Xeque-Mate

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Paul Law

XEQUE-MATE

Editora Revelar - 2010 3


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“Eu posso mudar o mundo se tentar... Quis eu fazer coisas boas!�

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APRESENTAÇÃO

Quando tinha em mente conceber essa história, eu tinha algumas ideias dispersas. Não era algo uniforme; ameno e padronizado. Era algo turbulento; provocativo; inquietante, talvez até irritante. Ao final do trabalho pude notar que a saga saiu bem como iniciou, e que eu simplifico ao conceituar dizendo que foi algo DIFERENTE. Inicialmente, eu tinha dois personagens: Reinald e Raquel. Eles já estavam bem construídos, mas o resto eu fui modelando aos poucos. Tirei seus nomes de pessoas que prezo muito; quis homenageálos. Vocês saberão quem é quem e se não souberem, quando da oportunidade que nos encontrarmos terei imenso prazer em dizer. Findo com o pedido: quando ler o livro, não deixe de dar sua opinião, pois quero usála aqui nesta apresentação. Paul Law

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PRÓLOGO

Raquel Brenenberg era uma mulher difícil de definir. Sua personalidade ou seus atrativos físicos eram como um jardim há muito abandonado: a real beleza estava no conjunto verde-natureza-rústica. Pernas esguias e brancas acariciavam com suavidade aquelas escadas; pés de anjo que em ocasiões muito especiais desciam ao chão. Pés descalços que acariciavam a madeira decorada daquela escadaria antecediam a borda florida de uma camisola branca amassada. Mais em cima, cabelos negros cuidadosamente penteados serpenteavam por ombros pálidos e busto saliente. Seus olhos sonolentos, duas pedras opacas de cinza, entreabertos. Descendo com cuidado, suave e como se pisasse em nuvens, ela tinha os olhares de todos sobre si; olhares de admiração, de surpresa e inveja. Ao tocar com a ponta dos pés o piso de mármore do saguão anunciando o fim de sua descida, Raquel sentiu frio e a sua pele se arrepiou por um segundo; aquela coloração pálida dava certeza do jardim abandonado em que se resumia aquele ser. Uma mulher 9


independente talvez, ou nem tanto quem sabe: — Raquel, sempre atrasada não é? A voz daquele homem de aparência jovial quebrou o irritante silêncio, ele teve coragem para tanto, sempre tivera muita. Os óculos escuros daquele jovem refletiam Raquel e toda a sua beleza, mas não para ela, que a este tempo estava distante, nos braços de suas lembranças: — Raquel, sempre atrasada não é? — Essa monstrega sempre acorda tarde, Pai. Aquele moleque de cabelo nem comprido e nem curto, cuja voz irritava de imediato, fez com que o aborrecimento despertasse em Raquel: — Ora, Samuel! — ela franziu a testa. O senhor de óculos arredondados ajeitou sua gravata e pediu silêncio a Samuel e Raquel. Fitou as outras crianças com satisfação; um sorriso brotou dos cantos dos seus lábios. Além das duas mencionadas havia mais dez crianças ali naquele saguão, todas eufóricas. Era um sonho, reunir doze crianças naquela mansão! Doze era um número interessante; quase onze como os apóstolos ou treze... Crianças que mudariam o mundo ou para um lado ou para outro! Libertar ou condenar são verbos antagônicos mas mesmo assim verbos, ações, reações, 10


Algo tão banal, mas tão importante ao mesmo tempo. Eles estabeleceriam algum equilíbrio... — Meus doze filhos, prestem atenção: faz um mês que eu os reuni aqui, tirando-os de orfanatos! É chegado o momento, de dizer a razão pela qual quis tê-los! Apesar de crianças que são, creio que não será empecilho descobrir o objetivo da nossa família, meu objetivo. Ele parou de falar como se chamasse o silêncio para lhe fazer companhia. Sacou do bolso do seu paletó um charuto. Tragou-o por um instante e lançou a fumaça no ambiente. Depois continuou chamando para si a atenção de todos que havia se perdido com a fumaça: — Eu os quis para fazer coisas boas! — e voltou o silêncio agora reflexivo. Coisas boas não é? Raquel voltou à realidade; ao dia de hoje, quinze anos a frente daquelas lembranças. Tanta coisa havia acontecido com ela e com todos daquele saguão que sua mente confusa não podia sequer tentar descrever. — Venham, vamos tomar café no quintal – disse aquele mesmo senhor de óculos arredondado, agora cheio de rugas e cabelos grisalhos. As onze pessoas seguiram-no. Por ser domingo, todos estavam em seus trajes 11


informais: camisetas, óculos escuros e vestidos leves. Os pássaros cantavam uma linda canção e o vento fazia o favor de dar movimento ás folhas. Raquel era a única em traje inapropriado, de camisola. Nem por isso a menos bonita. Ela havia sido induzida e agora agia com a finalidade de sempre ser a mais bela. Seis mulheres e cinco homens sentaram beira-mesa no enorme quintal daquela mansão. Pai, como era conhecido o dono da propriedade, sentou-se na cabeceira e pediu aos seus serviçais que o café fosse servido. Mamão, suco de laranja, um pouco de queijo fresco; café e leite se faziam em jarras espalhado pela mesa. Havia algumas uvas e pães: — Passa o leite, monstrenga? — Samuel disse em tom provocativo. Raquel lançou suas pedras acinzentadas para o irmão de criação: _ Claro, Sam... Pai observava a todos os seus filhos. Um turbilhão de emoções o invadiu ao mesmo tempo que os via agora tão mudados. Tentou dizer a si mesmo que não sentia falta de um, mas a mentira era tão descarada que ele se esforçou para não rir. Pior é mentir para nós mesmo foi a premissa que ele utilizou para deixar de achar graça em tudo aquilo. Pigarreou: — Sam, seu folgado! 12


— Qual é a tua, Renan? Pedi pra ela não pra você! Renan, outro dos que ali se encontravam, era um homem bem apessoado e extrovertido, semelhante a Sam. Tinha um olhar confiante, castanhos emoldurados por sobrancelhas grossas. A barba era rala e os cabelos bem penteados e brilhantes por causa do gel. Juntá-lo a Samuel em uma mesma missão era loucura e cúmulo de irresponsabilidade. — Puxa, Ren! Por favor, poupe-me de ouvir suas discussões com Samuel. — A voz de uma mulher se fez acompanhada de desânimo. Ela conhecia aqueles dois e sabia que aquilo se prolongaria caso não interviesse: — Jéssica, em respeito a você eu vou ficar de boa. — Renan passou manteiga no seu pão. Jéssica era a mais jovem dos onze, mas a mais inteligente sabia Pai. Por isso, ao lado de Odirley comandava a ação de todo o grupo. Adorava celulares e tinha vários. — Pai, qual é o motivo de reunir-nos? Se me lembro bem, já faz anos que não vejo todos os meus irmãos, exceto Reinald... Droga, droga! Ele não deveria mencionar este nome! Raquel se preparou para o pior, como se soubesse que dizer aquele nome fosse assinar uma sentença de morte; como se aquela palavra estivesse há 13


muito abandonada e devesse assim permanecer. Sabia que quando o Pai se pronunciasse a respeito da pessoa detentora daquele nome esquecido seria avassalador. A moça sabia da dor dele e da dela por tê-lo perdido. — Hugo, quantas vezes eu pedi? — a voz de Pai saiu trêmula, seu nervosismo estava contido nela. — Desculpe, Pai... Esqueci completamente. Todos os onze abaixaram suas cabeças, como se buscassem o conforto do silêncio. — Reinald está morto, ouviram? Não o mencionem se não desejam o mesmo fim! Eu mesmo posso acabar com quem ousar pronunciar este nome! Fui claro, meus filhos? — a exaltação nas palavras foi reconfortante para quem as pronunciava, mas não para quem as ouvia. Seus filhos assentiram com gestos mantendo o silêncio. Raquel sentiu vontade de rir, mas controlou-se. Rir naquele momento seria uma afronta que nem mesmo ela poderia se dar ao luxo de cometer. Fitou Samuel e encontrou nele a mesma vontade. Jéssica e Odirley estavam sérios. Aliás, Odirley sempre se mostrou sério e inabalável. Lembrava Reinald em algumas ocasiões, mas isso era proibido levantar. Um rapaz de semblante 14


tranquilo e que usava o cabelo bem penteado; camisa por dentro da calça e extremamente formal, até mesmo naquele domingo. — Filhos, é chegado o momento pelo qual tanto planejei. O trabalho que nasci para realizar... — Agarrou o mamão em seu prato e o fatiou para depois levá-lo à boca. — Essa reunião familiar foi para reunir o Xadrez. — No que está pensando precisamente? — A voz de Gabriela se vez irônica. — Treinei vocês a vida toda por este dia... — Pai respondeu-lhe com seriedade. Gabriela deixou que seu copo de leite caísse sobre a mesa num gesto de nervosismo e descrença. Ele não podia estar falando sério, ou podia? Tudo até agora havia sido apenas treinamento? Todos os sofrimentos, conflitos e mortes? Reinald? Tudo mero tempo perdido para o que viria? — Tudo que vocês fizeram ao longo desses anos foi preparativo para os próximos dias. — Veio sua resposta. Pai deixou o prato com o mamão pela metade e pediu para que o mordomo se aproximasse. Falou algo ao seu ouvido que fez com que o serviçal retornasse à mansão. Minutos depois, voltou com onze envelopes amarelos. Entregou cada envelope ao respectivo codinome de cada presente.

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Gabriela abriu o seu e correu com os olhos pela folha amarelada. Ao final exclamou: — Isso é loucura, Pai! — Sempre foi... Sempre foi... Samuel terminou de ler e afastou sua cadeira, como se precisasse de mais espaço para assimilar. Quando o papel amarelo saltou do envelope de Raquel, a mesma o segurou firme e leu cada palavra dele com muita atenção. Conhecia seu pai! Sabia que aquilo estava planejado desde antes dela nascer. A cada frase, a menina se sentia mais convencida. Não havia nada que ela já não imaginasse...

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CAPÍTULO 1 ENVELOPE CODINOME TORRE “Uma coisa importa, todo o mais importa.” Samuel observava atento quem vinha descendo as escadas. Sabia ele de quem se tratava, havia ouvido falar, tinha visto algumas vezes, mas nunca se atreveu a falar com ela. Sempre estava atrasada: Raquel. O pequeno teve alguma antipatia por ela dado o fato de não ter coragem de falar com ela, ou por algum motivo que não sabia precisar; descobriu mais tarde a razão. Não se conteve ao ouvir Pai chamando a atenção da menina e falou com ela pela primeira vez: — Essa mostrenga sempre acorda tarde, Pai! A resposta que viria a seguir, pouca importância causaria ao rapaz que nem mesmo espaço ocuparia em suas lembranças. Na verdade, estava tão eufórico com sua coragem que as palavras pareciam sem som. Estava orgulhoso de si. Contudo, o que viria depois mudaria a vida daquele jovem para sempre: — Eu os quis para fazer coisas boas! — E as palavras ganharam volume novamente. 17


E como Sam esqueceria? A princípio ouvir Pai dizer isso com tanto entusiasmo, o fez achar que realmente seria algo bom. Apesar de ainda ter um conceito vago do que seria bom Samuel imaginou que seria algo do tipo ajudar os pobres. Se bem que ele não estava errado totalmente. Seu cérebro jovem alcançava deduções precárias e simples sobre o que pai dizia. Ao longo dos anos, Sam cresceu sem saber ao certo o que seria ou quem seria. Mais precisamente que papel desenvolveria. Tinha em sua mente apenas e prerrogativa de fazer coisas boas. Seus onze irmãos imaginavam o mesmo. Mas mal sabiam que suas mentes vinham sendo induzidas e pensar de um modo pré-determinado, construídas aos poucos por Pai e toda a sua equipe de treinamento. Tudo era extremamente calculado e implantado de maneira a impedir que houvesse equívoco. Desde criança, o rapaz foi moldado e preparado para o papel que desenvolveria. Seu amigo/inimigo, o qual era extremamente semelhante a ele: Renan, também. E tudo era um quebra-cabeça sem sentido, ou com um sentido tão complexo que lhe faltava inteligência para compreender. O sol se fazia forte e a preguiça acompanhava Samuel. Por volta do meio-dia ele e Renan foram chamados por Raquel. 18


Agora, Sam conseguia falar normalmente com sua irmã; sentiu em alguns momentos, pena e em outros compaixão. Manteve tudo muito bem guardado dentro de seus pensamentos. Pai queria ter com eles e fazia questão que a menina os guiasse até seus aposentos. Ao entrarem no escritório do mentor, os três adolescentes jamais imaginariam o que se seguiria. Raquel talvez até desconfiasse já que tinha mais afinidade com o pai adotivo do que os demais. — Filhos — Pai quebrou a má impressão inicial – Eu planejei este momento antes mesmo dos seus nascimentos. Queria muito fazer algo e neste intuito estudei um meio. Depois de dedicado estudo criei um método de conseguir fazer alguma coisa consistente. Escrevi tudo num diário o qual conservo em segredo, mas é chegado o momento de iniciar vocês neste método. Sam não entendia o que o homem dizia. Renan pouco menos. Raquel sabia, pois Reinald a mantinha sempre informada... Pai continuou: — De hoje em diante vocês serão conhecidos como Torres. Inicialmente um código para identificá-los, mas posteriormente peça fundamental num plano revolucionário. Aqui estão passagens que os levarão ao encontro do destino certo e do treinamento adequando. Quando voltarem serão outros e

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saberão o que significa o codinome que lhes dei. Samuel não imaginava que o nome mencionado por Pai, naquele domingo ensolarado o seguiria pelo resto da sua vida e por vezes, seria muito mais importante do que seu nome de batismo. Cinco anos se passaram e nunca mais ouviu algo sobre Samuel ou Renan. Desapareceram completamente e até mesmo seus Registros Gerais foram apagados. Simplesmente não existiam mais. Mas num dado dia, eles reapareceram já cientes do papel que desenvolveriam: — Alô, Sam! É mesmo você? — Depende... — Depende do quê, criatura? — Se for para o resto do mundo, eu nem existo, querida! — Mas pra mim você existe, cabeção. — Tá, Jéssica. Eu já sabia que você ia me ligar. Qual é a dessa vez... — É o seguinte... Samuel escutava as instruções da sua irmã. A noite estava bela e as estrelas o acompanhavam do alto. Era tarde, e a primeira noite de Samuel de volta: — Entendeu? — Jéssica indagou. — Sim, já saquei. A porta estava destrancada, pois isso já havia sido resolvido anteriormente. Na 20


ponta dos pés, Sam adentrou naquele recinto. Subiu pelas escadas de mármore e foi até os aposentos do seu alvo. A porta do quarto estava trancada, mas ele já havia aprendido uma maneira de resolver esse inconveniente. Habilidoso, destrancou a porta de carvalho com desenhos ornamentais. Entrou no quarto e acendeu a luz: — Mas que merda! — Uma voz sonolenta se fez. — Olá, prefeito! — Que diabo! Vou ligar pra polícia! Sacou do telefone no criado mudo. O fio estava cortado. — Como você fez isso? – Espantou-se o velho calvo e chefe do Poder Executivo daquela cidade. — Eu sou apenas bom, amigão. — O que quer de mim? Pelo amor de Deus! — Quero nada não — Sam deu de ombros — Quando minha maninha veio aqui negociar com você, não houve um acordo, lembra? — Aquela mocinha que dizia ser de uma Organização não governamental? — Foi essa a desculpa que ela usou? Bom, ela te deu duas opções não deu? — Sim! — Você não optou pela certa e o preço é a minha visita.

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— Podemos pensar em um novo acordo o que me diz? Samuel se sentou: — Sou péssimo para negociar! — Sacou sua arma a qual repousava em baixo do seu braço esquerdo num coldre de couro. Parafusou o silenciador. O prefeito se desesperou: — Não sabia que era importante! — Sempre é! Se uma coisa importa, todo o resto também passa a importar! Desculpe prefeito, mas o teu mandato acabou. SHUT! Do outro lado da cidade, alguém andava numa moto de grande cilindrada. Tinha um objetivo, já estabelecido numa conversa pelo celular. Procurou pela pessoa indicada. As coordenadas de Odirley tinham sido precisas: “num bar, do centro; Rua 09 de abril, esquina com a Avenida dos Trabalhadores”. Renan parou sua moto. Retirou o capacete e deixou em cima do banco da motocicleta. Entrou no estabelecimento rústico o qual tinha as coordenadas e procurou seu alvo: _ Uma mulher de cabelos castanhos e curtos. 22


Renan avistou quem procurava, sentada numa mesinha acompanhada de alguém inconveniente. Aproximou-se. Sentou colocando os pés sobre a mesa: — Oi! — Sorriu. A moça continuou séria e quem lhe acompanhava furioso: — Moleque maldito! Saia da minha mesa! — Olha grandão, eu tenho que bater um lero com a mocinha aqui. O grandão virou a mesa com tudo, mas Renan habilidoso se colocou em pé e em defensiva, esperando o ataque do homem enorme. Quando isso ocorreu, o rapaz se esquivou e agarrou o braço do inimigo e como graveto o quebrou num golpe de pura técnica: — Meu braço, fedelho! Renan sacou sua espada a qual repousava na cintura: — Você tem duas alternativas: fugir agora ou tentar uma coisa idiota e morrer! O grandalhão tentou sacar de uma arma com sua mão esquerda, mas a lâmina de Renan o perfurou no peito: — Eu tinha certeza que você ia tentar uma coisa idiota... A moça tentou correr, mas Renan disse apenas uma vez: — Espere moça. 23


Ela parou subitamente e as pessoas do bar saíram todas aos berros: — O que quer de mim? Por favor, não me mate. – Ela começou a chorar. — Não é pessoal, dona. — Eu te imploro! Tenho filhos, marido! — Devia ter pensado neles antes de fazer o que fez... — Escute, eu prometo não fazer mais! Vou ser uma boa menina! Dê-me mais uma chance. — Não posso e não quero! — Oh, Deus! SHINT! A cabeça da moça se desprendeu do seu pescoço e rolou pelo piso sujo de cerveja e de sangue.

