, meio e fim. Outras, porém, desconstroem estes preceitos básicos, sem limites entre um e outro.

2.2  TIPOS DE CONFLITOS NA NARRATIVA O conflito na narrativa é a veia principal da história, e define o foco da narrativa e o tema que será desenvolvido mais a fundo no decorrer da história. É surpreendente (talvez até desesperador) perceber que grande parte das histórias escritas no mundo, sejam ficcionais ou não, apresentam uma estrutura relativamente similar, divididas em poucas categorias. Uma dessas análises se refere ao conflito da trama. Se um bom personagem é feito de conflitos, a mesma lógica segue para contar histórias. Um bom conflito deixa a narrativa mais próxima à realidade, cheia de áreas cinzentas.

conflito interno  O conflito está no próprio personagem; ele mesmo é seu próprio obstáculo. É um conflito de nível psicológico, em uma relação entre quem o personagem é e quem ele deseja ser. O foco na história normalmente se dá na mente de um dos personagens, mas também é pode ser retratado como um conflito de ordem física, onde o personagem não tem capacidade para executar uma tarefa ou enfrentar o antagonista.

conflito interpessoal  Conflito centrado na interação entre pessoas. O grande obstáculo se dá

44


numa disputa com outro, normalmente, entre protagonista e antagonista. O enredo é focado em uma luta por controle de situação, e o foco da história está na relação entre os personagens.

conflito extrapessoal  A história é focada na opressão sedimentada por normas ou estruturas da sociedade. Apresenta um conflito de foco social, centralizado no preconceito, e o desejo do personagem é de âmbito cultural, econômico ou político. Os obstáculos são entidades superiores: organizações, o governo, o exército, o mundo, deuses. Neste tipo de conflito a disputa é entre o status quo e o desejo do protagonista em mudar a sociedade. Na história desenvolvida neste projeto, o conflito principal é extrapessoal, pois trata de uma mulher em busca de legitimação pelo seu lugar em um mundo patriarcal. É uma jornada ao mesmo tempo individual e global, pois aborda uma conquista de direitos sociais. Conflitos e objetivos são essenciais em uma história: são seu motor. Através deles, conhecemos as vontades, aspirações e desejos dos personagens na trama. É o que torna os personagens mais próximos ao público, pois promove ideias de amadurecimento, esforço e superação.

2.3  A MITOLOGIA NA NARRATIVA Antes de mais nada, se faz necessário um breve resumo da teoria jungiana. Para Carl Jung, em Os arquétipos e o inconsciente coletivo, a personalidade, denominada pelo próprio como psique, engloba pensamentos, sentimentos e comportamentos, tanto conscientes quanto inconscientes. A psique é, então, o resultados destes diferentes sistemas, interagindo entre si, regulando internamente o indivíduo para o convívio social. A psique possui três níveis:

consciência  Parte da personalidade que temos conhecimento. É uma percepção que vem à tona assim que se nasce.

inconsciente pessoal  Remete às camadas mais superficiais do inconsciente, acumuladas de experiências rejeitadas pelo indivíduo e, consequentemente, experiências reprimidas ou esquecidas, como no caso de lembranças penosas, traumas ou conflitos morais. Estes são os chamados complexos, aglomerados de forte potencial afetivo e incompatíveis com a atitude consciente. São traços tão desagradáveis da personalidade que são ignorados propositalmente pela mente. É importante ressaltar que o inconsciente pessoal é formado essencialmente de conteúdo que já foi consciente, porém desapareceu da consciência.

inconsciente coletivo  Parte da psique desvinculada da experiência individual, logo, ele nunca esteve na consciência, nem foi adquirido. O inconsciente coletivo deve sua experiência à hereditariedade, sendo um depósito de “imagens primordiais”. Estas imagens são heranças ancestrais, de antecessores humanos, pré-humanos e animais, e são predisposição para respondermos ao mundo. É um dos elos com nossos antepassados remotos. Se o inconsciente pessoal é formado de complexos, o inconsciente coletivo é formado de arquétipos. Alguns símbolos têm um poder tão grande na mente humana que repetem-se exaustivamente pela história. São signos poderosos, tendo impacto na psique humana desde os primórdios da comunicação. Estes são tão enraizados na cultura e na nossa mente que não percebemos sua manifestação constante no cotidiano. Jung tratou desses signos no campo da psicanálise, chamando-os de arquétipos, usando-os para analisar personalidades individuais.

Capítulo II Narrativa  45


Conforme Jung³: O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da idéia do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as “motivos” ou “temas”; na psicologia dos primitivos elas correspondem ao conceito das représentations collectives de levy-brühl e no campo das religiões comparadas foram definidas como “categorias da imaginação” por hubert e mauss. adolf bastian designou-as bem antes como “pensamentos elementares” ou “primordiais”. A partir dessas referências torna-se claro que a minha representação do arquétipo - literalmente uma forma preexistente - não é exclusivamente um conceito meu, mas também é reconhecido em outros campos da ciência.

³ jung., C. 2002: p 53

Esses conjuntos de imagens primordiais são tão fundamentais que perpassam o campo da psicologia; manifestam-se também na comunicação, história, narrativa, entre outros. Os arquétipos são figuras reconhecíveis no imaginário, e exatamente por isso são presentes em mitos, lendas e contos de fadas. Falando de exemplos mais contemporâneos, estão também na publicidade, no cinema e no design. Conforme Jung, toda pessoa tem cinco arquétipos principais que formam seu caráter. É difícil definir um número definitivo de arquétipos, porém normalmente falamos de oito, sendo eles femininos e masculinos, cada um com uma Sombra, seu lado negro. Totalizam, então, 32. Desses 32 arquétipos, escolhi quatro para cada personagem da minha narrativa.

moniba  Provém do arquétipo chamado de Amazona. É feminista, tendo um lado masculino tão forte quanto o feminino. Valoriza a liberdade e é selvagem. irmã  Arquétipo da Donzela. Vive uma vida despreocupada e sem correr riscos, pois se vê como vulnerável. É dependente dos outros.

rainha  Arquétipo da Cuidadora. Mulher que faz tudo para sua família, nunca a abandona e é uma esposa perfeita e devota. É comprometida, fiel e amorosa.

rei  Arquétipo de Rei. É o personagem que sente necessidade de um reino para controlar, sendo normalmente um chefe ou político. Tem dificuldade em enxergar o problema de forma geral, porque ignora emoções e detalhes. No lado negativo, como Ditador, tem o desejo de controlar tudo e todos. É aquele que necessita de um “reino” para mandar.

2.4  A JORNADA DO HERÓI Assim como cada história tem um herói ou protagonista, cada história aborda uma jornada. Por mais diferentes que sejam as histórias abordadas e seus respectivos gêneros, todas elas perpassam a mesma estrutura cíclica. Esta estrutura está presente em mitos gregos, na história de Jesus Cristo, no conto de João e Maria, em Star Wars e em Harry Potter — apenas para citar alguns exemplos. Este fio condutor é chamado de Jornada do herói mitológico. No livro O Herói de mil faces, Joseph Campbell percorre o mito do herói. Neste livro Campbell defende

46


que todas as narrativas, conscientemente ou não, seguem antigos padrões deste mito. Os moldes da Jornada do Herói são universais, ocorrendo em todas as culturas e épocas exatamente porque trabalham com as camadas mais profundas da psique humana. É importante notar que este pensamento de Capmbell caminha lado a lado com a teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo de Jung. Assim como os arquétipos, os personagens se repetem no mundo dos mitos, tais como a bruxa, o jovem herói, velho sábio, o vilão (a sombra), o bobo da corte, entre outros. Estas figuras funcionam porque trabalham com questões mitológicas, repetidas exaustivamente em nossos sonhos e fantasias. Estes personagens são referências diretas aos arquétipos. A Jornada do Herói é relevante e funciona porque é extremamente reconhecida e catártica. Ela fala sobre questões primordiais como: “quem sou eu?”, “de onde vim?”, “o que é bem ou mal?”, “qual o sentido da minha vida?”, etc. Conforme Vogler⁴: Essas histórias são modelos exatos de como funciona a mente humana, verdadeiros mapas da psique. São psicologicamente válidas e emocionalmente realistas, mesmo quando retratam acontecimentos fantásticos, impossíveis ou irreais. Isso explica o poder universal dessas histórias. A Jornada do Herói é dividida em estágios. Tudo começa quando o herói sai de seu ambiente comum e seguro para desbravar um mundo perigoso e hostil. Isto acontece porque a jornada vai transformando o herói, estimula seu crescimento e amadurecimento. A partir daí o herói terá uma série de eventos que o transformará e o levará em direção ao conflito maior da trama. As etapas da Jornada do Herói são as seguintes: a. Mundo comum b. Chamado à aventura c. Recuso ao chamado d. Encontro com o mentor e. Travessia do Primeiro Limiar f. Testes, aliados, inimigos g. Aproximação da caverna oculta h. Provação i. Recompensa j. Caminho de volta k. Ressurreição l. Retorno com o elixir Cada uma dessas etapas representa uma fase na Jornada do Herói. Conforme Vogler, no livro A Jornada do Escritor, nem todas elas são essenciais ou necessárias numa história, mas o conjunto molda o amadurecimento do personagem e o ritmo da narrativa. As etapas abaixo foram baseadas nas descrições de Vogler em seu livro.

mundo comum  O começo da história acontece em um lugar conhecido e estável. A maior parte das histórias movem o herói para fora do seu mundo normal, e o introduz em um mundo estranho e novo.

chamado à aventura  O herói é apresentado a um problema ou desafio. Este confronto pode ser em função das mais diversas razões, sendo um fator externo ou interno ao personagem, uma doença,

Capítulo II Narrativa  47

⁴ Vogler, C. 2010. Consultado em 2016


uma mudança, uma mensagem. Assim que o herói é confrontado pelo chamado da aventura ele não pode mais permanecer no seu mundo cotidiano. Este momento da história é fundamental pois define o objetivo da história, e deixa claro qual o desejo do herói.

recusa ao chamado  É comum que o herói tenha relutância em aceitar o chamado da aventura, pois ele está enfrentando o terror do desconhecido. Nesse momento, é necessário que surja algum evento ou fator que motive o herói à aventura, ou que o lance obrigatoriamente, sem ele ter chances de recuar. Nem todos os heróis passam por esta etapa.

encontro com o mentor  Talvez antes mesmo deste ponto já tenha sido apresentado um personagem que é o mentor do herói na historia. Esta é uma das relações mais poderosas na mitologia, referindo-se ao vínculo entre pais e filhos, mestres e alunos, Deus e o homem. A função do mentor é treinar e preparar o protagonista em sua jornada rumo ao desconhecido. Muitas das vezes o herói precisa sofrer um empurrão firme do Mentor, já que deve ir sozinho de encontro ao desconhecido.

travessia do primeiro limiar  É então que o herói entre plenamente no Mundo Especial. Este momento é quando ele realmente está comprometido em enfrentar o problema ou desafio proposto no Chamado da Aventura. É então que a aventura realmente se inicia. Normalmente o Primeiro Limiar marca a passagem do primeiro ato para o segundo ato em filmes e narrativas. Conforme Vogler⁵: Frequentemente, os filmes são construídos em três atos, que podem ser vistos como uma representação de: 1. o herói decide agir; 2. a ação propriamente dita; 3. as consequências dessa ação.

⁵ vogler, C. 2010. Consultado em 2016

testes, aliados, inimigos  Assim que atravessa o limiar, o herói encontra novos desafios, faz aliados e inimigos. São partes fundamentais para que o herói entenda como funciona o Mundo Especial.

aproximação da caverna oculta  O herói se vê diante de um lugar perigoso, onde está o objetivo de sua busca. Este lugar é misterioso, e normalmente é onde está seu maior inimigo. É um ponto tremendamente ameaçador e, por isso, chamado de Caverna Oculta. Ao entrar neste lugar, o herói atravessa o segundo limiar.

provação  O herói confronta seu maior medo. Ele enfrenta a morte cara a cara e é levado ao extremo em uma batalha contra seu inimigo ou contra uma força hostil. O herói está no ventre da baleia e é, portanto, um momento da narrativa de extrema tensão e suspense para o público. É o instante mais crítico da história, o clímax, pois é o enfrentamento direto com a morte. Em algumas provações, o herói morre ou parece que morreu, para surgir vivo logo em seguida.

recompensa  Depois de sobreviver à morte, é o momento de celebração do herói e da plateia. Então, o herói pode achar o tesouro que veio procurar na Caverna Oculta: ele encontra sua recompensa. Pode ser algo físico como uma arma, espada, báu do tesouro; assim como pode ser algo metafórico ou introspectivo, tal como reconhecimento ou compreensão interna.

caminho de volta  É o começo do terceiro ato. O herói lida com as consequências de suas ações no confrontamento feito na Caverna Oculta. Em algumas histórias, é quando o herói se vê perseguido pelas forças vingadoras que ele despertou ao apanhar seu elixir.

48


ressurreição  Antes de voltarem aos seus lares, guerreiros e caçadores de antigamente precisavam passar por uma purificação. Era necessário limpar as marcas de guerra e roupas ensanguentadas. O herói visitou o reino dos mortos, e agora deve renascer e se purificar antes de voltar ao seu Mundo Comum. Esta é uma etapa final do herói, o qual deve provar de uma vez por todas que realmente aprendeu suas lições na Provação. É nessa parte que o herói se transforma por completo. Ele nunca mais será o mesmo, e retornará para casa como outra pessoa. retorno com o elixir  O retorno ao Mundo Comum não tem sentido se o herói não trouxer algum prêmio consigo, seja ele uma lição de vida ou um tesouro propriamente dito. A visita ao Mundo Especial tem também como função adquirir conhecimento ou algum elixir que trará salvação ao Mundo Comum do herói. Exatamente por estar presente em todas as histórias já contadas, é importante considerar a estrutura da Jornada do Herói como um ponto de partida, e não como estratégia obrigatória. Ela serve como um esqueleto que deve ser enriquecido por detalhes e surpresas próprios a cada história. A estrutura da Jornada do Herói não deve ser rígida demais, nem ser seguida à risca. Por ser exaustivamente utilizada na narrativa mundial, é uma estrutura narrativa que pode tornar a história previsível. Boas histórias tendem a não seguir todos os seus 12 passos, e surpreendem o leitor exatamente por essa quebra da tradição na lógica narrativa. Como foi constatado por Vogler⁶: Os estágios, termos e ideias da Jornada do Herói podem ser usados como molde para uma história, ou como um meio de verificar onde estão seus pontos fracos, desde que você não siga essas linhas-mestras com muita rigidez. (...) No caso de se ficar perdido, pode-se consultar a metáfora de referência, como quem olha um mapa numa viagem. Mas o mapa não é o caminho. Ninguém dirige com um mapa grudado no para-brisa. O mapa é consultado antes da partida ou nos momentos de dúvida.

