Os Sete Céus - O Chorar dos Anjos

Page 1

www.astrolabioedicoes.com

Livros únicos e inesquecíveis!

Conjunto Nacional, cjs. 2113, 2114 e 2115, Avenida Paulista 2073, Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, Brasil

Rua de Cascais, 57, Alcântara – 1300-260 Lisboa, Portugal

Todos os direitos estão reservados e protegidos por lei. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da Astrolábio Edições poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma.

Obra disponível para venda corporativa e/ou personalizada. Para mais informações contacte: comercial@astrolabioedicoes.com

Para informações sobre envio de originais contacte: originais@astrolabioedicoes.com

© 2022, Vinicius Littig e Astrolábio Edições E-mail: geral@astrolabioedicoes.com

Título: Os Sete Céus - O Chorar dos Anjos, Livro I Editor: David Thomati Coordenador Editorial: Vasco Duarte Capa: Laísa Soares Composição Gráfica: Pedro Panarra Revisão: Vinicius Littig

1.ª Edição: xxx, 2022 ISBN: XXXX | Depósito Legal n.º XXX

Impressão e acabamento: Atlântico Print

Astrolábio é uma Editora do Grupo Editorial Atlântico

portugal | brasil | angola | cabo verde

Este livro contém cenas com temática adulta e aborda tópicos sensíveis como morte, tortura e diferentes abusos.

À depressão: minha eterna amante.

PARTE I EX GENUS UT CADENT

Prólogo: Iniciando o Fim

Vida. Uma curta e simples palavra, mas que envolve um complexo e interminável equilíbrio. O início e o fim deste inacabável ciclo têm um nome: morte. Sou procurado e desejado por tal dama desde que nasci, mas, por mais que eu deseje ir ao seu encontro, parece que forças sobrenaturais nos impedem, tal como uma história de romance impossível. O meu nome é Qlon. Qlon Heros Imperator. Não sei o que sou nem meu real objetivo enquanto ser consciente, e que conste como verdadeiro quando digo que tal dúvida não é um exagero de minha parte.

Tais escritos que está prestes a ler, desconhecido de um distante ponto na dimensão do tempo, não são de contos e fantasias. Eles descrevem o desabafo mudo da vida de uma criatura perdida, cujos objetivos foram estripados, alegrias dilaceradas, sonhos destruídos e certezas mutiladas. Eles retratam a minha história, de minha concepção até seu momento atual e, como sei

que demorarei demasiado tempo para escrever essas linhas, pode ser que a autobiografia vire um diário. Mas, antes que eu possa descrever com afinco todos os meus anos iniciais de vida, permitam-me que eu retorne no tempo um pouco mais, nas histórias que me foram contadas por meus familiares. Afinal, não existem fatos que surjam sem um contexto que os sustente.

Ano 2999 e.C. – Reino de Sigillum Abriu a porta. O vento batia em suas costas, e fazia seus cabelos, dourados e longos o suficiente para tocar seus ombros, esvoaçarem. Seus olhos, de um azul cristalino e quase incomparável, brilhavam radiantes dentro de olheiras profundas e sombrias. Uma barba por fazer deixava claro o total desapego pela aparência que mantivera nos meses que se passaram enquanto fora de casa. Em seu corpo reluzia uma armadura prateada, completa das ombreiras até as grevas. Em sua mão esquerda seu elmo estava seguro, preso firmemente por seus dedos calejados dentro da manopla, na altura da viseira. A outra repousava em cima do cabo de sua espada, embainhada e presa à cintura, como queria que ela permanecesse por tempo indeterminado. Era alto, cerca de um metro e oitenta. Corpo forte, como o de todo soldado deve ser. Em suas costas aquilo que dava seu diferencial. Asas. Três pares delas, grandes e de penas meio turvas, algumas ainda manchadas com o sangue dos campos de batalha.

Do alto das escadas que conduziam ao segundo andar desceu sua esposa apressadamente, quase tropeçando em seus calcanhares. Tinha por volta de um metro e sessenta. Os olhos acinzentados brilhavam reluzentes de contentamento. Seus

cabelos, negros e longos, quase tocando o chão no fim de uma trança, balançavam de um lado para o outro enquanto corria pelos degraus. Ao chegar perto de seu amado, deixou o corpo cair sobre seu peito — com um pouco de cuidado para não machucar-se na veste de aço de seu templário. Usava um longo vestido de seda da cor branca, com uma abertura que ia de sua nuca até a metade das costas e que se estendia até cinco centímetros acima do chão. Sapatilhas pequenas fitavam seus pés e pequenos ornamentos, como um colar de pérolas negras e uma tornozeleira dourada cravejada de diamantes na perna direita, davam-na um aspecto elegante, porém discreto.