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CAPÍTULO 2 OS PEÕES “Um homem é aquilo que consciente ou inconscientemente imagina de si” O despertador tocou. Som irritante invadiu os ouvidos da moça loira, ainda sonolenta. Ela recusava a acreditar que sua noite de sono havia acabado. Não, não! Alice ainda que lamentando, teve que se conformar. Levantou e calçou sua pantufa, decidindo de uma vez por todas descer e preparar o café da manhã para o seu marido. Quando seus pés de pelúcia desceram pelas escadas de ardósia da sua humilde casa, a mulher lembrou-se de outra oportunidade em que outra pessoa descia por escadas e ela a acompanhava do saguão com seu olhar claro. Naquela época, Alice era uma criança e mal sabia o que significava o Xadrez. Tudo era mais fácil, sorriu a moça. Acendeu a luz da cozinha e num bocejo iniciou sua viagem de volta ao passado: — Essa menina é muito folgada, Pat! — Alice cochichou no ouvindo da irmã adotiva, enquanto seus olhos acompanhavam Raquel que descia pelas escadas. — É sim... — Respondeu-lhe a outra irmã sem desviar os olhos. 25


Mas a voz de Sam, seu irmão, se fez em tom mais alto e mais agressivo: — Essa monstrenga sempre acorda tarde, Pai. Pai pediu silêncio a Samuel. E depois de falar alguma coisa que Alice não se recorda, houve uma cena que aquela mulher jamais esqueceu: ele parou de falar por um momento, sacou do bolso do seu paletó um charuto e tragou-o por um instante. Lançou a fumaça no ambiente e disse: — Eu os quis para fazer coisas boas! A gordura do ovo sendo fritado ao espirrar em seu braço, trouxe Alice de volta ao tempo de hoje: — Merda! — disse ela. E um abraço pelas costas a fez sorrisse por um momento: — Oh, Ciro! Acordei você, não foi? — Acordou não, querida! Ciro era o marido de Alice. Igual a moça, ele também era um Peão. No sistema almejado por Pai, seus quatro filhos: Alice, Patrícia, Helena e Akira, casar-se-iam com mais quatro pessoas estranhas e formariam o total de oito Peões, como no real tabuleiro de Xadrez. Os Peões teriam uma vida normal, apesar da infância de treinamento que tiveram. Seriam agentes de Pai e desenvolveriam várias funções na sociedade. Influenciariam os demais e se misturariam às 26


pessoas induzindo-as a serem como Pai gostaria que fossem. Pois bem, Alice se virou para o marido e lhe deu um selinho: — Agora vá tomar um banho, que eu vou terminar aqui! — Estou fedendo é? — Vai, vai! O ovo estourou na frigideira e Alice estava longe, pensando na matéria que lecionaria na aula de hoje. As aulas seguiam um modelo pré-estabelecido por Pai. Um comportamento que era implantado na cabeça das crianças, forçando-as a seguirem as regras do Xadrez. Ao final todos seriam como Pai queria que fossem, ao menos quem passava pelas mãos da professora Alice. Mas o telefone resgatou a mulher dos devaneios: — Alô? — respondeu ela — Alice é você? — Sim, Patrícia! Que saudade! — Liguei para saber como você está? — Estou bem, irmã! — Sabe que Renan está de volta, não? — Sim — a voz de Alice soou triste. Lembrar-se de Renan para Alice era trazer á tona toda a sua impulsividade de antes; todo o seu amor descontrolado de adolescente, as lembranças ainda machucavam. Pai providenciou a viagem de Renan pra que o mesmo não se envolvesse 27


com a irmã e avacalhasse com seus planos. Mas agora era diferente: as peças estavam fadadas a reunião e a missão. Alice sabia que cedo ou tarde ela o reencontraria; Patrícia também. Patrícia, cuja função no Xadrez era de Peão, era advogada e tinha grande influencia na política. Tanta que estava de vice do atual prefeito, cujo nome era Eduardo Soares e que havia encontrado seu fim trágico na noite passada. Por força disso, tomaria posse como prefeita da cidade no dia que se iniciava. Estava preparada e vinha seguindo instrução de Pai já fazia meses. — Certo, Alice! Vou à prefeitura e ver a data que tomo posse... — Foi Samuel ou Renan? — Qual a diferença, minha irmã? — Não sei, mas queria muito que fosse Samuel... — Foi Samuel, Alice! Patrícia desligou o telefone e suspirou. Aquela mulher dos cabelos castanhos e cacheados tinha o semblante preocupado. Tirou da bolsa um maço de cigarros e sacou dele, um. Acendeu-o com seu isqueiro de cobre: — Felipe! Já está pronto? — gritou. — Sim meu amor! Vamos? — Vamos sim...

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Quando se tem em mente, manipular pessoas, não se sabe ao certo os resultados que serão obtidos. Pai, não criou o Xadrez sozinho e nem desenvolveu sua execução por si só. Houve quem o ajudou e o ajuda ainda. Mas estes preferem o mistério, a serem tidos como responsáveis. A verdade, é que sem notar a sociedade vem sendo influenciada pelos planos lunáticos de pessoas misteriosas. Saber o que significa o Xadrez está longe da compreensão da maioria dos seres. Contudo, é certo que você já foi influenciado por eles e nem notou. Akira Akino é publicitário; um Peão. Ele induz seus olhos a verem o que e preciso ver; a notar o que é preciso ser notado. Da sua residência, no décimo andar do condomínio Villa Nova, ele faz os últimos ajustes da campanha publicitária que entrará no ar nos próximos dias. — Raquel, eu amo você! — Sorriu o jovem com a caneca de café entre os lábios. Na tela do seu computador a figura de uma perfeita mulher, de cabelos de ébano se fazia em pose insinuante. Um vestido negro bem colado e com saliente decote. Pernas esguias e torneadas num tom pálido. Profundos e insinuantes olhos cinza, influenciados por carnudos lábios de batom negro. Sombra forte sobre os olhos um tanto puxados. Se aquela beleza não tivesse sido

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montada, Akira julgar-se-ia apaixonado pela irmã. Colocou sua caneca na escrivaninha: — Bem, bem... Como foi mesmo que Odirley disse que deveria ser? Acho que é assim: “QUER SER UMA RAINHA? COMECE ELIMINANDO O QUE HÁ DE RUIM A SUA VOLTA... COMPRE SANDÁLIAS GRAFICCA.” — É isso mesmo! Você já foi mais criativo, irmão! — sorriu. Depois do almoço, o clima se fazia bem seco. Alice desceu do Táxi e agradeceu ao motorista. Virou-se para a sua casa e deu graças a Deus por ter terminado seu expediente de trabalho. Havia dado aula apenas no período da manhã. Adentrou na sua residência e colocou sua mochila na mesinha no centro da sala. Seu marido trabalhava até mais tarde. Seus olhos azuis fitaram um rapaz sentado no sofá com uma espada de samurai ao seu lado e de jaqueta negra, não podia ser. Os cabelos castanhos arrepiados daquele rapaz, e seus olhos escondidos por óculos escuros, fizeram com que Alice derramasse lágrimas: _ Renan!

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CAPÍTULO 3 ENVELOPE CODINOME BISPO “O mundo é apenas aquilo que compreendemos, o resto é ignorância.” Helena, bateu à porta do apartamento que visava. — Já vai! — exclamou uma voz lá de dentro. — Anda logo, Jéssica! — a moça suspirou. Helena, tinha os cabelos castanhos e extremamente compridos. Olhos de um castanho nem claro e nem escuro, singulares. A moça, como Peão, tinha a função de Administração. Exercia tal profissão, dirigindo sua empresa de comércio e varejo de roupas. Raquel e Akira por vezes trabalhavam para a irmã em propagandas publicitárias. Era fato, que apesar do grande poder que exercia no mundo da moda e em ramos variados decorrentes do mesmo, tinha com objetivo apenas camuflar a real intenção de influenciar pessoas a fazer coisas boas. Pai dizia sempre através de seus Bispos. — Lena, eu estava com a Alice no celular! — É mesmo? E como está nossa irmãzinha professora?

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— Bem, acho! Mas não sei até quando! — Por quê? — Renan está na casa dela, acabou de avisar. — Caramba! Jéssica, moça jovem, de cabelos nem compridos e nem curtos, tinha nariz um tanto arrebitado e sorriso fácil. Seus olhos, de um castanho quase preto, pareciam sempre atentos. Inteligente, exercia a função de Bispo, qual seja a de informante direta das vontades de Pai para todos os seus outros filhos. Tudo, ou quase tudo e sem se darem conta, era fruto das vontades pensadas de Pai, um maluco ou gênio que imaginava ter a solução para os males das pessoas. Desde as propagandas que elas veem na rua, até a matéria que seus filhos aprendem na escola tinham o intuito de trazes as pessoas para os pensamentos de Pai e o único que tinha consciência dessa verdade e que talvez nem exista mais era... — Tem ouvido algo sobre Reinald? — Nada! — Jéssica respondeu firme. — Ele me preocupa, irmã... — Desencana! Peça fora do tabuleiro... — Como pode um jogo de xadrez sem Rei? — Roque, querida! — Jéssica sorriu.

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Pelo pouco que Helena conhecia de xadrez, deduziu que sua irmã fazia uma alusão à manobra em que a Torre toma o lugar do Rei, para evitar o derradeiro Xeque. Sacrifica-se um das Torres para salvar o Rei, isso era Roque. Pai tinha em mente colocar Samuel ou Renan no lugar de Reinald? Seria por isso que ambos estavam de volta à cidade? — Sente-se, Helena! — É estranho ouvir a sua voz sem ser pelo telefone! — observou a empresária. — Nada! — Aquela resposta havia remetido Jéssica para tempos remotos: — Nada! — Como, nada? — Nada, oras — Pai ajeitou seus óculos. — Mais, Pai! Eu quero estudar! Fazer faculdade... — Lamento, Jéssica. Nada de estudos pra você, além daqueles que eu vou recomendar pessoalmente. Jéssica chorou seu destino triste. Correu pelos corredores da mansão aos prantos. Não era isso que ela queria, pensava quando esbarrou numa figura inusitada. Caíram ambos com o impacto da batida e aquele jovem sempre de negro, de semblante triste sempre fora muito estranho: — Sai da minha frente, Reinald! 33


— Por que você está chorando? — Não enche tá! Reinald se levantou calmamente. Apoiou-se com o joelho, Jéssica se lembrava perfeitamente, suspirou por um segundo e começou a juntar as folhas que haviam caído dos braços da irmã. Colocou-se em pé e pôs a mão direita no ombro da garotinha que era um pouco mais nova do que ele. Fitou-a com seus profundos olhos negros. Isso, Jéssica jamais esqueceria, afinal sua alma parecia estar sendo vasculhada pelo irmão; sendo curada das feridas que Pai havia acabado de fazer. Olhar para aquele garoto era estranho, perigoso, mas aconchegante. Era fato que ele era especial, tinha certos dons que ela não sabia entender. O rapaz triste então sorriu e finalizou: — Você vai ficar bem. – Virou-se e entrou num dos quartos. E Jéssica não ficou mais triste. Suas lágrimas secaram e ela mesmo sem entender o que havia acontecido, atribuiu aquele fato ao irmão. Anos mais tarde, ela e seu irmão Odirley tiveram treinamento especial. Raciocínio e liderança foram trabalhados juntamente com organização. Assim, a vontade de um Bispo era a vontade direta de Pai. Ao passar do tempo, com a ajuda da tecnologia, cada Bispo mantinha contato com todos os Peões e lhes influenciavam em suas 34


vidas. As vezes eles entravam em contato com a Rainha, Torres e Cavalos. Dos irmãos, Odirley e Jéssica eram os únicos que falavam diretamente com Pai. — Jéssica? Você está aí? — Oh! Desculpe! Estava pensando em outra coisa... — Então, você pediu para que eu sentasse... — Certo! É que eu tenho que te contar umas coisas, e achei que seria legal falar pessoalmente. A Bispo levantou-se da sua cadeira em frente ao micro computador e foi até a janela do seu apartamento no sexto andar. Helena chamou-a de volta para a conversa: — Pois bem! Pode falar! O que Pai reserva pra mim? — Samuel, está num hotel. Ele não tem como ficar lá por muito tempo. Além do que não é seguro... — Quer que eu o leve para minha casa? — É a vontade de Pai... — Mas e Eduardo? Meu marido não vai gostar da ideia! — Lamento, Lena! Samuel estava dormindo num hotel de quinta categoria no subúrbio da cidade. Sua arma descansava sobre o criado-mudo, muda 35


como o mesmo, pois se falasse contaria muitas histórias. O sol adentrou pela fresta da janela de cortina vermelha convidando-o a acordar. Contudo, o assassino se mostrava relutante a essa possibilidade. Virou-se, mas seu maldito celular tocou: — Alô! — disse ele sonolento. — Aqui é Odirley, preciso da sua posição. — Pô, Bispo, eu não faço ideia cara... — Samuel, como vou mandar alguém te levar até a casa de Helena? — Desencana... Eu me viro sozinho! — Nada feito! Uma vez parte do Xadrez, você nunca está sozinho. — Vocês não podiam me deixar lá onde eu estava! Numa boa, matando um de vez em quando? Tinham que me trazer de volta? Pra quê, heim, Bispo? Pra quê? — No momento certo você vai saber, Torre. Agora dê-me sua posição. — Faz o seguinte, liga daqui a um tempinho! Vou perguntar aqui... — Ok! Odirley desligou seu celular e o repousou sobre a escrivaninha do seu escritório. Aquele Bispo diferente de Jéssica tinha uma postura bem mais reservada e por vezes se mostrava o braço direito de Pai. Era sempre chamado para ter com ele pessoalmente...

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Era fato que ele era extremamente organizado e tinha relatórios de todas as missões que comandava. Nada passava sem ser devidamente arquivado. A única coisa que desconcertava o rapaz e daí o seu ponto fraco, era quando o mesmo tinha que encarar sua irmã Rainha. Odirley guardava consigo um sentimento especial em relação a irmã, mas ele nunca havia se revelado e talvez ela nunca tivesse notado. O Bispo era profissional e realizava seu trabalho brilhantemente: — Alô? Jéssica? — Oh! Odirley, pode falar! — Já conversou com Helena? — Ela está aqui. — Tudo bem! Preciso mandar alguém pegar Samuel. — Bispo, você sabe a razão de trazer todas as peças para cidade? — Vou dizer, Jéssica: é algo grande vai por mim... Algo grande mesmo! — É muito difícil pra eu lidar com os Torres... tipo, os dois ao mesmo tempo! — Eu entendo. Para mim também é complicado! Sempre entramos em contato com apenas um deles, quando a situação chegava ao extremo... — Pois é... — Pai confia em nós, Jéssica! Não vamos desapontá-lo... — Jamais! 37


Odirley desligou o celular já ciente da sua obrigação. Precisava de alguém especial pra buscar Samuel. Tinha em mente um nome, quando seu celular tocou novamente: — Aqui é Sam, Bispo? — Sam, onde está? — Então, é num hotel de esquina, entre as ruas Valéria Figueiredo e Glicério Almir. Precisamente sobre o número 513 da Glicério Almir. — Como chama o estabelecimento? — Essa bodega não tem nome, cara! — Certo. Odirley desligou seu celular e buscou no mesmo um número do qual fazia tempo que não chamava. Torcia até para que fosse o mesmo número. Quando o celular parou de chamar e uma voz grossa atendeu do outro lado, o Bispo teve a certeza de que havia conseguido falar com quem desejava: — Hugo, preciso de você!

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CAPÍTULO 4 OS CAVALOS “Um guerreiro por vezes trilha rumo à morte, mas sempre trilha para a vitória.” — Qual é, meu? Sabe que aqui não é puteiro! Se quer sexo, vá até o outro lado da rua e entre num prostíbulo! Aquelas palavras faladas naquele tom, fizeram com que um homem nem sóbrio e nem bêbado balançasse a cabeça. Merda de lugar! Hugo estava perdido em algum bar de quinta desejando ser surdo. Tinha nos olhos o peso de noites de insônia e na mão um copo de uísque pela metade, já quente. O barman, único funcionário daquela espelunca, o qual parecia mesmo ser o dono devido às constantes ordens, fitava aquele rapaz de cabelos castanhos e um tanto compridos. A curiosidade dele só não era maior que sua irritação por causa daqueles que queriam fazer sexo em seu estabelecimento. — Droga! Acho que teremos que ir pro puteiro, não é camarada? — uma voz ao lado do rapaz de cabelos compridos se fez resgatando-o momentaneamente de sua melancolia. 39


Havia por ali, casais espalhados pelos cantos escuros que misturavam-se numa quase cópula. Hugo, o sujeito ao seu lado e vários outros homens distribuídos pelo canto do balcão apenas bebiam. Uma estonteante mulher, cujo corpo perfeito preencheu toda a entrada do bar se revelou. — Não será necessário procurar prostíbulo! — disse ela — Eu irei dormir com o primeiro homem que conseguir pegar meu sapato – agachou-se e retirou seu lindo sapato de salto. O celular de Hugo tocou inesperadamente: — Alô? – tentou disfarçar sua voz de embriaguez. — Hugo, preciso de você! — Bispo... — Tenho uma missão! — Sem chance de eu dizer não né? — É. — Então diga logo! Antes que eu prefira trocar essa missão por uma brincadeira de pegar sapatos! Ele tinha o semblante de alguém preocupado. Após falar com Odirley, guardou o celular no bolso da jaqueta e levantou-se da banqueta. Seus olhos de um castanho escuro e sua barba por fazer, davam um contraste obscuro àquele rosto, aparentemente sofrido.

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Tinha a estatura de 1,80 m e 90 kg; vestia jaqueta negra de couro e jeans azul-claro. Hugo, cuja função no Xadrez era de espião atendia também pelo codinome Cavalo e estava infiltrado há vários meses naquilo que Pai chamava de “grande, realmente muito grande”. Seria dele a iniciativa de começar tudo e apesar de Odirley não manter contato com ele há muito tempo, Jéssica o conduzia em sua missão de investigação. Cavalo deu as costas aos integrantes daquele bar, mas antes fitou a moça de cabelos vermelhos que parecia se divertir com os que lutavam pelo seu sapato. Balbuciou em seu ouvido: — Se eu quisesse o sapato seria meu... Ela sorriu. — Ah é? Então por que você não quer? — Porque isso não é pra mim, moça! Eu pego o que quero e não disputo. Eu não luto, eu venço. Além do que eu não sou personagem dessa história... — Por que não pega o que quer? — Porque eu não quero. — Hugo deu uma golada no uísque da moça. Por que eu não quero. Aquela frase final pronunciada ainda no bar ficou na mente de Hugo. O acompanhou até seu veículo: 41


— Por que você não quer, Reinald? — Eu não sei... As memórias de Hugo se fizeram vivas instantaneamente e ele pôde ver claramente seu irmão Reinald. Estavam ambos no quarto em que dormiam há algum tempo. Era bem tarde e algo perturbava os dois. Reinald parecia querer se despedir: — Reinald, caralho! Você não sabe fazer mais nada a não ser... A não ser isso aí que você foi treinado a vida toda pra fazer! — Hugo tentou convencer o irmão. Reinald abaixou a cabeça. Colocou as mãos no bolso e depois ergueu-se novamente: — Tem razão, Hugo... Mas eu posso fazer alguma coisa! — Cara, somos, além de irmãos, amigos faz tempo! Eu não queria ver Pai e os outros atrás de você! Você não pode ir embora, mano! Não pode! Reinald sorriu e uma lágrima invadiu seu olho esquerdo. Abraçou o irmão e amigo com violência e depois disse: — Eu posso e irei fazer. — Não seja burro! — Olhe para mim, Hugo! Talvez nunca mais me veja então guarde bem este meu semblante. Eu tenho que fazer isso, me desculpe. — Nem vem com essa porra pro meu lado, cara... 42


O semblante de Reinald mudou bruscamente. Ele não expressava mais qualquer reação; era um poço do qual nada se podia tirar. Sua voz saiu forte e em tom compassado, como se tivesse o poder de induzir pensamentos. E ele então proferiu as palavras que Hugo jamais esqueceria: — Você será forte! Será bom, acredite, pois tenho certeza! E quando eu falo jamais me engano! Cuidará de Pai e o obedecerá. — Serei forte e bom, não é Reinald! Filho da puta... O carro de Hugo avançava furioso pelas ruas da cidade, rumo ao endereço mencionado por Odirley. Seu rádio tocava heave metal e perecia que aquela musica acalmava seu coração tão agitado, senão mais do que as músicas. O rapaz parou o Camaro em frente a um hotel de quinta categoria, onde se encontrava seu irmão Samuel. Desceu do automóvel e foi até a portaria: — Já era hora, heim? — Samuel abriu os braços. — Tenho mais coisas para fazer do que ficar à sua disposição. — Uau, Hugo! Tu tá diferente cara... Mais, mais, como é mesmo o termo? — Forte e bom. — Não era bem isso que eu tinha em mente, mas beleza... vambora? 43


— Vamos! E em quanto o som alto se fazia intencionalmente com a finalidade de impedir Sam de conversar com Hugo, o carro avançava veloz pelas ruas da cidade. Mas uma luz azul brilhou no painel do automóvel, forçando Hugo a diminuir o volume do som: — Alô! — Disse ele após um suspiro. — Oi, Hugo, aqui é Gabriela! — respondeu a voz do outro lado da linha. — Gabi? Caramba! Quanto tempo sem te ouvir guria... — Pois é! Estou dentro... — Você tomou o lugar da moça que Renan assassinou certo? — É! Estou disfarçada de assessora... A função que aquela moça tinha aqui no governo! — Tô ligado. Isso é bom, moça! — Patrícia é a nova prefeita! Temos alguns governadores. Eu assessora de um Deputado Federal... — Não entendo muito bem a razão disso tudo, Gabi... — Não cabe a nós entender, Hugo! Cabe obedecer... — Certo! O que você quer comigo? — Seguinte: Hugo, amanhã domingo você vai até a casa de Pai! Todos nós estaremos lá, por que ele deseja passar instruções pessoalmente! — Está bem. 44


Gabriela desligou o telefone e fitou a janela do seu apartamento no centro da cidade. Apesar de a moça ser morena dos olhos castanhos e de feição tênue, agora dispunha de cabelos curtos e olhos claros. Sua feição de delicada passou a agressiva, devido às alterações que tivera de realizar para ficar com o rosto da mulher que Renan havia assassinado. Era fato que olhar no espelho e encontrar aquela mulher falecida era assustador. Parecia que a mesma zombava do destino triste de Gabriela. Samantha Garcia era o nome de Gabriela agora. Assessora do Deputado Federal Elias Nogueira, mais um entre os corruptos. Sua assessora tinha a função de tratar do seu dinheiro, distribuindo-o em contas no exterior. Gabriela dispunha de todo o seu dinheiro agora, documentos e senhas! A Cavalo lembra que antes de Renan ser acionado para liquidar a moça, Pai mandou Raquel até ela, oferecendo-lhe um bom negócio. Chamou-a para ser parte do Xadrez. Contudo a moça se negou e como consequência teve de ser eliminada. Às vezes Gabriela assustava com a simplicidade com que Pai tratava as coisas complexas... — Ei, cabeçudo, chegamos. — Hugo puxou o freio de mão.