RETORNO COM ELIXIR

MUNDO COMUM

12

RESSURREIÇÃO

1

CHAMADO DA AVENTURA

2

11 CAMINHO DE VOLTA

RECOMPENSA

RECUSA AO CHAMADO

10

3

9

4

PROVAÇÃO SUPREMA

8

ENCONTRO COM MENTOR

5 7

6

TRAVESSIA DO LIMIAR

APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA

NO VENTRE DA BALEIA

PREPARAÇÃO PARA O CLÍMAX

TESTES, ALIADOS, INIMIGOS

Capítulo II Narrativa  49

⁶ vogler, C. 2010. Consultado em 2016


A essência da Jornada do Herói é demonstrar que personagens passam por constantes mudanças, e estas atingem-nos significativamente, criando consequências e transformações na história em que estão inseridos. O arco de cada personagem deve conter uma evolução/modificação interna ou externa para que ele seja crível e humano, real. No caso deste projeto, a Jornada do Herói foi fundamental para perceber a evolução da história até o clímax, e compreender que a história tem três partes bem definidas, embora seja dividida em 9 capítulos. Esta divisão serviu não só a propósito de entendimento e avaliação da narrativa, mas foi crucial para a abordagem visual do projeto: ao perceber isto, decidi o formato da publicação física, dividida em três cadernos. Esta foi uma das muitas ocasiões em que ter aplicado o molde da Jornada do Herói contribuiu para o crescimento do trabalho.

2.5  DESIGN NARRATIVO Como estudante de design, vejo que a compreensão do problema como um todo é crucial para o desenvolvimento de projetos. A lógica de etapas projetuais não só facilita o processo, mas também define melhor o cerne de cada trabalho e impulsiona a solução do mesmo. Percebo que essa lógica é aplicável aos mais diversos projetos, não apenas aos visuais. Para abordagem deste projeto, escolhi aplicar minha mente e perspicácia de designer desenvolvidos no decorrer do curso de comunicação visual para construir a monografia de graduação. Desta forma, pude analisar desde tema e história até soluções visuais e de arte final a partir da mesma metodologia projetual. Aplicar o viés do pensamento do designer na construção de histórias foi fundamental para o desenvolvimento deste trabalho de conclusão de curso. É graças à minha formação que pude construir uma narrativa para diferentes suportes, entender seus usos e desenvolver um projeto visual a fim de enobrecer o conteúdo narrativo. Conforme Gamba Jr⁷: ⁷jr., G. 2013: p. 76

O conceito de design de histórias prevê a produção de histórias através das diversas etapas projetuais. A organização de um instrumental técnico de documentação, além de ser fundamental para o exercício projetual, pode ser útil a um estudo crítico ao balizar diversas funções narrativas. As ferramentas utilizadas são muitas e de origem multidisciplinar, por conta da própria trajetória da produção de conhecimento nessa área. Sendo assim, a escolha de utilizar o viés do design narrativo foi essencial para o desenvolvimento e conclusão deste projeto.

50




CAPÍTULO III

ILUSTRAÇÃO

3.1 DEFINIÇÃO Costuma-se definir ilustração pelo que ela não é. Não é pintura. Não é design. Não é desenho. Embora seja fácil uma definição comparativa, penso que é melhor fazer o caminho oposto. O que é, afinal, ilustração? Verdade seja dita, a definição deste ramo é bastante imprecisa. Por ser um campo recente, oriunda praticamente do desenvolvimento dos processos gráficos e de impressão, sua teoria ainda está sendo sedimentada e entendida. Neste contexto, assemelha-se bastante ao design. Sendo assim, não há consenso sobre o que ilustração é ou deixar de ser. Entretanto, sinto-me segura, no âmbito deste projeto, para usar a descrição de Rui de Oliveira¹ (2008): (...) a essência de uma ilustração está no pensamento; a imagem irá comunicar um conteúdo textual, uma mensagem.

¹ de oliveira, R. 2008: p. 43-44

Assim sendo, pode-se dizer que ilustração é uma narrativa visual essencialmente conectada a um texto, podendo ter sua existência independente como linguagem. Conforme Hall² (2011), texto e imagem possuem características próprias, porém, quando unidosm impulsionam seus pontos fortes e melhoram seus pontos fracos. As qualidades de ambos funcionam, preferencialmente, de forma complementar ao outro. Por mais que o tipo de relação entre mensagem e visualidade varie, podemos avaliar genericamente como o conteúdo é transmitido ao leitor em uma ilustração. Assim como nem todo texto é científico, nem toda ilustração narra uma história.

Capítulo III Ilustração  53

² hall, A. 2011: p. 8-10


Tal qual é difícil sua definição, é também complicada a categorização de ilustrações. Rui de Oliveira (2008) possui um método de divisão geral e didático – o qual tomo como base e exemplifico abaixo –, tornando mais fácil o entendimento de distintos propósitos da ilustração.

Tipos de ilustração3 ³ oliveira, R. 2008: p. 44

ilustração informativa  Está conectada diretamente à uma informação mais específica, normalmente científica e clara. É o caso de ilustração botânicas e ilustrações em infográficos.

ilustração persuasiva  É destinada ao mundo da publicidade e propaganda. Embora a persuasão esteja sempre relacionada a induzir e seduziro leitor, neste caso ela trabalha com uma retórica visual destinada à venda de um produto ou serviço. ilustração narrativa  Está sempre relacionada a um texto, seja ele literário ou musical. Mais do que apenas dar um rosto à abstração das palavras, a ilustração narrativa potencializa a história contada. É o caso das ilustrações editoriais, do livro ilustrado, capas de CDS, óperas.

Funções da ilustração A ilustração possui funções próprias, que independem do tipo em que está inserida (narrativa, informativa ou persuasiva). Estas funções estão conectadas à forma como se relacionam com o texto, podendo reafirmá-lo, acrescentá-lo ou até mesmo criar um contraponto. Por exemplo, em livros de fantasia, as ilustrações podem ampliar o texto, descrevendo o que não é dito em palavras. Como função da ilustração, temos: a. b. c. d. e. f. g. h.

congruência; elaboração; amplificação; extensão; complementação; alternância; desvio; contraponto

A função de uma ilustração não determina diretamente sua ligação com o conteúdo textual. Uma ilustração informativa pode estender e complementar o texto, mas não necessariamente, por exemplo. Porém, a relação entre palavras e imagens e a função da ilustração são fatores conectados e correlacionados. A cooperação entre texto e imagem será abordada mais à frente, no subcapítulo 3.3 – Relação entre texto e imagem.

Ilustração, design e artes aplicadas É difícil dizer quais seriam os limites da ilustração. Porém, penso que estes situam-se próximos ao design e às belas artes. No que concerne ao design, é um parente próximo, sendo duas disciplinas relacionadas aos processos de impressão e reprodução da imagem. Vivem de suas reproduções,

54


e não de seus originais. A ilustração usa de técnicas solidificadas nas belas artes, por mais que não traga para si o valor de peça única. Carrega para si também o valor da reprodução herdado das artes impressas, como as gravuras em metal e em pedra. Seria, então, o desenhista um ilustrador? Não necessariamente. Um desenho, sobretudo o acadêmico, trabalha para retratar algo: a realidade, um sentimento, uma atmosfera. Porém, não é todo desenho que está conectado a um texto. Um estudo de modelo vivo não se refere a nada senão ao modelo retratado. Por isto, ele não funciona como uma ilustração, já que não está iluminando conteúdo textual algum. É ainda difícil delimitar como ilustrações deveriam ser. Os teóricos mais tradicionais diriam que a ilustração caminha lado a lado com o virtuosismo das belas artes, estando conectada à técnica do desenho. Outros estudiosos acreditam que fotografias e colagens se comportam também como ilustração, perpassando as técnicas tradicionais do desenho e da gravura. Discordâncias à parte, esta última abordagem é a qual acredito e seguirei ao decorrer do projeto, já que penso que a qualidade narrativa pictórica não está limitada somente à determinada técnica. Portanto, pretendo usufruir da simbiose entre as duas vertentes neste projeto. Como estudante em design e amante da ilustração, posso trabalhar a coexistência de ambos os ramos a fim de catapultar as qualidades próprias de cada em um livro ilustrado.

3.2  O LIVRO ILUSTRADO O livro ilustrado trabalha a relação entre duas linguagens: texto e imagem. Estes dois aspectos, preferencialmente, não devem agir em redundância. As imagens propõem uma articulação com o texto, ao criar uma apreensão melhor e maior da narrativa. Assim sendo, a leitura no livro ilustrado é tanto visual quanto textual. Entretanto, vai além. Citando Sophie Van der Liden⁴ (2011): (...) ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É isso, e muito mais. Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de enquadramentos, da relação entre capa e guardas com seu conteúdo; é também associar representações, optar por uma ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em relação à outra... Ler um livro ilustrado depende certamente da formação do leitor. Desde já considero importante explicar que o termo “livro ilustrado” não é uma definição totalmente precisa. Há diferentes tipos de livros ilustrados, e estes recebem nomes variados conforme seu país e língua. De acordo com Van der Liden⁵ (2011), na França utiliza-se “album” ou “livre d’images”, enquanto em Portugal fala-se “álbum ilustrado”. Em inglês diz-se “picture book”, “picturebook” ou “picture-book”. Em espanhol é chamado de “álbun”. Van der Liden⁶ (2011) explica que o termo “álbum”, como é denominado na Espanha, Portugal e na França, remete a um “caderno ou arquivo pessoal destinado a acolher desenhos, fotos, autógrafos, coleções diversas”. Isto surge da expressão album amicorum, que significa “pequeno caderno em branco dos viajantes destinado a recolher autógrafos ou sentenças”. Contudo, atualmente chamamos de álbum arquivos de fotos de família ou fascículos de figurinhas autoadesivas.

Capítulo III Ilustração  55

4 van der liden, S. 2011: p. 8 -9

⁵ van der liden, S. 2011: Ibid.

⁶ van der liden, S. 2011: Ibid.


Existem diversos tipos de livros ilustrados, pois podemos categorizá-los conforme relação da imagem com seu conteúdo. Por exemplo, alguns organizam-se internamente apenas com imagens, visando um público mais novo, em alfabetização.

Tipos de livros ilustrados

⁷ van der liden, S. 2011: p. 24-25

Os diferentes tipos de livros ilustradores podem ser categorizados de forma didática para melhor apreensão. Van der Liden⁷ (2011) categoriza livros infantis de uma forma que concordo e uso como referência na lista abaixo.

livros com ilustração  Livro com predominância textual; a ilustração é um complemento. O leitor penetra na história por conta do texto, existindo de forma independente da imagem visual.

primeiras leituras  Denominação criada essencialmente pelo mercado editorial. São livros direcionados aos leitores em processo de formação. A ilustração tem papel dominante, pois reforça a leitura da criança. Seu conteúdo é semelhante a um romance, estruturado em capítulos curtos.

⁸ kallberg, Kristin apud nikolajeva, M; scott, C. 2011: p. 21

livros ilustrados  Embora a imagem seja espacialmente predominante, a narrativa apresenta articulação entre texto e imagem, sendo ambos igualmente importantes. Conforme Kristin Hallberg⁸: o livro ilustrado é um iconotexto, uma entidade indissociável de palavra e imagem, que cooperam para transmitir uma mensagem. livro-imagem  Denominação essencialmente brasileira para livros que não possuem texto; são livros os quais a história é contada apenas por imagens, ou seja, a narrativa é essencialmente pictórica.

histórias em quadrinhos (hq)  Narrativas sequenciais normalmente divididas em quadros e balões de fala. Apresentam articulação de imagens dispostas separadamente que, quando lidas em sequência, fecham uma ideia ou história.

livros pop-up  Livro que apresenta sistema de dobras e engenharia de papel, proporcionando, por exemplo, encaixes, abas e esconderijos. Normalmente, apresenta desdobramentos da ilustração em cenas tridimensionais. livros brinquedo  Livros que tratam do livro como objeto, frequentemente utilizando de sua materialidade para criar sensações e brincadeiras com o usuário. São objetos que se encontram entre o o livro e o brinquedo, contendo normalmente elementos como pelúcia, figuras de plástico e outros elementos tridimensionais.

livros interativos  São livros suporte, pois utilizam a estrutura do objeto como base para pintura, colagens, recortes... Podem ainda apresentar outros objetos inclusos para proporcionar atividades ou artesanato, como miçangas ou adesivos.

imaginativos Livros direcionados normalmente aos leitores em fase de alfabetização. Expresso aqui nas palavras de Bruno Duborgel⁹ (1983): Coletânea de imagens plásticas destinadas a crianças a partir de um ano e meio, tem em geral a forma de um livrinho mostrando sucessivamente uma ou mais famílias de imagens (imagens justapostas de animais e/ou flores, etc. As imagens são ‘mudas’ – isto é, somente a

⁹ duborgel, B. apud van der liden, S. 2011: p. 162

56


imagem ‘fala’ – ou então acompanhadas pela grafia (em letra cursiva e/ou de forma) do artigo e da palavra designando o que a imagem representa. Estas são categorias que delimitam parte de livros impressos que contêm ilustração. Publicações digitais, entretanto, podem ser inseridas também nestas denominações. Ainda assim, livros de interatividade material e livros em pop-up são essencialmente impressos. Histórias em quadrinhos, livros-imagem, livros imaginativos, livros com ilustração, livros de primeiras leituras e livros ilustrados podem ser trabalhados tanto de forma impressa quanto digitalmente. Livros interativos talvez apresentem novas qualidades quando feitos em meio digital, pois carregam elementos que podem ser explorados de forma distinta e particular em tablets, computadores ou smartphones. O projeto que apresento enquadra-se majoritariamente como livro ilustrado. Apresento a imagem em simbiose com o texto, tendo como ponto de partida a narrativa. A relação entre estes dois sistemas, o textual e o visual, é um dos pontos de trabalho e experimentação.