“Dou as boas-vindas ao Reino de Sigillum, querido desconhecido. Também chamado de reino dos anjos, Sigillum é um continente-arquipélago errante, que vaga sublime acima das nuvens. Nele encontra-se um relevo com a mesma biodiversidade encontrada no mundo abaixo. Das mais altas montanhas, de cumes cobertos de neve, até as densas florestas, onde habitam nossa fauna e flora, a vida aflora sublime. Longas planícies e inúmeras estradas separam grandes cidades e vilarejos, cortadas por rios que deságuam em lagos ou mesmo em cachoeiras nas fronteiras do continente, nos abismos que separam Sigillum do mundo inferior. Apresento, nesse ponto, meus pais. Meu pai se chama Ronan Heros. A família de meu pai vem de uma longa linhagem de guerreiros celestiais que, muitas vezes, sacrificaram suas vidas pelo seu reino. Era, em suma, o prodígio da família, o guerreiro mais forte de toda uma linhagem voltada para os campos de batalha. Aos 21 anos tornou-se o marechal mais jovem que o reino vira, eliminando milhares de demônios na guerra com sua espada, passada

de geração em geração: Sanctus. A lâmina dos deuses, espada sagrada. Falarei mais e mais dela no decorrer de meus relatos. A minha mãe viera da família real, Imperator, guardiões do reino e líderes de um povo. Prova disso eram seus olhos acinzentados, marca da nobreza de mais alta estirpe no reino. Como descendente de uma família que lidava com a política, fora instruída nos caminhos da diplomacia e da regência de seu povo. Contudo, não sentia apreço por qualquer destes temas, e seu refúgio estava nas artes estéticas, no apreço pelo belo e nas fantasias que a conduziam aos seus devaneios em dias ensolarados.

Claro que deve, com razão, perguntar-se como anjos de aspectos tão distintos sequer se conheceram. Acredite ou não, eles se conheceram nos campos de batalha em uma situação um tanto quanto inusitada. Minha mãe tinha uma mentalidade muito simples quando tratava dos assuntos políticos: se amo tudo que é belo e a guerra destrói tudo que é belo, logo, odeio a guerra. Contudo, por pertencer à nobreza, raramente deixava o castelo sem uma escolta armada, e nada podia fazer além de visitas às cidades, todas constantemente vistoriadas. Um dia, cansada de ser vigiada, revoltou-se e deixou o castelo, infiltrando-se em um dos regimentos como uma guerreira. Na época tinha 16 anos. O meu pai, em contrapartida, estava nos seus 18. Por volta dessa idade, os cadetes mais bem treinados começam a ir para a guerra para adquirirem experiências, colocar em prática aquilo que passaram anos estudando em seu centro de treinamento militar. Por conta de sua capacitação, destacava-se facilmente em campo de batalha como um lutador voraz e estava prestes a adquirir sua primeira promoção.

Por sorte, o destino fez minha mãe parar ao lado de meu pai, no mesmo batalhão. Em um momento da luta, ela, que não sabia ao certo manusear uma arma, ainda mais uma lança, viu-se cercada e desarmada, entregue à sua sorte. E então meu pai a socorreu. Em uma fração de segundo, os demônios foram decapitados e seu sangue manchou todo o cenário. Ela, admirou sua força. Ele, a beleza de seus olhos. Sua aventura acabou rápido, mas é a história que mais ecoa em minha cabeça sobre meus pais. Após a batalha em questão, meu avô, o rei — que logo será introduzido — a forçou a pedir desculpas para o regimento e, claro, agradecer seu herói. E desse início de relação surgiu seu romance. Desse ponto em diante, a história que descrevo se inicia aproximadamente sete anos após.”

— Querida… Senti sua falta.

Ronan não encontrava palavras para expressar sua alegria com o reencontro. Apertou-a com delicadeza em seu abraço mesmo que seus equipamentos o impedissem de sentir seu calor. O cheiro de seu cabelo perfumado parecia-se com um campo de flores silvestres.

— E eu também. — Disse sua amada esposa, laçando seus finos braços no grosso pescoço de seu herói e aconchegando-se nas frias placas de aço. Após alguns segundos aproveitando o momento, continuou: — Cansado?

— Exausto. — Ronan sorriu enquanto ajeitava sua pequena esposa novamente na mesma altura do piso. — E faminto.

— Então suba, tire essa armadura e tome um banho. Vou preparar o jantar.

Deu um leve beijo em seus lábios, e, saltitando, dirigiu-se à cozinha, no fim do corredor. Ronan ficou ali, parado na porta,

apenas alguns segundos enquanto apreciava a calmaria da cidade, o conforto de sua casa e os contornos de sua bela esposa que, mais tarde, aqueceria seu corpo em sua cama. Ah sim, sua tão estimada Aeria, capital de Sigillum — cidade natal que fora ensinado a proteger com todas as forças oscilantes de seu corpo. Aquele era o primeiro anoitecer de mais seis meses de paz. “Paz, ou, como gosto de chamá-la, a promessa que não pode ser cumprida. Apesar de ser uma ilusão, não deixa de ser menos desejo da própria existência, que é comandada pelo caos. Entre os mortais sempre foi um sonho distante, mas só se tornou impossível quando veio o apocalipse. O apocalipse ao qual me refiro é a guerra predestinada entre anjos e demônios. Quando o conflito finalmente eclodiu após éons de espera, o planeta fora destruído e, como nos demais desastres que ocorreram em sua longa história, precisou renascer em seguida. As raças mortais que restaram agruparam-se, cresceram e, como era esperado, continuaram suas guerras territoriais. Os anjos, cuja missão era proteger a vida, travavam desde então com os demônios densas batalhas em busca de uma resposta final para aquele confronto milenar que deu início a uma era sangrenta, que as páginas dos livros futuros de história fariam bem em deixar de lado. Mas ainda não é hora para saber sobre essa guerra — poderia levá-lo à loucura antes mesmo que conheça mais do que meu nome.