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— Valeu, maninho! É só entrar que Helena está me esperando, certo? Hugo sorriu: — É isso aí... — Até amanhã, fortão! — Samuel cumprimentou o irmão e logo deu as costas ao mesmo. Sam caminhou pela grama verde do quintal da humilde casa de sua irmã. Notou que a luz da cozinha estava acesa, o que o fez deduzir que Lena estaria em casa. Bateu na porta com o dorso da sua mão e esperou por um rosto conhecido. Para a sua surpresa e total descrença, um homem loiro e de cabelos nem compridos e nem curtos abriu a porta com uma lata de cerveja na mão: — Que foi — disse ele? — Eu quero falar com a Lena! O homem com a cerveja na mão ficou intrigado: — O que quer coma minha esposa? — Qual é, meu irmão? Vai me deixar entrar ou não? — Você é muito abusado, rapaz! — Tá querendo confusão é isso? Ainda pego o Hugo por não ter deixado tudo certo! Cara eu tenho uma sorte do diabo! Vou ter que dar um sopapo nessa figura. Antes que Sam concluísse sua piada, um poderoso soco desferido por Eduardo acertou-o no queixo. Sam caiu de bruços e fez expressão de dor: 46


— Não volte na minha casa, seu filho da puta! “Juro que vou enfiar uma bala na cabeça desse maldito” Samuel se levantou com habilidade e impediu que Eduardo fechasse a porta. Forçou para que ela se abrisse e adentrou no recinto aos socos com seu agressor. Sam era habilidoso, pois os anos de treinamento lhe haviam conferido demasiada técnica em combate. Contudo, Eduardo mostrava-se equivalente: — Seu viado! Está usando as técnicas que Pai ensina. O que ou quem você é afinal? — Sam sorriu. — Sou um Peão! — Que dó de você Peão! — Sam desferiu uma poderosa voadora em Eduardo, fazendo-o cair sobre a mesinha central da sala, partindo-a ao meio. Sacou do seu revolver e colocou uma bala em seu tambor: — Vamos ver se você tem sorte, Peão. — Filho da Puta! Sam bateu com a mão no tambor da arma fazendo-o girar veloz. ZUUUUUUUUUUUUH CLICK! — Samuel, PARE! — uma voz da sacada da residência se fez em desespero. — Lena? 47


CAPÍTULO 5 RAINHA SEM REI “Por trás de tudo sempre houve uma mulher” Raquel Brenenberg. Uma mulher fragmentada, despedaçada para depois ser montada como queriam. Alguém cuja aparência formosa, esconde muito e não há como uma outra mulher se resumir em tanta beleza. O fato é que tudo aquilo que os olhos das pessoas veem e a imprensa tanto idolatra, não passa de casca de uma menina feia e desengonçada. Talvez Raquel tivesse alguma qualidade, mas convenhamos: ninguém iria atentar para qualidades que não estéticas ao se deparar com seus olhos acinzentados. “Em quase todas as noites, eu tenho o mesmo sonho. Estou nos braços de um homem forte e de pelo cabeludo. Ele está sentado num sofá de veludo e eu em seu colo, encolhida. Encosto com meu rosto sobre o peito dele e posso sentir seu coração bater. Ele está quente e eu estou com tanto medo. Posso ouvir sua voz quase que como um alento para minha alma tão vazia, dizendo para eu me acalmar e que tudo ia ficar bem. Será? Há cartas de baralho pelo chão, muitas 48


delas eu não podia identificar, mas há vários Reis de diversos naipes e Rainhas em igual número. Estão espalhadas pelo chão escuro daquele local vazio. Eu estou debruçada sobre o peito de um homem que jamais verei novamente! Alguém que levou consigo meu coração em seus olhos. E faz tempo que vivo sem um coração. No fim ele me abraça com carinho e passa com sua mão pesada mas suave sobre os meus cabelos. Uma carta então se revela entre seus dedos: um ás! Um ás de copas...” Raquel acordou num grito que pôde ser ouvido pelos funcionários daquele hotel. Passado algum tempo, alguém bateu na porta do seu quarto querendo notícias: — Srta. Brenenberg, tudo bem? — indagou-lhe um homem de terno. — Sim! Foi apenas um sonho. Um sonho ruim. A modelo se sentou ao lado do criadomudo de seu aposento e passou com a mão nos cabelos negros, lisos. Estavam suados, mas cheiravam à creme. Os olhos fitavam os pés albinos e as canelas grossas. Raquel levantou a cabeça, esticou o braço para abrir o criado e procurar por algo importante. Revirou seus pertences por alguns segundos até que avistou a carta de baralho: um ás de copas. Aquela carta remeteu-a para o passado e era mesmo essa a intenção. 49


Sua personalidade era como sua aparência: montada. Por essa razão, suas lembranças também não obedeciam a um padrão. Acabou por voltar no orfanato, na época em que tinha seus sete anos e seus companheiros caçoavam-na devido a obesidade e ao seu rosto feio. Chamavam-na de melancia; baleia e muitos outros apelidos desagradáveis que sempre contribuíram para sua baixa-estima. Mas havia um menino de olhar escuro que parecia distante de tudo aquilo. Um garoto que parecia incorporar a tristeza e que se mantinha em um mundo paralelo ao das outras pessoas, quase que como senão pertencesse aquele lugar. Houve uma vez, em que as meninas cercaram Raquel no pátio do orfanato e resolveram espancá-la sob o pretexto da indiferença. A menina tentou argumentar, mas não tardou a se ver de joelhos sobre as pedras do jardim depois de levar um tapa de uma das suas pretensas amigas. Seu rosto esquentou e a perna dos seus óculos se partiu: — Sua horrorosa! — uma voz espetou a consciência de Raquel, mas uma outra voz a surpreendeu: — Vocês! Parem! — Por que devemos obedecer você, menino? 50


O garoto de pouca idade transpassava algo diferente. Seu modo de andar; de se movimentar, pareciam simplesmente lhe conferir superioridade. Chegou perto de Raquel e lhe ofereceu a mão para que a menina se levantasse. Raquel se sentiu completamente protegida: — Obrigada! — disse ela. Reinald sorriu como a criança que era. Mas as meninas que estavam em maior número resolveram agredi-lo: — Vamos acabar com esse garoto. — Não! Vão embora, por favor. — disse ele. As garotas pararam diante do pedido de Reinald. Alguma força havia impedido-as de continuar. Uma delas assim proferiu: — Nós vamos! Por pena de vocês... — Pena não é? – Raquel foi resgatada das lembranças. Fitou por quase um minuto a carta que tinha nas mãos e depois trouxe-a ao peito desnudo pelo decote de sua camisola de seda: — Reinald onde você está? — e vieram mais lembranças. — Reinald, onde você está? — Adivinha! — Não sei, não posso te ver! — Pertinho de você! 51


Aquela cena era mais recente, pouco tempo antes de Raquel ser mandada para o local que a transformaria em Rainha. Acontecera no jardim da casa de Pai e jamais tinha sido esquecido por ela. As flores da primavera se faziam espalhadas e a grama verde era acariciada pelo vento, tudo para aquela menina de 17 anos. Raquel não havia mudado de aparência e era sempre chacoteada por suas irmãs mais belas. Mas naquele fatídico dia Reinald havia feito de Raquel a menina mais linda de todas! E mesmo hoje, sendo ela uma mulher perfeita, nunca mais se sentiu tão maravilhosa quanto aquele dia. — Estou aqui! – Reinald abraçou Raquel pelas costas. — Oh, Reinald! Os olhos negros do garoto se cruzaram aos castanhos protegidos por óculos de Raquel. Depois dos olhos, seus lábios e por fim seus corpos. Não havia ninguém para presenciar a ascensão de Raquel de menina feia para perfeita. E suas costas acariciavam o gramado ao passo que seus olhos se enchiam de lágrimas. Não era possível distinguir alegria de tristeza naquele momento. Reinald a tratava com carinho; com amor, não só naquele momento mas em todos os outros. E ninguém foi testemunha daquele amor, apenas os pássaros e as flores: 52


— Raquel, quero que fique com isso! — o garoto foi até a sua jaqueta que repousava sobre a grama e pegou do bolso uma carta de baralho. Um ás de copas amassado. — Reinald, que isso significa! — Apenas guarde-o! – Reinald deu um beijo na testa de Raquel. Mais tarde, a garota foi chamada por Pai, a fim de descobrir o que ele reservava para ela. Seu destino era inusitado: seria mandada para outro país e lá teria educação de primeira e tratamento estético. O tratamento consistia em diversas cirurgias plásticas e implante de silicone. O rosto de Raquel seria moldado por doutores de renome, baseando-se no perfil de mulher ideal estabelecido para a época. Raquel se tornaria Rainha, a mulher mais bela de todo o seu tempo. Seus cabelos tinham sido esticados permanentemente; seus olhos cobertos por lentes azuis e sua pela remodelada; sua obesidade totalmente eliminada e em seu lugar um corpo malhado e bem definido. Pai havia providenciado tudo... Raquel lembra que quando desembarcou no aeroporto depois de anos de ausência, seu coração palpitava na esperança de reencontrar Reinald. Contudo seu olhar cinza avistou Hugo e sua irmã Patrícia. Não que ela estivesse triste de revê53


los, mas gostaria de rever o seu Rei. Enquanto seus passos agora formosos a conduziam em direção aos irmãos, a atenção das pessoas à sua volta não se dispersava: visavam àquela mulher. Quem seria? De onde vinha? Patrícia apagou o cigarro e baforou o restante de fumaça: — Raquel? É mesmo você? — Sou eu sim, Patrícia? Como está? — Bem. Quer dizer, não tão bem como você, mas vô levando... — Que bom — Raquel sorriu. — Puxa! O que fizeram com você? — Patrícia fitava a irmã dos pés a cabeça não acreditando no que via. Raquel ficou séria: — Nem queira saber. Mas a pior parte foi quando Rainha descobriu que Reinald havia partido. O fato era abafado entre os membros do Xadrez e ela estava desesperada para saber o motivo. Pai se mostrava mais frio do que antes e pouco falava com ela, diferente da época em que era criança, quando o mesmo sempre a mimava. Mas agora ele estava isolado e falava com Raquel através de Odirley ou Jéssica. Um dia, Raquel visitou Hugo e pediu para que o mesmo esclarecesse tudo. Ele então explicou: — Reinald é um covarde. Brigou com Pai e fugiu. 54


— Isso não pode ser verdade... Hugo fitou a irmã aflita no sofá de seu apartamento: — Que verdade você quer, Raquel? Acho que é melhor ficar com essa que eu já te dei. — Não, Hugo! – As lágrimas começaram a se formarem nos olhos da linda moça. Hugo suspirou: — Reinald veio falar comigo tempo antes de partir. Disse que queria fazer alguma coisa, pois achava errado aquilo tudo! Isso é tudo o que eu posso te dizer. Raquel abraçou Hugo e chorou em seus braços. — Já é um começo! Descobrirei por mim mesma o restante. — Se eu fosse você não faria isso. — Hum... Aquele “hum” expressado por Raquel trouxe-a de volta ao presente. Na nostálgica viagem ao passado, a garota havia reavivado grandes emoções. Hoje, ela já não sabia mais se o grande amor da sua vida era um traidor ou apenas um relapso. Se ele era mesmo nobre como aparentava ou se tinha usado do seu dom para manipulá-la e fazê-la deitar-se com ele. Era tudo tão confuso que só olhando nos olhos de Reinald para saber da verdade. 55


Rainha trabalhava na cidade não fazia muito tempo. Sua carreira de modelo exigia que estivesse sempre em constantes viagens. Por sorte ou por armação de Pai, a garota tinha um contrato de exclusividade com a empresa de Helena, sua irmã. Vestia as roupas daquela loja e fazia com que os lucros fossem exagerados. A função da Rainha consistia em negociar com quem fosse preciso e induzir pessoas com sua beleza, ela tinha muitos homens em suas mãos e usava desse poder para conseguir vantagens. Contudo, as coisas pareciam tomar um outro rumo agora que recebera uma ligação de Jéssica informando-a da reunião na mansão de Pai. Por ter perdido o sono, Raquel decidiu visitar seu pai naquela madrugada mesmo. Vestiu-se de preto maquiou-se e desceu até o térreo do hotel. Saiu pela porta de vidro automática e chamou um táxi. Disse onde desejava chegar e o rapaz foi cortês ao levá-la. Os portões ornamentais se faziam negros na frente da moça, quando a mesma se aproximou e apertou o interfone. Os portões se abriram e Raquel caminhou pela passarela de ardósia cercada por estátuas que pareciam desejar agarrá-la. As árvores ao fundo bailavam ao som do vento. A mulher subiu pelas escadas negras da mansão e deixou a companhia das estátuas para ganhar a dos empregados de 56


Pai. Os mesmos a recepcionaram calorosamente. Apesar do horário avançado, a impressão que Raquel teve era a de que todos já a esperavam: — Onde está, Pai? — disse ela friamente. — Aqui, Raquel. — a voz de Pai se fez do alto das escadas.

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CAPÍTULO 6 A JOGADA. “Impossível é só uma palavra que justifica nossas falhas”

O dia amanheceu limpo e o sol deu as caras logo de inicio. O orvalho se dissipou ao passo que os pássaros cantavam alegres. Alice ouviu o despertador tocar mais uma vez. Sonolenta apertou o botão soneca e virou-se para descansar por mais alguns minutos. Mas, uma violenta batida na porta, despertou a mulher subitamente: — Ei, Alice! Acorde! Pai, não vai tolerar atraso! — Renan dizia do outro lado da porta. — Quem esse idiota pensa que é? — Ciro virou-se para a esposa, aborrecido. — Acalme-se, amor! Ele é assim mesmo. Vamos levantar — Alice disse ao esposo. Ciro tinha ligado para Jéssica, depois que soube que um estranho havia invadido sua residência. A Bispo lhe havia dito que Renan era uma peça importante do Xadrez e que deveria ficar na residência dele, já que não tinha casa própria. A situação era estranha, apesar de Ciro ser um agente do Xadrez e passar por diversas experiências, 58


jamais imaginou o dia em que um assassino fosse ficar hospedado em sua casa. E mais: alguém que mexia com os sentimentos da sua esposa. — Merda! — O que você disse, querido? — Nada, Alice! Nada... A porta se abriu, mas Ciro e Alice não viram Renan por ali. Estranhando tudo aquilo o marido de Alice procurou pelo Torre: — Cadê você, seu maldito? — Tô aqui na cozinha! Cara, que pobreza! Não tem cerveja nessa merda! — Cerveja? Logo pela manhã? Em que buraco você vive? — Um que você jamais vai poder estar! Meu mundo é bem mais feio do que o seu... — Escute: eu te tolero por causa do Xadrez! Então vamos estabelecer algumas coisas: primeiro você não precisa falar comigo, ok? Segundo: fique longe da minha esposa! Terceiro: vá para o inferno! Renan fechou a porta da geladeira e foi em direção de quem o insultara: — Cara, cê tá abusando da sua sorte... Ana Alice está doida pra rasgar a sua pele, meu chapa! E eu tô começando a achar que isso é o melhor a ser feito! — Que porra é Ana Alice? — Ana Alice é minha espada! Eu a batizei assim. — Renan sorriu.

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— Ora, seu desgraçado! — Ciro avançou contra Renan. Contudo uma voz por de trás da porta se fez autoritária: — Querem parar vocês dois? Estamos atrasados! — Alice franziu o cenho. Em outro canto da cidade, Eduardo dirigia atento. Buscava a mansão de Pai. Olhando no retrovisor do seu automóvel, viu o rosto de Samuel. Ele sorria sorrateiro, como se fosse devorá-lo com os olhos. Evitando aquele olhar, Eduardo procurou alento nos da esposa: — Lena, o que será que Pai quer da gente? — Não sei querido, não sei! — Hei vocês dois! – Samuel interrompeu a conversa do casal — queria pedir desculpas por fazer roleta russa com o Peão aí! — Qual é, Sam? Você quase matou o meu marido! Quer que eu simplesmente te desculpe? — Helena se irritou. — Foi só uma brincadeira, Lena! Se bem que se a bala estivesse caído no cão, adeus Eduardo! Mas ele que começou, se isso adianta alguma coisa! — Cale-se, Sam! Vamos ver logo o que Pai quer da gente! — Tá certo, Lena.

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Hugo jogou água no seu rosto. Maldita ressaca! O Cavalo estava mau, seu rosto cansado e sua barba por fazer. Aquelas noitadas estavam acabando com ele, mas qual era a graça da vida senão aproveitar de momentos simples? Hugo sabia disso e por essa razão, deu um beijo na menina que repousava em sua cama: — Mya, eu tô indo! — Hum, mas já? — Tenho uns assuntos para resolver... — Em pleno domingo? — É! Vou ver meu pai... — Tudo bem, Hugo. Você me liga depois? — Ligo. — Liga nada, mas eu te ligo! – a moça piscou para o rapaz. Hugo sentiu vontade de sorrir e assim o fez: — Até mais, mocinha! – acenou. Noutro canto da cidade, Akira descia pelo elevador do prédio onde morava. Em trajes esportes e de óculos escuro, sorriu para a mulher da recepção fazendo-a retribuir sorriso similar. Aquele jovem publicitário parecia feliz naquela manhã, afinal reencontraria seus irmãos há tanto tempo espalhados: — Parece feliz, senhor Akira! – a mulher não se conteve. 61


— Eu estou sim, Marlene! – vou ver minha família. — Que bom, senhor! — Até mais! – sorriu. Eduardo, Felipe e Ciro tiveram que esperar por suas esposas. Pai havia chamado aqueles Peões, mas não tinha providenciado para eles envelope com instruções. Era fato que exerciam as mesmas funções que os filhos adotados por Pai, mas não eram tratados de igual modo. Passada uma hora, já na mansão de Pai, Raquel ouvia vozes baixas emanarem de um vazio. Apertou o travesseiro contra a cabeça para silenciá-las, mas pouco sucesso obteve. Os pássaros começaram a importunar também e as vozes aumentaram de volume. Também houve o sol que acariciou sua pele pálida. Não houve alternativa senão ceder à vontade das vozes e levantar. Era o famoso dia em que ela reencontraria alguns de seus irmãos perdidos. Claro, boa parte deles, a menina já havia reencontrado, contudo Samuel e Renan fazia anos que não os via. Levantou e fitou seu quarto. Era o mesmo de anos atrás, rosa. Tinha detalhes de creme e a mobília era de carvalho trabalhado. Sua roupa estava jogada no chão, sobre o tapete de veludo marrom que se estendia e ela havia colocado uma 62


camisola que tinha por ali. Sorriu ao notar que tudo estava da mesma maneira como antes. Raquel Brenenberg desceu as escadas da mansão onde morava. Seus pés descalços acariciavam a madeira decorada daquela escadaria. Ainda de camisola e de semblante sonolento, aquela moça vinha ao encontro dos demais no andar inferior. Ao tocar com a ponta dos pés o piso de mármore do saguão, Raquel sentiu um pouco de frio e a sua pele se arrepiou por um segundo. Aquela coloração pálida dava um tom misterioso àquela mulher. Ao fitar todas aquelas pessoas olhando-a, a garota sentiuse estranha. Entre aquelas onze pessoas, Raquel viu mais uma que talvez sua mente houvesse criado. Um homem de cabelos nem curtos e nem compridos, mas de semblante sereno e de sobretudo negro. Estava turvado, mas ela o reconheceu. Quando esfregou os olhos para poder constatar que não estava ficando maluca, o rapaz desapareceu e a voz de Pai se fez em seus ouvidos: — Raquel, sempre atrasada não é? — Essa monstrega sempre acorda tarde, Pai — Samuel observou. — Muito bom revê-lo também, Sam! — Raquel sorriu para o irmão e o abraçou. — Oi, guria! — Renan fitou Alice, enquanto Raquel abraçava Samuel, despertando uma ira silenciosa em Ciro —

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Não vai dar um abraço em mim? — bateu nas costas de Raquel. — Claro, Renan! Que saudade, irmão! — Faz tempo, né? — Faz sim... Pai, depois que entregou os envelopes, no horário do café, esperou pela reação de seus filhos. Os olhares deles pareciam não acreditar no que viam. Era maluquice tudo aquilo... Sabendo disso, procurou explicar: — Filhos, venho entrado em contato com vocês, por meio dos meus Bispos para que fizessem certas missões. Apesar de distantes, tudo que fizeram foi para o fim do qual menciona minhas palavras nestes envelopes. Eu os criei e os treinei para fazer algo importante. Perdi a minha vida, não casei nem tive família para que isso pudesse ser alcançado. —Mas, Pai! Isso tudo parece utópico! Impossível! — Gabriela quis justificar-se. — Eu estudei, filha. Perdi noites e noites para criar isso que você tem em mãos. Não é utópico e há maneira de se conseguir, pois tanto é que eu continuei com meus planos, apesar de perder uma peça importante. — Tá, vamos supor que isso seja mesmo possível, quem seria o todo poderoso dessa história? — Samuel quis saber. 64


— Será o Rei! Mas um novo Rei! Um de vocês Torres será nomeado Rei, no momento oportuno... Samuel e Renan encontraram-se em olhares e lançaram as seguintes palavras silenciosamente: “Esta vaga será minha!”