3.3  RELAÇÃO ENTRE TEXTO E IMAGEM É possível elaborar a colaboração entre palavras e imagens de diversas formas. Por exemplo, texto e imagens podem funcionar de forma simétrica, e, assim, redundante. O texto pode conter uma narrativa elementar, enquanto a ilustração é seletiva – ou o contrário. É interessante apontar que a relação entre palavra e imagem também está ligada ao caráter narrativo ou não narrativo do seu conteúdo. Como visto anteriormente, a ilustração pode informar ou persuadir, como é o caso quando trabalhada em dicionários ou poemas. Conforme Nikolajeva e Scott10 (2011): Os dois extremos na dinâmica palavra-imagem são um texto sem imagens e um livro-ima gem. Essas duas categorias podem ser ainda divididas em narrativa e não narrativa. Do lado verbal do espectro, teremos então uma história (narrativa) ou um texto não narrativo (um poema, um dicionário, um texto não ficcional), e do lado visual, uma narrativa sem texto, apenas com imagens (...). (...) Uma narrativa verbal pode ser ilustrada por uma ou várias imagens. Com isso, ela se torna uma história ilustrada, em que imagens são subordinadas às palavras. O mesmo texto pode ser ilustrado por diferentes artistas, que transmitem diferentes interpretações (muitas vezes contrárias à intenção original), mas a história continuará basicamente a mesma e pode ainda ser lida sem considerar as imagens. (...) Enquanto os dicionários ilustrados são relativamente simples, uma narrativa ilustrada sem palavras é uma forma extremamente complicada, já que demanda que o leitor/espectador verbalize a história. Um livro-imagem pode mostrar diferentes graus de sofisticação, dependendo da quantidade e da natureza das lacunas textuais (ou melhor, iconotextuais, visuais). A tabela na página seguinte contempla algumas dessas relações entre palavra e imagem, apontando os dois extremos e situando tipos de ilustração e livros ilustrados.

Capítulo III Ilustração  57

scott, C.; nikolajeva, M. 2011: p. 23-25

10


Esquema de scott, C.; nikolajeva, M., p. 27.

palavra Texto narrativo

Texto não narrativo

Texto narrativo com poucas ilustrações

Livros de lâminas (Abecedário, poesia ilustrada, livro com ilustração não ficcional)

Texto narrativo com pelo menos uma imagem por página dupla (não é dependente da imagem) Livro ilustrado siméstrico (duas narrativas mutuamente redundantes) Livro ilustrado complementar (palavra e imagem preenchem uma a lacuna da outra) Livro ilustrado de “contraponto” (duas narrativas mutuamente dependentes) Livro ilustrado “siléptico” (com ou sem palavras; ou duas ou mais narrativas independentes entre si) Narrativa de imagens com palavras (sequencial)

Livro demonstrativo com palavras (não narrativo, não sequencial)

Narrativa de imagens sem palavras (sequencial) Livro-imagem ou livro de imagem

Livro decorativo (não narrativo, não sequencial)

imagem As características básicas da relação entre palavra e imagem podem ser analisadas em três níveis básicos, sendo o conteúdo narrativo ou não.

relação de redundância  Representa uma relação de grau zero entre texto e imagem, pois a imagem reafirma o que o texto mostra. O resultado desta cooperação não resulta em sentido suplementar, já que os conteúdos são sobrepostos. Como explicado anteriormente, imagem e palavra funcionam distintamente, já que são linguagens dferentes. Sendo assim, não criam conteúdos idênticos. A redudância advém da congruência entre ambos: e imagem e texto não dependem entre si para desenvolver a essência do discurso.

relação de colaboração  A articulação entre texto e imagem constrói um discurso único. Nes-

scott, C.; nikolajeva, M.. 2011: p. 121. 11

te caso ambos trabalham em conjunto criando um sentido comum, de modo que se combinam as forças e fraquezas de cada código. Numa relação de colaboração, o sentido não está nem na imagem nem no texto: ele emerge da relação entre os dois (scott, C., nikolajeva, M., 2011)11.

relação de disjunção  Relação rara, pois é o completo oposto à sobreposição de conteúdo. Além de texto e imagem não encontrarem estrita contradição, também não apresentam congruência. São conteúdos distintos e paralelos. Há ainda casos de que uma relação de contradição possa ser observada. No entanto, a disparidade entre texto e imagem busca que a interpretação do leitor encontre um sentido definido pelo conjunto.

Quanto ao projeto que desenvolvi, decidi enquadrá-lo na relação de colaboração entre texto e imagem. O texto, por exemplo, em momento algum trata de modo específico o contexto árabe proposto. O visual cria um novo sentido ao que é narrado textualmente. Ao mesmo tempo, a imagem complementa diversas passagens textuais, que dão apenas indícios dos fatos. Estes pormenores serão explicados no subcapítulo 4.6 – Camadas de leitura.

58


3.4  PÚBLICO E DUPLA AUDIÊNCIA A maioria dos livros ilustrados são destinados a crianças e jovens. Como demonstrado anteriormente em 3.2 – Tipos de livros ilustrados , algumas publicações são essencialmente visuais justamente para educar e informar crianças pequenas. Entretanto, é possível também dialogar com dois públicos concomitantemente: crianças e adultos. O reconhecimento da existência de diversos níveis de leitura traz consigo um leque variado de interpretações a partir de texto e imagem. As experiências de vida diferentes dos leitores, além de níveis distintos de sofisticação e senso de humor podem garantir que ninguém se sinta excluído de parte do público direcionado do projeto. Este é um conceito defendido por Scott e Nikolajeva¹² (2011): a dupla audiência. Numa narrativa perpetuada por signos que contemplam um tema presente tanto no universo adulto quanto infantil – o machismo –, elaborei um projeto que dialogasse com estes dois mundos.

Capítulo III Ilustração  59

scott, C.; nikolajeva, M. 2011: p. 39

12



DESENVOLVIMENTO

O percurso projetual

Os capítulos anteriores perpassam conceitos utilizados para conceber o projeto. Daqui em diante será abordado o processo, passando por etapas de criação textual, visual e técnica. Como será tratado no capítulo 4, a história já existia anos antes de qualquer idealização para uma monografia de graduação. Em maio de 2015, tive a oportunidade de viajar para Marrocos num curto feriado durante meu intercâmbio. Fui até o continente africano com várias expectativas; dentre elas, estava avaliar a situação da mulher numa cultura árabe. Se eu já esperava uma condição difícil para as mulheres de lá, encontrei coisa pior. Citando apenas alguns exemplos, vi pouquíssimas mulheres desacompanhadas e a maior parte dos trabalhos é executada por homens. Andar por Marraquexe ao lado de apenas uma amiga foi uma experiência amedrontadora e desagradável. Ao mesmo tempo que me impressionei pela cultura visual árabe e pelo lugares que visitei, também me marcou o peso que é ser mulher num lugar desses. Antes desta viagem, eu já sentia urgência em denunciar as dificuldades de ser mulher numa cultura patriarcal. No Brasil, carrego o fardo diário do medo constante de assédio, moral e físico. Viajar para Marrocos reacendeu a vontade de trabalhar este tema, pois demonstrou que é um ponto recorrente também em outros locais e muitas vezes ainda mais grave. Esta viagem é um dos grandes motivos para a ambientação da história. Neste projeto, escolhi também trabalhar com minhas emoções, sensações e memórias. Ignorar o peso deste acontecimento na minha vida seria fugir de mim mesma. Ao mesmo tempo, uma princesa no contexto árabe carrega um mar de significados ao público brasileiro. Projetar uma história neste contexto seria trazer a condição da mulher aos olhos do público. Ainda assim, em momento algum delimito onde ou quando realmente se passa a narrativa. A ideia é trabalhar uma história que pode ser atual e antiga, aqui perto ou ali bem distante.

Desenvolvimento percursso projetual 61


O projeto começou com uma versão preliminar do texto, pois tive em mente escrever apenas frases curtas ou ideias gerais, como um rascunho de um roteiro. Desta forma, pude perceber melhor o conteúdo, ao mesmo tempo que deixei o projeto em aberto para eventuais mudanças no texto, em relação a composição visual. Decidi que o texto teria como base os contos de fadas tradicionais europeus, utilizando termos conhecidos do gênero, por exemplo, “era uma vez”. Em momento algum há referência ao contexto árabe, ou palavras específicas como “sultão”, “cimitarra “, etc. Assim, as ilustrações têm como função ampliar o conteúdo; a relação entre texto e imagem é colaborativa. Segue abaixo um dos estudos preliminares do texto para a publicação: Era um lugar muito longe e muito perto de tudo. Reinado por uma família próspera, as paredes do palácio cochichavam aos ventos: quem seria o próximo homem a governar até onde não se vê? ** [parte para página onde está a família, com textos sobre cada um] O líder do reino era temido por seus súditos: impiedoso em suas decisões e poderoso em seu império. Pai amável e esposo querido. No dia que o sol se pôs mais alto, a maturidade chegou à irmã mais velha. Na mesma noite viajou para ser salva pelo guerreiro de mente mais afiada e espada mais endiabrada. Apenas alguém assim seria digno sentar no trono. O cair do luar iluminou a mente da princesa caçula, com mente de cientista e punho de rainha. Ela desejava seu direito de governar. E se...? Disfarçou-se, mascarada pela noite. Tornou-se temível, o mais letal dos homens. Levou consigo espada, cantil e foi guiada pelas estrelas. Por um momento, esqueceu-se que era outro. Encarou a irmã mais velha como a caçula que era. Lembrou-se, porém, que não era si mesma. O povo perguntava-se: quem é o guerreiro mascarado? O rei anunciou a convocação do desconhecido para entregá-lo a coroa e a princesa. Em frente a todos, a caçula apresentou-se, ainda mascarada. Porém, não era uma convocatória gloriosa: era um duelo de honra. [cena de luta] [cai o véu que cobre o rosto do guerreiro] [rei e caçula e rainha e povo e princesa encaram-se] Pai, eu clamo pelo direito de governar meu povo. Da mesma forma desapegada em que comecei os estudos textuais, iniciei estudos de uma versão preliminar do espelho, feito a partir de manchas visuais e número de páginas. Nesta etapa foi mais importante soltar a mente para as possibilidades de composição visual do que se apegar ao traço. Desenvolvi layouts e composições visuais básicas, tendo em vista forma e contraforma, ocupação e desenrolar do ritmo nas páginas da publicação. Como estou mais acostumada a projetar livros impressos, comecei pela publicação física, considerando página dupla e dobra. A partir daí, pude avançar no processo e testar em tablets e celulares as publicações digitais. Tive muita dificuldade em achar um software ou aplicativo de prototipagem para o sistema operacional Windows, já que a grande maioria é feita nos moldes de dispositivos da Apple. Comecei então os estudos em wireframes, sinalizando touch gestures para entender melhor as interações e composições no tablet.

62


título subtítulo

paula cruz

ilustração da paisagem, castelo ao fundo Era um lugar muito longe e muito perto de tudo.

5

ilustra metáforica da menarca

caçula vendo irmã ir embora

No dia que o sol se pôs mais alto, a maturidade chegou a irmã mais velha.

10

Na mesma noite viajou para ser salva pelo guerreiro de mente mais afiada e espada mais endiabrada. Apenas alguém assim seria digno sentar no trono.

11

aproximação da ilustração da paisagem, foco na janela, castelo mais próximo

Folha de rosto

aproximação da janela, se vê uma família no salão

7

9

12

Disfarçou-se, mascarada pela noite. Tornou-se temível, o mais letal dos homens.

13

14

15

cenas do resgate, sem texto, apenas ação Por um momento esqueceu-se que era outro. Encarou a irmã mais velha como a caçula que era.

17

cavalo com as duas vai embora

22

18

deixa a irmã na porta do palácio e caçula foge

23

cena de luta entre caçula e rei (no decorrer da luta, cai o véu que cobria a caçula)

24

rei e caçula e rainha e povo e irmã mais velha encaram-se

19

20

21

rei fala anunciar a procura do guerreiro lua no céu abaixa para mostrar que o dia/tempo passou

25

caçula abaixa espada e encara convicta

cartaz procura-se do guerreiro

O povo perguntava-se: quem é o guerreiro mascarado? O rei anunciou a convocação do desconhecido para entregá-lo a coroa e a princesa.

26

caçula percebe que rainha olha para trás; caçula se vira

27

caçula vê que o povo a reverencia

Pai, eu clamo pelo dirieto de governar meu povo.

29

30

rei reverencia caçula

31

32

33

sinopse do livro

sobre a autora? (talvez fique meio pedante?) ISBN ficha catalográfica

34

8

iliustra contínua com caçula mascarando-se

O cair do luar iluminou a mente da princesa caçula, com mente de cientista e punho de rainha. Ela desejava seu direito de governar. E se...?

Lembrou-se, porém, que não era si mesma.

28

Reinado por uma família próspera, as paredes do palácio cochichavam aos ventos: quem seria o próximo homem a governar até onde não se vê?

irmãs se encaram

16

Em frente a todos, a caçula apresentou-se, ainda mascarada. Porém, não era uma convocatória gloriosa: era um duelo de honra.

ilustração da família

ilustra caçula se imagina como rainha?