A casa de meus pais não era como os palacetes das famílias nobres, mas tinha lá seus luxos. Tinha não mais que dois andares — três, se contar o sótão acima do quarto de meus pais, que era usado para guardar as quinquilharias. Logo na fachada, os muros de pedra branca chegavam a dois metros de altura e eram

cobertos por musgos, roseiras e ramos de trepadeiras, assim com as paredes da casa. Também feitas de pedras brancas mas revestidas em seu interior por madeira de carvalho, eram cobertas pela vegetação selvagem, passando um ar de abandono e sofisticação. O portão de entrada era de ferro negro, tão resistente quanto o tempo em si, e os caminhos eram revestidos com tijolos avermelhados, tanto para a porta de entrada quanto para os fundos, contornando os dois lados da casa. O jardim era revigorante e ocupava toda a fachada. Os canteiros, adjacentes aos muros e às paredes principais, tinham, em sua maioria, flores das mais diversas, predominantemente roseiras — as favoritas de minha mãe. Dividiam espaço com elas as begônias e os hibiscos, dando uma coloração inigualavelmente rósea e avermelhada entre o verde-escuro da vegetação. Nos fundos, uma estufa foi construída abaixo do belíssimo e antigo pé de magnólia para preservar a plantação nos meses frios, próximo a uma casinha de ferramentas de jardinagem feita inteiramente de carvalho. Um pequeno lago coberto por flores de lótus completava o cenário junto ao minúsculo gazebo de madeira aromática de pessegueiro.”

Subiu as escadas, logo após a porta principal, deslizando o aço de suas manoplas pelo corrimão, e voltou ao seu quarto, cujo local não estivera a duas longas estações. Tudo parecia novo. O armário e cômoda antigos, feitos com madeira de pinho, lustrosos e bem cuidados; a cama com cortinado, de colchão macio e espaçoso para as noites de amor com sua esposa; a janela atrás da cama, com suas longas cortinas azul-celeste de seda real; o tapete feito de penas de grifo que cobriam o frio chão de madeira de bordo; a varandinha para o jardim, por onde

entrava o adocicado aroma de flores pela manhã… Levava um certo tempo até acostumar-se, mais uma vez, com o lugar que ele mesmo construíra após seu casamento para abrigar a família que pretendia com sua mulher.

Tirou sua armadura com manchas escarlates e colocou-a em seu devido lugar: um manequim antigo ao lado da cama de casal, sem asas, que comprara em sua viagem a Colossus. Olhou para o boneco sem vida e ensaiou três golpes de mão nua em sua cabeça. Sorriu. Não seria mais necessário lutar por um certo tempo. Com uma flanela retirada de sua cômoda, retirou mancha por mancha de seu precioso equipamento, polindo-o. Ao acabar, desembainhou a Sanctus e vislumbrou seu reflexo no rígido metal azulado, de tom claro e que transparecia uma inocência que não se refletia em seus violentos cortes. Poliu-a, como com o restante de seus metais, embainhou-a mais uma vez e a prostrou em seu devido lugar: ao lado da cama, próxima ao seu travesseiro. Arrancou sua cota de malha e, apenas vestindo uma túnica, última peça de sua indumentária e impregnada de suor e sujeira, dirigiu-se ao banheiro. Enquanto enchia a banheira de água morna, retirou seu traje imundo, jogando-o em um canto qualquer do piso azulejado, e desenrolou algumas bandagens dos ferimentos que mesmo a pesada proteção de combatente deixara trespassar. Garras e dentes de demônio não eram meros enfeites. Ao menos os médicos eram eficientes e suas feridas estavam todas devidamente tratadas e cicatrizadas. Quando a tuba encheu, fechou as torneiras de prata e, vagarosamente, mergulhou seu corpo até ficar plenamente submerso. Cerrou os olhos enquanto toda a poeira e sangue seco

deixavam sua pele. Sequer contou quantos segundos permaneceu ali, prendendo sua respiração. A água suja ocultava seu corpo e as bolhas de ar que saíam de seu nariz mal chegavam à superfície. Parecia um cadáver putrefato no leito de um lago. Ronan podia sentir sua pele enrugar aos poucos. Enquanto isso, cenas dos últimos meses repetiam-se em sua cabeça, atordoada pelas memórias de um passado recente.

Vejo os horrores da guerra Na face sem vida dos meus companheiros Vejo os lábios da sorte Sorrirem para suas próximas vítimas Vejo o medo morte Nos olhos lacrimejantes das famílias Vejo um destino insensível

Ceifar a vida de meus estimados amigos Imortais apenas nas lendas dos homens

De súbito, sua cabeça emergiu da água. As rimas anotadas por ele em seu diário de batalha vieram à sua mente com força assustadora e sombria. Não era lá dos mais artísticos, mas gostava de poemas. Aprendera-os com sua amada e, desde então, tomava nota mental dos versos fortes que criava, que saltavam-lhe da garganta como estilhaços de vidro quebrados.

— Querido, a refeição está quase pronta! — Ouviu a voz de sua esposa da cozinha.

Ronan saiu da água suja e secou-se com uma toalha, que imediatamente absorveu o tom marrom-avermelhado. Jogou-a ao

chão junto à sua túnica e às bandagens usadas. Caminhou vagarosamente até o armário do quarto, pegou e colocou uma manta longa e branca, feita de algodão.

“Como as asas que os anjos possuem atrapalham na vestimenta, roupas leves e folgadas eram comumente usadas. Ainda, claro, restava a opção de ocultar as asas, mas o mais comum é que os alfaiates e tecelões encantassem os tecidos para que elas os trespassassem. Faziam o mesmo com a couraça das armaduras, pois mais cavidades nos equipamentos retiram sua resistência. O corpo angelical mortal dava a vantagem do voo, mas criava, sem sombra de dúvida, certos empecilhos.”