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CAPÍTULO 7 DESÂNIMO “Há pessoas que simplesmente parecem superiores. Não é superioridade é diferença, respeite-as.” Quarta-feira, 05h30min da madrugada. Uma porta de madeira pintada de branco se abre anunciando a chegada de uma mulher. As luzes se acendem e a garota desce do salto alto, reclamando: — Merda de salto! Ela afasta os cabelos castanho-claros do rosto e se equilibra para admitir que o álcool não lhe fizera efeito algum. Camila Soares é policial e esteve a pouco na festa em que a nova prefeita tomou posse oficialmente. Repórteres, nobres e burguesia da cidade se encontravam naquele espaço. Que desperdício! Mas ela tinha algo a investigar: há meses ela e seu parceiro Van estavam investigando o Xadrez. Eram da divisão especial de investigação: — Ai, meus pés — Sentou-se no sofá de pelica. Suas memórias se fizeram vivas: — Mila, mais uísque? — Mais! 66


— O que acha dessa festa? — Van, não me faça perguntas idiotas! Estamos a trabalho, lembra? — Oh, claro! Desculpe, comandante Soares! — Sabe, as vezes você me irrita de uma forma que eu nem sei explicar. — Tá, mas olhe as informações que eu obtive: a nossa nova prefeita tem o sobrenome de Brenenberg! — E daí? — Daí que há várias pessoas neste salão com este sobrenome! — Como assim? — Repare: Raquel Brenenberg, modelo internacionalmente reconhecida! Dona de uns peitões! — Poupe-me desses detalhes! Continue: — Helena Brenenberg, empresária famosa no ramo da moda! Akira Brenenberg, especialista em computação gráfica! Alice Brenenberg, professora do ensino fundamental! Camila fitou seu parceiro. Seria possível? — Acha que todos eles são da mesma família? São diferentes... — Mas repare: estão sentados pertos! Demonstram afinidade! Alguma coisa em comum eles tem! E note que há mais

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pessoas junto deles, o que me faz deduzir que também são da mesma gangue! — Van, você é um gênio! — Eu sei guria! Um dia você vai gostar de mim! — Van piscou para a parceira e se afastou. Mila balançou a cabeça tentando se manter acordada e pensando. De volta ao presente, a policial deduziu que Van era um bom amigo, mas só. Notou que havia desviado o foco do seu pensamento de investigadora. Sua atenção devia se voltar para o Xadrez e não para seu parceiro! Os Brenenberg tinham algo em comum e Camila descobriria. O barulho irritante e repetitivo do telefone tardou a despertar Camila. Os olhos verdes da policial se abriram lentamente. Maldito telefone e maldita ressaca! — Alô! — disse ela em voz de sono. — Mila, bela adormecida! Bom dia! — Oi, Van! O que quer? — Tô aqui do DP (Distrito Policial)! Tenho pistas novas sobre o nosso caso! — Está bem! Deixa-me tomar um banho que já vou estar aí! — Está bem! Passada uma hora, Camila havia abandonado seu vestido de seda negro e adotado sua batida calça jeans azul-clara e sua camiseta branca. Os cabelos estavam 68


amarrados e ela usava óculos escuros. Adentrou pela porta dupla do DP e foi direto para a sala de reuniões, onde seu parceiro a aguardava. Van List era um jovem bem apessoado, usava sobretudo e lembrava muito aqueles detetives estilo livrinho de bolso. Gostava de um chapéu: — Bom dia, flor do dia! — disse ele. — O que você tem de novo? — Camila respondeu friamente. — Olhe: separei todas as residências cujo telefone é de algum Brenenberg! — Muito bem! Agora temos que visitálos, certo? — Exato! Eu pego os da zona norte e você os da zona sul! Até o fim do dia, acredito que visitaremos todos. — Qualquer suspeita ou nova pista avisamos um ao outro! — Boa caçada, guria! Camila sorriu e ajeitou seus óculos escuros. E durante todo aquele dia, Camila e Van visitaram todos os Brenenberg da cidade, usando da desculpa que estavam a serviço do governo, numa pesquisa de população. Aos poucos as informações foram se completando e ambos descobriram que Akira era irmão adotivo de Raquel e que esta por sua vez, era irmã de Helena. Ao final os irmãos totalizaram onze, mas ninguém soube

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ou não quiseram informar quem era o pai deles todos. “Eu andei por caminhos escuros. Minha alma pequena grita dentro de mim, fazendo com que sua voz ecoe no espaço. Eu sou tão pequeno, sabe... tão mesmo. Mas quis fazer coisas boas e apesar de pequeno; tornei-me poderoso. E com este poder eu influenciei pessoas a agirem por mim... confesso que não tinha noção da proporção que tudo isso iria alcançar. A verdade, é que no meu íntimo, sempre soube que eu poderia fazer isso; poderia se movesse as peças certas no momento oportuno. E assim o fiz e venho fazendo, usando dos meus filhos para mudar o mundo. Não entrarei em detalhes, mesmo porque não nos cabe salientá-los. O que posso dizer é que estimulei pessoas a fazerem a minha vontade. Alice ensinou crianças a serem integrantes da minha causa; Akira “hipnotiza” pessoas com suas propagandas com mensagens subliminares; Raquel muda pessoas com sua beleza; Hugo infiltra em lugares perigosos e age lá dentro, mudando pessoas. Quem não se adapta ao sistema recebe a visita de Samuel ou Renan e é peça fora do tabuleiro. Eu quero fazer coisas boas e ninguém vai impedir-me! Cheguei até aqui e agora falta pouco para a ascensão definitiva.”. 70


— Sr. Elio? — Hum? — Elio voltou de seus pensamentos imediatamente. — Tem uma moça no portão! Diz ser do governo e está realizando uma pesquisa. Era quase noite, quando Camila estava diante da casa de Elio Brenenberg, um ricaço metido a besta, pensava. Os portões se abriram e o mordomo a conduziu até a enorme sala de estar. Havia uma fonte ao centro e uma escada de mármore que subia até o segundo e terceiro andar. Um sofá de veludo negro lhe convidou para se sentar: — Um chá, senhorita? — Maria se mostrou cortes. — Não, obrigada! Elio desceu se apoiando em sua bengala de madeira e cabo de marfim. Sentou-se ao lado da policial e pediu para Maria trazer um chá. Se Camila não aceitasse, disse que se sentiria ofendido. A moça sorriu e afastou o cabelo do rosto: — Bom, senhor, eu estou realizando uma pesquisa sobre família! O senhor é casado? — Não! Mas talvez eu ainda me case... — sorriu. — Tem filhos? — Na realidade tenho onze. Mas são adotados!

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“Bingo!” — Certo! Deixe-me marcar aqui. — Camila não conseguiu esconder seu sorriso após sua dedução. Elio lhe disse: — Como é mesmo o seu nome, mocinha? — Oh, sim: chamo-me Camila. — Camila, não é? Da divisão de Investigação do Esquadrão de Polícia, correto? Camila deixou que sua caneta caísse: — O que o senhor disse? — Meus filhos já me avisaram sobre vocês... Não sou tolo! — Eu pensei que... — Escute — Pai ficou sério — Se quer viver abandone as investigações! Mila vacilou e Pai vasculhou sua alma com os olhos: — A senhorita acabou, não é? Maria, por favor, acompanhe a moça até a saída. E um profundo desânimo invadiu a alma de Camila. Tanto trabalho! Tanto empenho para ser tratada como nada, por aquele velho idiota! Como ele podia saber de tudo assim? De tê-la nas mãos daquela forma? Ela e Van estavam investigando o Xadrez fazia meses. Haviam descoberto que alguns membros estariam na festa de posse da nova prefeita. Usando de muita 72


investigação descobriram o lance do sobrenome Brenenberg. E agora que chegariam perto de algo verdadeiramente concreto tudo caiu por terra? Como podia ser? — Van? — disse ela ao telefone celular. — Fala, comandante Soares! — Vem me buscar, por favor! – a voz da garota saiu abafada pelo pranto. List abandonou o cargo de amigo piadista e sua voz se fez séria: — Espere aí, Camila! Estou passando.

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CAPÍTULO 8 NÃO VAMOS DESISTIR, CERTO? “A insistência não é um defeito, é uma virtude dos vencedores.” Muito uísque se sucedeu: — Mas, Mila! Aquele sujeito disse isso mesmo pra você? — Van deu uma golada depois da fala, pouco antes de descansar seu copo sobre a mesinha da sala. — Disse, Van! Mas ele parecia superior a mim! Seus olhos me devoraram com fúria e superioridade. Eu nunca me senti tão desprotegida como naquela oportunidade! — Desencana, Mila! Vamos pegar o sujeito! — Como, Van? Diga-me uma maneira! Van encheu o copo da companheira com o legítimo Ballantines 12 anos que já estada do meio para o fim. Completou o seu e depois disse: — Não vamos desistir, certo? — Não seria melhor? — Camila encostou os lábios no copo de cristal e vacilou. — Nunca, guria! Van List não é homem de desistir e até onde ele sabe a comandante Soares também não!

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Camila sorriu depois de horas sem o fazer: — Não me chame assim, cabeção! — Deu um soco no ombro de Van. List a fitou com sorriso no canto dos lábios. — O que foi? – Camila se sentiu ameaçada pelo olhar do amigo. — Estava apenas admirando o quanto você é bonita, comandante! — Já disse para não me chamar assim! — Camila se aproximou de Van e o agarrou pela camiseta. — Eu sou teimoso, coman... — antes que o rapaz conseguisse terminar sua frase, foi interrompido pelo ardente beijo de Camila. Os dois que eram apenas dois, naquele mundo de cão sem mais ninguém, se entregaram um ao outro e fizeram daquele momento um alento para suas almas cansadas e seus corações feridos: — Van, é certo o que estamos fazendo? – Camila tentou esfriar. — Estou farto de ser certo! Quando a luz do sol atrevida entrou pela fresta do apartamento de Camila, a mesma franziu o cenho e tentou dormir mais um pouco. Sua cabeça latejava constantemente e seu estomago também não parecia nada bem. Olhou à sua volta, buscando o corpo do amigo, mas não o 75


encontrou. Aliás, não havia nenhum vestígio de que Van List estivera com ela durante toda a noite. Teria sido um sonho? Camila se esforçou para se colocar em pé. Quando fitou a si própria e notou que ainda estava nua, sua mente alcançou a resposta para sua pergunta: não havia sido apenas sonho! Mas tanto fazia àquela altura. Camila foi até o toalete para se banhar e melhorar da ressaca. Num outro canto da cidade, Van andava com seu carro devagar por uma rua larga de algum bairro nobre. Com o cigarro entre os lábios e com o olhar atento, o detetive buscava algo. Então ele afastou o chapéu da testa e viu alguém sair dos aposentos da nova prefeita. Um homem alto de feição tranquila. Vinha acompanhado de alguns seguranças. Era Elio, deduziu pelas características físicas, que batiam exatamente com as apontadas pela sua parceira, noite passada. Seguiu o veículo de longe e notou que o mesmo ia até a periferia da cidade. Quando o luxuoso carro parou, Van fez o mesmo, mas metros antes. Desceu do veículo aquele senhor e seus seguranças para que depois uma escadaria secreta se abrisse e o velho adentrasse por ela, desaparecendo. Van fechou seu automóvel e procurou pela fresta no galpão para que pudesse entrar. Constatou um fundo falso no chão e depois 76


de forçá-lo, pôde entrar no recinto através da escadaria que havia visto anteriormente. O investigador em toda a sua carreira de policial, jamais havia se deparado com algo como aquilo. No galpão havia várias pessoas carentes em fila. No centro, List observou que havia algumas pessoas de trajes melhores. Contou quatro mais o velho Elio: — Povo, rejeitado pela vil sociedade! Eis que ninguém tem olhos para vocês! Suas famílias clamam por dignidade e o que recebem? Desprezo! A multidão se manifestava a cada palavra de Elio. — Eu os recebo em meus aposentos para dar-lhes a oportunidade de vencer! Vou fornecer alimento para todas as famílias que aqui estão, mas cobrarei por isso! Não sou santo e nem tenho vocação para a caridade! Venho para propor um trato a vocês! Comam até saciarem suas vontades, mas depois serão meus! — O que o senhor quer dizer com isso, Pai! — um em meio à multidão indagou. — Não é óbvio, meu caro! Terão comida e lugar descente para viver, mas devem jurar fidelidade ao Xadrez e obedecêlo como se Deus estive lhes ordenando! — O Xadrez é a salvação para o mundo! Deus deve mesmo comandá-lo! — respondeu o homem que teve sua pergunta esclarecida. 77


A entrega de alimento sucedeu-se e a felicidade pôde ser observada nos lábios e olhos daqueles necessitados. Van que observava a tudo e balançou a cabeça em desaprovação. Usou do seu celular para bater algumas fotos e as enviou por SMS para sua parceira: — Bom. Se acontecer alguma coisa comigo, ao menos Camila tem como prosseguir com as investigações. — Pai! — Bispo! O que houve? — O satélite captou imagens de um intruso que te seguiu e está entre a multidão. Iniciar manobra defensiva. — Ok. Designe um Peão e um Cavalo para a ação. — Entendido. Pai/Elio desligou o celular e sorriu. Fitou sua filha Helena e falou algo em seu ouvido. Helena que se encontrava ali, apenas para ajudar na distribuição dos alimentos, assim como Samuel, Renan e Raquel, mudou de semblante. — Tenho que ir! — Pai informou e seus quatro filhos o seguiram para as sombras. Raquel lançou seu olhar acinzentado para a multidão e encontrou descanso no olhar escuro de List que vinha escondido pela 78


sombra do seu chapéu. A entrega de alimentos continuou a ser realizada por outras pessoas. O telefone de List o tirou daquele transe: — Alô? — Van, essas fotos são o que estou pensando? — Bom dia flor do dia! — Ai, seu cabeça oca, responda! — Sua cabeça está doendo? A minha estava, mas daí eu peguei e... — VAN! — Certo, gata! Escute: talvez eu não saia desse galpão! Por essa razão mandei as fotos para você continuar com as investigações! — a voz de List ganhou o tom sério para a eventualidade. — O que você está falando, cabeção? Peraí, que eu vou indo! Chamarei reforços! — Não, Camila! Eu me viro! Não arrisque nosso trabalho pela minha vida! Deixe comigo... — Mas, Van! — Se eu não te conhecesse, afirmaria que você se importa comigo. — caiu a ligação. Dois homens se aproximaram do investigador, fazendo-o guardar o telefone rapidamente. Ele já sabia que não vinham com as melhores intenções. Seria mesmo uma questão de tempo até descobrirem sua 79


presença. Inúmeras possibilidades justificariam isso, pense: alguém poderia vêlo entrar no galpão; câmeras de segurança; monitoramento por GPS, Van List era um detetive e trabalhar com possibilidades fazia parte do jogo. Hugo e Eduardo subestimaram o inimigo e este equívoco poderia colocar toda a operação “manobra defensiva” em risco! O policial atacou primeiro, usando do fator surpresa para conseguir um resultado eficiente. Um poderoso soco no rosto de Eduardo, fez com que Hugo perdesse segundos para se decidir se socorria o Peão ou se corria atrás de Van. Este tempo extra, possibilitou ao detetive ganhar alguns metros de vantagem em sua corrida. — Corra, Van! Corra! — O rapaz correu rumo à multidão enfileirada. — Merda, Hugo! Pegue o cara! — Bispo falou no ouvido do Cavalo, usando do fone que Hugo dispunha em seu ouvido. Van correu e subiu pelas escadas para deixar aquele lugar e tentar sobreviver. Ganhou a rua e correu para o seu automóvel: — Vamos belezura! Pegue. O policial saiu cantando os pneus e julgou estar seguro agora que ganhava velocidade e se afastava do local onde obtivera as provas. Para a sua surpresa e frustração, um potente Camaro vermelho vinha crescendo em seu retrovisor. 80


Eduardo e Hugo estavam na cola do detetive: — Você não vai escapar, senhor bisbilhoteiro!

