Edissa

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P A U L

L A W

1º Edição 2011


Copyright © 2011 by Paulo Antonino Scollo Junior Capa Kmila Zaoldyeck Diagramação Fagner JB.

L415e

Law, Paul Edissa / Paul Law - Mogi Guaçu: 2011 136 p.: 15.24 x 22.86 cm ISBN: 978-1-4699-7895-6 1. Ficção brasileira. 2. Contos brasileiros . I. Título CDD: 869

Todos os direitos reservados a Paulo Antonino Scollo Junior paulo.antonino@gmail.com Mogi Guaçu, SP – Brasil


Paulo, Maria de Lourdes e Giovanni, eterna família; Para minha nova família Miriene e Bárbara; Ao amigo Odirlei por admiração; Aos amigos que continuam fiéis.



A PRESENTAÇÃO

A

s coisas são sensíveis, foi a primeira dedução que tive e que mantenho comigo. Neste corre-corre da vida moderna em que

mal temos tempo de ver quem dorme conosco, isso não fica tão evidente. É preciso parar um pouco. Um pouco para sentir. E foi assim, como sempre é e sempre será que este livro foi concebido. Trata-se de uma história que pode ser sentida. Sinta-se a vontade para senti-la.



I

O

E

ENCONTRO COM

R EI R EMORSO

dissa caminhou por muitos dias sem rumo certo. Ela andou sem nada de importante para encontrar e se encontrasse não faria

muita diferença. Estava doente e para os doentes tudo parece ruim. A moça de idade pareada a de uma adolescente de quinze anos, possuía cabelos negros, compridos e formados por grandes cachos, mas o que chamava a atenção de quem a via eram os dedos em carne viva por causa da doença. Havia também feridas grandes que pipocavam sua pele pálida. Iam dos braços até as pernas, na altura dos joelhos. Seus olhos avermelhados eram emoldurados por maquiagem forte e o rosto por algumas cicatrizes ao passo que os lábios eram contornados por batom negro. Feridas secas, mas algumas novas preenchiam sua testa e bochecha. Trajava um vestido maltrapilho preto com alguns detalhes em vermelho que deixavam seus ombros descobertos. Andava sempre descalça. Que tinha? Pensava consigo. As pessoas agora tinham repulsa de sua presença. Viam-na como lixo humano e talvez fosse mesmo algo dessa natureza, mas estava tão evidente assim? Numa dada altura de caminhada, Edissa viu uma carruagem estacionada. Revoada de corvos veio do horizonte, chegavam aos muitos e voavam em círculo sobre sua cabeça. O crocitar foi estarrecedor e só perdeu volume quando a porta da carruagem negra se abriu, revelando um homem velho de capuz marrom e de lanterna na mão. Os corvos saudaram seu senhor com rasantes e os cavalos relincharam. — Saudações, Edissa! Que belos olhos você tem! — Aproximou-se o


PAUL LAW velho com essas palavras. — Estou doente! O senhor sabe como posso ser curada? — Pois é certo que sei! Foi por isso que vim! — Ah que alívio! Minhas feridas doem! — Venha em minha carruagem e te levarei comigo para a Vila do Arrependimento, local onde reino. Lá haverá um modo de curá-la! Edissa achou estranha aquela proposta: — Vila do Arrependimento? E para que serve? — Para abrigar aqueles que se arrependem, não é óbvio? Eu sou Remorso, senhor do Arrependimento! — O que é arrependimento? Remorso suspirou e corvos pousaram em seu ombro: — Toda vez que fazemos algo e depois desejamos não ter feito é arrependimento! A culpa por aquilo que fazemos e depois achamos errados, me entende? Edissa abaixou a cabeça: — Entendo. Agora sei a razão da sua visita. Sou mesma alguém que carece viver na Vila do Arrependimento. Remorso deixou o sorriso amarelo saltar da sua face coberta por capuz. Os corvos voaram e ele disse: — Em meu reino todo mundo é igual a você! São pessoas que se arrependem em vão. Em vão porque já é tarde para elas. — Da mesma forma que é para mim — Edissa continuava com a cabeça baixa. — Exatamente! Arrepender-se por aquilo que já foi feito é sempre tardio. Como poderíamos voltar no tempo e não fazer aquilo? Não há como! — Não há mesmo. — Então venha, criança! Permita-me levá-la ao meu Império de Arrependimento. Suba em minha carruagem! Edissa levantou sua mão ferida para que Remorso lhe ajudasse na subida. Galgou o primeiro degrau e depois se sentou, seguida de seu novo