Após vestir-se, desceu as escadas e dirigiu-se até a sala de jantar, onde diversos pratos recheavam sua mesa. A luz que entrava das duas janelas, voltadas para o jardim da frente, tornava a madeira envernizada de pinheiro dos móveis e o mogno escuro do relógio de parede, com seus enormes pêndulos de ouro, ainda mais aconchegantes. Quase salivou pelo canto da boca só de comparar aquela farta refeição com as rações preparadas nas tendas de alimentação dos soldados. Sopas ralas e pastas viscosas de legumes não saciavam a gula de um soldado como ele, forte como um touro. Sentiu-se, por fim, em casa. …

O marechal teve uma agradável noite conversando com sua esposa durante o jantar, enquanto ela contava tudo que acontecera na cidade nos meses anteriores. Tera contou sobre as visitas da família e os rumores que circundavam a cidade, e sentia-se mal por não contar muito além disso. A vida de uma princesa em matrimônio, afastada do castelo real, não era como

em um conto folclórico. Na verdade, era monótono, mas, entre algumas cerimônias em que era obrigada a participar e caminhadas a ermo pelas ruas de Aeria, entretinha-se com aulas de alguns ofícios, além de suas artes. Adorava as de culinária, e mostrava sempre para Ronan quais pratos aprendera em sua ausência durante as refeições. Já no final da conversa, Ronan lembrou-se de algo:

— Amanhã é o baile, não é? — Resmungou enquanto ainda mastigava uma suculenta coxa de faisão assada. — Pelos sete céus, mal posso colocar os pés em casa que sou obrigado a comparecer a alguma formalidade. Precisamos de melhores preparos esse ano, não é?

— Melhores como? Todos os anos a festa é quase igual. — Resmungou sua esposa como uma atriz forçada a atuar pela centésima vez na mesma peça.

— Sim, mas esse é um ano diferente, já esqueceu? A visita dos celestiais. — Relembrou seu esposo. — Aquele problema da virada milenar, mortais fazendo pactos, poder dos demônios aumentando exponencialmente… Lembrou? Foi você mesma que implicou com isso no ano passado, querida!

“O reino de Sigillum era sim povoado por anjos, mas não todos. Por conta do empate na guerra final, anjos precisaram ser enviados para continuar os confrontos, mas somente os guerreiros foram os designados — logo, no reino celestial dos sete céus, ficaram anjos para cuidar de demais assuntos, digamos, ‘administrativos’. Alguns guardiões aqui e ali ainda ficaram, claro. Porém, quando os anjos descem ao lar dos mortais, tornam-se mortais como eles e assumem um corpo físico, enquanto no reino celestial

podem viver pela eternidade em suas formas luminescentes. Mas não mortais como um humano, que chega a viver em seu máximo cem anos! Anjos podem viver até mil anos, e o envelhecimento de seu corpo é bem diferente. A carcaça que usam envelhece somente até o fim da mocidade, depois permanecem jovens e belos até o fim de suas vidas, quando cabelos embranquecem e a pele se enruga. Parte de uma antiga maldição que não vale a pena mencionar agora, apenas tornaria tudo ainda mais confuso. Como humanos, nascem incompletos, mas seu desenvolvimento é muito mais ligeiro e, ao final de cerca de 9 anos, têm uma capacidade mental tão superior que chega a ser ridículo fazer qualquer equiparação.”

— E o que acha que devemos fazer nessa ocasião?

— Não sei, talvez… Procurarmos vestimentas mais apropriadas? Realmente não tenho ideia do que fazer para recepcionar os celestiais.

— Nossas roupas já possuem a melhor costura que nossas fortunas podem pagar.

— As suas. Eu só posso usar o uniforme de gala do exército em qualquer cerimônia formal.

— Que seja. Os anfitriões são seus pais, eles sabem o que fazer. E também, o máximo que conseguiremos é conversar com algum deles, caso não se escondam dos presentes. Possivelmente nem os veremos de tanto que são covardes.

Ronan gargalhou, quase engasgando com um pedaço de torta de codorna. Queria repreender sua esposa pelos comentários rudes, mas estava certo de que ela tinha razão.

— São apenas os fatos. — Sua esposa deu de ombros. — Se tivesse visto algum deles como eu vi no castelo dos meus pais

de tempos em tempos, me daria razão. Arrogantes e medrosos, uma combinação perigosa. Falam grosso quando precisam, mas choram de medo ao ver uma arma decorativa na parede.

“Para incentivar os anjos a batalharem, a promessa que receberam foi de que suas vidas seriam poupadas e reenviadas ao plano celestial, onde são imortais. Claro que, em uma guerra, nem todos estão aptos a lutar e nem todos sobrevivem. A morte no plano dos mortais não reenvia, simplesmente, um anjo em sua forma luminescente aos sete céus, então os guerreiros que morressem em combate enfrentariam a mesma incerteza que tirou a sanidade de qualquer mortal consciente da fragilidade de sua vida. Para evitar um número preocupante, então, de baixas, a sociedade dos anjos em Sigillum precisou organizar-se de forma análoga à humana, centralizando o governo e dividindo as forças de trabalho. Poucos guerreiros realmente retornaram após seus préstimos, já que possuem um milênio de vida e estão expostos ao perigo da guerra.”