Levou consigo espada, cantil e foi guiada pelas estrelas até vil fortaleza.

rei embainha espada em direção a guerreiro

paula cruz

Falsa folha de rosto

caçula montando no cavalo

caçula estende a mão para irmã

subtítulo

padronagem ou ilustração que funciona como prefácio

6

4

título

título

2a capa

Capa

Espelho preliminar de composição visual e ritmo de páginas

chapada de cor

35

36

agradecimentos? padronagem ou ilustração que funciona como epitáfio

37

38

3a capa

Desenvolvimento percursso projetual 63

4a capa


Sketchbooks desenvolvidos durante o projeto

Um dos fatores mais importantes do projeto, como um todo, foi deixar que o trabalho me surpreendesse, e que eu aprendesse com o acaso. Por este motivo, montei sketchbooks para soltar o traço. A cada semana eu montava um pequeno sketchbook para pensar através do desenho. Não me ative totalmente ao espelho planejado anteriormente, apesar de algumas páginas e composições continuarem até o projeto final. Levei em consideração que ter muita certeza de tudo atrapalharia o projeto, e que eu deveria me sentir livre e confiante o suficiente para mudar composições que poderiam melhorar. O processo de criação através do sketchbook foi crucial para compreender como seria o formato final da publicação física. No decorrer do projeto percebi que um modelo de códice não era o ideal para minha história. Ao perceber a divisão da narrativa em 3 partes, pensei num modelo de encadernação específico, feito a partir de três cadernos montados numa capa dobrada em sanfona. Ao final de cerca de 10 semanas, obtive avanços na composição, traço e narrativa visual. Montei 10 sketchbooks, um a cada semana. O último modelo, apresentado acima, mostra as composições propostas para as artes finais. Concomitantemente ao processo do sketchbook, usei para teste de interação o aplicativo Invision, que me permitiu dispor de conteúdo clicável e navegável. Como dito anteriormente, obtive problemas para encontrar softwares compatíves com Windows na prototipagem virtual. O aplicativo invision foi uma medida paliativa útil para entender pontos principais do projeto no suporte digital do tablet – a interação e o movimento manual resultam numa relação própria com o suporte. Através da mão em dispositivos com touch screen podemos entrar em uma imagem através do zoom, per-

64


Telas de página inicial e arquivo do blog que criei para o projeto

corrê-la horizontal ou verticalmente, entre outros fatores. A ligação entre o mundo da coisa com a não-coisa se dá através do gesto. Já na questão do e-reader, o maior diferencial do suporte é sua tela monocromática. Apesar de disponibilizar tecnologia touch screen como tablets, e-readers possuem processadores ainda limitados, o que gera um longo tempo de carregamento para funções. Embora alguns e-readers sejam mais velozes que outros no quesito de processamento, nenhum deles suporta vídeos ou interações com touch gesture elaborado. Percebi que minha maior preocupação na publicação para e-reader seria a transposição de ilustrações coloridas para o meio monocromático; fazer com que as variações da escala de cinza funcionassem de forma que a narrativa visual não fosse comprometida. Outro elemento importante da minha metodologia foi manter um blog para servir de arquivo e desenvolvimento de processo. Criei o endereço www.tccmoniba.tumblr.com a fim de recolher referências, tais como imagens, vídeos e textos em um mesmo lugar – sendo estes tanto sobre a temática do meu projeto quanto sobre como pesquisar ou como fazer fichamentos. Fiz atualizações semanais, demonstrando os avanços e mudanças de composição e ilustração, o que me motivou ainda mais para trabalhar. Também vejo esta página como uma desmistificação do processo que é fazer um projeto final, e penso em deixá-lo online após a apresentação para ajudar outros alunos.

Desenvolvimento percursso projetual 65


Pensado exclusivamente para tablets e smartphones, o e-book Our Choice apresenta funções exclusivas para meio digital, como sumário sem numeração e infográficos interativos

Ainda no mérito de documentação digital, criei uma playlist no Youtube de vídeos afins ao meu projeto: materiais sobre publicações impressas e e-books, representatividade feminina, direitos da mulher no Islã, luta árabe de espadas... Esta playlist é uma compilação de material técnico e teórico úteis na criação deste trabalho de graduação. Enquanto avançava com os sketches para composição das ilustrações, pesquisei também sobre projetos gráficos de livros digitais. Surpreendentemente, tive grande dificuldade em encontrar trabalhos pensados exclusivamente para o meio virtual. Embora seja mais fácil encontrar livros infanto-juvenis projetados para tablet, poucos são os e-books consagrados por aproveitarem realmente a mídia que estão inseridos. Até mesmo no material disponibilizado pelo TED (Tecnologia, Entreterimento, Design), evento conhecido por propagar palestras de inovação e tecnologia, foi difícil encontrar um e-book pensado unicamente para meio digital. Acesso em 9 de setembro de 2016

O melhor exemplo que encontrei no TED foi o livro Our choice escrito por Al Gore e projetado por Mike Matas. Este e-book possui leitura reconfigurada através de uma interatividade inusitada, como infográficos interativos e até mesmo um mecanismo que responde a sopros na tela. É um livro bastante sonoro, com vídeos e diversas animações. Aos meus olhos é um projeto interessante, apesar de permanecer tradicional quanto à esquema de diagramação e estrutura narrativa.

Screenshots Posso apontar duas grandes referências conceituais no meu projeto quanto a projetos de e-book. do e-book Alice for the Ipad

Embora não sejam referências diretas para criação visual, foi a partir desses dois trabalhos que abri minha mente para as possibilidades do design em e-books.

66


O primeiro deles é Alice for the Ipad. Mais do que uma mera reestruturação da história de Lewis Carroll, este e-book aproveita-se das possibilidade dos dispositivos tablets e cria novas formas de ler um texto consagrado há 150 anos. As ilustrações de John Tenniel tornam-se interativas, e os efeitos na tela são resultados da relação do leitor com o dispositivo. Durante o desenvolvimento do projeto, ocorreu uma inovação no mundo dos e-books. A editora inglesa Visual Editions criou um projeto em parceria com o Creative Lab do Google: Editions at Play. Esta parceria tem como objetivo principal criar livros “inimprimíveis”, verdadeiramente digitais, ou seja, que se aproveitariam completamente das possibilidades do mundo virtual. Conforme a página online do projeto: Editions at play é uma iniciativa pelo Visual Edition e Creative Lab do Google para explorar um novo tipo de livro: o livro que usa as propriedades dinâmicas da internet.¹ Acho importante citar dois parágrafos que elucidam a proposta do Editions at Play, pois estes demonstram as qualidades que me inspiraram diretamente neste projeto de graduação. A tradução a seguir foi feita por mim²:

¹ Retirado da página About do Editions at Play. Acesso em 9 de setembro de 2016

O que vocês querem dizer com “livros feitos pela mágica da internet?” O romance impresso na forma do “livro” existe há aproximadamente 400 anos. eReaders começaram a aparecer no final dos anos 1990, e em 2016 celulares parecem ser a forma mais popular de se ler ebooks. Às vezes pessoas dizem que livros físicos tem características que não são bem transferidas para o meio digital. Nós queremos mostrar que o digital possui qualidades narrativas que não podem ser transferidas para o meio impresso.

² Ibid.

Que tipo de características? Qualidades dinâmicas. Por exemplo, livros escritos para web podem ser: guiados por dados, localizáveis, generativos, algorítmico, baseados em sensor, fluidos, não-lineares, expansíveis, cookie-ish³, personalizados, referir-se a locais próximos do leitor, realidade aumentada, tempo real, sensibilidade ao decorrer do tempo, adaptativo, colaborativos e compartilháveis com outros usuários.

³ Cookies são arquivos leves armazenados no computador para otimizar o tempo de carregamento. Acredito que, no caso, possam ser utilizados para recriar padrões ou prever comportamento do usuário

Os dois e-books lançados pelo Editions at Play demonstram tal posicionamento. Entrance & Exits escrito por Reid Larsen não tem páginas, e sim barras de rolagem. Conta uma história ficcional am-

Desenvolvimento percursso projetual 67

E-books lançados pelo Editions at Play


bientada em locais reais, que podem ser acessados através do Google Street View. The Truth About Cats & Dogs, de Sam Riviere e Joe Dunthorne, é uma narrativa não-linear a partir do diário e caixa de e-mail de dois autores diferentes, que se correspondem e, secretamente, odeiam-se mutuamente. Seus argumentos podem ser lidos em qualquer ordem, e para isso há a substituição do sumário por uma série de bolinhas correspondentes a cada narrador da trama. O Editions at Play tem um grande diferencial: seus e-books podem ser acessados diretamente do navegador, sem precisar de ePubs ou apps. Na realidade, são chamados de e-books, mas apresentam características mais semelhantes à websites. Este conceito abordado no Editions at Play foi uma grande referência no meu projeto, pois até então eu não havia me deparado com um posicionamento que defende as qualidades do meio digital. Não falo apenas na questão visual: a estrutura narrativa e o conteúdo são pensados para o mundo virtual. Foi a partir desta lógica que pude definir algumas escolhas neste projeto como, por exemplo, a mudança da estrutura narrativa no e-book para tablet.

68




Tenho duas canetas em minha mesa. Uma é para mandar o governo para o inferno, a outra é para contar histórias. São esferas diferentes para mim, a de contar e a de afirmar. Quando eu concordo cem por cento comigo mesmo, escrevo um artigo. Quando ouço mais de uma voz dentro de mim, quando vejo mais de um ponto de vista válido, é aí que estou grávido de uma história. AMOS ÓZ

CAPÍTULO IV

A HISTÓRIA

Este projeto teve início quando geri uma história lá pelos idos de 2012. A imagem de uma princesa que lutava para governar o próprio reino fixou-se na minha mente de tal forma que nunca esqueci a história, apesar de nunca tê-la escrito. Já naquela época eu pensava em qual seria o tema de minha conclusão de curso, porém tudo permanecia envolto em dúvida. Apenas após uma conversa esclarecedora com uma grande amiga anos depois, percebi que esta história era o começo de algo. A ideia ainda fervilhava na minha mente, porém de forma contida e silenciosa.

4.1  ENREDO BÁSICO: ARGUMENTO Esta é a história de uma princesa em busca de exercer o direito de governar seu povo. Tudo começa quando sua irmã mais velha tem sua menarca e, como não há herdeiros masculinos ao trono, é levada até uma fortaleza para ser resgatada por um guerreiro digno ao trono, que após o resgate casaria-se com ela. Envolta pela vontade de governar o reino e não ter o mesmo destino que sua irmã mais velha, a princesa caçula, de nome Moniba, transforma-se em um genuíno guerreiro para atravessar o deserto. Moniba, ainda disfarçada, resgata a irmã, levando-a de volta ao palácio para, então, desaparecer na noite. No dia seguinte, o rei convoca o guerreiro mascarado para uma audiência pública, em frente ao palácio, aos olhos de todos. A princesa caçula mascara-se novamente e vai ao encontro do rei, seu pai. Ao se apresentar, é anunciada a armadilha: o rei, furioso pela devolução da filha mais velha e irado com a desobediência do guerreiro as suas ordens, desafia o guerreiro para um duelo, ainda sem conhecer sua verdadeira identidade.

Capítulo IV A história  71


O confronto de espadas segue até que o véu de Moniba cai, revelando seu rosto e seu cabelo volumoso e enfurecido. Há um momento de surpresa total, tanto da família real quanto do povo. Com os cabelos furiosos e feições determinadas, ela declara que luta pelo direito de mulheres governarem. Dito isto, Moniba encara a família por um momento, antes de reparar que a mãe olha perplexa em direção ao público, às suas costas. Ao virar, percebe que todo o povo a reverencia, em sinal de respeito e aprovação como futura regente da cidade. Moniba olha para seu pai e vê o rei de braços abertos, em sinal de resignação e conciliação.

4.2  ESCOLHA DO ENREDO Moniba é uma história sobre buscar um lugar no mundo. A eterna procura da legitimidade do indivíduo. é um tema universal, que toca as mais variadas faixas etárias, em diferentes lugares. Escolhi como conflito principal da trama o embate entre indivíduo e sociedade, normalmente usado em distopias e ficção científica. Neste caso, o conflito é baseado na sociedade em que estou inserida: um mundo machista e injusto, onde mulheres precisam provar que são tão capazes quanto os homens para serem vistas com igualdade. Acredito ser bem clara também a questão do empoderamento feminino numa história que mostra uma garota em busca de seus direitos. Como mulher, produtora e criadora de conteúdo visual e narrativo, me sinto na responsabilidade de colaborar com histórias que demonstrem a versatilidade e a força da mulher na sociedade. Penso que, além de termos poucas mulheres protagonistas, normalmente as personagens femininas são personagens rasas, sem profundidade quanto à personalidade, conflitos e valores. Criar uma história habitada majoritariamente por personagens femininas (Moniba, sua mãe e sua irmã) foi algo que me motivou a começar e finalizar este projeto.

4.3  ESCOLHA DO TÍTULO DA NARRATIVA Ao analisar histórias semelhantes, percebi que o título delas é basicamente o nome de suas protagonistas, como acontece nos filmes Mulan (1998) e Yentl (1983). O título da obra ter um nome próprio aponta uma história focada no personagem, normalmente em busca de sua identidade e seu lugar no mundo. A primeira decisão foi, portanto, que o título deveria coincidir com o nome da personagem principal. A grande dificuldade nesta etapa do projeto era encontrar um nome que fosse, ao mesmo tempo, uma referência direta ao ambiente árabe ou oriental e que também tivesse fácil compreensão na língua portuguesa. Deveria ser uma palavra curta e simples, tanto em português quanto em árabe. Durante este processo, li a biografia da ativista paquistanesa Malala Yousafzai. Aos treze anos, Malala já defendia com coragem e inteligência o direito de mulheres à educação no Paquistão, país que tem sofrido regressos humanitários devido ao conservadorismo religioso decorrente da tomada do poder pela milícia talibã. A caráter ilustrativo, menciono que talibãs, por exemplo, instituíram chibatadas públicas em julgamentos informais, proibiram meninas de irem à escola e assassinavam seus opositores. Malala posicionou-se publicamente contra as medidas impostas pelos talibãs, e foi baleada por um deles quando voltava para casa no ônibus escolar.

72


No decorrer da leitura, Malala começa a descrever sua vida estudantil no Paquistão, além de contar sobre suas amizades e vida familiar. Em dado ponto da leitura, Malala conta que ela e sua melhor amiga, Moniba, competiam para o posto de melhor aluna da sala. Assim que li o nome "Moniba" pecebi que havia encontrado o nome do projeto. A ligação com uma ativista jovem e decidida no movimento de conquistas dos direitos da mulher é essencial. Além de curto e simples, é uma palavra ao mesmo tempo estranha e familiar à língua portuguesa. A pronúncia na língua natal é semelhante à pronúncia em português; pode-se falar muniba ou moniba.

4.4  EMPODERAMENTO FEMININO E REPRESENTATIVIDADE Um dos princípios básicos da luta das mulheres pela igualdade de gênero, o empoderamento feminino, trata-se de um argumento central do movimento feminista: é basicamente a ideia de que mulheres podem ocupar posições importantes no ramo profissional e político, sem qualquer discriminação ou desigualdade perante homens. Mesmo após 100 anos de movimento feminista, as mulheres ainda não possuem os mesmos salários que os homens, são vistas como menos competentes e emocionalmente instáveis para funções de liderança, e não ocupam nem metade de cargos políticos. A mulher enfrenta milhares de dificuldades no mercado de trabalho e na disputa por cargos importantes, pois ainda é vista como um símbolo essencialmente ligado ao lar e à família. Por ser considerada pelos homens como um ser naturalmente amável e delicado, a mulher precisa de um esforço maior para provar sua competência. Cientistas e programadoras enfrentam preconceitos diariamente, pois uma visão "sensível" do mundo atrapalharia pesquisa objetivas e lógicas; pintoras e artistas possuem naturalmente um traço "fofo" e delicado. Como explica Sheila Levrant de Bretteville¹: Uma forma de simplificar é atribuir certas características a grupos variados, reforçando, com isso, as divisões. A delimitação de determinado comportamento ao lar e a transformação das mulheres nas únicas guardiãs de uma série de características humanas criam um desequilíbrio prejudicial. A arte do design reforça esse desequilíbrio ao projetar unicamente o caráter "masculino" no espaço público do conjunto de nossas instituições: empresas, ciência, forças armadas e mesmo a educação valorizam seus aspectos anônimos e autoritários e afastam-se cada vez mais do espaço privado, continuando, assim, a isolar as mulheres, a experiência feminina e os valores femininos.