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CAPÍTULO 9 RAINHA BRANCA NA CASA NEGRA. “Sempre achamos justificativas para os nossos atos, os dos outros condenamos”. Van não podia desistir de lutar pela própria vida. Tentou despistar seus perseguidores, usando da sua habilidade como motorista. Avançou pela avenida de trânsito rápido e costurou entre os carros que por ali passavam, mas Hugo tão bom, senão melhor que Van não teve qualquer dificuldade em acompanhá-lo: — Que merda! — Van deu um soco no volante do seu carro. Hugo se aproximou e colocou seu automóvel ao lado do carro do policial. Abaixou o vidro e sorriu: — Você tem duas opções: parar por bem ou forçar-me a pará-lo. — disse. — Descarte a primeira, camarada! Tente a segunda! — Ok! — suspirou Hugo. Eduardo sacou o seu revolver prateado e mirou no pneu dianteiro do carro de Van. Depois atirou, fazendo com que o pneu estourasse instantaneamente. Van tentou domar seu veículo descontrolado, mas cada vez mais sentia-o distante de qualquer 82


controle. Foi quando seu carro desgovernado caiu ribanceira abaixo e depois de parado explodiu. — Queima de arquivo concluída, Bispo! — Hugo passou a informação para Odirley. — Cheque se o alvo está mesmo morto... — Mas o carro está pegando fogo, Bispo! Não posso me aproximar. — Certo. Acho pouco provável haver qualquer sobrevivente. Dispensados Peão e Cavalo. Raquel, desde que havia reencontrado seus irmãos e recebido o envelope sobre as reais intenções de Pai, vivia na mansão do mesmo. Passava os dias ali e saia apenas para sessões de fotos ou gravações de comerciais. Nesse meio tempo tinha conhecido um famoso músico e saía com ele as vezes. Akira trabalhava com Rainha e servia de responsável pelo departamento de propaganda da empresa de Helena. Estavam os três a seguir ordens de Pai e colocando na mídia apenas o que fosse necessário para implantar o Xadrez na mente das pessoas. Mas Raquel se sentia vazia e não sabia de onde vinha essa sensação. Os dias se passavam e cada vez mais se ouvia sobre o Xadrez e cada vez mais Rainha se sentia perdida. Seus irmãos designavam missões 83


arriscadas e por vezes Raquel ficava sabendo das mortes. Ela implorava para que Reinald voltasse e colocasse as coisas de volta ao que eram. Contudo, nunca se ouviu falar daquele rapaz, era como se ele não existisse, ou fosse uma criação da mente de Rainha: — Raquel! — Raquel! — A voz suave daquela pessoa ganhou pouco mais de volume. — Oh! Desculpe, Roberto! — Estava longe, algum problema? — Nenhum... O músico sorriu e levantou sua taça de vinho: — A propósito: chame-me de Beto. Raquel devolveu o sorriso. — Seu sorriso é tão bonito! — Beto parecia hipnotizado, ainda com a taça levantada. — Obrigada. O telefone celular de Raquel tirou o jovem de transe para que ele enfim pudesse levar o vinha à boca, ao passo que Raquel revirou sua bolsa: — Desculpe, Beto! Tenho que atender. — Tudo bem, minha princesa. — Alô? — disse Raquel ao tapar um de seus ouvidos para melhor ouvir quem falava em seu celular. — Tudo bem — Raquel desligou o celular ao final da conversa. 84


Virou-se para Roberto e falou: — Preciso ir! — Mas Raquel, estamos no meio de um jantar. – Roberto tentou argumentar. — Sinto muito — Rainha deu um beijo em Beto e se afastou da mesa. O cantor ficou sem entender o que estava acontecendo e apenas pôde acompanhar com os olhos o corpo esguio de Raquel passar pela porta do restaurante. — Jéssica, estou na rua — Raquel disse enquanto caminhava pela calçada. — Ótimo, Ra! Tô mandando alguém passar aí pra te pegar. — Certo. Passados alguns minutos uma limusine encostou-se à calçada. A porta negra se abriu e Raquel que vestia branco, afastou sua saia para poder sentar naquele banco de couro. O carro seguiu pela avenida e desembocou numa mansão em outra cidade. Raquel desceu do automóvel e descansou sua sandália de salto sobre a ardósia da entrada daquela casa. — Raquel tenha estômago, tá? — Não se preocupe, Jéssica... A linda mulher veio acompanhada de seguranças e foi informada de que quem viera ver, desceria logo mais. Sentou-se sobre a poltrona de veludo azul enquanto os empregados serviam-lhe uísque. 85


— Olha quem Pai mandou para vir falar comigo. — um velho de bengala apareceu acompanhado por um de seus funcionários. — Senhor Ângelo – Raquel se levantou. — Rainha. A que devo a honra da sua visita? — Achei que o senhor já soubesse. — Talvez eu imagine. — Pai precisa de mais capital, para poder espalhar o Xadrez. — Justamente o que eu estava pensando. O velho Elio continua com este sonho de consertar o mundo. — É. — Raquel encostou os lábios no copo de uísque. — O tráfico tem me proporcionado bons negócios, você sabe, e como Pai precisa de capital eu posso arrumar para ele. — E a troco de quê você o faria, Sr. Ângelo? — Não lhe parece óbvio, querida? Você nem imagina? Rainha vacilou por um momento, mas depois ganhou a firmeza de sempre e respondeu: — Eu não imagino, eu sei. Queria ouvilo dizer, mas não é mais preciso. Ângelo sorriu por de trás das suas rugas. Possuiria a mulher mais linda que já havia visto em troca de alguns milhares de 86


dólares. Uma prostituta bem cara é verdade, mas de que vale a vida senão aproveitá-la? Foda-se o dinheiro, pois as drogas lhe proporcionariam bem mais. Raquel bebeu muitas doses de uísque antes de deitar-se na cama da suíte de Ângelo. O lustre de cristal parecia um carrossel e a voz do velho líder do tráfico ecoava quase que sem força na mente daquela mulher. Ela quase teve vontade de sorrir; quase... Rainha havia sido construída para aquele tipo de trabalho e nem era a primeira vez que o fazia. Mas a cada vez que isso se sucedia mais nojo ela pegava de si própria. Já não era mais a menina feia de outrora, mas sim a moça linda por fora e podre por dentro por todas as vezes que havia se deitado com alguém a mando de Pai, seja lá por qual motivo. As mãos cansadas de Ângelo passavam pelas linhas torneadas do corpo de Raquel, ao passo que ele a despia de seu vestido branco. O olhar cinza de Rainha buscava o nada, enquanto o traficante realizava o seu trabalho. A cada solavanco, a moça sentia-se como se fosse apenas uma boneca na mão de uma criança. Mas sabia que mais tarde teria de abandonar a posição de boneca e fazer aquilo que sabia bem. Era profissional e estava acostumada com tudo aquilo. De tão acostumada, aliás, ela própria 87


já não sentia qualquer dos sentimentos. Nem mesmo ódio seu coração vazio podia sentir por alguém. Por mais que se movimentasse e levasse Ângelo à loucura, ela não passava de uma boneca de louça. E ao final o corpo obeso do chefe do tráfico repousou fadado sobre o da moça. O suor daquele porco fazia com que Raquel sentisse ânsia. O uísque havia sido pouco, concluiu. Afastou Ângelo de si e abraçou seus joelhos encolhendo-se. Lágrimas escorriam pelo canto dos olhos de Rainha, mais a mesma não mudara de expressão. Seu olhar continuava firme sobre a meia-luz do abajur... Naquela mesma noite noutro canto e em outra cidade, uma outra mulher investigava sobre o atentado que seu parceiro havia sofrido. Van estava desaparecido desde o acidente e aquilo incomodava demais Camila. Conversava sobre este assunto com uma colega de trabalho: Estou falando Beth... — Acalme-se, Mila. Van pode estar vivo... — Você não entendeu, não é? Existe uma organização gigantesca que controla nossa cidade e boa parte do país! Van foi um dos que os cretinos apagaram!

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Beth gesticulou um “não” com a cabeça: — Está maluca, Mila! Melhor parar com a bebida... Camila fitou sua companheira de polícia demoradamente. Talvez não devesse envolvê-la naquela tramoia. Ela própria só estava viva porque ninguém desconfiava que detinha as fotos que Van tinha tirado. Melhor agir sozinha do que alarmar os inimigos e envolver amigos: — Está certa, Beth... — lágrimas invadiram o olhar da detetive. — Ei, ei! Não chore de novo, Mila! — Desculpe, é que eu não posso segurar... Camila estava abatida. Mas não ia se dar por vencida, pois havia prometido a Van que não desistiria. Tinha informações preciosas e faltava apenas juntar as peças para descobrir mais. Seria seu objetivo para se confortar e ocupar seu tempo para não pensar no parceiro morto.

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CAPÍTULO 10 TORRE, TORRE E REI. “Os corpos são transitórios, nossas ideias eternas”. Maldita dor de cabeça. Raquel enrolouse no edredom rubro que usara de coberta até pouco tempo e seguiu até o banheiro. A pia de mármore se fez cada vez mais perto e ela debruçou sobre a mesma. Jogou água sobre o rosto e fitou seu olhar cinza refletido no espelho. Primeiro sentiu uma vontade de vomitar e depois não tardou a colocar tudo para fora. Afastou seus cabelos compridos do rosto e se desfez do edredom para tomar banho. Que a água lavasse sua alma suja e manchada, como se fosse fácil assim. Passados alguns minutos, a moça recuperou toda a classe e nobreza de sempre. Desceu pelas escadas da mansão do seu anfitrião já de saltos e com seu vestido branco. Acompanhava-a uma bolsa de couro bege: — Srta. Raquel! — Um dos empregados lhe chamou — O patrão pediu que eu lhe entregasse este cartão de crédito! — Obrigada! — sorriu.

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— Sam! É a tua vez — Disse um homem com um cigarro entre os lábios. — Ótimo! – Samuel sorriu. Sacou do seu coldre, logo abaixo do ombro esquerdo, a pistola que tinha. Manobrou-a habilidoso, fazendo uma graça, o que irritou o homem do cigarro: — Dá aqui essa merda! — Ei! Qual é? — Vou tirar as balas e deixar apenas três. Se for mesmo bom, terá que quebrar aquelas seis garrafas sobre a mesa! — Seis garrafas com três balas? — É. Sam suspirou: — Ok! Quando a arma foi devolvida a Samuel, o mesmo fechou um dos olhos, mirou em direção da mesa e mordeu o canto dos lábios. Atirou na base da mesa, fazendoa rodopiar por algum tempo e parar de maneira que as seis garrafas ficassem em fila. Depois usou do segundo tiro para quebrar todas elas. Mirou contra a cabeça do homem que o avia desafiado dizendo: — Ainda sobrou uma bala, o que devo fazer com ela? Ele então levantou o braço e atirou para cima: — Pronto! Eu venci! — sorriu. — Ora, seu moleque!

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O toque do telefone de Sam tirou-o daquela situação. Ele correu para o banheiro para atender ao telefone: — Alô? — Sou eu, o Bispo... — Eu imaginei que fosse. — Tenho uma missão. Era noite e as ruas ainda estavam movimentadas devido às pessoas que saiam de suas faculdades e cursos. Samuel estava em um beco escuro e esperava impaciente por mais alguém, devido ao atraso. Foi quando uma moto apareceu e clareou com seu farol o beco escuro: — Porra, Renan! Está atrasado! — Samuel abriu os braços. — Qual é, Sam? Vamos fazer o que viemos fazer certo? — Isso não vai dar certo... — Não pense que você é a companhia ideal que eu queria para essa noite. Renan vinha vestido de negro assim como Samuel, só que em vez de armas de fogo, o rapaz portava duas espadas de samurai e diversas facas. A roupa consistia em um macacão escuro coberto por uma jaqueta de mesma cor. Os dois seguiram a pé até o local onde se realizaria a afamada missão. Era um prédio alto, daqueles que causam vertigem caso se olhe para o topo por muito tempo. 92


— Há uma entrada de ar, logo no térreo. Subindo por ela vocês vão sair no andar presidencial. Lá encontra-se os alvos. Um para cada. — Bispo dizia ao telefone para Samuel. — Ok! Sam e Renan entraram pelo tubo de ar daquele prédio. Seguindo as instruções que Bispo passava pelo telefone, foram subindo até desembocarem na abertura do elevador. Dali seria mais fácil continuar subindo. — Você vai pela esquerda, quarto 410! Eu pela direita, quarto 386. — Quem te nomeou líder, Samuel? — Renan, não enche, porra! E assim aquela dupla improvisada e que não tinha qualquer chance de vingar se separou. Cada um para o seu lado, como nos velhos e bons filmes de espionagem. Renan encontrou a suíte que procurava. O número em dourado na porta lhe deu certeza. Seria apenas entrar e fazer o trabalho deduziu. O jovem entrou e interrompeu algo que acontecia: — Olá, pombinhos! — Como entrou aqui? — o homem de meia idade se surpreendeu. — A pergunta correta é por que estou aqui. — Oh, droga! — É droga mesmo. Cara, eu não queria ser você! 93


— O que quer? Posso pagar, sou rico! — Nem todo o dinheiro do mundo me faria parar. A mulher se cobriu e Renan não perdeu a oportunidade: — Não precisa se cobrir, dona! Quem já viu, sabe o que é e quem nunca viu não vai saber mesmo... — Renan colocou um pé na cama — Uma amiga minha procurou você, lembra? — Não. — respondeu-lhe o homem. — Pois deveria. Alguém que te falou sobre o Xadrez. — Sim! Estou lembrado! Gabriela, suplente de um dos meus colegas deputados! — Garoto esperto, mas burro ao mesmo tempo! Por que não aceitou o que ela lhe propôs? Ela não te explicou as consequências? — Oh, perdão! Eu aceito! Agora eu aceito! — Tarde demais, Excelência... Samuel estava no outro apartamento. Entrou arrombando a porta e se deparou com mais um futuro cadáver. Era um homem de meia idade e se encontrava sozinho: — Olá! — disse Sam. —Oi — sorriu o homem — Então você é o meu carrasco? — É o que parece... — Sente-se, por favor. 94


— Claro. Tem alguma bebida? — Uísque? Vodca? O que prefere? — Qualquer uma... O homem ficou sério antes de dizer: — Não me diga que eu deveria ter aceitado a proposta de Hugo. Eu não poderia, Sam... Foi a vez de Samuel adquirir seriedade: — Você é a única pessoa de minha família biológica que conheço. Revirando meus documentos encontrei dados ao seu respeito e agora o destino nos coloca nesta situação. — Tudo poderia ter sido diferente, Sam. Se você tivesse vindo morar comigo. — Não é tão fácil assim, tio. Pai não me perdoaria, como não perdoou Reinald. — Tudo bem, meu filho! — Espero que o senhor me perdoe um dia. O homem sorriu. — Acabe logo com isso, filho! Camila estava há dias sem dormir. Suas investigações progrediam pouco e ela não conseguia encontrar nada concreto contra qualquer um do Xadrez. Como queria colocar os malditos na cadeia, mas não havia nada. Por causa do seu estado depressivo, estava afastada das suas funções de policial. Passava o dia em casa e a noite também, 95


não via ninguém e dedicava-se exclusivamente ao caso em questão: O XADREZ. Naquela noite, para contrariar a rotina, um vizinho bateu em sua porta. Ela abriu e ele então disse: — Camila, eu preciso de você! A policial não pôde entender: — O que Sr. Joaquim? Ele sorriu e abaixou a cabeça, parecia estranho, como se pudesse vasculhá-la com sua presença: — Joaquim, não! Eu sou o Rei! Era um dos membros do Xadrez! Seu vizinho era um deles? Mas como? Camila sacou a arma: — Ai porra! Ele levantou o rosto: — Se atirar, vai matar seu vizinho, pois a mim, você não poderá atingir. Estou na mente desse pobre ser! Meu corpo físico está longe daqui! Camila não conseguiu alcançar uma explicação lógica para o que vinha acontecendo. Como? Como? Sua mente gritante lhe importunava: — Eu não posso acreditar nisso, Joaquim! Sinto muito, mas é impossível! Alguém está te possuindo? E esse alguém precisa de mim? — Ela engatilhou a arma. — Chamo-me Reinald! Ao menos é assim que me chamavam, antes... 96


— Pare com essa palhaçada! — Preciso entrar! É perigoso ficar aqui fora!

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CAPÍTULO 11 O REI “As pessoas precisam de exemplos, nós podemos sê-los”. — Deixe-me ver se entendi: você é Reinald, o Rei do Xadrez? — Camila balançava a cabeça. — Sim e não. Camila suspirou: — Sinceramente, isso me parece muito estranho. Como eu vou acreditar? —Srta. Camila eu posso explicar: Ele começou: — Eu achava que Pai tinha me escolhido por compaixão, talvez eu quisesse acreditar nisso. Vivi minha infância em um orfanato onde, inclusive, conheci Raquel que mais tarde se tornaria Rainha. Os outros vieram de vários lugares, pelo que sei. Eu era diferente, acredite! Um dom que eu tinha ou uma maldição! Não me pergunte como eu adquiri, como faço, de onde vem e como vai, porque não saberia responder. A verdade, Srta. é que eu podia e posso manipular a mente das pessoas. Com minha vontade eu mergulhava nos pensamentos dos outros e os dominava, mas não tinha controle sobre isso. As vezes eu o fazia numa situação de extrema raiva, outra de elevada calma. 98


Quando eu estava feliz, outras quando triste. No orfanato que comecei a me dar conta de que quando queria muito que alguém fizesse algo, esse alguém acabava mesmo por fazer e a partir daí minha sorte começou a mudar! Quando fui adotado, quis que Pai adotasse Raquel e assim aconteceu. Mas ingênuo que eu era, não desconfiava que Pai sabia desse meu poder. Como eu não sei. Se existe outro como eu, eu também não posso responder, quem sabe já houve. Desde então, vivi na mansão de Pai junto dos meus 11 irmãos. As técnicas empregadas por Pai e seus arautos não me cabe dizer, o relevante é que eu tinha treinamento especial. Eu estava sendo moldado para liderar o Xadrez, o império que dominaria tudo. Pai tinha planos para os meus irmão e para mim e ao final restei com certo controle sobre meus poderes. Se entoasse a voz de certa maneira e usasse de singular linguagem corporal eu poderia manipular pensamentos. No inicio era até divertido. Eu podia ter a mulher que quisesse; o dinheiro que quisesse. Namorava com modelos famosas e impressionava qualquer pessoa, inclusive despertava inveja em meus irmãos, eu podia e eles não. O único que parecia mesmo não se importar era Hugo, mas isso não vem ao caso. Ocorre que como eu tinha tanto poder, achei que não precisava do Xadrez! Eu já não concordava com os planos absurdos de Pai e tinha o escopo de 99


não precisar dele para fazer as coisas. Decidi que poderia usar do meu dom para fazer algo de bom. O dilema residia justamente nesse ponto: o que seria algo de bom? Eu tinha que procurar por essa resposta. Informei a Pai que eu iria em busca disso e o avisei para nem tentar impedir-me, pois se o fizesse eu poderia fazê-lo mudar de ideia. Ele suspirou e nada disse. Então eu fui ao encontro das respostas que minha alma tanto almejava. Não tive muito tempo para encontrá-las, já que encontrei-me mesmo foi com Renan e Samuel. Foi naquele dia que os dois se estranharam pela primeira vez. Camila interrompeu: — Renan e Samuel? Quem são esses dois? — Assassinos frios a mando de Pai para botar um fim em seu próprio filho; irmão deles, eu. Eles me cercaram quando saía de meu modesto apartamento na periferia e quando os vi tentei defender-me e usei da manipulação mental para jogar um contra o outro e conseguir tempo de fugir. A verdade é que apesar dos meus esforços, Samuel sabia dos meus planos e antes de lançar-se contra Renan, desferiu um tiro contra mim. Senti meu peito queimar e logo, o sangue invadiu minha garganta. Cai ali e Renan se livrou do meu domínio. Foi a única vez na vida que tive medo. Checaram meu pulso e meu coração não tinha mais força para bater, eu estava 100


morto. Passado algum tempo, outras pessoas avistaram-me caído e conferiram meu pulso, vivo! Eu estava vivo! Levaram-me para o hospital local donde eu me encontro até hoje. — O quê? — Camila continuava confusa. — Estou em coma, faz alguns meses. — Mas como está aqui? Quero dizer, sei lá se está aqui. Rei continuou: — Descobri que apesar das limitações do meu corpo físico eu poderia vasculhar a mente de quem passasse pelos corredores do hospital. Numa dada noite, um homem de nome estranho, entrou para a UTI. Se não me engano, chamava-se Van. — Van List! — gritou Camila – Meu parceiro desaparecido! Ele está bem? Está vivo? — Até quando vasculhei seus pensamentos ele estava vivo. — Deus! Que ótima notícia você me trouxe! — Pois bem. Deixe-me continuar. — Reinald se ajeitou no sofá — Foi aí que conheci a Srta. Ele tem um apreço especial pela sua pessoa, pude descobri também sobre seus intentos contra a minha família. Foi o suficiente para que eu arrumasse um modo de contatá-la. Joaquim é faxineiro do hospital e um dia deixou escapar um pensamento erótico sobre a Srta. ele a 101


imaginou, nos exatos termos que seu parceiro, exceto pelo fato de este segundo conhecer dos detalhes que o primeiro tinha que improvisar. Por essa razão tive acesso à sua mente e pude invadi-la para poder me mover até a Srta. — Isso tudo é muito... Muito... — Irreal? — Era a palavra que eu procurava. — Temos que agir, Srta.! Preciso da sua ajuda e da do seu amigo. Por essa razão temos que tirá-lo do hospital. Não tardará para Pai descobrir que ele vive e arranjar a sua morte. — Então vamos até Van! Camila dirigia o carro atenta. Ainda tentava assimilar tudo o que seu “novo amigo” tinha lhe dito, era demais para ela. As ruas foram passadas e deram lugar para a rodovia. O hospital era um pouco afastado da cidade: — Chegamos! — disse Reinald. — Encoste aqui. — Certo. — Seguiremos caminhando daqui... Andaram por algum tempo e depois, usando da credencial de Joaquim, Rei adentrou no hospital sem levantar suspeitas, Camila o seguiu. Foram até o corredor central que desembocava na recepção. Então, neste momento, pelos corredores do hospital, 102


encontraram um menino de 12 anos que estava em uma cadeira de rodas. Aparentemente ele era aleijado. Reinald ao se aproximar do menino parou e o fitou. Camila olhou para ele: — O que foi? — disse ela — O menino é aleijado, nunca viu alguém assim? — Ele não é aleijado. — Ora, que brincadeira mais sem graça! — Zangou-se Camila. — Ele sofreu um acidente. Fez tratamento, inclusive fisioterapia! Não pode andar por ter medo de fazê-lo. Reinald se abaixou até o garoto que estava na cadeira de rodas: — Olá garoto! — Oi! Reinald então mudou de fisionomia e deu outra entonação a sua voz: — Quero que não tenha mais medo de andar. Levante dessa cadeira e ande. Camila não acreditou quando viu o garoto obedecer. Suas pernas trêmulas ganharam mais força, até que conseguiram dar passos. A policial ficou abismada de ver aquilo. O garotinho se voltou para Reinald: — Você me curou! Por acaso é algum anjo? — Não, meu garoto... — Ei! O que você acabou de fazer? É um milagre? Que diabo de gente é você? —

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Camila corria atrás de Reinald pelos corredores. — Não fiz nada. Ele poderia andar por si só, mas não o fazia por medo. Retirei o medo. — Droga! Você é doido! — Ali está o quarto de Van. — Rei apontou para a porta — Ele não está mais na UTI. Camila avançou pela porta e entrou. Deparou-se com seu amigo policial dormindo com uma agulha em seu braço por onde era injetado o soro. Ela se abaixou e chorou de felicidade ou de tristeza: —Van! Deus, como procurei por você! Como chorei por perdê-lo... — As sua lágrimas estão molhando o meu lençol! — Uma voz rouca se fez — Que tal parar com isso, antes que eu tenha que te dar um soco? — Van! Você está consciente! — Sei não! Talvez eu esteja sonhando com você. Já pensou nessa possibilidade? — Cale-se! Como quis te mandar calar a boca! — Camila sorriu. Reinald então entrou na sala: — Precisamos sair daqui... Van então disse: — E você já me substituiu da sua vida, com o seu vizinho? — Ele não é quem parece ser. Mais é uma longa história. Aonde vamos, Reinald? 104


— Ao seu apartamento...