— Já está ficando tarde. — Disse Tera olhando pela janela para a lua alta no céu. — Acho melhor irmos para a cama. Principalmente porque, de tudo que mais senti falta nessa guerra, senti mais ainda de…

Seu rosto ruborizou. Não estava tão acostumada a ser tão direta sobre certos assuntos com seu marido dessa forma. Entretanto, pelo sorriso malicioso que brotou dos lábios de seu amante, tinha feito a escolha correta das palavras. …

As folhas secas começavam a cair das árvores, marcando o início do outono: a época sem guerra, pois o clima esfriaria e

o sangue dos demônios congelaria no clima daquela altitude. Eram os meses mais pacatos em que o reino entrava, do início do outono ao fim do inverno. Quando voltasse a primavera, guerras sucessivas tirariam a paz dos habitantes de Sigillum até o fim do verão. Um ciclo perpetuado há tanto que certas peculiaridades tornaram-se rotina entre os anjos. Dentre elas, a morte.

Ao raiar do sol do dia seguinte, lamentos podiam ser ouvidos. Cânticos em latim arcaico e anjos se amontoando nas lápides, tentando ver o sepultamento de mais um corpo que para a terra se foi. Assim seria durante o dia inteiro: o primeiro dia após o retorno é dedicado aos heróis que se foram. Dali em diante, vinham as celebrações pelos que retornaram.

A casa dos Heros era bem em frente ao cemitério de Aeria, na periferia do extremo oeste, próxima à muralha de pedra que protegia a cidade, o que fazia com que todos os dias da vida de Ronan fossem usados para uma profunda reflexão sobre a vida e a morte. Do parapeito da pequena sacada, construída voltada para a entrada da casa, mantinha-se debruçado, acompanhando o corpo descer à cova. Sua família regava sua lápide com lágrimas, desconsolada. Isso fazia com que pensasse em como seria o seu enterro se o pior ocorresse. Cada corpo que via ser engolido pela terra tinha sua face. Nenhum dos familiares tinha rosto. O padre, um demônio. Tais sonhos ocupavam seus pensamentos enquanto dormia. Nem mesmo o calor de sua amada ou o vento fresco da manhã pareciam acordá-lo. Por muito tempo sentia-se mais morto do que vivo.

“A tradição dos mortais de enterrar um corpo foi apreendida por nossa cultura ao nos mudarmos para Sigillum. Muitas

culturas trataram seus mortos de maneiras diferentes, mas nós gostamos da dos humanos em especial. O corpo quando morre se deteriora, assim como tudo que se pega emprestado da natureza. Logo, faz sentido devolver aquilo que somente estamos usando de forma passageira. Modificamos um pouco a tradição dados nossos costumes. O corpo que era carregado para a terra descia limpo: sem roupas, sem adornos, sem objetos pessoais. Inteiramente nu. Nem em gavetas de madeira que os tolos humanos chamam de ‘caixões’, peças ridículas que apenas conservam ainda mais o defunto. Em íntimo contato com a terra, carregava consigo a semente da planta que mais apreciava. Era comum que fossem árvores, mas flores também eram achadas com frequência. A família, então, cuidava da planta que nascia até o momento em que ela também se fosse — significava que a alma estava livre de seu sofrimento e que a família estava livre da tristeza. Isso dava ao cemitério uma aparência vívida durante os meses quentes: perfumada na primavera, verdejante no verão. O cenário era belo, mas o sentimento ainda permanecia macabro. Era chamada, certamente, de floresta dos mortos.”

— Querido, já de pé? — Perguntou Tera indo ao seu encontro e abraçando-o pelas costas, deslizando suas delicadas mãos sobre as dobras dos músculos de seu marido.

— E quem consegue dormir com esse barulho em frente de casa?

— Se eu fosse você, não reclamaria. Afinal, quem escolheu o terreno?

— Sim, eu sei. Mas também, esta cidade está toda ocupada. Não queria construir uma casa muito longe dos muros e

também não queria as regalias que tinha quando morava com meus pais. Um dos motivos que me fez treinar tanto para deixar o castelo foi…

— Independência. Eu já sei. Você fez questão de comentar isso cerca de cem vezes, ainda não se cansou? — Disse Tera em tom de riso. Aproximou os lábios de sua face e deu-lhe um delicado beijo na maçã do rosto. — Agora, vá arrumar-se. Você ainda não cuidou totalmente de sua aparência. Cabelos ouriçados, barba por fazer, unhas por cortar… Sugiro que se arrume direito.

— Tem razão, querida.

Ronan descobriu desde muito cedo em seu relacionamento com mulheres que, quando o assunto era aparência física, melhor era não arrumar discussão, apenas obedecer. Podia ser o marechal e líder de todos os exércitos dos anjos, mas ainda era subordinado à própria mulher dentro de sua casa.

— E não esqueça de perfumar-se bem. O cheiro de suor e sangue está tão impregnado em seu corpo que demorará semanas para sair.

Ronan cheirou seu punho e, em seguida, suas axilas. Precisava de um novo banho, esse com ervas aromáticas.

Enquanto Ronan fazia o favor de aprumar-se para a grande noite, cortando barba, cabelos e unhas que o equiparavam a um humano primata, Tera saiu às ruas para pegar seu vestido encomendado na alfaiataria. Como era costumeiro, jamais usara o mesmo vestido de festa em ocasiões diferentes. Esse ano, havia encomendado um de tom neutro, negro, com renda sobre a saia longa de seda e laços de cetim nas costas. A estampa, florida e

de brilho prateado, preencheria o tecido opaco entre o busto e seu ventre. Ao dobrar uma esquina antes à rua dos artesãos, entreouviu uma conversa de duas serafins que, animadas, conversavam sobre a noite de festividades.

— Falando em bailes, ficou sabendo dos Heros esse ano?

— Sim, meu marido contou o que ouviu do seu pai. O retorno do primogênito, Yurius, não é?