¹ BIERUT, M.; HELFAND, J.; HELLER, S.; POYNOR, R. (orgs.). 2010: p. 259

Estas ideias do que seriam "aspectos naturais atribuídos à mulheres" são conceitos perpetuados, textual e visualmente, pelo design e pela propaganda. Como designer às vésperas de concluir a graduação, pretendo ajudar na reavaliação desses símbolos construídos em cima da imagem feminina. Creio que este seja também um ponto importante na questão do empoderamento das mulheres, já que é justamente ao superar os estereótipos femininos que possibilitamos a conquista de lugares de poder e respeito às mulheres. Ainda citando Breteville (2010)²: O renascimento do feminismo renovou a exigência de que sejam ampliadas as expectativas sociais tanto para homens como para mulheres, permitindo que todos os indivíduos, parti-

Capítulo IV A história  73

² Ibid. 2010: p. 260


cipem livremente do sistema social no limite de suas personalidades. Enquanto não houver uma mudança de perspectivas, nós não apenas desconheceremos as diferenças imutáveis que existem, mas os próprios valores que estão desvalorizados e anulados permanecerão, consequentemente, indisponíveis de maneira viável tanto para homens quanto para mulheres. Os designers poderiam ajudar a revalorizar o que tem sido designado como valores "femininos" e, como tais, desvalorizados. Por acreditar na responsabilidade social do design, escolhi para meu projeto uma história que abordasse a minoria a qual me encaixo e a luta de uma mulher pelo direito feminino ao trabalho, pelo direito à participação na política. Moniba é também uma história sobre empoderamento e conquistas femininas. Penso também que a presença de uma protagonista que conquista seu lugar de liderança política tem impacto em garotas mais novas e em pré adolescentes, pois difere do desfecho esperado em histórias protagonizadas por mulheres. Ao criar uma personagem fora dos padrões de histórias de princesas, acredito colaborar para uma revalorização dos valores "femininos", como Breteville propõe. Além disso, há um outro fator que considero importante: a necessidade de uma protagonista feminina bem escrita. Ainda hoje percebemos um número escasso de protagonistas mulheres em histórias. Normalmente, filmes, livros, séries e desenhos animados possuem protagonistas masculinos, e mulheres participam de forma secundária na trama – na maior parte dos casos as personagens femininas são pouco desenvolvidas e não possuem grandes ambições. A situação não melhora quando mulheres ocupam papeis principais: a maior parte dos casos aborda protagonistas planas e recaem em estereótipos. Histórias de protagonistas mulheres como cientistas, engenheiras, lutadoras, astronautas ou guerreiras são exceções. Quando crianças, as meninas não se enxergam representadas em papeis de protagonistas, elas recebem, inconscientemente, uma mensagem do que elas podem projetar para seu próprio futuro. Se incentivarmos histórias nas quais mulheres são ambiciosas, inteligentes e fortes, estaremos incentivando também estes ideais na vida real do público. A representatividade é, portanto, um fator importante na formação de garotas. Nesta história desenvolvi uma protagonista feminina forte porque acredito ser importante quebrar estes padrões. A diversificação de personagens femininas e a representatividade exposta em protagonistas femininas é fundamental para a formação de mulheres independentes e fortes.

4.5  APLICAÇÃO DA JORNADA Conforme explicado no capítulo 2.4 – Jornada do Herói, a estrutura narrativa que tomei como base possui em média 12 passos. Enquanto escrevia os rascunhos da história, apliquei a lógica da Jornada do Herói na estrutura narrativa. Percebi que alguns momentos do formato tradicional não estavam presentes, como a Recusa pelo Chamado, e outros estavam condensados ou sutis. Depois de analisar o ritmo da narrativa, decidi que estes momentos omitidos reafirmavam a essência da história. Por exemplo, para Moniba não faria sentido recusar o chamado, pois é ela quem vai de encontro até ele. Ela está decidida quanto a isso, já que é uma iniciativa própria. Ao dividir a narrativa conforme a estrutura da Jornada do Herói, notei que a história totalizava 9 eta-

74


MUNDO COMUM Moniba com família

FINAL

CHAMADO DA AVENTURA

1

VOLTA À NORMALIDADE

Moniba é coroada

Menarca da primogênita

9

2 ENCONTRO COM MENTOR

RECOMPENSA Rei e povo reverenciam Moniba

PROVAÇÃO SUPREMA

AJUDA COM O SOBRENATURAL

8

3 7

Moniba luta contra rei/pai

4 6

5

Moniba torna-se guerreiro

TRAVESSIA DO LIMIAR Moniba vai à fortaleza

APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA

NO VENTRE DA BALEIA

Rei convoca o guerreiro mascarado

Moniba resgata sua irmã mais velha

PREPARAÇÃO PARA O CLÍMAX

TESTES, ALIADOS, INIMIGOS

pas. Mais importante ainda: cada 1/3 da narrativa era bem definido, pois acontecia justamente por uma característica marcante – Moniba atravessava o deserto a cavalo. A partir disso comecei a estruturar o suporte físico da publicação: uma capa sanfonada com 3 cadernos costurados. Isto será devidamente explicado no capítulo 5.5 - Suportes.

4.6  CAMADAS DE LEITURA Conforme descrito no capítulo 3.4 – Público e dupla audiência, livros ilustrados podem dialogar com crianças e adultos ao mesmo tempo, abordando visões de mundo diferentes nos dois casos. Como esta característica foi trabalhada no meu projeto? O assunto central por si só é conhecido e vivenciado por crianças e adultos: o machismo. Desenvolvi o tema de forma que texto e imagem trabalhassem de mãos dadas, ao mesmo tempo que me referi a eventos e clichês de contos de fadas para que crianças pudessem conectar a história com um mundo conhecido. Para crianças, esta é a história de uma princesa diferente; não é delicada nem se porta como alguém da realeza. Moniba é uma guerreira, usa espada e luta com escorpiões. Ela não teme, ves-

Capítulo IV A história  75


te-se como guerreiro e vai em busca da aventura. A leitura de uma criança provavelmente recai na figura destemida e igualitária da protagonista, que se iguala a homens por sua capacidade, inteligência e ações .Moniba é um exemplo de igualdade de gênero claro, e isto é perceptível para adultos e também para crianças. Embora crianças percebam desde cedo indícios de machismo, os leitores adultos compreendem as nuances da crítica ao patriarcado presentes na história. O rei, pai de Moniba, é um símbolo desse sistema machista, baseado na superioridade do homem versus a fragilidade feminina. Moniba enfrentar o pai é uma atitude de rebeldia, um desafio frente ao mundo dominado por homens. A decisão da protagonista vai além da desobediência aos pais, e os adultos provavelmente perceberão isto na história tal viés político e humanitário. Algumas ilustrações exploram o caráter de dupla audiência mais do que outras, pois usam a imagem de forma simbólica, e o texto é aberto. Por exemplo, na ilustração da menarca da irmã mais velha, fica evidente que algo ocorreu à primogênita, e agora ela é adulta. Crianças entendem que houve algum evento, porém são os adultos que entenderão as pétalas vermelhas como o útero descamando.

76




Não importa o que eu faça, quão comercial ou estético, tudo sai de minhas tripas. BEA FEITLER

CAPÍTULO V

PROJETO GRÁFICO HÍBRIDO

5.1  METODOLOGIA DE CRIAÇÃO VISUAL Conforme dito no decorrer do capítulo anterior, o uso do sketchbook foi fundamental para criação e avanços posteriores neste projeto. Foi a partir do sketchbook que me permiti experimentar diversas composições, errar no traço, acertar no texto. Enquanto desenhava pelo sketchbook, eu estava também escolhendo o texto final. Escrevi desenhando; desenhei escrevendo. Deixei em aberto texto e imagem para que pudesse trabalhar os dois mutuamente, sem freio. Foi um processo mútuo de descobrimento entre texto e imagem. Ao mesmo tempo, apliquei nos desenhos minhas sensações e lembranças da viagem para Marrocos. Retratar o calor do deserto, os grãos de areia que queimaram minha boca pelo vento, a secura e imensidão de tudo ali naquele ambiente inóspito foi uma das minhas primeiras certezas no projeto. Estes fatores permaneceram até o final. Posso citar outros elementos que me marcaram na viagem e que apliquei neste trabalho: a constante presença da caligrafia como imagem, as cores vivas em meio às construções de barro, a sobrancelha bem definida das mulheres, a sensação de proteger a pele do sol ao usar um véu enrolado na cabeça, o vento da areia do deserto. Eu poderia exemplificar durante laudas como memórias minhas foram aplicadas no projeto. Porém, para ser sucinta, basta ressaltar que a minha vivência foi usada como referência e base para criação.

5.2  PESQUISA ICONOGRÁFICA A escolha da ambientação está relacionada diretamente em reviver minhas memórias e sensações num projeto visual. Em maio de 2015, viajei até Marrocos, no norte da África. Visitei museus em Marraquexe, percorri as ruínas de Aït-Ben-Haddou e passei uma noite em Merzouga, no deserto do Sa-

Capítulo V Projeto Gráfico 79


ara. As cores de Marraquexe estão gravadas vividamente na minha mente, assim como o deserto iluminado pelo luar. Foi uma experiência que me marcou profundamente, e decidi revivê-la para o trabalho final. Além disso, andar por Marraquexe sem a companhia de homens foi um choque de realidade. No Brasil, carrego dia a dia o peso de ser mulher num mundo patriarcal e hostil. Em Marraquexe, este fardo ficou ainda maior. Sofri assédios em árabe, inglês, espanhol, italiano. Foi uma experiência assustadora que me fez abrir ainda mais os olhos a um tema incômodo: a desigualdade de gênero. Decidi que deveria reviver também esta situação desagradável da viagem neste projeto. Revisitei minhas fotografias de lá e recordei momentos da viagem, por exemplo, quando um dos garotos de tribo nômade contou a dolorosa experiência de ser picado por escorpiões do deserto. A partir daí, fui construindo o cenário e a ambientação, além de fazer uma pesquisa visual extensa de vestimentas, cenários, linguagem gestual e arte árabe. Como se trata de um ambiente não definido, decidi delimitar algumas regras. Tive como referências principais a cultura dos povos árabes do começo do século XX. Quando falamos de povo árabe, tratamos dos povos de maioria islâmica, situados desde o Oriente Médio até o norte da África, a região de Magreb, no norte do deserto do Saara. Árabes são um grupo heterogêneo de povos, oriundos tradicionalmente do deserto da Península Arábica.

Fotografias feitas por mim durante a viagem em Marrocos

Também utilizei referências da cultura milenar persa. Os persas são o povo oriundo do que hoje chamamos de Irã, uma região de planaltos. O império persa foi um dos maiores impérios do Mundo Antigo, e carregam desde então em sua cultura heranças desta época, como invenções de engenharia e irrigação utilizadas até hoje na região. Conectar de forma conceitual estas características à protagonista da história foi algo natural.

80


É importante delimitar aqui as diferenças entre persas e árabes. Os iranianos não são árabes e nem falam o idioma árabe. São culturas distintas. Ao mesmo tempo, como não delimitei local, permiti a licença poética de misturar alguns elementos. Posso dizer que elementos visuais são apresentados majoritariamente com referências árabes, tais como vestimentas; enquanto elementos conceituais partiram do legado persa.

5.3  IDENTIDADE VISUAL Como toda a história foi ambientada em contexto árabe, comecei uma pesquisa de ícones e cultura visual neste meio. Rapidamente, percebi que nosso contato com a cultura árabe é superficial e comumente recai em estereótipos. Trabalhar em um projeto que retrata uma cultura a qual não pertenço requer cuidado e respeito. A todo momento eu lidei com símbolos que não me são familiares e que, portanto, não me identifico prontamente. Exatamente por esta questão, escolhi fugir de soluções fáceis e lugares comuns ao que imaginamos quanto ao contexto árabe. A primeira parte da pesquisa para a identidade visual caminhou para soluções baseadas na caligrafia. Antes de tudo, eu deveria entender o que a caligrafia significa para os árabes. Esta arte é diretamente mencionada no Alcorão: conforme a Escritura Sagrada, Deus "ensinou através do cálamo/ ensinou ao homem o que ele não sabia" (96a Surata do Alcorão). A palavra é o pilar que sustenta o islamismo, pois foi através dela que Deus comunicou-se com Maomé. Assim sendo, a caligrafia tem um sentido artístico, pois o caráter sagrado da palavra precisava ser igualado à sua representação gráfica. Lida da direita para esquerda, a escrita árabe é utilizada em grande parte da África e da Ásia. É importante ressaltar que caligrafia árabe difere de língua árabe. A escrita árabe é adotada por outros idiomas, entre os quais urdu, persa e pashto (uma das línguas falada no Paquistão). Conforme Dr. Paulo Daniel Farah, citado por Helaihel¹: Língua semítica em que se grafam as consoantes e se representam as vogais por meio de diacríticos, o árabe tem sua escrita vinculada à dos nabateus, que habitaram uma região vasta do norte da Arábia, da Jordânia, do Sinai e do sul da Síria. Na caligrafia árabe, as letras podem adquirir formas distintas conforme sua posição na palavra, que permite uma flexibilidade e ornamentação ilimitadas. Ibn Muqla inseriu o corpo da letra em um círculo (vários séculos antes que Leonardo da Vinci inscrevesse o corpo humano na mesma forma), o que permite conhecer melhor a relação entre os grafemas e o sistema proporcional. Nesta passagem, fica evidente o alto caráter decorativo da caligrafia árabe. Não é por acaso. A palavra "caligrafia" original no árabe é escrita como hatt, do verbo hatta, que significa traçar uma linha. Desta forma, é ainda mais clara a relação da escrita árabe com o ofício do desenho.

Capítulo V Projeto Gráfico 81

¹ helaihel, m., p. 12.