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CAPÍTULO 12 UM REI BRANCO E UM MUNDO NEGRO “As pessoas são essencialmente más, todas elas. Há aqueles que ignoram sua essência” — Como é? — Van tentava entender o que Reinald lhe contara — Isso é loucura! — Ajeitou-se na cama. — Eu também acho, Van! Mas definitivamente este aqui não é Joaquim meu vizinho... — esclareceu Camila ao amigo. — Eu nem sei o que dizer Mila! — Não diga. Descanse. Aqui em casa você está seguro. — Sim — Reinald disse — Pai não sabe que Camila detém as fotos que você tirou, senhor List. Caso soubesse ela não estaria mais viva. O detetive virou a cabeça. Depois, indagou o que sua curiosidade pediu: — Reinald, qual é o objetivo do Xadrez? O Rei suspirou: — É um objetivo nobre, mas os meios, acredite, são demasiados errados. — O que eles querem? — Fazer coisas boas, é o que Pai sempre diz! É subjetivo, este conceito, mas acredito que signifique matar corruptos, dar 106


alimento e moradia aos pobres e educação de qualidade para todas as pessoas; acabar com criminosos! — Isso não me parece ruim, Reinald — Van expressou sua opinião. — E não é, mas milhares de pessoas morreram por não serem justas ou por não quererem colaborar com os planos de Pai. Ele tira de quem tem muito para dar a quem não tem nada usando da força que dispõe! — Não podemos deixá-lo matar todas essas pessoas — Camila disse. — Exato. Pai não tem consciência que seu intento é tecnicamente falho. Sempre haverá pessoas egoístas e corruptas! Se ele eliminar todos os que dispõem desses adjetivos, não haveria população suficiente no mundo... — Vamos impedi-lo! O que devemos fazer? Reinald fitou a policial: — Camila, façamos o seguinte... 15 dias se passaram. Em um local distante, num sítio afastado das cidades, Alice caminhava de braços cruzados. Algo a preocupava. Pai estava dentro da mansão com Raquel e seu marido, Ciro, tinha ido á cidade fazer compras. Renan estava escondido depois de mais alguns assassinatos. Samuel havia 107


assumido o comando da polícia da cidade e Gabriela tinha perdido o cargo que obtivera no governo depois que Renan, o Torre, matou um deputado amigo de outro deputado de quem ela era assistente. Mas Patrícia estava indo bem como prefeita e isso era de grande valia já que por causa dela, Sam estava comandando todas as forças policias locais. A ordem dele era clara: matar todos os bandidos que encontrar! A criminalidade havia caído bruscamente devido a isso. — Alice? — uma voz assustou a professora. — Hugo! Achei que passaria a noite na cidade... — Não. Pai quer que fiquemos aqui, diz ser mais seguro. — Eu sei. Ao que parece já estamos conseguindo atingir nossas metas... — Sim. A cidade esteve em guerra, por causa da polícia comandada por Samuel, mas isso passou. Os bandidos foram todos mortos e a notícia se espalhou rápido. — Isso deve ser bom, não é? — Os Bispos não param de coordenar as pessoas. Os Peões aumentaram de número depois de Patrícia assumir publicamente a existência do Xadrez. Estão espalhados por todas as cidades, o país, mundo, sei lá. — Não acredito que essa loucura esteja dando certo. 108


— Não tinha como dar errado, irmã. Pai havia planejado tudo antes de nascermos. — Eu estou vendo pessoas morrer. Os noticiários mencionando sobre o Xadrez como mão severa que erradica o mal! Até eles conseguimos manipular, Hugo! Até a imprensa! — Raquel serviu para isso, Alice. — Quem vai ser o dono do mundo, depois que essa loucura chegar ao fim. — O Rei! — Mas não há Rei! — Em breve Pai anunciará o novo Rei: Renan ou Samuel. — Eu estou sofrendo, irmão! Meu coração está apertado! Há milhares de Torres lá fora! Matando e matando! Os meus alunos, por Deus o que eu fiz com eles? Eu os manipulei para o dia que se aproxima! O dia da ascensão do Xadrez! Existem agora centenas de professoras que adotaram os meus métodos de ensino e estão plantando o mundo de Pai! — Isso vai acabar logo, Alice! Depois disso não haverá mais mortes, acredite! — Assim eu espero, Hugo — Alice abraçou o irmão. Uma moto então clareou a varanda daquela propriedade. Alice sabia quem vinha e se lançou ao seu encontro, depois de se despedir de Hugo. Chegou perto do homem 109


que retirava o seu capacete e o abraçou aos prantos: — Alice, não chore! — Renan, o que estamos fazendo? — O certo, minha irmãzinha, o certo! — Tenho medo de matarmos tanto! — Sempre matei, Alice! Não tenho medo disso. Meu medo e ver você com medo! — Eu estou com medo, Renan! — Eu te protejo! — Renan abraçou a irmã com afeto. Os olhares se cruzaram e com o sorriso manchado por lágrimas foi que Alice recebeu o caloroso beijo de seu irmão adotivo. Tudo então desacelerou e os problemas cessaram. O telefone inconveniente trouxe os dois daquele beijo: — É o meu — Renan se afastou — Algum Bispo! — Pode falar, Bispo! _ Aqui é Odirley! A situação está um caos! Precisei entrar em contato com você, Renan! — Fale então, Bispo! — Jéssica! Eu perdi o sinal dela! Alguém a raptou e eu preciso que investigue! — Merda! Quem faria isso? Achei que tivéssemos eliminado todos os possíveis inimigos!

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— Eu também achei, mas algo está errado! Não há mais ninguém além de você para designar, irmão! Todos estão ocupados executando os planos de Pai! Ao final de tudo não haverá mais criminosos, corruptos, pessoas passando fome! — Eu tô ligado! Eu serei o novo Rei! — Isso Pai vai decidir! — Mas eu vou lá salvar a Jéssica! Renan voltou-se para Alice e a beijou na testa: — Jéssica foi raptada e eu vou salvá-la — informou à irmã. — Renan, espere! A professora se lançou ao abraço do irmão e lhe deu um caloroso beijo: — Eu adoraria ver a cara do Ciro agora! — Rena sorriu — Eu te conheço Alice! Está pensando que eu vou morrer por isso este “ultimo beijo”. Mas eu vou voltar e chutar o traseiro do seu marido! Colocou seu capacete e disparou em direção a cidade com sua moto.

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CAPÍTULO 13 QUEM ESTÁ AÍ? “Vencer é mais do que ser o melhor, é fazer com que saibam dessa sua condição”. A moto de Renan avançava pela avenida central da cidade deserta. Buscava um galpão onde funcionava uma antiga companhia de transportes, segundo Bispo, último local em que o localizador de Jéssica apontou sua presença. Ele teria que agir à surdina, deduzira. Era fato que tinha treinamento para salvar a irmã, ainda que fossem muitos os inimigos. Então para a sua surpresa a imagem de Alice se fez no seu horizonte: — Merda! Eu vou atropelá-la! Quando a motocicleta se aproximou de Alice, a mesma fitou Renan com um olhar severo. O jovem tentou desviar e na manobra, acabou perdendo o controle da sua moto e caindo naquele asfalto. Alice desapareceu. — O que está acontecendo? — Renan se levantou com a jaqueta rasgada e uma escoriação no ombro. Retirou o capacete e caminhou em direção ao galpão. Lá chegando, notou que os alambrados estavam partidos. Entrou por ele e se escondeu entre os caixotes: 112


— Acho que Jéssica é mantida refém aqui mesmo! Vamos ver se consigo vê-los! — sacou seu binóculo da jaqueta — Como pensei, mas apenas dois estão vigiando Jéssica que está mantida amarrada em uma cadeira. Sorriu e depois continuou para si mesmo: — Não vai ser difícil! Espere, isso pode ser uma armadilha. Está parecendo fácil demais e ainda tem Alice que vi pouco antes de cair com a moto! Renan se moveu habilidoso entre os caixotes e se aproximou sem ser notado. Estava bem mais próximo agora: — De qualquer modo — disse baixinho — Só saberei se cair na armadilha. Depois, em alto tom, falou: — Ei vocês! Eu vim salvar minha irmã! Van sacou sua pistola e desferiu disparos contra Renan, mas não pôde atingilo. Camila, por sua vez disse: — Caso não se renda, vamos matar sua irmã! — Apontou o revolver para a cabeça da Bispo. — Não fariam isso! Vocês são os mocinhos e eu o vilão! — Renan gritou de lugar incerto. — Quer apostar? Não é uma armadilha, deduziu o Torre. Caso fosse eles não pediriam sua rendição para poupar Jéssica. Então, ele ainda tinha o 113


elemento surpresa ao seu favor se mantivesse os inimigos falando: — Eu acho que vou querer apostar — Renan gritou mais uma vez — Se bem que eu posso amar minha irmã, mas não sei se trocaria minha liberdade pela vida dela... — Você não tem coração! — Camila retrucou. — Sabe que não é a primeira a dizer isso... Fez-se o silêncio. As cordas que prendiam Jéssica se partiram sem que ninguém notasse. Renan então saiu das sombras agora abraçado à irmã: — Onde estávamos mesmo? Ah, lembrei: na parte em que você dizia que eu não tinha coração! Renan sacou sua espada depois dessas palavras e se preparou para o combate, quando então ouviu uma voz estranha lhe chamar: — Renan! — Quem está aí? — Não se lembra? — Apareça para morrer, desgraçado! — Eu já estou morto! Você me matou, mas nem se recorda, foram tantos não é mesmo? — Volta pro inferno então! 114


— Eu vou voltar, mas você irá comigo! Então Reinald surgiu do nada e desferiu um poderoso soco contra Renan, que não houve como defender: — Re-Reinald — disse antes de cuspir sangue. Renan via Reinald não como Joaquim o vizinho de Camila. Via-o como Reinald da época em que eram irmãos e integrantes do Xadrez. Enxergava um homem de cabelos castanhos escuros nem compridos e nem curtos, fixados com gel, de olhos azuis e que trajava sobretudo negro: — Miserável! Você não podia continuar morto? — Renan esbravejou e se colocou em pé — Mas eu vou matar você de novo! — Avançou com sua espada. A arma repousou no peito de Reinald e ele então começou a mudar de forma: — Renan! O que está fazendo? — O sangue escorreu do canto dos lábios de uma moça de cabelos dourados. — Alice? – O Torre retirou a arma do ventre da amada. — Eu estou aqui, irmão — Reinald apareceu atrás de Renan — Ou em qualquer outro lugar ou mesmo nem vivo; seja apenas o remorso da sua consciência! — Seu desgraçado! Eu sei dos seus poderes mentais! Está usando deles para gerar essas ilusões! Apareça cachorro! Lute como homem, sem truques! 115


— Estaria eu usando dos meus poderes, realmente? — Vamos Reinald! Eu não tenho o dia todo! — Renan olhava de um lado para o outro. — Está bem! — Reinald apareceu de espada em punho — Vamos lutar ao seu modo. Torre sorriu. Depois avançou e o atrito das lâminas faiscou em dourado. Renan atacava com habilidade e Reinald de similar habilidade se defendia: — Vai ficar se defendendo o tempo todo! Continua o mesmo bundão de sempre, Reinald. O Rei esquivou-se do ataque do irmão e aproveitou a deixa para cravar a sua arma entre as costelas dele. Renan urrou de dor e caiu de joelhos: — Maldito! Me pegou de jeito! — O sangue veio-lhe a garganta. Renan caiu aparentemente morto. — Ele está morto? — perguntou Van, tirando seu chapéu. — Mas você não fez nada? Como pôde matar o cara se nem tocou nele? — indagou Camila ao se aproximar. — Ele não está morto, Van. Eu toquei nele sim, Camila! Talvez não fisicamente, mas lutamos muito para que ele tombasse...

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Jéssica ainda amarrada fitava Renan caído: — Reinald, tem certeza de que ele não está morto? O que vai fazer agora? — Agora eu vou usar o corpo de Renan para me infiltrar no Xadrez! A mente dele está temporariamente “desligada” por assim dizer. Você irá comigo, Jéssica. Camila e Van vão nos monitorar de longe. Quando precisarmos faremos contato.

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CAPÍTULO 14 EU AINDA TE AMO “Quando se ama pela primeira vez, se ama com toda a intensidade. Nas outras vezes temos limites”. O barulho do motor da motocicleta de Renan ia se fazendo cada vez mais perto. Quando o farol iluminou a fachada de jequitibá do sítio onde Pai e seus filhos se encontravam, Alice saiu do abraço de seu marido e se levantou para ir até a varanda recepcionar quem vinha. Raquel, Hugo e Gabriela fizeram o mesmo. — Jéssica! Você está bem? — foi a primeira pergunta de Alice que tinha seus cabelos embaraçados pelo vento — Ficamos preocupados! — Estou — Jéssica tentava ser natural — Renan me salvou. — Renan! Que bom que você voltou. Tive um mau pressentimento — Alice colocou a mão no peito. Gabriela ficou desconfiada: — Salvou de quem? — Indagou ela. — De... Dos... — Jéssica se atrapalhou para responder, construindo uma falsa verdade.

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Renan que na verdade era Reinald interveio: — Salvei-a daqueles policiais: Camila e Van! — Mas nós não eliminamos este tal de Van? – Hugo colocou a mão no queixo. — Não fizemos um trabalho bem feito. Mas agora está bem feito. — Renan, você está estranho, o seu sarcasmo habitual parece que desapareceu. — Raquel fitou-o ao se aproximar. Reinald quase que vacilou. Ele sabia que por trás daquelas lentes acinzentadas estava o olhar castanho de uma menina desajeitada. Sabia que por trás daquele corpo perfeito e de fartos atrativos sexuais, coberto pela sombra daquela noite, estava a menina feia que conhecia. Raquel sentiu os pelos de sua nuca se arrepiar. Passou com a mão sobre seu dorso: — O que aconteceu? — Raquel — fez uma pausa — Estou cansado — Virou-se e adentrou na mansão de Pai. Jéssica seguiu seu irmão e Raquel olhou para seus outros irmãos e viu neles as mesmas dúvidas que tinha consigo. O que teria acontecido? Aquela noite estava demasiada quente. Raquel revirou-se várias vezes na 119


tentativa de encontrar a melhor posição para dormir. Em vão. O sono parecia tê-la abandonado. O que estava acontecendo? Ela sentia uma ansiedade invadir-lhe o peito, como se alguém há muito tempo perdido estivesse prestes a visitá-la; como se a futilidade de sua vida acabasse ou estivesse para dar uma pausa. Preferiu levantar-se. Galgou pela escadaria de madeira e desceu até o saguão principal. Ascendeu a luz para rumar para a cozinha. Lá, agarrou um copo e o encheu de leite. Voltando para o saguão a fim de sentar-se e ver um pouco de TV a Rainha viu alguém que a fez derrubar seu copo de leite. — Reinald! — seus olhos se encheram de lágrimas — É mesmo você? Ou mais uma das ilusões da minha mente? — Depende — Disse o Rei Ela se lançou ao encontro do jovem e o abraçou com fúria. Com os olhos lubrificados pelas lágrimas, a menina perdeu suas lentes de contato e voltou a ter o olhar castanho, manchado pelas lágrimas incessantes. — Deus! Como eu pedi para revê-lo! Como quis... Ele a fitou e enxugou suas lágrimas com o dorso da mão: — Raquel, o que fizeram com você? Por que este corpo, este rosto? Onde está você de verdade? 120


— Não acha que estou melhor assim? Mais bonita? — Acho que está vazia... Raquel abaixou o olhar. — Estou vazia, Reinald, desde que parti e nunca mais te vi, desde aquele dia em que você me completou. Perdendo você eu perdi a mim mesmo. Reinald encostou seus lábios lentamente aos de Raquel. Mordeu-os e ela então abriu os olhos e em vez de Reinald viu Renan. Afastou-se rapidamente: — Renan! Desculpe! — Colocou a mão sobre o lábio que sangrava — Estou ficando louca. — Não há porque se desculpar, Raquel. Eu ainda te amo! Então Renan se tornou Reinald novamente. Raquel o abraçou e sua respiração se tornou acelerada ao passo que o jovem a agarrou pelas coxas e a jogou no sofá. Reinald beijou-a de diversas maneiras e suas mãos passaram por lugares diversos do corpo daquela musa, enquanto ela mordia os lábios para não gritar. Os lugares iam se tornando cada vez mais proibidos, ao passo que a menina retorcia-se toda. Ele desceu com a mão pela vestimenta íntima de Raquel fazendo com que aquele tecido de algodão escorregasse pelas suas pernas. Reinald encostou com o seu corpo sobre o da moça e se amaram ali naquele sofá, sobre a luz do 121


luar que atrevida invadia pela vidraça semiaberta do saguão. Depois de algum tempo adormecido, o Rei houve de despertar. Sobre o seu peito repousava sua amada Raquel. Aquela cena parecia uma reprise de algo já vivido, mas ele não soube com clareza. O seu suor ainda se misturava ao dela e o odor natural dos seus corpos era possível ser sentido por suas narinas. Afastou-a do seu peito e vestiu-se. Vestiu-a também e a colocou nos braços para levá-la até seu quarto. — É melhor que não saiba, Raquel — beijou-a pela última vez e saiu dos aposentos da mulher. Na manhã seguinte, num lugar bem distante, havia uma manifestação. Muitas pessoas estavam perante o Palácio do Governo, exigindo a aceitação do Xadrez: — Isso é um absurdo! — Um homem de idade avançada olhava a multidão pela vidraça da sua sala espaçosa. Levou seu copo com uísque até a boca: — Nunca imaginei que meu país pudesse ser infectado por este “xadrez” — Senhor, ele está aqui — A voz de um subalterno trouxe o presidente de volta dos seus devaneios: — Mande entrar.