— Sim, mas não fale como se fosse em sua homenagem. Ele retornou há três dias somente, e disseram que está vindo em uma caravana de coletores. Deve chegar daqui a algumas horas nos portões.

— Então, os Heros não sabem?

— Creio que não. Meu pai só ficou sabendo por conta de seu posto em Iustitia, em uma mensagem expressa que chegou ontem. Ele deve tentar contar aos Heros hoje, mas devem estar ocupados com…

Interrompeu o discurso quando percebeu sua amiga encarando, com olhos afoitos, para Tera, que seguira-as por alguns passos para ouvir melhor do que falavam.

— Princesa, perdão por nossa imprudência! — Ambas disseram em uníssono, curvando-se.

— Mais alguém sabe disso? — Perguntou a princesa em um tom fúnebre.

— Não contamos para mais ninguém, mas…

— Então cuidem de não contar. Vou revelar o que disseram ao meu esposo e ele tomará as medidas necessárias.

Tera usou um tom de voz que não gostava — um tom que via famílias da alta estirpe usarem comumente com seus

subordinados. Sempre cuidara de ser gentil e delicada com todos, como ensinada pela sua mãe, mas sentiu que precisou ser resoluta dessa vez, tão somente. Dito isto, as donzelas curvaram-se mais uma vez, levantando a aba de suas saias delicadamente em uma mesura, e andaram a passos firmes para longe.

Yurius era o irmão mais velho de Ronan, filho primeiro de sua linhagem. Foi sentenciado ao exílio pelos juízes de Sigillum, que residem em Iustitia, por tramar o assassinato de seu irmão pela herança sagrada da família, Sanctus. Uma história como essas não consegue correr em sigilo, então era mais do que natural que todos do reino soubessem do ocorrido. Se o rumor era mesmo verdadeiro, não era motivo de risadas ou deboches. Os anjos não são conhecidos por reintegrar homicidas em sua sociedade: ou eles pagavam com a vida, ou se aliavam aos demônios cedo ou tarde, e sequer gostava de pensar no que aconteceria se tal infortúnio ocorresse. O motivo de Yurius ser poupado ainda era um mistério, e poucos que participaram do julgamento, incluindo Ronan, falavam sobre o ocorrido. Nem ela mesma sabia o porquê, apesar de ter perguntado diversas vezes ao seu esposo. De certo, deveria contar para Ronan o quanto antes. Preferia que ouvisse de sua boca em vez da de terceiros. Sendo assim, entrou e saiu da alfaiataria como uma lebre, sem nem se preocupar com o troco das moedas de ouro que dera. …

Ao abrir o portão de ferro com um ranger específico da falta de óleo nas dobradiças, deparou-se com seu esposo ajoelhado perto do canteiro das roseiras. Parecia terrivelmente abatido.

Não que não estivesse acostumada, era assim sempre que ele retornava ao lar. Fazia parte de sua rotina dos meses frios acordar assustada com ele se debatendo em seus pesadelos noturnos, ou encontrá-lo com um olhar vago e distante em um cômodo da casa, alheio ao que se passava ao redor. Não sabia direito, por experiência, como era sua vida nas guerras, e seu esposo não gostava de compartilhar com ela detalhes sórdidos de carnificinas. O pouco que vira em sua aventura, contudo, a fazia tremer nas bases em divagações momentâneas sobre o episódio. Fato é que sentia-se igualmente deprimida ao vê-lo naquele estado, mas nada de fato podia fazer a não ser ofertar seu amor. Forçou um sorriso e aproximou-se vagarosamente de Ronan, colocando a mão suavemente em seu ombro para não espantá-lo.

— Querido? Aconteceu algo? — Perguntou Tera ao olhar para Ronan agachado e com um olhar cabisbaixo.

— Você se lembra de quando começamos a construir esse jardim, logo no outono que completei a casa?

— Sim, você disse que colocaria flores lindas, para apreciarmos todos os dias sentados no gazebo. Achei romântico, mas sabia que isso era impossível já que… — Tera afastou o olhar por alguns segundos.

— É. Justamente nessa promessa que eu estava pensando. Não gosto de prometer algo que eu não possa cumprir, e eu fiz tal promessa justamente a você…

Uma flor se desmanchou diante de seus olhos, junto com um forte vento. A cena era terrivelmente meiga, ainda mais levando em consideração que era um enorme e musculoso soldado

agachado e cuidando das plantas da própria casa, quase em prantos ao pensar que não conseguia ver flores desabrochando na companhia de sua esposa. Forte como um soldado, sensível como um menestrel — as poesias eram prova. O calor que sentia entre as pernas vinha do seu corpo bem esculpido pela arte da guerra, mas o amor que nutria em seu peito vinha de pequenas cenas como aquela. Tera ficou em silêncio por alguns segundos, pensando no que dizer, mas não era tão boa com as palavras quanto desejava.

— Tudo bem, meu amor. — Agachou-se e abraçou-o pelas costas, repousando o rosto em seus ombros. — Mesmo que não as veja desabrochar, você cuida delas durante todo o inverno. As protege, as aduba, afofa seu solo, as transfere para a estufa e, antes de voltar ao posto, as coloca no jardim mais uma vez. Aposto que quando elas desabrocham durante a primavera são muito gratas por todo o tempo e esforço que dedica a elas. — Seu rosto abriu-se em um sorriso sincero.