82

PESQUISA ICONOGRÁFICA   CENÁRIO E AMBIENTAÇÃO



84

PESQUISA ICONOGRÁFICA   vestuário


Capítulo V Projeto Gráfico 85


Estilos de caligrafia árabe A caligrafia árabe possui seis estilos principais. Os diferentes estilos de caligrafia proporcionam distintas maneiras de ornamentar o conteúdo escrito.

naskh  Escrita comumente usada no Alcorão, pois é fácil de ler e escrever. Feita de traços pequenos horizontais, curvas cheias e profundas, tendo um bom espaçamento entre as palavras.

ruqa'a  Possui afinidade com a caligrafia thuluth, sendo uma versão mais simplificada, com pequenas traços horizontais. Apresenta mais curvas, sendo uma escrita arredondada e estruturada normalmente de forma mais densa.

kufi  Estilo de escrita sagrada dominante no começo do Islã. Possui linhas quadradas e ângulos bem pronunciados, além de medidas proporcionais específicas. Devido à sua proporção e construção ge-

Naskh

Ruqa'a

Kufi

86


ométricas, é um estilo de caligrafia que pode ser adaptado para qualquer material e espaço, desde quadrados de seda até monumentos arquitetônicos. A caligrafia kufi utilizada na arquitetura, "escrita" a partir de tijolos e de forma modular, se chama square kufi.

farsi  Escrita cursiva modesta, desenvolvida pelos persas a partir de uma escrita árabe pouco conhecida, chamada firamaz. É amplamente usada como estilo caligráfico entre os muçulmanos persas, hindus e turcos.

thuluth  Formulada no século VII, é uma das mais importantes escritas ornamentais. É caracterizada pelas letras curvas e pequenos traços na parte de cima das letras. Tem uma fluência cursiva de grandes e complexas proporções.

diwani  Estilo que reúne liberdade de criação e o rigor da escrita. Permite representar de forma sutil imagens formadas através de palavras árabes como nomes, provérbios, citações ou até mesmo poemas.

Farsi

Thuluth

Diwani

Capítulo V Projeto Gráfico 87


Tendo em mente estes seis principais estilos caligráficos, optei por utilizar o estilo kufi como maior referência. Tal como ele é utilizado com caráter construtivo e decorativo em monumentos, será utilizado no projeto para sedimentar a estrutura do projeto gráfico, decorando guardas e outros componentes da publicação híbrida. Utilizarei este caráter decorativo da caligrafia aplicada na arquitetura dentro do projeto gráfico, tratando guardas e aberturas como fachadas.

Processo Desta forma, comecei os estudos do logotipo do projeto utilizando um grid para criação de tipografia monospaced. A escolha do lettering percorreu três questões principais: 1) legibilidade; 2) reconhecimento por parte do público brasileiro a uma estética árabe sem usar de estereótipos; e 3) referência à caligrafia kufi. Um cuidado importante foi escrever algo em português que não contive uma palavra ou grafismo em árabe.

Família tipográfica Kufan por Lina Abdul Hadi

Uma significativa referência foi a família tipográfica Kufan elaborada por Lina Abdul Hadi. Neste projeto, a designer criou uma fonte ocidental para baseada na caligrafia square kufi. Ela partiu de três princípios básicos: ter uma versão da fonte em escrita árabe, outra versão para escrita na língua inglesa e uma terceira opção, mais complexa, misturando árabe e inglês. Me apaixonei assim que vi o projeto, pois era exatamente o que eu estava procurando: aplicar a estética kufi em um alfabeto latino. Além disso, pude perceber quais terminações e ligaturas eram possíveis em nosso alfabeto sem entrar em conflito com o alfabeto árabe.

88


Alguns estudos de tipologia para título. O desafio principal foi encontrar equilíbrio entre legibilidade e comunicação; referência árabe e leitura latino-romana.

Capítulo V Projeto Gráfico 89


Logotipo final

Os estudos demonstram alguns erros preliminares, como má legibilidade e espessura fina demais se comparada às referências de square kufi. Me permiti algumas licenças poéticas, como o corte na diagonal e o pingo do i em formato de losango para dar um caráter mais árabe. Pedi a opinião de diversas pessoas e percebi que estes pequenos detalhes reforçaram a estética árabe para o público brasileiro, que normalmente tem um conhecimento superficial sobre o tema. Mesmo que estes ajustes não sejam típicos da caligrafia square kufi tradicional, melhoraram a comunicação com o público do projeto.

5.4  CRIAÇÃO DE PERSONAGENS Esta etapa foi dividida em duas partes: pesquisa de referências conceituais e referências visuais. A parte conceitual foi bastante elaborada através dos Arquétipos, enquanto a pesquisa visual se deu a partir de fotografias antigas, ilustrações ambientadas no Oriente e documentação de pessoas anônimas árabes. Decidi que cada personagem seria marcado por uma cor específica. Esta cor foi escolhida a partir das referências visuais mencionadas acima. Por exemplo, o pai é sempre retratado usando uma vestimenta branca, cor predominante no vestuário masculino árabe. A vestimenta árabe feminina é tão marcante que me utilizei deste símbolo para retratar as mulheres da história. Embora estas vestes tenham diferentes adaptações, cumprimentos e caimentos conforme espalhadas pelo mundo muçulmano, coloquei-as como símbolo visual para diferentes posicionamentos psicológicos. O niqab, vestido pela Rainha, é uma veste oriunda da Península Arábica, usada desde a antiguidade e significa “máscara” em árabe. É uma peça comum em país conservadores, que consideram o rosto da mulher como uma parte íntima. É tradicionalmente preto e vai até a cintura. A Irmã veste um chador, vestimenta utilizada desde o século XVIII, que significa literalmente “tenda” em persa. É uma veste ligada à Pérsia e aos xiitas, os seguidores de Maomé e seus descendentes diretos. É preto por tradição, porém pode ser de outras cores, contanto que escuro e discreto. É mais moderno que o niqab, porém ainda marca tradicionalismo.

90


Moniba veste no começo da narrativa um chador tradicional, mais fechado e discreto que o da irmã. Quando se transforma num guerreiro, adota uma roupa masculina, comum aos povos nômades do deserto. Ao final da história, Moniba apresenta-se sem véu, com os cabelos à mostra. Normalmente, o uso do véu é uma escolha que parte da mulher muçulmana, e não uma obrigação imposta por lei. Ainda assim, optei por fugir do preto tradicional nas vestes da Irmã e da Rainha. Adicionei cores e estampas detalhadas para dar o ar de realeza e riqueza.

Rei Para criação do personagem do Rei, pai de Moniba, tive como referência imagens de fotografias antigas de homens árabes desconhecidos, em vestes tradicionais. A maioria destes vestia roupa branca, então escolhi esta cor para marcar o personagem do Rei. Além disso, fiz um nariz grande e adunco para criar um semblante sério, reforçado pela monocelha grossa. Inspirei-me em personagens dentro da ideia do arquétipo do Ditador, como Don Corleone de O Poderoso Chefão². Assim, criei a base conceitual do personagem.

Rainha

²O Poderoso Chefão. Direção de Francis Ford Coppola. São Paulo: distribuidora Paramount Pictures, 1972. 178 min.

Personagem com pouca participação na trama, pois mantém-se à margem da imagem do marido. Veste um niqab para demonstrar maior conservadorismo se comparada às filhas. Tem como base o arquétipo da Cuidadora, que revela como características ser mãe ou esposa protetora, mesmo possuindo muitas fragilidades emocionais e psicológicas.

Niqab

Chador

Capítulo V Projeto Gráfico 91


Nesta página: referências para personagens de Rei e Rainha

Irmã mais velha Personagem baseada no arquétipo da Donzela, que depende dos outros e é vulnerável, porque não percebe os riscos à sua volta. É tida como bela, vive uma vida charmosa e não se preocupa com os problemas cotidianos. Tive como referências imagens de mulheres jovens do Oriente Médio, com cabelos volumosos e brilhosos, para afirmar o contraste da família com Moniba.

92


Nesta página: referências para personagens de Irmã e Moniba

Moniba Para criar uma personagem feminina forte e inspiradora, fiz uma pesquisa iconográfica de mulheres, tanto fictícias quanto reais, as quais serviram de base para a personalidade e postura da Moniba. Tive em mente mulheres que são reconhecidas por sua inteligência, criatividade, talento e confiança. Grande parte delas foi revolucionária e pioneira na área em que atuaram, e não foram intimidadas pelos homens. A maioria delas está dentro do arquétipo da Amazona.

Capítulo V Projeto Gráfico 93


Mulheres reais para inspiração da personagem Moniba

TOVE JANSSON 1914–2001

MALALA YOUSAFZAI 1997-*

CLARICE LISPECTOR 1920-1977

ilustradora, escritora, pintora

ativista

escritora

ADA LOVELACE 1815-1852

FRIDA KAHLO 1907-1954

VIRGINIA WOOLF 1882-1941

matemática, programadora

pintora

escritora

MARJANE SARTRAPI 1969-*

JESSICA WALSH 1986-*

ARETHA FRANKLIN 1942-*

quadrinista, escritora

designer

cantora

KAROL CONKA 1987-*

SERENA WILLIAMS 1981-*

PATTI SMITH 1946-*

cantora, compositora

atleta

poetisa, musicista, cantora

94


ELZA SOARES 1930-*

COCO CHANNEL 1883-1971

CHARLOTTE BRONTË 1816-1855

cantora

estilista

escritora

OPRAH WINFREY 1954-*

TINA FEY 1970-*

M.I.A. 1975-*

apresentadora

comediante, roteirista, atriz

musicista, produtora

JOAN JETT 1958-*

JESSICA CHASTAIN 1977-*

A. GENTILESCHI 1593-1653

cantora, compositora

atriz

pintora

MAE JEMISON 1956-*

NINA SIMONE 1933-2003

KATHLEEN HANNA 1968-*

médica, ex-astronauta

cantora, compositora

musicista, ativista

Capítulo V Projeto Gráfico 95


Personagens fictícias para inspiração da personagem Moniba

NAUSICAÄ

MERIDA

MULAN

Nausicaä do Vale do Vento 1984

Valente 2012

Mulan 1998

BEATRIX KIDDO

REY

MURPHY COOPER

Kill Bill 2003-2004

Star Wars: O Despertar da Força 2016

Interstellar 2015

ZELDA/SHEIK

LARA CROFT

FAITH CONNORS

série The Legend of Zelda 1986-*

série Tomb Raider 1996-*

Mirror's Edge 2008

KATNISS EVERDEEN

DODOLA

HERMIONE GRANGER

Jogos Vorazes 2000

Habibi 2011

Harry Potter 2000

96


SAN MONONOKE

PAPRIKA

JUDY HOPPS

Princesa Mononoke 1997

Paprika 2006

Zootopia 2016

IMPERATOR FURIOSA

YENTL

UHURA

Mad Max: Fury Road 2015

Yentl 1983

Star Trek 2000

RED

SAMUS ARAN

CHUN LI

Transistor 2008

série Metroid 1986-*

série Street Fighter 1991-*

LYRA BELACQUA

ARYA STARK

LISBETH SALANDER

Fronteiras do Universo 2000

Guerra dos Tronos 1996-*

Os homens que não amavam as mulheres 2000

Capítulo V Projeto Gráfico 97


A ideia principal de Moniba é ser uma personagem que mergulha de encontro a si mesma durante a narrativa. No começo, ela é apresentada coberta e tímida, para no final se tonar uma governante cheia de confiança. Os cabelos no começo da história estão ocultos, para no final serem revelados de forma rebelde e selvagem.

5.5 SUPORTES Este trabalho aborda a mesma narrativa em três suportes distintos: tablet, e-reader e publicação impressa. O projeto híbrido tem como proposta principal desenvolver as características próprias de cada suporte a fim de enfatizar as peculiaridades de cada meio. Mais do que simplesmente fazer uma adaptação do impresso ao meio digital, busquei desenvolver projetos digitais com mudanças e adições específicas ao meio. O conceito geral é de que cada suporte terá um comportamento diferente, baseado nas possibilidades distintas que tablets, e-readers e livros impressos apresentam. A preocupação principal no e-reader seria a transposição de um projeto gráfico colorido para uma mídia que funciona em escala de cinza. Embora e-readers possuam interatividade e tenham sistema touch screen, seus processadores ainda se comportam de forma lenta, o que dificulta o uso de vídeos ou animações, mesmo que simples. Por outro lado, considero muito atraente a questão de customização do usuário pela diagramação, mudança de tipografia e margens do e-book. Resolvi, então, adicionar mais conteúdo textual na versão para e-reader. Além disso, utilizei desde o princípio cores com valores diferentes, para que a conversão do colorido em monocromático não perdesse detalhes ou informações. Também optei por acrescentar entradas de capítulos na versão para e-reader, para enfatizar a separação dos momentos da narrativa. E-books em tablets possuem alto nível de interatividade, uso de animações e áudio. A grande maioria dos tablets, senão todos, utiliza tela touch screen, com um código próprio para tal. É permitido ampliar, arrastar, clicar e várias outras interações manuais. Aproveitando esta linguagem, desenvolvi um projeto digital que se aproveita destes recursos: podemos “entrar” nas ilustrações, percorrê-las, revelá-las.

A mesma ilustração apresenta diferentes desdobramentos que estão relacionados ao suporte no qual a historia é lida

A publicação impressa foi desenvolvida de forma que dividisse a história em três partes, visto que cada 1/3 da estrutura da narrativa é bem definido pelo mesmo evento: Moniba percorrendo o deserto. Então, dividi o conteúdo em três cadernos, em um formato de capa dobrada como sanfona.

98


Demonstração de montagem do impresso

Novamente, a fim de trabalhar minhas sensações e memórias do deserto, resgatei uma lembrança permanente da viagem para Marrocos: a grandeza do Saara. Dessa forma, a versão impressa desdobra-se e mostra dunas alaranjadas num plano extenso. O verso apresenta uma ilustração maior do que as demais, uma festa de comemoração às mulheres, funcionando como um posfácio à narrativa.

5.6 ESPELHO O desenvolvimento do espelho passou por constantes atualizações semanais, tanto na versão impressa quanto nas versões digitais. Em momento algum tive apego aos sketches ou composições que desenvolvi, e isto foi uma postura fundamental para poder encontrar o tom do projeto como um todo. Já no espelho pude perceber as diferenças entre os suportes. O wireframe da versão para tablet possui adaptações na narrativa, de forma que o leitor tenha tomadas de decisões em momentos cruciais da história. O projeto impresso trabalha com as vantagens da materialidade, e proporciona manuseio diferenciado ao leitor, e como este se relaciona com a dobra da sanfona.