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EDISSA conhecido. A porta se fechou e a carruagem começou a se mover. Ao ganhar impulso, os cavalos alçaram voo e Edissa admirou da janelinha as árvores e vilarejos que se faziam lá em baixo. Quando estava quase anoitecendo, os cavalos voadores iniciaram a decida rumo às terras de Rei Remorso. Pararam em frente a uma escadaria de mármore que antecedia a entrada de um vasto palácio dourado: — Mas que bonito! — admirou Edissa. — Estamos no centro do Vale da Culpa e ao nosso redor estão todas as pessoas de que falei! Estão todos os que se arrependem! Vivem aqui. — disse Rei Remorso, explicando que ficava no castelo enquanto todos os outros permaneciam no aparente vilarejo que se fazia em volta. — Meu senhor — Edissa se voltou para o rei —, quando poderei receber minha cura? O velho sorriu malicioso e por um instante pareceu que iria curar Edissa instantaneamente: — Eu menti sobre curá-la — Rei Remorso virou de costas e fez um sinal para os soldados que guardavam a entrada do seu castelo. — Levemna! — disse por fim.

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II

J OANA C OSPE F ACAS

A

quela situação pareceu ainda pior do que caminhar sem rumo como outrora, imaginou Edissa. Havia sido levada para um

calabouço nas masmorras do castelo. Depois de trancada, foi abandonada pelos soldados e se viu só até que ouviu gemido: — Há mais alguém aqui além de mim? Não houve resposta. — Responda-me! Então uma voz de mulher se fez nestes termos: — Eu estou aqui! — Ouviu-se o barulho de metal por três vezes seguidas. Era uma mulher de vestes velhas acinzentadas e de pele encardida. Os cabelos castanhos eram crespos e os olhos tinham a mesma coloração ao passo que os lábios pareciam ressecados. — Quem é você? — Sou Joana Cospe Facas! — Quatro vezes ouviu-se o barulho de metal tocando o chão. — Cospe facas? E como pode? — Cada vez que digo uma palavra, uma faca sai de minha boca! — mais barulho de metal se ouviu. — Que estranho! — Se arrependimento matasse! — murmurou Joana ao som de metal — Eu era uma linda mulher que tinha ambições na vida! Quando tentei seduzir Jorge dos Virtuosos para que se casasse comigo e me fizesse rainha,


PAUL LAW Ádria sua esposa, amaldiçoou-me com as seguintes palavras: “Toda vez que abrir sua boca, já que a usou para atentar contra a minha felicidade, saíra dela facas para que sinta dor!” Cá estou a vomitar lâminas por ter querido roubar-lhe o marido! — Por certo que agiu errado, mas mesmo assim é um demasiado castigo! — lamentou Edissa. — Nem me fale! Queria me desculpar com a Rainha Ádria, mas fui pega antes por Remorso! Ele vaga por aí em busca dos que estão arrependidos! — Pois foi assim que ele me pegou também! Achei que me curaria, mas agora percebo que ele me aprisionou! — Todas as celas daqui estão repletas de pessoas arrependidas! Remorso se alimenta da nossa culpa! — explicou Joana. — O vilarejo que ele te mostrou não passa de uma colônia de presos. — Que podemos fazer para nos libertar? — Como eu disse pedir desculpas é um modo de desfazer o arrependimento! — muitas facas caíam pelas palavras dita por Joana. — Malditas facas! — Não sei se posso pedir desculpas — Edissa disse quase que num sussurro. — De que se arrepende? Mas Edissa não respondeu. Passaram-se alguns dias naquela prisão. O tempo foi útil para ajudar Edissa a memorizar a rotina do calabouço e estreitar os laços de amizade com Joana. Numa manhã disse à amigar: — Já sei como poderemos sair daqui! — E como? — duas facas caíram. Quando o soldado de farda esverdeada e de quepe com aba negra veio para retiras as muitas facas cuspidas por Joana, Edissa colocou o seu plano em prática. Sua cela era ao lado da pertencente a amiga cuspidora de