Ronan entendeu o que ela quis dizer de imediato. Alegrou-se minimamente. Sabia que, com o costume dos anjos, seria impossível para ele passar todos os dias de sua vida junto de sua bela anja, e somente isso o motivava a voltar todos os anos a encarar a face de seus inimigos. Mas, por vezes, desejou ter o talento de um mercador, um artista de rua, um artesão. Somente isso o teria arrancado daquela vida. Sempre que tal pensamento surgia, conformava-se em refletir que o tempo era uma viagem sem retornos.

— E ainda é possível cumprir a promessa. Traga a paz ao reino e poderemos, um dia, ver as flores da primavera em nosso gazebo. Se serve de consolo, já o faço nas visitas de sua mãe.

— Querida… Queria muito, e sempre me esforço para isso, mas…

— Agora, ande. — Chamou a bela anja, interrompendo-o. — Vamos entrar, quero que me ajude com o vestido. E também, tenho que contar algo importante. Muito importante.

— O que seria assim tão importante?

— Conto lá dentro. Não quero que os vizinhos ouçam. Nessa cidade parece que o próprio vento revela segredos…

— Amor, nossos vizinhos estão mortos. — Lembrou-a, arrancando uma gargalhada de Tera.

Enquanto Ronan ajudava Tera a trocar-se em seu quarto, ela explicou o que ouvira, acidentalmente, como fizera questão de frisar, em sua ida ao mercado.

— Então quer dizer que meu querido irmão está vagando novamente por aqui? Esplêndido!

— “Esplêndido” você diz? — Tera franziu o cenho enquanto seu marido amarrava as fitas de seda cruzadas em suas costas desnudas. — Extremamente perigoso, quis dizer! Já imaginou quais são as possibilidades? Eu duvido que ele tenha voltado para pedir desculpas. Ele vai soltar toda a cólera que guarda no instante que avistá-lo e, pior, com os visitantes dos sete céus por perto!

— Mas ora essa, não era você mesma que estava pouco ligando para a visita dos imortais?

— Não me confunda, senhor Heros. — Era assim que o chamava quando se aborrecia. — Sabe bem que a única linha que impede um massacre das Virtudes em nosso reino é nosso sistema próprio de justiça. Se Hasmed falhar…

— Eu já sei, e entendo sua preocupação. Mas os sete céus não liberariam as Virtudes sobre nós por tão pouco. Eu posso derrotar meu irmão com um braço nas costas. E, claro, sempre há a chance de que ele possa mesmo ter mudado…

— Por Metatron, Ronan! Depois de tudo que ele fez, você ainda…

Tera fechou o rosto em pura raiva. Ronan só a vira assim mais duas vezes na vida. A primeira foi quando recusou-se a dançar no primeiro baile dado pelos Imperator em honrarias ao seu casamento. Após o ocorrido, aprendeu a dançar com uma odalisca em Aurum, em segredo, e levou-a a um baile de inverno em Fiducia. Na segunda ocasião, foi quando confidenciou a sua mãe em uma visita que ainda não se achava pronto para ser pai, fazia dois anos. Tera entreouviu a conversa e chegou a chorar. Sempre soube que um dos desejos de sua esposa era ter filhos, vários deles — apostava que era parte dos caprichos de uma filha única. Ainda assim, nunca mais pronunciou tal frase.

— Meu amor, sabe que não consigo nutrir sentimentos ruins por meu irmão. Ele foi meu melhor amigo na infância antes que eu fosse para a Base, apesar de tudo. Talvez ele tenha mudado de verdade, quem sabe?

Tera calou-se. Sabia que Ronan estava certo e deixou que sua lógica vencesse a paixão. “Só dessa vez”, prometeu. Mas sabia, ao olhar no fundo dos olhos do serafim que amava, que nem mesmo ele acreditava naquilo que estava dizendo. Sua raiva se dissolveu rapidamente em seu rosto, e Ronan continuou:

— Se os rumores estiverem certos, nem foi um grande exílio assim. Uma década apenas, acho que os juízes de nosso reino

foram bonzinhos demais. Você deveria estar mais calma. Eu, que sou o alvo em potencial, sequer estou preocupado com tudo isso.

— Claro que não está! Você é nosso melhor soldado e já o derrotou antes, então dificilmente estaria! Mas lembre-se que aqui você não é imortal! Tudo pode acontecer a partir do momento que você entrar pela porta daquele castelo.

Yurius era o filho mais velho, o primogênito, mas, mesmo tendo aquela dádiva, o escolhido para receber a espada da família fora Ronan. Sanctus já originara dentro da família diversas brigas, mas nunca uma parecida. Nessa em questão, Yurius tentou assassinar seu irmão durante seu sono após invadir a Base. Ronan foi habilidoso ao perceber e defender-se do ataque como podia. Pegou a espada que não saía de seu leito e sacou-a rapidamente, arrancando um pedaço de uma das asas de seu irmão e criando uma cicatriz em sua barriga. Se não fossem os mestres da Base para apartar o conflito, alguém teria sido morto no embate. Como pena por tamanha crueldade e ganância, Yurius foi sentenciado ao exílio — vagar entre os humanos no mundo inferior como um mortal qualquer — por um tempo indeterminado, até que seu arrependimento fosse comprovado.

— Esse ano eu portarei a Sanctus no baile. Farei com que ele entenda…

— Ronan, ele entende. — Tera já ouvira os mesmos dizeres em outras ocasiões, já sabia como seria seu argumento. — Se carregar a Sanctus na cintura, mais provável que ele tome como ofensa.