Tablet No começo do trabalho, comecei a listar as principais características entre os suportes da publicação híbrida. Uma das diferenças que mais chamou minha atenção no suporte digital foi a possibilidade de usar hyperlinks e ter uma navegação escolhida pelo usuário. Decidi que tirar proveito desta característica apenas na versão do e-book para tablet evidenciaria ainda mais as possibilidades do meio digital. Antes de começar a criar um protótipo para o tablet ou até mesmo pensar na questão da interativi-

Capítulo V Projeto Gráfico 99


No anexo há um dicionário dos ícones tought gesture

dade ou relação gestual com o suporte touch screen, dividi a narrativa num fluxograma de tomada de decisões. Assim, pude decidir quais momentos seriam mais oportunos para criar estas escolhas do usuário e pensar nas telas próprias para tablet, como menu inicial e instruções. A partir do fluxograma comecei a desenvolver as telas. Mesmo que a visualização de e-books dependa do aplicativo em que é lido, penso ser melhor não me prender a um determinado formato por questão de fornecedores ou empresas de deste ramo. Assim sendo, projetei as telas dos menus, instruções, posição e porcentagem de leitura, além das telas com a história e ilustrações. Ao analisar e-books em tablets disponíveis no mercado, percebi que a maior parte deles não tira proveito da tecnologia própria do dispositivo para valorizar conteúdo textual e visual. No tablet, as ilustrações não precisam simplesmente “encaixar” na tela; elas podem ser percorridas ou ampliadas, por exemplo. Para desenvolver isto, pesquisei sobre touch gesture e como nós interagimos com tal suporte. A partir daí, pude desenvolver as interações de toque, animações e interatividade na publicação para tablet.

E-reader O desenvolvimento para publicação no e-reader foi relativamente mais simples que o tablet, pois possui menos interações. Por ser um dispositivo projetado majoritariamente para adaptação da diagramação conforme vontade do usuário, decidi incluir mais conteúdo textual nesta versão.

Fluxograma base para montagem do wireframe do tablet

100


Conforme mencionado, o maior desafio neste suporte foi trabalhar com as versões monocromáticas de ilustrações anteriormente coloridas. Isto foi resolvido aplicando, nas ilustrações originais, cores bastante distintas no espectro. Desta forma, os valores das versões em escala de cinza não se tornaram uma massa cinza homogênea – há um bom contraste. Também incluí apenas nesta versão pequenas mudanças na hierarquia do texto, como, por exemplo, acrescentar divisão propriamente dita entre as três partes da história.

Publicação impressa Enquanto fazia os layouts para as versões digitais, me deparei com um pensamento recorrente: se a experimentação era um dos principais desafios do projeto como um todo, eu deveria também propor um formato diferenciado no impresso. Comecei uma busca por referências de encadernação que tirassem proveito da materialidade e do manuseio do leitor. Concomitantemente, eu analisava a estrutura narrativa do projeto a partir da Jornada do Herói, momento este que percebi ter uma história dividida em três partes bem segmentadas. Uma das referências encontradas foi justamente um projeto de capa sanfonada com três cadernos, exatamente como poderia dividir minha história. Então, as bonecas para teste da publicação impressa começavam a ganhar forma e peso, tornando-se algo mais elaborado do que uma mera transposição do digital ao impresso. Além de experimentar o formato, eu descobri novas formas de costurar cadernos e melhorar acabamento em encadernação.

Capítulo V Projeto Gráfico 101


ESPELHO   tablet

Mova para esquerda

H ISTÓ RIA INSTRU Ç Õ ES

para avançar de página

Mova para direita para retornar

Toque nos botões para interagir

Amplie

para zoom

Dois toques de dois dedos para ver configurações

SAIR

CAPA

TELA INICIAL

Qual a reação do pai? Continua o duelo Olha Moniba e espera uma resposta.

102

Entendi!

INSTRUÇÕES


MO NIB A P ERDE-SE NO MAIO R L AB IRINTO : O DESERTO

E agora? Para onde? Por aquela duna ali. Melhor ler o mapa estelar.

SOBREA AUTORA PAULA CRUZ é carioca e designer formada pela UFRJ. Atravessou o Atlântico para viver em ares holandeses e descobrir os mestres da tipografia, impressão e design neerlandeses. Paralelamente aos estudos, constroi projetos autorais que unem design, texto e pesquisa, tais como livretos, cartazes e contos ilustrados.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cruz, Paula. Moniba. Rio de Janeiro: 2016. 52 p.p., 40 ils. ISBN 978-85-7503-553-5 1. Projeto gráfico.

2. Ficcção.

09-10558

CDD

686.2252

Índices para catálogo sistêmico: 1. Projeto gráfico 686.2252

Edição original: 2016 © Paula Cruz, 2016 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade. IMPRESSÃO Copyhouse PAPEL couché fosco 150g/m² TIPOGRAFIA ???

Capítulo V Projeto Gráfico 103


ESPELHO   tablet

Tela de navegação, apresentando porcentagem e botão de saída para menu

Tela de localização da leitura

Ir para Localização 103 + Aa

95% SAIR

104

Capa Início Localização SAI R


Tela para mudança de tamanho da fonte e do brilho da tela

Tela para digitação de localização

Localização (1 - 239)

Aa

localização atual 228

34

Aa Aa

Aa Aa

Brilho SAIR

35% SAIR

Capítulo V Projeto Gráfico 105


ESPELHO   e-reader

1.

106


2. 3. Capítulo V Projeto Gráfico 107


ESPELHO   e-reader

108


   Paula Cruz é carioca e designer formada pela UFRJ. Atravessou o Atlântico para viver em ares holandeses e descobrir os mestres da tipografia, impressão e design neerlandeses. Paralelamente aos estudos, constroi projetos autorais que unem design, texto e pesquisa, tais como livretos, cartazes e contos ilustrados.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cruz, Paula. Moniba. Rio de Janeiro: .  p.p.,  ils. ISBN ---- . Projeto gráfico.

. Ficcção.

-

CDD .

Índices para catálogo sistêmico: . Projeto gráfico

.

Edição original: 2016 © Paula Cruz, 2016 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Este livro foi impresso na gráfica Copyhouse, utilizando couché fosco 150g/m². Foi utilizada a tipografia NÃO, de CICLANO.

Capítulo V Projeto Gráfico 109


ESPELHO   publicação impressa  1º caderno

110


Capítulo V Projeto Gráfico 111


ESPELHO   publicação impressa  2º caderno

112


Capítulo V Projeto Gráfico 113


ESPELHO   publicação impressa  3º caderno

   Paula Cruz é carioca e designer formada pela UFRJ. Atravessou o Atlântico para viver em ares holandeses e descobrir os mestres da tipografia, impressão e design neerlandeses. Paralelamente aos estudos, constroi projetos autorais que unem design, texto e pesquisa, tais como livretos, cartazes e contos ilustrados.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cruz, Paula. Moniba. Rio de Janeiro: .  p.p.,  ils. ISBN ---- . Projeto gráfico.

. Ficcção.

-

CDD .

Índices para catálogo sistêmico: . Projeto gráfico

.

Edição original: 2016 © Paula Cruz, 2016 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Este livro foi impresso na gráfica Copyhouse, utilizando couché fosco 150g/m². Foi utilizada a tipografia NÃO, de CICLANO.

114


Capítulo V Projeto Gráfico 115


ESPELHO   publicação impressa  Sanfona aberta: frente e verso

116


Capítulo V Projeto Gráfico 117


5.7 TÉCNICA Uma das primeiras certezas quanto à arte final das ilustrações foi criar um visual que trabalhasse bem com o meio do projeto. Eu precisava desenvolver imagens que fossem facilmente manipuláveis, e que tivessem fácil conversão de cores para escala de cinza. Técnicas tradicionais, como aquarela, dificultariam o processo. Além disso, penso que ilustrações em técnicas clássicas não seriam compatíveis conceitualmente com este trabalho, que tem um viés moderno e digital. Neste projeto, busquei desenvolver meu lado de ilustradora sem negligenciar meu amor ao design gráfico. Optei por encontrar uma linguagem de composição que abraçasse meu lado como designer, e que trabalhasse minhas referências neste ramo. Algumas composições tornam evidente meu amor à estamparia, capas de livros e cartazes.

Referências A pesquisa de referências seguiu estes preceitos. Pesquisei ilustradores com um viés mais gráfico, pois assim eu pude trabalhar com chapadas de cor e pensar em camadas (layers). Alguns desses ilustradores que busquei como referência são designers que trabalham com ilustração, como é o caso de Paul Rand e Milton Glaser. Outros são ilustradores com forte viés das artes gráficas, principalmente gravura, como Fernando Vilela e Christiane Pieper. Apesar de não ser uma referência direta ao traço adotado, acho importante destacar a obra Habibi de Craig Thompson. Este quadrinho possui um tema e ambientação semelhantes ao meu projeto, e suas composições com imagem e texto foram fortes influências no trabalho como um todo. Parte da pesquisa visual foi direcionada ao mundo dos designers gráficos iranianos. Assim que encontrei o trabalho de Reza Abedini tive certeza que seria uma grande influência. Ele trabalha a relação de imagem e texto de forma confluente, transformando os dois em uma coisa só. Também tomei como base o trabalho de Sergio Toppi. Suas composições têm uma forte relação de figura e fundo, preto e branco.

Processo As ilustrações foram feitas em quatro etapas: 1. 2. 3. 4. O segredo da ilustração de Fernando Vilela. Acesso em 6 de setembro de 2016

Fase de rascunhos e sketches de composição; Arte final em line art; Criação de camadas emnanquim; Colorização dessas camadas no computador.

Tanto line art quanto a criação de camadas foram feitas com nanquim e pincel. Descobri este método através de um vídeo no qual Fernando Vilela explica seu processo de criação e arte finalização.

118


Capítulo V Projeto Gráfico 119

REFERÊNCIAS VISUAIS   "habibi" de craig thompson


120

REFERÊNCIAS VISUAIS   design iraniano


Capítulo V Projeto Gráfico 121


122

REFERÊNCIAS VISUAIS

sergio toppi

fernando vilela

CHRISTIANE PIEPER



124

REFERÊNCIAS VISUAIS   reza abedini


Capítulo V Projeto Gráfico 125


126

REFERÊNCIAS VISUAIS

milton glaser

paul rand


Capítulo V Projeto Gráfico 127


Divisões em camadas de cor e resultado final na página ao lado

128


O ilustrador sobrepõe papéis em uma mesa de luz para escolher quais camadas serão separadas ou quais terão sobreposição. Sendo assim, ele traça linhas e formas que serão posteriormente colorizadas no computador. É uma lógica semelhante a que designers utilizam para criação de livros em cores especiais: divisão de layers e sobreposição de camadas.

5.8  TIPOGRAFIAS E CALIGRAFIA O conteúdo textual da publicação é, em sua maioria, feito manualmente. Em um projeto com ambientação árabe, cultura de rica arte caligráfica, acredito ser coerente utilizar minha própria letra no texto. Sou autodidata em caligrafia: aprendi em livros e websites sobre proporções de letras, ângulo de pena e outros termos técnicos. Utilizei deste conhecimento prático para trabalhar relação entre espessuras, tamanhos diferentes e proporcionais de pena. A partir daí, pude realizar o encadeamento das palavras nas frases, a fim de criar composições caligráficas e enfatizar palavras importantes. Toda a caligrafia do projeto foi escrita em caixa baixa para enfatizar o nome de Moniba, única palavra

Capítulo V Projeto Gráfico 129


na história que se inicia por caixa alta. Dessa forma, a ideia de busca pela própria identidade e por um lugar no mundo é evidenciada também pelo uso pontual de maiúsculas e minúsculas. Em conteúdo técnico, como no uso da ficha catalográfica e colofão, utilizei a família tipográfica Akizendsk Grotesk Condesed. Esta fonte segue os padrões de proporção da identidade visual do projeto, baseado na caligrafia kufi, e não cria um ruído visual com o resto do trabalho. Ainda assim, gostaria de enfatizar que é o único momento do projeto que não foi escrito manualmente. Uma decisão importante para o projeto foi estabelecer conscientemente o contraste entre o lettering kufi do título e o texto escrito em caligrafia. Desta forma pude diferenciar os dois elementos, e criar uma hierarquia de informação. Trabalhar com caligrafia própria também proporcionou uma legibilidade maior do que escrever um conteúdo de livro inteiro em kufi, que mesmo em árabe é de difícil assimilação e leitura.

publicação impressa

130

capa no tablet


5.9 CAPA Como a publicação híbrida que desenvolvi apresenta estruturas diferentes proporcionadas pelos distintos suportes, a capa é adaptada conforme o dispositivo em que se lê. Na publicação impressa, a capa é feita da soma entre luva e papel couché sanfonado. O formato em sanfona torna imprescindível o uso de uma estrutura que mantenha a publicação fechada e compacta. Concluí que utilizar outra ilustração na face da capa resultaria em um conflito com o resto da ilustração da sanfona, que é prolongada e fluida, indo do começo ao final dela. Optei por uma luva sóbria, apenas com lettering da identidade visual e sinopse no verso, para depois revelar a ilustração. Esta perpassa toda a sanfona para reforçar a ideia de uma grande celebração, uma multidão que comemora em uma grande festa a conquista dos direitos das mulheres. Na versão para e-reader e tablet, a capa apresenta mistura do lettering da identidade visual e da ilustração de capa.

capa no e-reader

Capítulo V Projeto Gráfico 131



CAPÍTULO VI

PROJETO FINAL

6.1  APRESENTAÇÃO GERAL DO PROJETO HÍBRIDO As páginas seguintes demonstram os resultados obtidos no projeto.

Capítulo VI  Projeto final 133


PUBLICAÇÃO IMPRESSA capa e luva



PUBLICAÇÃO IMPRESSA capa e luva



PUBLICAÇÃO IMPRESSA capa e luva



PUBLICAÇÃO IMPRESSA capa e luva



PUBLICAÇÃO IMPRESSA ilustração na capa sanfonada



PUBLICAÇÃO IMPRESSA ilustração na capa sanfonada



PUBLICAÇÃO IMPRESSA ilustração na capa sanfonada



PUBLICAÇÃO IMPRESSA frente e verso da dapa sanfonada aberta



PUBLICAÇÃO IMPRESSA dapa sanfonada aberta com ilustração expandida































PUBLICAÇÃO NO E-READER capa



PUBLICAÇÃO NO E-READER





PUBLICAÇÃO NO E-READER divisão de partes da narrativa





PUBLICAÇÃO NO E-READER capa





PUBLICAÇÃO NO E-READER



PUBLICAÇÃO NO TABLET capa em modo paisagem e retrato



PUBLICAÇÃO NO TABLET simulação em e-book store














CONCLUSÃO

E agora?