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Então Pai e alguns de seus filhos adentraram pelo portal duplo e carvalho trabalhado que dava acesso ao gabinete do presidente. Gabriela e Samuel ficaram em pé, ao passo que Pai e Patrícia se sentaram: — Seus capangas? — O presidente acendeu um cigarro. — Meus filhos! — Pai sorriu — Está bem – o chefe do poder executivo apagou o cigarro num cinzeiro de vidro — Vamos conversar. — Estamos ouvindo. — Eu quero paz! Quero estabelecer uma parceria com o seu Xadrez! Juntar forças! — Continue. _ O País todo tem cobrado de mim! Tem mencionado sobre o seu movimento! Que ele acaba com a fome; que dá casas! Que acaba com os bandidos! Eu não sei como você fez isso, Sr. Elio, mas os resultados estão aí para comprovar o que digo... — Fico lisonjeado, Excelência! — Quero assumir o Xadrez! Quero legalizá-lo e fazê-lo parte do meu programa de governo! Pai ficou sério: — Entendo — pausou — Mas o Xadrez não faz parte de nada, Sr. Presidente! As outras coisas é que fazem parte dele!

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Estaríamos mudando os lados, se o senhor me entende... — Como? — Simples, Excelência! O governo é que vai fazer parte do Xadrez! – Pai se levantou. Patrícia fez o mesmo. — Está brincando, não está? — O Presidente levantou também. — Eu tenho as pessoas do meu lado, tenho os recursos! Samuel sacou sua arma e a apontou para a cabeça do chefe do país. Disse então: — Não há escolha! – Engatilhou a arma.

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CAPÍTULO 15 O CORPO DO REI “Minha maior fraqueza não é física, consiste na injustiça.” Raquel acordou por volta do meio dia e um nome veio a sua mente: Reinald, ela o sentia perto. Estranhamente, noite passada, tinha sonhado com seu amor perdido, pareceu tão real. Raquel levou sua mão ao lábio inferior e constatou que ele estava mesmo cortado; como no sonho. Estava sem suas lentes de contato; as tinha perdido em algum lugar e o seu olhar voltara ao castanho de antes de tudo. Fitava-se num espelho de mão: Teria mesmo ele vindo aqui noite passada? Pensou consigo. Se veio, por que desapareceu de novo? — Bom dia, flor do dia! – Uma voz se seguiu depois de um abraço. — Bom dia, Roberto! Boa tarde não é? — Pode ser! Estava esperando que acordasse... — Desculpe por estar dormindo. — Não se preocupe — sorriu o músico — Princesa, parece triste? Espere... Seus olhos eles mudaram de cor! — Roberto fitou Raquel nos olhos e ela desviou seu olhar. 125


— Meus olhos são castanhos. Perdi as lentes em algum lugar... — Não faz mal! Está igual, senão mais linda do que antes! A musa deu um discreto sorriso. Roberto continuou: — Passei aqui para almoçar com você! Amanhã estarei embarcando para outro país numa turnê. — Vai me abandonar? — Raquel abraçou o namorado. Beijou-o na testa e depois o puxou pela mão – Venha, vamos almoçar! Deixe-me aproveitar o pouco tempo que me resta com você. Noite no hospital municipal. Joaquim, vizinho de Camila e faxineiro do hospital andava de um lado para o outro. Estava ali para zelar por um paciente em coma. O quarto parecia sem vida fazia tempo e a única coisa em que os pensamentos de Joaquim se prendiam era à indagação: — Mas como? Como este rapaz que está em coma pôde se apossar do meu corpo? Eu não me lembro de nada dos últimos dias. Camila, disse que eu sou um deles agora, um deles para o quê? Se o tal de Rei não está mais no meu corpo onde ele está agora? O barulho da maçaneta trouxe Joaquim dos seus devaneios:

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— Camila — disse ele — Eu preciso que me explique novamente sobre este Rei que devemos vigiar — Trouxe um café para você, pegue — Camila se comportou indiferente — Está frio lá fora. — Eu preciso que me explique! — Joaquim eu já te disse o que sabia! Rei foi um membro do Xadrez! Um membro importante! Ele é o único capaz de deter esta loucura! Para que isso dê certo ele nos encarregou de zelar pelo seu “corpo físico”! Os inimigos não podem vir aqui e tirá-lo dos aparelhos para que seu corpo deixe de se manter vivo! O corpo é o que liga sua mente para os outros corpos que ele deseja dominar! — Isso é loucura! — Joaquim passou com a mão na testa. — Descase, vizinho! Deixe-me aqui com Reinald! Eu vou zelar pelo corpo dele durante a noite. — Eu acho que preciso mesmo. Camila acompanhou com o olhar a saída de Joaquim. Sentou-se na poltrona de couro rasgado e suspirou. Abraçou seus próprios ombros num gesto de afastar o frio que sentia: — Então Reinald? Onde você está agora? — Renan? 127


— Bispo! O que quer? — Reinald atendeu ao telefone ainda sonolento. Estava dormindo. — Preciso que venha até o Distrito Federal. Tenho uma missão... — Está bem. — Pai vai escolher o novo Rei! O telefone foi desligado por Odirley. Ele então fitou Pai que estava ao seu lado: — Eu o chamei, Pai! — Disse o Bispo. — Excelente! Designe Samuel, Hugo e Eduardo para a outra missão... — Ok! Na propriedade rural de Pai, onde ele escondia os seus filhos e se escondia também, Raquel estava caminhando pelos corredores da mansão. Rumava para os seus aposentos, quando então ouviu uma conversa que saltava pela porta entre aberta dos aposentos de Hugo: — Venha vamos logo! — dizia Hugo nervoso — Sam está a caminho e ele não vai tolerar atraso. — Não esquenta, Hugo! — Eduardo parecia mais calmo — Qual problema pode haver? — Você não conhece nossa vítima. — Um moribundo em coma? Samuel é o melhor assassino do mundo! Como poderia falhar em matar um sujeito em coma?

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— Fale baixo, Peão! Não sabe que as paredes têm ouvidos! — O quê? Não posso dizer que Samuel vai matar o Rei e que vamos ajudálo? Raquel quase que soltou um gemido para expressar sua surpresa. Segurou-o com a mão entre os lábios. Eduardo continuou: — Responda, Hugo! Você também é mais um paga pau do Rei, não é? — Cale-se! Pegue suas coisas e venha! Vamos ao hospital municipal. O hospital municipal, assimilou Rainha, era ali que Reinald estava. Raquel saiu correndo ainda de camisola e passou por Jéssica no corredor: — Aonde vai, Raquel! Raquel espere! Mas a musa não deu ouvidos à irmã. Havia, de algum modo, impedir que Reinald fosse morto. Agora as coisas faziam sentido, pensava enquanto corria. Era mesmo ele que estivera com ela noite passada! Era um aviso! Apenas ela poderia salvá-lo! Não mediria esforços para conseguir. Raquel avistou a camionete de Ciro parada sobre o gramado. Deduziu que a mesma estava com a chave no contato, pois os vidros estavam abertos. Entrou e constatou que estava certa. Deu partida e deixou o sítio em velocidade. — Vamos, vamos! — Raquel agarrou o celular e ligou para a polícia — Alô? É da 129


polícia? Ótimo! Haverá uma tentativa de assassinato no hospital municipal esta noite! Passados alguns minutos ela deixou a camionete de Ciro estacionada de qualquer jeito e entrou correndo no prédio do hospital: — Preciso muito ver um paciente — disse ofegante. — A senhora está de camisola e descalça! O que está pensando? — Não me ouviu? Preciso ver um paciente, rápido! — Senhora, terei de chamar a segurança! — É importante! Vão tentar matá-lo! Preciso impedir. — Acalme-se! A segurança já foi chamada e eles vão resolver tudo. Raquel deixou a recepcionista falando sozinha e correu pelas escadarias. — Seguranças! Peguem essa mulher maluca! — foram as palavras da recepcionista ao apontar para a moça de camisola. Raquel parou em um andar qualquer. Ofegante pensou como encontraria Reinald. Ali perto Samuel descia do táxi. Avistou ao longe Hugo e Eduardo. Agarrou sua bolsa negra e pagou o seu transporte: — Vamos lá, matar você de novo, Reinald! 130


CAPÍTULO 16 MORTE “Por egoísmo ou por vaidade, esquecemos que morremos”. As sirenes da polícia quebraram o silêncio daquela noite e trouxeram a atenção do assassino para a janela: — Merda! — Sam sacou seu revolver — Qual de vocês deixou informações vazarem — apontou para Hugo e depois para Eduardo — Odeio amadores! — Qual é, Sam! Não olhe para mim! Eu não tenho a boca grande — Hugo cruzou os braços e olhou para Eduardo. — Peão filho da puta! — Samuel engatilhou a arma — Não, por favor! Não atire! A porta atrás de Eduardo se abriu neste momento. Sam atirou. O segurança que abrira a porta, agora jazia no chão de carpete do hospital. Samuel guardou a arma: — Vamos fazer logo o que viemos fazer! Eduardo vá pelo corredor à direita e vigie as escadas! Hugo me siga! Sam e Hugo avançaram cientes do quarto que buscavam. Quando puderam avistar a porta uma mulher os aguardava: 131


— Saia — Sam empunhou a arma — Não quero matar uma mulher – se aproximou. — Vai se foder! — Camila sacou seu cassetete e o lançou contra a mão armada de Samuel. O assassino largou a arma. Camila deu-lhe um poderoso chute no rosto, fazendo-o cair. Hugo, vendo a dificuldade do irmão, tentou agarrar a moça por trás, mas acabou levando uma cabeçada. — Vadia! — Disse ele ao colocar a mão no nariz. Enfurecido Hugo avançou contra Camila e a agarrou pela cintura. Jogou-a no chão. — Vá Samuel! Mate Reinald! Samuel se levantou lentamente. Agarrou sua arma e mirou em Camila que se atracava com Hugo: — Deixa pra lá — fechou os olhos e desistiu de atirar contra a policial. — Não! — gritou Camila ao ver Samuel caminhar lentamente para dentro do quarto de Reinald. Hugo a segurava de maneira a impossibilitar sua fuga. Enquanto isso, Eduardo vigiava as escadas para impedir que alguém subisse por ali. A este ponto, a energia já estava desligada para impossibilitar o acesso pelos elevadores e a luz se fazia agonizante pela energia dos geradores. Quando a tropa 132


policial avançou pela escadaria, o Peão sacou seu explosivo plástico e o preparou para impedir o progresso dos policias. Após a explosão as escadas ficaram inacessíveis e os policiais ficaram presos nos andares inferiores. — Missão cumprida! — sorriu ele. — Será mesmo? — Van apareceu entre a fumaça dos explosivos — Eu sou esperto, guri — acendeu um cigarro. — Filho da puta! — Eduardo sacou seu revolver e desferiu disparos contra aquele homem de chapéu de couro e de sobretudo negro. Os disparos atingiram a coluna de concreto que Van fez de escuto. Por sua vez, ele sacou sua arma e disparou contra o Peão. Raquel ouviu os disparos! Orientou-se por eles para tentar chegar onde Reinald estava. Os disparos se sucediam sem sucesso, tanto por parte de Van List quanto por Eduardo. — Miserável! — Disse o Peão! — Por que você não morre? — É uma questão interessante... Van se levantou e atirou mais uma vez. Eduardo sentiu o concreto da pilastra que ele usava de escudo estilhaçar. — Que acha de um duelo? 133


— Por mim... — Vamos fazer assim para não ficarmos sem munição... — Ok — Van apagou seu cigarro e saiu de trás da pilastra. Eduardo fez o mesmo. Samuel entrou no quarto e se deparou com Reinald deitado naquela cama. Fitou-o por um tempo e viu que respirava por causa dos aparelhos que agora funcionavam em razão dos geradores de energia: — Nós fodemos com você, irmão — disse ele ao sentar na cadeira ao lado da cama — Sabe, eu tenho pena de você. Não pôde nem morrer... Afastou seus cabelos da testa e olhou a arma que segurava: — Queria que as coisas fossem diferentes, Rei. Não queria ter dado aquele tiro pelas suas costas. Você merecia um tiro de frente, mas hoje eu vou fazer diferente! Não vou desligar os aparelhos — Samuel se levantou e passou com a mão na testa de Reinald. — Vou te dar a chance de se defender! Ficarei de frente e mirarei no seu peito; como os homens fazem! Quando eu contar três, atirarei! Se puder fazer algo para impedir... Eduardo e Van estavam frente a frente:

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— Quando eu contar três, ok? — Eduardo falou e Van assentiu. 1 2 A porta do quarto de Reinald se abriu inesperadamente. Samuel que a este tempo contara até dois, virou-se habilidoso e levou sua mão ao gatilho para atirar contra quem tentava entrar no recinto. 3 E houve o disparo. Eduardo sentiu seu peito queimar. Suas pernas perderam a força e sua respiração ficou dolorosa. As forças foram se esvaído juntamente com o sangue da ferida agora aberta. Caiu de joelhos sentido o sangue invadir sua garganta. Tentava engolilo, mas era em vão. Van guardou sua arma e avançou pelo corredor. Ouvira o segundo disparo e sabia que não era Eduardo que o tinha providenciado. Samuel ficou sem reação e com a arma ainda apontada em direção a porta. Agora uma mulher da camisola branca jazia manchando o carpete com seu sangue. 135


— Puta que pariu! — Samuel correu em direção de quem atingira. Levantou-a do chão, colocando-a no leito dos seus braços: — Raquel, o que está fazendo aqui? — Sam — Disse a menina ao agarrar a gola da camisa do irmão e deixá-la rubra — Eu vim salvá-lo! — Perdão! Eu não queria acertá-la! — As lágrimas invadiram o olhar do Torre. — Sinto muito. — Shhhhhhhh — Raquel levou sua mão aos lábios do irmão — Eu consegui salvá-lo! Cheguei a tempo... Agora eu estou muito cansada... Preciso descansar. Raquel fechou seus olhos e as lágrimas escorreram por eles: — NÃO! — gritou Samuel ao abraçar a irmã com força. Camila, aproveitado a distração de Hugo ao ver o que Samuel tinha acabado de fazer, conseguiu se libertar e no impulso sacou a sua arma e disparou de onde estava contra Samuel. O barulho mal se fez aos ouvidos do Torre quando ele sentiu o chumbo lhe atravessas as costelas. Levou a mão ao ferimento: — Merda! — procurou pela sua arma pare revidar aquele disparo. Quando a viu descansar sobre o chão manchado pelo sangue de Raquel, desistiu: 136


— Chega de mortes por hoje... — disse ao cair sobre o corpo da irmã.

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CAPÍTULO 17 O PAI E O REI “Um homem pensa em si, um pai pensa por seu filho”. A chuva caía mansamente e os pingos batiam contra a viseira do capacete de Reinald. A moto de Renan, que agora estava sobre seu domínio, atravessava a pista levando-o ao almejado encontro com Pai. Então, para desconcentrá-lo, uma sensação ruim invadiu-lhe precedendo o chamamento de seu nome. Reinald ouviu com tanta clareza o grito por sua presença que acabou perdendo o controle da motocicleta e caindo. Seu corpo desgovernado deslizou pela pista molhada e a moto ganhou as extremidades do canteiro. Ele ficou ali debruçado e sua roupa havia se rasgado em algumas partes ao passo que seu ombro tinha sido deslocado. A dor física não se comparou à dor da sua alma e ali deitado, o Rei chorou. Ele conseguiu sentar e retirou o capacete. Olhou para o céu acinzentado e deixou que a chuva lavasse o seu pranto. Depois colocou o seu ombro no lugar ao som do estalar de ossos e de um urro doloroso. Pôs-se em pé e visou a moto.

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No hospital onde Raquel foi morta, policias agora estavam ali recolhendo os corpos e isolando a área. Camila chorava compulsivamente, Suas mãos tapavam sua boca na tentativa fútil de conter o pavoroso som que tentava deixar seus lábios. As lágrimas eram quase desenfreadas. Van se aproximou: — Mila! Tudo vai ficar bem... — Van, por Deus! Eu matei! Matei aquele homem... — Você não teve escolha. Ele ia matar Reinald. Já havia matado aquela mulher — List referia-se a Raquel. — Mas um deles... Um deles fugiu A mente de Van quase que ao mesmo tempo em que a de Camila voltou no tempo em alguns minutos: — Malditos – Hugo se afastava com a arma em punho — Mataram meu irmão! Mataram minha irmã! — Espere! — Van tentava manter a calma — Podemos ajudar você! — Cale a boca, filho da puta! — A polícia está chegando! Não há como fugir! Hugo fitava Camila e Van com os olhos carregados pela emoção. Na verdade ele queria alguém para consolá-lo. Estava demasiadamente abalado, mas tentava não perder o controle. Por isso apontou sua arma entre Van e Camila e disparou. Os dois 139


policiais se abaixaram e concederam a oportunidade perfeita para que o Cavalo saltasse pela janela. — Por que tudo isso? — Essa frase de Camila trouxe os policias para o presente. Camila abraçou Van e chorou sobre o peito do parceiro. Capital do país. O barulho de uma moto trouxe o olhar de Pai para a vidraça. A água da chuva acariciava o vidro, como se estivesse cuidando dele. O ar quente emitido pela respiração do velho homem embaçava a vidraça, forçando-o a limpar com a manga do seu paletó: — Ele chegou. Reinald no corpo de Renan tirou o capacete e fitou a imensidão daquele prédio. A chuva atingiu o seu rosto, ele estava ferido e cansado. As escadas pareciam infindáveis e quando o Rei chegou ao portal de vidro, percebeu que estava destrancado. Entrou e notou pelo saguão principal que aparentemente o prédio parecia vazio e isso o levou a deduzir que já era aguardado. Ao final do corredor havia uma porta dupla fechada e a luz estava acesa. O Rei se aproximou, empurrou a porta e percebeu que havia alguém sentado de costas para a escrivaninha, fitando a janela fechada. 140


Ele caminhou até a escrivaninha e ali repousou seu capacete. Pai se virou e se levantou. Fitaram-se em silêncio por longo minuto até que Reinald abraçou seu pai e rendido chorou ali mais uma vez: — Lamento – Foi a única palavra de Pai para o momento. Sobre a mesa havia um tabuleiro de xadrez. — Pai — Reinald deixou escapar essa única palavra também. Ao lado do tabuleiro havia uma garrafa. — Chega de armas; chega de mortes; chega de manipulações, filho! Quero apenas terminar isso com um jogo. Eu sabia que um dia teríamos essa partida. Tive medo, confesso. Por isso, tentei impedir você de chegar até mim para esta oportunidade. Hoje vejo o quão tolo fui. — E o seu sistema? Você pode acabar comigo facilmente... — Não tão fácil. Mas estou cansado, desejo jogar! — Se eu vencer? — Se vencer o Xadrez será seu. Poderá fazer o que quiser devolver o mundo aos corruptos e ao capitalismo’, pois eu não sobreviverei para ver isso! — Se perder? — Você que não sobreviverá. Ao lado do tabuleiro está uma garrafa com uma 141


solução de estricnina. Vou encher dois copos com ela. A cada jogada tomaremos um gole do veneno. Quanto mais demorar a partida mais veneno ingeriremos e poderemos ambos morrer! Quem conseguir dar XequeMate força o outro a beber toda a solução de veneno restante na garrafa. — Há o antídoto para quem vencer? — A cura para o envenenamento por estricnina é o diazepam intravenoso e carvão ativado. Ambos estão no armário — Pai apontou. — Certo, então vamos jogar! Reinald sentou de frente para Pai. O tabuleiro já estava devidamente preparado. Pai encheu dois copos com a solução venenosa: — Quem começa? — Reinald suspirou. — Eu! — Pai moveu um peão duas casas para frente e tomou um gole de veneno. Reinald mexeu com seu peão lateral em apenas uma casa adiante e tomou o seu gole de veneno. Alguns goles de estricnina se sucederam até que os peões abrissem espaço para as peças maiores poderem atuar. Reinald moveu sua rainha em diagonal e alcançou um cavalo de Pai. Na próxima jogada o líder do Xadrez devorou a mencionada rainha, usando de um bispo. 142


— Perdeu uma preciosa peça, filho! — Pai tomou sua dose nociva. Reinald tinha em mente uma jogada eficiente. Não desejava tomar muito veneno. Para dar certo era preciso mesmo o sacrifício de sua dama. Moveu agora uma torre de maneira discreta. Tomou sua dose.