Um silêncio incômodo abateu-se entre o casal. Os tiques do relógio na sala de jantar e o farfalhar das folhas no quintal passava desapercebido. A princesa exalava preocupação, e seu esposo sabia que, em sua cabeça, as fantasias de tudo de pior que poderia ocorrer já estavam se iniciando. Simulação por simulação, cada novo resultado piorava ainda mais seu semblante. Pensava ele que daria uma boa estrategista se conseguisse abandonar, ainda que parcialmente, o excesso de aflição que sentia.

— A festa começa ao pôr do sol. Ainda temos tempo, nem chegamos no meio do dia. O que faremos até lá? — Tentou desconversar para quebrar o clima, enquanto acabava de atar as tiras da veste de sua amada.

— Que tal me contar tudo que ocorreu nos últimos seis meses? Afinal de contas, sou sua esposa.

— Não acho que gostaria de saber sobre cadáveres e sangue. Isso é demais para uma princesa. — Debochou Ronan enquanto dava a laçada final e, vagarosamente, afastava-se enquanto esperava um tapa de sua parceira.

Tera fechou o rosto para ele, mostrando que a provocação naquele momento não era bem-vinda. Sua esposa sentou-se sobre a cama e escolhia, vagarosamente, seu par de sapatos, enquanto Ronan, enroupando sua farda militar cerimonial, contou como fora no campo de batalha e como a situação estava difícil para ele nos últimos anos — omitindo, propositalmente, os excessos de selvageria dignos de uma besta. Ao final, atou a tira de couro da bainha de sua espada à cintura, arrancando um suspiro de reprovação de sua parceira. Por mais que fosse doloroso desagradá-la, preferia isso à ser pego desarmado por Yurius.

Ao acabar de se enfeitarem para o baile, foram para o sofá da sala de estar e se aninharam em um afetuoso abraço por horas a fio. Poderiam entreter-se com qualquer outra coisa: um livro de sua tímida biblioteca pessoal, um jogo de cartas e dados, ou bebericar dos adocicados hidroméis que Ronan mantinha na pequena adega construída dentro da casa de ferramentas enquanto jogavam conversas ao ermo. Mas era do aconchego e da presença um do outro que mais sentiam falta durante a metade de um ano inteiro, então ficariam assim por quanto tempo conseguissem antes que a dura realidade os separasse mais uma vez. Mas a expressão que Tera mantinha no rosto enquanto Ronan enrolava os dedos em suas macias madeixas negras não era de conforto ou de serenidade, e sim a de uma profunda e tóxica tormenta em sua cabeça.

O sol desapareceu do céu e os postes foram acesos nas ruas. A cidade trocava seu semblante sério por uma expressão ébria, digna dos festejos que estavam por vir em todas as esquinas, todos os becos. O fim da guerra era comemorado em todas as cidades, mas Aeria em especial virava um palco de prazeres carnais, com visitas de todas as cidades para as comemorações de rua. Tavernas lucravam tanto somente em uma semana que os taverneiros eram conhecidos como a elite do comércio dos meses frios. Nos meses quentes, assumiam os ferreiros. Para Ronan e Tera, era a hora de partir. Fecharam os portões de ferro negro de sua casa e, de braços dados e com seus trajes elegantes, saíram de sua pacata residência no subúrbio de Aeria e caminharem pelas ruas da capital sem se permitirem contagiar demais.

Sentiam uma forte calamidade se aproximando a passos ágeis, cavalgando nas costas de um corcel. Tera sabia que, independente dos acontecimentos, o resultado daquela noite e daquele baile mudaria todo o percurso de suas vidas abruptamente.

“E, naquela fatídica noite, os laços necessários para permitirem minha vida foram amarrados. O destino não se forma a partir de grandes eventos, que são os pontos culminantes de um todo, e sim nos pequenos afazeres do cotidiano. Um soldado que retorna da guerra, sua esposa apaixonada, seu irmão invejoso e um baile de comemoração repleto de representantes da administração celestial. Sem esses ingredientes, que à primeira vista parecem triviais, com certeza não estaria aqui. Parece anedótico que, como na história dos mortais, grandes feitos sempre surgem desses dois extremos sentimentos: o amor incondicional e o ódio fervilhante. Alguém que deseja doar e alguém que deseja tomar. Eu surgi da junção de ambos, da crueldade do acaso e do sadismo do destino. Mas, assim como em uma receita gastronômica, os ingredientes por si só não formam o prato. Também é preciso descrever os acontecimentos daquela noite e, claro, da subsequente guerra que voltaria nos meses seguintes, narrados a mim por familiares anos e anos após. Sei que deve ser história demais para engolir, e não ficarei surpreso, leitor desconhecido, se quiser abandonar esta leitura aqui e agora. Talvez devesse fazer tal favor a você mesmo. Mas, caso decida continuar pelos inúmeros próximos parágrafos, saiba antes que não espero que meu nome ecoe pela eternidade. Ouvi de diversos mestres em minha vida que só morremos, de fato, quando o último ser vivente que se recorda de nossa

existência carrega consigo as memórias para o túmulo. Então, por agora, sugiro que se acomode: pegue um bom vinho, cerveja ou hidromel, recline-se em um sofá aconchegante e leia atentamente às linhas seguintes. Sinta minhas alegrias, minhas tristezas, minhas fúrias. Perceba o quanto a existência, em si, possui nenhum sentido que senão a vontade dos conscientes. Quero que se divirta ao conhecer, por fim, aquele que destruiu e reconstruiu seu mundo, cujas mãos velhas e cansadas mergulham a pena no tinteiro para descarregar o fluxo de senciência que anseia pela mortalidade. Mas, assim que acabar, por favor, esqueça-me, ou não poderei descansar em paz.”

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.