Desde o princípio soube que não seria um projeto fácil. Escolhi um assunto denso e extenso como tema, e a proposta de projeto era ambiciosa. Foram meses de orientação e aprofundamento não só no trabalho, mas principalmente comigo mesma. Este projeto ajudou a me definir como profissional e estudante e abriu minha mente para as discussões teórico-práticas em design de uma forma como nunca antes na minha vida acadêmica. Quando comecei este projeto, tive em mente que propus um desafio a mim mesma. Durante todo o processo me questionei sobre minhas capacidades – como designer, escritora e ilustradora. Desde o início da graduação, eu aceitava a ideia de que ilustração era algo elaborado e feito de uma só maneira: comportada, tradicional. Duas características que não condizem comigo ou minha metodologia. Eu trabalho de mãos dadas com o caos e a organização, entre o planejamento e o acaso. Por causa disso, eu não acreditava que minhas habilidades e capacidades eram compatíveis com ilustração – sempre me vi como uma designer que desenhava, não como uma ilustradora. Mesmo assim, busquei tentar me entender através do traço, do desenho. Persisti apenas porque sim. E foi durante este projeto que percebi o crucial: não há apenas um jeito de se pensar ilustração. O ilustrador pode ter a mente de um designer, como no meu caso. A forma como penso e me expresso está associada ao design, e negar isto seria negar uma parte fundamental de mim mesma. Eu amo design demais para ignorá-lo quando ilustro. Hoje percebo que meu jeito de encarar ilustração refere-se diretamente ao meu background, tanto do design quanto dos meus gostos pessoais. Mais importante ainda: percebi que isto não me faz incapaz de elaborar boas composições visuais ou de passar uma forte mensagem visual. Este é um processo de compreensão e aceitação pessoais iniciado no meu intercâmbio na Holanda, e hoje percebo que é um posicionamento profissional estabelecido graças a este projeto final. Enxergo também que expandi minha visão sobre o papel do designer na cadeia de produção. Graças a isso reposicionei minhas apreensões e desejos como profissional. Meu amor por projetos autorais é

Conclusão  E agora? 211


uma certeza, e de certa forma este projeto foi o primeiro passo concreto do meu caminho como designer autoral. Se antes do projeto final eu já aspirava ao mundo acadêmico, hoje entendo que é uma certeza na minha vida. Escrever esta monografia de graduação foi divertido e trabalhoso; me encheu de prazer e satisfação. Vislumbro o mestrado no meu futuro próximo, pois pretendo continuar a escavar as questões do livro e das histórias na relação do homem com os suportes, tanto impresso quanto digital. Estudar narrativa e teoria da ilustração é algo que até então eu não havia me comprometido seriamente, e vejo que são assuntos que pretendo me aprofundar. Tenho em mente continuar os estudos para todo o resto da minha vida (mestrado, doutorado, pós0doutorado, tudo!), e cada vez mais essa previsão me enche de fascinação. É um mundo a ser explorado. Como expansão do projeto apresentado, pretendo também encaminhá-lo para uma possível publicação, não sei ainda se viabilizada por financiamento coletivo ou por alguma editora. A ideia é aprender ainda mais sobre publicações digitais e vendas, tentando o processo via Amazon ou até mesmo loja virtual própria. Posso afimar que amadureci como profissional e como pessoa, além de entender melhor meu papel no mundo. Este projeto final é uma prova de minha aceitação como mulher, como designer e como ilustradora. Penso que não poderia ter concluído a graduação de melhor forma.

212



GLOSSÁRIO

computadores. Normalmente é lido offline, pois depende apenas de um software que compreenda a linguagem utilizada nos arquivos. Os form-

A

natos mais comuns em e-books são .epub, .azw e .mobi, baseados em linguagem web tais como

Argumento  Conjunto de ideias que serão de-

html e css.

senvolvidas na história. Possui a ação delineada, demonstrada a sequência, personagens e loca-

E-ink (eink, eInk) Tinta eletrônica especial

ções. É uma fase preliminar do roteiro. Diferente

para funcionamento no e-paper. É formado por

da sinopse, que apresenta uma amostragem ini-

micro esferas de pigmento preto ou branco, que

cial da trama, o argumento contém início, meio e

criam imagens e texto a partir do posicionamento

fim.

na tela a partir de impulsos magnéticos.

E-paper  (epaper, ePaper)  Tecnologia desenvolvida par asimular a aparência e confortabilida-

B

de de tinta no papel. Não emite luz própria, o que torna a leitura agradável e não causa fatiga no olho.

C

.epub  Formato mais popular de arquivo digital para ebooks. Textos em epub são específicos para

css (Cascading Style Sheets) Linguagem

leituras em e-readers, pois apresentam estrutura

para formatar textos eletrônicos de modo que é

em código específico para leitura em software de

posível definir atributos tipográficos como cor,

leitura digital. Sua particulariedade é a customiza-

hierarquia, margens e tamanho de fonte. css é

ção do tamanho e tipo de fonte em e-readers.

normalmente usado para construir páginas em html e para formatar e-books. Arquivos em css

E-reader (ereader, eReader)  Dispositivo ele-

são salvos e trabalhados separadamente, o que

trônico que funciona exclusivamente para leitu-

facilita edição de conteúdo e criação de layout.

ra de ebooks nos mais variados formatos, sendo normalmente .epub. E-readers apresentam uma tecnologia própria: suas telas são formadas por

D

camadas transparentes, e no meio destas situam-se as micro esferas de e-ink. Alguns e-rea-

Design responsivo  Criação de layout adaptá-

ders lêem também formato .pdf, embora não seja

vel conforme dispositivo eletrônico. Como o con-

comum.

teúdo é mostrado depende se ele é visto num computador, tablet, smartphone, etc. Um layout responsivo pode ser líquido ou adaptável. O layout

F

responsivo líquido se adapta continuamente conforme a largura do browser; enquanto o layout

G

adaptável responde em etapas fixas baseados no tamanho ou orientação da tela. estes dois métodos podem ser combinados numa mesma página.

H html (Hypertext markup Language) For-

E

mato de arquivo criado inicialmente para páginas de web. html consiste em arquivos ascii com

E-book (ebook, eBook) Publicação digital

marcações feitas entre os símbolos < e >, como

que pode ser lida em e-readers (Kobo, Kindle)

em <bold>. Esta estrutura permite ao usuário defi-

ou em outros suportes digitais, como celulares e

nir como será o layout (por exemplo: títulos, listas,

214


citações) e os elementos interativos (hyperlinks,

como uma experiência de vida, a internet, infor-

formulários de inscrição) contidos nele.

mações na tela.

O I Interatividade  No contexto de engenharia da

P

computação, é quando o sistema de uma máquina aceita e responde a inputs humanos.

.pdf  Formato de arquivo com layout fixo, contendo texto e imagem. Um formato mais atual de ar-

J

quivo é chamado de .pdf reflowable, no qual o texto pode ser otimizado conforme o dispositivo.

K

Pós modernismo  A vertente pós moderna surgiu em meados de 1960, tendo sua maior força no

.kf8 (Kindle format 8) Novo formato de arqui-

final dos anos 80, através da difusão por revistas

vo de ebook disponibilizado pela Amazon. visando

teóricas (no caso do design, publicações em sé-

substituir o .mobi. Proporciona ebooks em forma-

rie como Eye e Design) e livros de Roland Barthers.

tos muito mais complexos e interativos.

Os pós modernos negam respostas e pensamentos absolutos ou em valores universalmente apli-

Kindle  E-reader da Amazon, uma das maiores

cáveis, como a Gestalt. O pós modernismo é uma

lojas online de livros do mercado mundial. O Kin-

resposta direta aos ideias modernista, que acredi-

dle está diretamente conectado ao segmento de

tavam rigorosamente no racionalismo, na função

ebooks da Amazon, que investe constantemente

e na ciência.

em aplicativos para leitura de ebooks. A Amazon é proprietária dos formatos .azw, .kf8, .mobi, desenvolvimento exclusivamente para o Kindle.

Protótipo  Representação estática de alta fidelidade do produto final. Tem como funções principais vender o produto e servir de revisão visual.

Kobo  Empresa especializada em e-books e e-readers, disponibilizando e-readers próprios,

Publicação híbrida  Publicação lançada em dife-

com nome da empresa. Possui loja online de

rentes formatos, tanto impresso e quanto eletrô-

ebooks, marjoritariamente em formato .epub.

nico, preferencialmente num fluxo que minimize o esforço de customização em cada suporte.

L Q M

R

Mockup  Empresa especializada em e-books

S

e e-readers, disponibilizando e-readers próprios, com nome da empresa. Possui loja online de

T

ebooks, marjoritariamente em formato .epub.

Texto eletrônico  Texto configurado para ser lido ou guardado na tela de um computador ou dispo-

N

sitivo eletrônico.

Não-coisa  Termo utilizado por Vilém Flusser no

Touch gesture  Diagramas que demonstram in-

artigo de mesmo nome para se referir às informa-

terações sensíveis ao toque comuns em dispos-

ções e dados virtuais. Não-coisas são imateriais,

tivos eletrônicos.

Glossário  215


U V W Wireframe  Representação em baixa fidelidade de um design; ou seja, é o esqueleto de um site ou aplicativo. Contém elementos básicos para representar a navegação nas páginas, demonstrando os principais grupos de conteúdo, a estrutura da informação e uma descrição e visualização básicos da interface e interação com o usuário. É uma etapa do projeto digital que mantém o design simples e abstrato, pois a importância é a estrutura e navegação..

X Y Z

216



DICIONĂ RIO TOUCH GESTURE

tap

double tap

page move

scroll vertical

scroll horizontal

passar para esquerda

passar para direita

2x tap

2x double tap

2x scroll horizontal

2x scroll vertical

3x free drag

2x flick up

2x drag down

touch & hold

2x zoom out

2x zoom in

rotacionar 2x

2x flick left

2x flick right

3x drag up

3x drag down

3x free drag

3x tap

3x double tap

3x touch & hold

3x horizontal scroll

3x pinch

3x flick left

3x flick right

4x tap

4x double tap

4x drag down

4x drag down

4x horizontal scroll

4x pinch

4x flick left

4x flick right

4x free drag

5x scroll horizontal

5x scroll vertical

5x free drag

5x flick right

5x flick left

5x double tap

5x tap

2h zoom out

2h zoom in

218

2h rotate alt

spread horizontal

shuffle

spread horizontal

2h tap

2h rotate



BIBLIOGRAFIA armstrong, Helen (organizadora). Teoria do design gráfico. Tradução: Claudio Alves Macondes. São Paulo: Cosac Naify, 2015. barthes, Roland. O rumor da língua. Tradução: Mario Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

bierut, Michael; helfand, Jessica; heller, Steven; poynor, Rick (organizadores). Textos clássicos do design gráfico. Tradução: Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. candido, Antonio. A personagem de ficção São Paulo: Perspectiva, 2007. Edição 10. cardoso, Rafael. Design para um mundo complexo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. chartier, Roger. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador. Tradução: Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU)/Imprensa Oficial do Estado, 1999. de bruijn, Marc; castro, Liz; cramer, Florian; kircz, Joost; lorusso, Silvio; murtaugh, Michael; pol, Pia; rasch, Miriam; riphagen, Margreet. From Print to Ebooks: a Hybrid Publishing Toolkit for the Arts. Amsterdam: Institute of Network Cultures, 2015.

foucault, m. O que é um autor. Lisboa: Passagens/Vega, 2002. field, Syd. Manual do roteiro. Tradução: Alvaro Ramos. São Paulo: Objetiva, 2001.

flusser, Vilém. O Mundo Codificado. São Paulo: Cosac Naify, 2007. hall, Andrew. Fundamentos essenciais da ilustração. Tradução: Marcos Capano. São Paulo: Rosari, 2011. haslam, A. O livro e o designer II: Como criar e produzir livros Tradução: Juliana A. Saad, Sérgio Rossi Filho. São Paulo: Edições Rosari, 2007. helaihel, Moafak. Caligrafia Árabe. São Paulo: Edições Bibliaspa, 2011. lopes, Ana Cristina M. Lopes, reis, Carlos. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988. jung, Carl. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução de: Dora Mariana R. Ferreira da Silva e Maria Luiza Appy. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. jr., Nilton Gamba. Design de histórias: O trágico e o projetual no estudo da narrativa. Rio de Janeiro: Rio Book’s,, 2013. linden, Sophie van der. Para ler o livro ilustrado. Tradução: Dorothée de Bruchard. São Paulo: Cosac Naify, 2011. lupton, Ellen. A produção de um livro independente. Tradução: Maria Lúcia L. Rosa. São Paulo: Rosari, 2011. lupton, Ellen. Type on screen. New Yor: Princeton Architectural Press, 2014.

220


massarani, Sandro. Além do cotidiano – roteiro e escrita. Disponível em: <http://www.massarani.com.br/ roteiro.html>. Acesso em 17 de janeiro de 2016. mcguire, Hugh; o’leray, Brian (editores). Book: A Futurist’s Manifesto. O’Reilly Media, 2012. Disponível também online em <http://book.pressbooks.com>. Acesso em 19 de abril de 2016. mcluhan, Marshall. The medium is the massage: an inventory of effects. Estados Unidos, Califórnia: Gingko Press, 2001. mod, Craig. Book: A Futurist’s Manifesto in Desiging books in the digital age. O’Reilly Media, 2012. Disponível também online em <http://book.pressbooks.com/chapter/book-design-in-the-digital-age-craig-mod>. Acesso em 24 de abril de 2016. nikolajeva, M; scott, C. Livro ilustrado: palavras e imagens. Tradução: Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2011. noble, I., bestley, R. Pesquisa Visual: Introdução às Metodologias de Pesquisa em Design Gráfico. Tradução: Mariana Bandarra. 2ª edição. Porto Alegre: Bookman, 2013. oliveira, Rui de. Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. pastore, M. Os livros digitais do futuro? – O retorno. Disponível em: <http://colofao.com.br/1278/os-livros-digitais-do-futuro-o-retorno/>. Acesso em 24 de abril de 2016. pires, Julie de Araujo. A reconstrução do livro: um estudo em Design acerca das possibilidades do livro a partir da hipertextualidade eletrônica. Mestre—[s.l.] Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2015. poynor, Rick. Abaixo as Regras: Design Gráfico e Pós Modernismo. Tradução: Mariana Bandarra. São Paulo: Bookman, 2010. vogler, Christopher. A Jornada do escritor. Tradução: Ana Maria Machado. São Paulo: Aleph, 2015.

Bibliografia  221


fonte Prelo papel Couché 120g/m2 impressão Copyhouse

222


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.