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EDISSA lâminas e quando o soldado fazia a limpeza, ela o agarrou pelo pescoço e o ameaçou com uma faca no pescoço: — Solte-nos, ou usarei dessa arma para lhe perfurar o pescoço! — Não, minha senhora! Sou apenas um reles soldado! — Pois então abra nossas celas! O militar abriu a cela de Edissa porque a de Joana já estava aberta para limpeza. — Não há como saírem das dependências do Reino de Remorso! Há muitos soldados lá fora — advertiu o homem que tinha uma faca no pescoço. — Isso é o que você pensa! — disse Edissa aproveitando para tomarlhe o rifle. — O que pretende? — quis saber o militar. Edissa o empurrou e caminharam para a saída do calabouço. Chegaram à superfície na ponta dos pés. Subiram por uma estrada de chão até as dependências do castelo sem que despertassem atenção dos soldados. A carruagem de Rei Remorso estava no centro do pátio que antecedia o palácio: — Isso não vai dar certo! — Disse o soldado. Edissa pediu: — Tire a parte de cima da farda! Rápido. O homem obedeceu. Depois a mulher de olhos vermelhos continuou: — Agora corra na direção dos soldados. Nós correremos para a carruagem! — Mas que plano de doido! — Obedeça! Vá! — Edissa empurrou o militar. Quando o soldado correu na direção dos outros soldados que faziam guarda da entrada do castelo, chamou atenção de todos. Eles armaram seus rifles e só não dispararam por causa da gritaria do homem que dizia ser um deles. Até constatarem a verdade, Edissa e Joana já estavam quase chegando à carruagem. Quando perceberam o golpe, miraram e disparam contra

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PAUL LAW as duas fugitivas. Um tiro acertou Joana que gritou de agonia. Por conta do grito, ela cuspiu uma linda espada de cabo dourado e lâmina de prata. Edissa tentou carregar a amiga: — Vamos, Joana! — Não, Edissa! Bem sei que morrerei! Leve a espada que cuspi e dê para Ádria como prova das minhas sinceras desculpas! — Mas Joana! — Vá Edissa, porque se não conseguir as desculpas eu vou continuar aqui presa e perseguida por Remorso. Edissa assentiu e largou o corpo quase sem vida de sua amiga. Depois agarrou a espada e levou consigo até a carruagem que alçou voo sem rumo certo.

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III

EM

E

BUSCA DAS DESCULPA S DE

Á DRIA

ra difícil guiar aqueles cavalos. Bravios, relinchavam freneticamente balançando a carruagem de forma aleatória. Edissa segu-

rava as rédeas com toda a sua força, mas pouco sucesso obtinha no intuito de guiar-se pelos céus. Desgovernada, a carruagem mergulhou num rasante fazendo com que as correias que a prendiam aos animais se partissem e ela se lançasse sobre a grama. Os cavalos voadores sumiram no horizonte e Edissa afastou as madeiras danificadas para poder sair: — Ainda bem que estava próxima ao solo, pois senão teria me esborrachado de verdade — disse ela a si mesma. — Mas e agora, onde estou? Como levarei a espada de prata de Joana para Ádria? Edissa pensou por um momento e não tardou a lembrar-se que Ádria era dona de todos os caminhos e que, se resolvesse seguir por um sem autorização, os soldados a levariam presa até a rainha. Levantou o dedo ferido para o alto na intenção de constatar a direção dos ventos, mas nada sentiu. Reparou então que não sentia nada com as mãos devido às suas feridas: — Minha doença piora a cada dia. Preciso descobrir a cura com urgência, do contrário me definharei! Edissa resolveu seguir por qualquer caminho. No começo havia um campo de relva rala que depois foi substituído por emaranhados de espinhos. Nessa hora, Edissa usou da espada que portava para abrir caminho. Quando os espinhos se findaram ela encontrou um jovem conversando


PAUL LAW consigo mesmo: — Mas que diabo! Eu te fiz desaparecer, agora quero que volte! Edissa o observou por um tempo. Era belo e por essa razão ela teve medo. Empunhou a espada: — Com quem fala, homem? Ele pulou de susto: — Uma mulher, neste fim de mundo? Será que fui eu quem a fiz aparecer? — Não te entendo! O que quer dizer? O jovem fez uma reverência: — Sendo eu o responsável ou não, creio este fato irrelevante agora! Chamo-me Fryz, sou mágico! Era um jovem magro de cabelos negros nem compridos e nem curtos, de olhos castanhos. Tinha os olhos pintados, a boca preta como se fosse algum palhaço. O resto do rosto dispunha de maquiagem branca e sua roupa surrada, consistia em uma calça preta, uma camisa branca coberta por um sobretudo negro maltrapilho. As mãos revestidas por luvas negras e os pés por coturnos desamarrados. Edissa continuou com a espada levantada e sentiu algo estranho em seu peito: — Mágico? — indagou. — Sim! Faço coisas que ninguém faz! Desapareço com animais, controlo pessoas, as cerro ao meio, dentre outras coisas! Quanto mais ia conversando com ele, mais se sentia estranha. Contudo, segura de que não se tratava de um inimigo, pediu por ajuda: — Talvez possa me ajudar, então! — É, talvez! — Fryz colocou a mão no queixo, fazendo uma careta. — Busco as terras da Rainha Ádria para pedir desculpas! Sou Edissa. — O quê? A Rainha Cobra? Quem em sã consciência procuraria por ela? Se você fez algo a quem busca, não tardará a perder a vida e não conheço mágica que possa trazer quem já morreu de volta à vida, sinto muito.