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CAPÍTULO 18 XEQUE-MATE “O fim é um estado em que não se pode progredir nem regredir, é um cerco”. A ansiedade é um dos primeiros sintomas do envenenamento por estricnina. Reinald tentava se conter, mas seus nervos já não obedeciam como antes. Suas jogadas já não tinham a mesma eficiência. Ele tremia a cada movimento. Mudou um bispo de lugar. Pai jogou, mexendo com um peão. Na sua vez, Reinald devorou aquele mesmo peão e repousou seu bispo em seu lugar. Aconteceu que Pai moveu sua rainha de maneira a possibilitar a morte do Bispo de Reinald e ainda um xeque: — Xeque — a voz trêmula de Pai quebrou aquele silêncio. Reinald se defendeu movendo seu rei. Tomou a sua dose de veneno. Na próxima jogada, Pai fez mais um xeque, movimentando uma de suas torres: —Xeque — disse com dificuldade. Os músculos do Rei estavam rígidos devido ao veneno e até mesmo aquele sorriso fora difícil de expressar. — Por que o sorriso, Reinald? 144


O Rei moveu seu cavalo estrategicamente para que seu sacrifício lhe livrasse do xeque. Tomou sua dose. Pai por sua vez devorou o cavalo, mas não notara que havia ficado com a rainha sem defesa. Reinald devorou a rainha inimiga com uma de suas torres e de quebra posicionou-a de maneira a cercar o espaço do rei de pai: — O que isso significa? — Pai jogou seu bispo de forma a possibilitar outro xeque — Xeque! Tomou seu veneno. O Rei devorou o bispo inimigo com seu outro cavalo e pai em sua outra jogada apenas moveu um peão. — Acabou, Pai — foram as palavras de Reinald pouco antes de jogar. Ele moveu seu cavalo restante com a finalidade de impedir o avanço do rei inimigo, aproveitando-se de que o mesmo se encontrava protegido pelas duas torres de Pai. Não havia, portanto, espaço para que o líder do Xadrez fugisse do seu destino: — Xeque-mate, Pai... — Reinald tomou o resto da sua dose venenosa. — Não é possível! — Pai tentou arrumar um modo de escapar, mas não pôde encontrar. Sua perdição fora proteger demais o seu rei. Havia levado um xeque-mate de apenas duas peças inimigas. Esforçou-se para se colocar em pé. Reinald fez o mesmo. Fitaram-se por alguns segundos: 145


— Dê-me a garrafa — disse Pai. Alice fitou sua irmã Jéssica, quando esta acabara de puxar o freio de mão do seu veículo: — Eles estão ali? — Sim. Invadi o sistema de Odirley e grampeei suas chamadas. Eles estão sozinhos no prédio. Mas eu já te disse Alice, não se trata de Renan e sim de Reinald. — Eu entendi, Jéssica. Temos que impedi-los de se matarem. — Samuel, Raquel e Eduardo estão mortos! Hugo está desaparecido, tudo está uma zona. Temos que fazer alguma coisa, irmã. — Vamos então — a jovem professora de cabelos dourados deixou o veículo com uma pistola na mão. Chovia mansamente ainda. Já estava escuro e as luzes do Palácio Central estavam todas apagadas. As duas meninas adentraram no recinto com lanternas acesas. Foram até o último andar onde encontraram o gabinete do Presidente. A porta dupla estava aberta forçando-as a investigar: — Meu Deus! — Alice deixou sua arma cair quando fitou aquela cena. — Droga! Vai, vai, traga-me algumas toalhas da cozinha! Precisamos estancar todo este sangue.

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Alice ficou parada com lágrimas nos olhos e Jéssica continuou: — Vamos Alice! Quer salvar Renan ou não! Corra! A menina disparou pelo corredor, rumo à cozinha. Jéssica tirou a jaqueta de Renan. Depois a camiseta branca manchada de rubro. Havia perfurações de projéteis em seu pescoço e em seu abdômen. Pai estava caído logo ao lado com um revolver em punho. Sua mão estava rígida e era impossível retirar a arma: — Reinald, o que aconteceu aqui? — Ela perguntou para o inconsciente baleado. — Jéssica! Achei algumas toalhas! Tome! – Alice adentrou as pressas no recinto. — Certo! Pegue o meu celular e ligue para o Odirley. Diga que Pai está morto e que preciso de um helicóptero urgente! De médicos; os melhores! — Está bem! — Caraca, ele está com as mãos duras também! Isso é — Jéssica pensou por um segundo — envenenamento por estricnina! Se eu conheço Pai, ele deve ter o antídoto por aqui — levantou bruscamente e começou a revirar a sala em busca do remédio. Ao final, no armário, encontrou diazepam e carvão ativado. Ministrou os antídotos através de doses intravenosas: 147


— Espero que ainda dê tempo. Camila e Van deixaram o Distrito Policial tarde da noite em um carro emprestado, vermelho, já bem velho: — Aquela mulher era tão bela — Mila quebrou o silêncio. — Verdade. O que pude compreender é que ela era apaixonada por nosso amigo Reinald, sacrificou-se por ele. — Isso que é amor — Camila sacou um cigarro. — Não disse que ia parar com isso? — Van deixou de olhar para frente enquanto dirigia para fitar sua companheira. — Dá um desconto, vai? Hoje foi foda. — Só dessa vez! — Van sorriu. — Nem tivemos tempo de conversar sobre nós. Primeiro nossas investigações sobre o Xadrez e depois a loucura com Reinald. — Verdade... — Van assentiu enquanto dirigia, atento. — Sabe, mas o que mais me doeu foi achar que você estava morto! Perdi o chão completamente. — Achou mesmo que se viria livre de mim tão facilmente, Comandante? — Não me chame assim, Van! O detetive puxou o freio de mão com força. Camila depois do susto se zangou:

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— Que merda você está fazendo, Van? — Que tal se eu te chamar de “minha esposa” — Van sacou do seu sobretudo uma caixinha negra. Camila ficou ainda mais surpresa: — Não está falando sério, está? — Nunca falei tão sério na minha vida, Mila! Tinha comprado o anel naquela manhã em que amanhecemos juntos! Mas desde aquela oportunidade não tive chance de fazer o pedido. — Van, seu cabeçudo! O detetive virou-se para Camila, pegando em sua mão: — Srta. Camila Soares, aceita se casar comigo? Camila deixou que as lágrimas molhassem seu sorriso: — Sim! Eu aceito! Van colocou o anel que simbolizava o noivado dos dois no dedo da amada. Beijo-a com muito amor tendo como testemunha apenas o velho veículo emprestado e os gatos que reviravam o lixo daquela esquina.

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CAPÍTULO 19 EU NÃO QUERO “As vezes não sabemos o que queremos, mas sempre temos por certo aquilo que não desejamos”. O som de aparelhos médicos se fazia distante para aquele jovem ferido. Renan sonhava com outros sons, com vozes: — Acha que ele vai sobreviver? — Depende apenas dele. — Mas a culpa de ele estar assim é sua! Não vai ajudá-lo? — Não sei se devo... — Eu também concordo com ele... — Parem vocês dois! Por favor, Reinald! Ajude-o! O helicóptero tinha vindo rápido. Odirley o havia providenciado depois que recebeu o chamado de Jéssica. Renan já havia sido levado para um grande hospital e recebia os melhores cuidados médicos. Estava em operação e do lado de fora todos os seus irmãos do Xadrez aguardavam notícias: — Deu tudo errado — Akira suspirou. — Eu não entendi bem o que houve? — Helena parecia cansada com um copo de 150


café entre os lábios — Reinald voltou e matou Pai é isso? — Porra vocês são muito burros! — Hugo em pé parecia muito nervoso — Eu sabia que isso ia dar merda! Tive que fugir da polícia depois que Samuel foi morto! Nessa bagunça sobrou para Raquel, Eduardo e Samuel! Agora Renan... — Vire essa boca pra lá, Hugo! — Alice afastou o abraço de Ciro — Se Renan morrer a culpa será sua por não ter matado Reinald! — Eu era amigo do Rei você sabe Alice! Fui lá contra a minha vontade, além do mais a este tempo tanto faz se Renan morrer ou viver! Xadrez já foi pro espaço... — Depois pensamos nisso — Odirley surpreendeu ao abrir a boca — Nossa prioridade é Renan. — Concordo! – Jéssica também quebrou o silêncio! — Traidora. — Gabriela falou cinicamente — Você nos traiu, deixou que Reinald matasse Pai. Jéssica abaixou a cabeça e fitou o chão sem palavras para o momento. — Pare de culpá-la, Gabi — Patrícia baforou depois de tragar seu cigarro — Temos que nos unir agora que não temos Pai...

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Renan, por sua vez, enquanto era submetido à cirurgia, lutava pela própria vida em seu sonho. Nele, o Torre se encontrava em um quarto todo branco sem janelas, deitado em uma cama: — Ei, acorde! — Era Reinald lhe chamando. — Seu filho da puta! Vou te matar! — Renan se levantou com agilidade — Merda onde está minha espada. — Nossa luta acabou faz tempo — Reinald suspirou — Você está morrendo. — Como é? Você me matou, desgraçado? — Sim e não... — Porra, Reinald! Fale sem rodeios! Reinald então se sentou na beira da cama e contou a Renan tudo que havia feito e tudo o que tinha acontecido. Quando o Rei terminou, o Torre abaixou a cabeça: — Filho da puta! Então venceu Pai? — Depois que venci o jogo de xadrez, aproximei-me de Pai com a garrafa de veneno em punho. Com dificuldade, levantei a mão e forneci a garrafa a ele. Pai agarrou-a e como combinado, bebeu todo o resto da solução venenosa. Depois, no entanto, ele sacou sua arma que vinha escondendo nas costas e apontou para mim. Disse que me amou tanto, e disparou duas vezes, os tiros pegaram no pescoço e no abdome.

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— Então foi isso que aconteceu? — Disse Renan. — Sim — respondeu-lhe o irmão — Eu não vou conseguir sobreviver, Rei! Tô fodido com esses dois tiros! Reinald colocou as duas mãos na cabeça de Renan e lhe fez ver uma cena do passado: A cena que se sucedeu mostrava Alice correndo pelos corredores daquele vasto prédio aos soluços. Seu rosto estava manchado pelas lágrimas e ela buscava desesperadamente pela cozinha a fim de arranjar panos para estancar o sangue de Renan. — Eu tenho que voltar! — Foi o que Torre disse assim que a cena se desfez. — Tem — Reinald tirou as mãos de Renan, se levantou e virou de costas. — Mas e você? — Eu vou ficar. Daquele cenário que voltara a ser um vazio branco, apareceram mais algumas pessoas. Ao vê-los, Renan deixou que lágrimas lhe invadissem os olhos: — Raquel! Samuel! Raquel abraçou Reinald pelas costas e descansou o queixo sobre o ombro dele: — Volte logo, Ren! — Sorriu ela. — Vai logo, panaca! Antes que eu acabe de te matar — Samuel virou-se com as mãos nos bolsos. 153


Passou-se um mês. Van estava nervoso demais. O colarinho de sua camisa estava molhado de suor e ele balançava sobre o altar. O padre fitava-o intrigado, pensado se o rapaz era maluco ou se tinha algum outro problema. Na verdade, o nervosismo era nítido em seus olhos. Quando a música teve início e o portal duplo de carvalho da catedral se abriu, todos ficaram em pé. Van achou que iria explodir. Camila se mostrou pela fresta do portal e seus olhos buscaram quem a aguardava lá no altar. Ela estava radiante. Tinha o vestido branco e enfeitado por rendas; os ombros desnudos e o véu escorria por eles. Sua maquiagem suave e seus cabelos soltos, como Van pedira. Ao seu lado, um homem calvo e bem elegante a conduziria para o futuro esposo. Carlos, pai de Camila tinha muito orgulho da sua menina naquele momento. Aproximavam-se do altar quando Van trêmulo veio ao encontro. Ele conduziu Camila pelo resto do caminho e teve inicio aquele matrimônio. Nos bancos de cedro envernizado, via-se Jéssica, a única do Xadrez por ali. Era fato que a menina tinha construído uma bela amizade com o casal policial. Ao seu lado, o banco era preenchido 154


por parentes dos noivos e amigos. A corporação policial estava em peso também. Jéssica se sentiu um pouco sozinha, mas devia presença aos amigos que ajudaram-na a salvar as pessoas de seus próprios irmãos. Por falar em seus irmãos, ela tinha perdido contato com todos eles. Cada um tomou um rumo diferente depois que Pai faleceu. Jéssica se sentia um pouco culpada por isso. Apenas ela tinha ficado na cidade e estava a procurar um sentido para sua nova vida. Seus devaneios foram interrompidos pela cerimônia: — Van List, aceita Camila Soares como sua legítima esposa? — o padre indagou ao detetive. — Sim! — Disse Van quase gaguejando O reverendo continuou: — Camila Soares, aceita Van List como seu legítimo esposo! — Sim eu aceito — Sorriu ela. — Então, pelo poder concedido a mim, eu vos declaro marido e mulher! Pode beijar a noiva. Os lábios de Van encostaram aos de Camila e as lágrimas de ambos escorreram pelos olhos. Aquele pequeno beijo tinha sido o mais sincero de todos.

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CAPÍTULO 20 EU ESTOU INDO EMBORA; EU ESTOU CANSADO E EU ESTOU APENAS COMEÇANDO. “Uma coisa muda, tudo muda.” Aquela manhã cinzenta começou com uma leve garoa e muito triste. As luzes dos postes ainda se mantinham acesas e as árvores brilhavam por causa da umidade. Renan, ex-agente do Xadrez estava saindo por uma porta velha de um hotel no subúrbio da cidade. Carregava sua mala e sua espada vinha presa ao seu corpo por uma bainha: — Até mais cidade! — Ele acenou para o prédio velho, despedindo-se. Até agora, quase dois meses depois de sua recuperação, Renan não sabia se houvera sonhado com Reinald ou se tudo aquilo acontecera de verdade. Estranhamente ele tinha vindo do coma e vindo por causa do Rei que o fizera ver sua amada Alice. Por falar em Alice, Renan não a via desde aquele dia: — Renan! — Alice se ajoelhou perante a cama em que o seu irmão estava deitado — Você está vivo! – as lágrimas mancharam o seu rosto ameno. 156


Ele passou com a mão sobre os cabelos dourados da moça e sorriu: — Eu te amo — disse ele quase sem forças. A porta do dormitório se abriu neste momento e por ela adentrou os outros irmãos de Renan, inclusive Ciro: — Pelo visto você já está pronto para levar um tiro! — ironizou Ciro, ao ver sua esposa ajoelhada junto do ex-torre. Renan sorriu: — Eu mato você no estado em que me encontro. — Parem vocês dois! — Odirley vociferou Depois disso, Renan lembra que ficou mais alguns dias no hospital. Seus irmãos iam lhe visitar, mas Alice não foi sequer um dia. Ele acreditou que a moça esteve apenas preocupada com ele, mas que não o amava o suficiente para deixar seu marido. Talvez fosse melhor mesmo para ela; que vida teria com um homem que só sabe fazer uma coisa na vida: matar. — Foi melhor assim — disse Renan para si, enquanto caminhava pela rua ainda deserta. — A chuva aumentara um pouco. Então para contrariar o seu conformismo, ele ouviu a voz doce de alguém que julgara nunca mais poder ouvir: — Renan! 157


A chuva engrossou de vez em seguida àquela palavra. Renan teve medo de se virar e de constatar que aquele chamamento tinha sido coisa de sua cabeça. Esforçou e se virou. Então contemplou a mulher da sua vida, banhada pela água que agora caía forte. Seus cabelos dourados lhe escorriam umidedecidos e sua maquiagem se desfazia da moldura que enfeitava os seus olhos azuis. Seu vestido simples esverdeado estava grudado ao seu corpo, ao passo que a água lhe contornava as curvas. Alice carregava uma mala. Renan soltou sua mochila e veio ao encontro da sua irmã adotiva. Quando chegou bem perto, ofegante disse: — Alice, eu pensei que... — Shhhhh — ela colocou a mão sobre os lábios do ex-torre. Renan então a beijou delicadamente, deslizando os lábios molhados sobre os dela. Depois, aos poucos, o beijo foi ganhando mais intensidade e presenciado pela chuva que caía forte, aquele amor se estendeu para sempre. Alguns anos se passaram. Rei estava cansado. Esquecido, sozinho num quarto abandonado do hospital municipal, Reinald não expressou qualquer melhora. Seu corpo físico tinha ficado ali, 158


inerte, por longos anos e sua mente sentia a necessidade de desligá-lo, afinal sua missão tinha sido cumprida. Agora, ele podia deixar de ser físico, de verdade. Sentiu vontade de sorrir, mas depois entristeceu, pois havia pessoas que queria muito conhecer e não poderia. — Ele morreu — disse um jovem, que parecia estar hipnotizado. — Quem morreu, Raul? — uma voz graciosa se fez nesta indagação. Os olhos de Raul estavam bem abertos e suas pupilas dilatadas. Sua irmã, Raira ficou assustada: — Raul? — Nosso pai! Ele acabou de morrer... Uma lágrima deixou o castanho-claro dos olhos de Raira. A menina tinha os cabelos extremamente lisos, compridos e castanhos; seu queixo era mais largo que o normal e seus lábios pequenos. Sua roupa era um vestido acinzentado e surrado, sem mangas e seus pés não tinham calçados. Tinha a idade de 12 anos e vivia nas ruas de um país distante, juntamente com seu irmão Raul. Raul, por sua vez era gêmeo de Raira. Tinha a pele bem clara e os olhos castanhos. Seus cabelos eram também compridos, mas saltava-lhe alguns cachos. Vestia uma 159


camisa surrada branca que já estava cinza e uma calça negra. Seus pés estavam sempre descalços. Passaram-se alguns anos desde que o Xadrez foi destruído. O mundo voltou ao seu normal. — Alô? Bispo? As pessoas puderam levar suas vidas como antes. Os bandidos voltaram a agir livremente. — Parece que encontrei os garotos! Os filhos do tal de Reinald. Não houve mais manipulação mental e tampouco mortes. — Capturá-los? Ok! Torre desligando. Pat desligou o celular e suspirou. A Bispo fitou seu celular que repousava sobre a cama sabia que em instantes ele tocaria e se concentrou para não se assustar quando isso fosse acontecer. Tudo aquilo ainda era novo demais para ela. Perdida em pensamentos, assustou-se quando o celular tocou: — Ai, merda — Pat colocou a mão no peito. — Assustei-me de novo — agarrou o aparelho telefônico e o atendeu — Alô? 160


— Bispo, sou eu Mãe! Pat estremeceu: — Pode falar, Mãe. — Creio que minhas ordens em relação aos filhos de Reinald foram cumpridas não? — Estão sendo, senhora! Designei João para a missão... — Ótimo. Mantenha-me informada. — Sim senhora. Mãe desligou o telefone. Seus olhos cansados fitaram suas mãos enrugadas: — Eu posso mudar o mundo se tentar... Quis eu fazer coisas boas. A senhora suspirou e depois continuou para si mesma em pensamentos: “Eu sempre fui boa em descobrir as coisas, desde o tempo em que eu era o Bispo de Pai. Assim, não tardei a descobrir o segredo de Raquel. Minha irmã, a Rainha do Xadrez, partiu da casa de Pai quando foi mandada para o exterior a fim de se tornar bela, grávida do Rei. Ninguém sabia e ninguém nunca soube por que Raquel colocou seus filhos em um orfanato quando os concebeu. Para todos os efeitos ela nunca tivera filhos. E revirando as coisas deixadas na mansão de Pai, eu descobri o endereço de onde minha irmã morava, quando foi submetida às operações plásticas que a transformaram na mulher linda que fora. 161


Visitei o local para averiguar e descobri todas essas coisas. Então, sem querer ou como se eu estivesse predestinada a reviver o Xadrez, comecei a visitar orfanatos e recrutar minhas peças. Primeiro com a intenção de encontrar os filhos de minha irmã, mas depois para montar meu Xadrez. Agora cá estou a treinálos e a monitorá-los! Raira será minha Rainha e Raul o meu Rei. Estou quase certa de que um deles, ou talvez os dois, possuem os “dons” de que Reinald dispunha. Eu vou precisar desses poderes...”. A campainha ruiu para afastar Mãe dos devaneios. Como já era tarde da noite e ela não dispunha de nenhum empregado naquele momento, foi pessoalmente atender. Quando abriu se surpreendeu com a visita: — Gabriela? — Disse ela.

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Capa: 2005, XADREZ de Stephen Coburn. Contracapa: Takaki

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