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EDISSA — Quer me deixar falar? Fryz, mesmo contra a sua vontade, fez um gesto para que Edissa continuasse: — As desculpas não são minhas! São para uma amiga, agora já falecida! Prometi a ela. — Se é assim — sorriu Fryz, mas depois ficou sério. — Mas acho que a rainha não vai aceitar essas desculpas! — Aceitará! Preciso é chegar até ela! — sorriu Edissa. — Pois eu estava justamente indo para lá quando resolvi ensaiar uma mágica de desaparecimento! No ensaio sumi com meu cavalo e agora não consigo trazê-lo de volta! — Sumiu com seu cavalo? — ela se espantou. — Mas é claro! Quer que eu faça com você? — Não obrigada! — Edissa se afastou. — Por que não me acompanha a pé mesmo? — Mas eu tenho um cavalo! — Eu vou seguir por este caminho porque sei que Ádria é dona dele! Logo algum soldado vai me encontrar e então me levará até a rainha — Edissa começou a andar. — Espere, vou contigo! — Fryz seguiu à passos largos a mulher de cabelos negros. Quando andavam lado a lado, melhor reparando em sua nova companheira, Fryz comentou: — Está doente, não é? — Sim. Mas eu mereço — ela abaixou a cabeça. — És muito bonita, mesmo pipocada de feridas. Edissa levantou a cabeça e olhou desconfiada para o mágico, mas antes que pudesse questioná-lo, ouviu disparos. Eram soldados de Ádria que espantavam soldados de Remorso. Os militares do reino de Ádria vestiamse de farda dourada enquanto que os das bandas de Remorso, verde. Estes últimos eram em menor número e acuados, fugiram por entre as árvores.

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PAUL LAW Mas não antes de ameaçarem: — Pois fiquem sabendo que voltaremos em breve e em maior número para recuperar a carruagem de nosso senhor e a ladra que a ousou roubála! Edissa acenou de longe para os homens de dourado. Fryz tentou impedi-la, mas não conseguiu. Os soldados armaram seus rifles e vieram na direção do casal: — Quem são vocês? Não sabem que os caminhos são da rainha Ádria? — Sabemos — começou Edissa. — Desejo falar com a rainha para pedir desculpas! O soldado apontou o rifle para o rosto de Edissa: — Que tal pedir desculpas depois de um tiro no meio dos olhos. Fryz tomou a palavra: — Acalme-se, nobre soldado! As desculpas que ela traz não são dela! São de uma defunta! — Que me importa! Farei dessa aqui outra defunta! Edissa ergueu sua espada de prata e argumentou: — Esta espada foi feita por Joana Cospe Facas e é de prata com o cabo de ouro. É o presente que pretendo dar para a rainha. O soldado fitou a arma com admiração: — É uma bela espada! Deve ser única no mundo! Um presente desses pode justificar uma audiência com nossa rainha! — ele olhava admirado. — Leve-nos até Ádria, por favor. — Vamos levar vocês até ela, contudo passe a espada para o homem que te acompanha! Seus machucados não causam boa impressão e podem contaminar o tesouro. Edissa fez como lhe foi ordenado. No final daquele dia, depois de cavalgar sozinha em um cavalo do exército, já que ninguém quis levá-la consigo, estava na entrada do reino da Rainha Ádria.

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IV

J ORGE II,

T

O CAVALEIRO MIRIM

odos olhavam com repulsa para Edissa enquanto ela era escoltada pelos militares. O povo daquele vilarejo era conhecido por ter

língua grande e aquela mulher de estranhas feridas era um prato cheio para que falassem. Comentavam de suas impurezas ali mesmo, ladeando sua passagem até o castelo de Ádria. Ela, mesmo se sentindo ofendida, não se voltou contra os que falavam. Teve receio do castigo dos soldados. Quando chegaram perto do portal ornamental do castelo, um dos militares se voltou para Edissa: — Chegamos! Contudo, por causa da sua doença, não é permitida a entrada no castelo! Como carrega um grande tesouro que diz ser para nossa rainha, posso escoltar o seu amigo até os aposentos reais. — Ora, mas mal conheço este mágico! Além do mais, ele não saberá explicar à rainha o que é preciso! — Ou é como disse ou cure-se primeiro para depois vir falar com a rainha Ádria! — Mas eu não sei como me curar! — Azar o seu! — o soldado se virou para Fryz! — Dê-me a espada, homem! Fryz se afastou: — Quer o tesouro? Agora você o vê — ele fez alguns movimentos com as mãos — Agora não o vê mais! — e a espada desapareceu. Os soldados armaram os rifles contra o mágico que ficou imóvel com


PAUL LAW as mãos para o alto: — Faça aparecer! — ordenaram. — Mas é claro! Abaixem as armas, por favor. Eles obedeceram e Fryz fez gestos com suas mãos: — Apareça! Um cavalo preto, musculoso e bonito apareceu. — Aí está você! — Sorriu Fryz ao mesmo tempo que abraçou o animal. — A espada, mágico! Fryz subiu com habilidade em seu cavalo e puxou Edissa para sua garupa: — Se Edissa não puder levar a espada, não a farei aparecer! — Deu meia volta e saiu galopando pelas ruas de pedra do vilarejo. A jovem de olhos vermelhos abraçou com firmeza a cintura de Fryz: — Você é maluco? Os soldados vão nos matar! Mas o mágico nada disse. Preferiu concentrar-se no domínio de seu animal. Aliás, aquele cavalo era veloz e descia pelas ruas com agilidade, chamando a atenção das pessoas. Os soldados já se organizavam para capturá-lo. Então, na saída da vila, havia um cavalo branco cujo cavaleiro parecia pequeno demais para montá-lo: — Parem! — Ordenou o pequeno cavaleiro. Fryz puxou as rédeas do seu cavalo e ele levantou as patas dianteiras: — Saia, menino! Estamos sendo perseguidos, não sabe? — Sei sim! Meus soldados é que vos perseguem! Tratava-se de um garoto com aproximadamente dez anos de idade, cuja armadura prateada em miniatura tinha os detalhes em dourado e coberta por uma capa vermelha. O elmo descansava em seu braço de ferro e se podia ver um rosto corado de onde saltava duas pedras amarelas. Os cabelos castanhos e algumas sardas davam uma expressão corajosa para ele. Fryz acalmou o cavalo: — Espere um pouco. Você é Sir Jorge, dos Virtuosos? Achei que fosse

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EDISSA maior e mais forte! O menino sacou sua espada curta: — Não seja ridículo! Sou Jorge II, filho deste que você menciona! Sou o príncipe! — Muito prazer, pequeno príncipe, agora nos dê licença! — O mágico bateu com as botas na barriga do cavalo. — Não permitirei a saída de vocês, intrusos! — Jorge II empinou seu cavalo branco. A este tempo, os soldados que antes se organizavam, agora estavam todos ali de armas em punho, mirando para o cavalo do mágico. — Parados! — gritou um deles. Fryz não soube o que fazer e Edissa lhe sugeriu: — Melhor nos rendermos. Ele então desceu do animal seguido da mulher que transportava. Ambos ergueram as mãos em sinal de rendição. Os soldados se aproximaram, assim como o príncipe Jorge. — Te peguei! — Fryz agarrou o príncipe, rendendo-o. Tomou-lhe a espada e ameaçou: — Se chegarem mais perto mato o príncipe! Os soldados vacilaram. Edissa ficou sem saber o que fazer. — O que pensa estar fazendo? — indagou ao mágico — Dessa forma estamos despertando ira na família real. — Temos que forçá-los a deixarem você falar com Ádria. Jorge II, com habilidade, se soltou e arremessou seu algoz ao chão. A este tempo sua espada tinha sido recuperada: — Querem falar com minha mãe? Por que não pediram a mim? Edissa agiu rápido: — Você pode nos levar até ela? — Mas é claro! Ao invés de fugir e causar toda essa confusão, era muito mais fácil pedir.

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V

Á DRIA

O

SE NEGA A FALAR COM

E DISSA

piso limpo esverdeado refletia a imagem de Edissa, Fryz e o jovem Jorge enquanto caminhavam pelo salão principal do

castelo. Os guardas foram impedidos de acompanharem por exigência do mágico, afinal tinha receio de que toda a confusão que havia armado anteriormente ainda pudesse justificar repreensão. Tendo o pequeno Jorge como aliado estariam seguros. Aliás, o menino não se importou com o fato de Fryz ameaçá-lo com sua espada. O mesmo não podia ser dito em relação ao mágico que não entendeu e nem admitiu o fato de o príncipe ter agido com mais habilidade do que ele. — Diga, menino, onde está seu pai? — perguntou Fryz ao príncipe. — Menino não! Eu já sou um homem! Sou eu quem protege o castelo na ausência de papai! Ele está com o Conselho Virtuoso! — A Ordem dos Virtuosos! — suspirou Edissa. Todos sabiam que os cavaleiros mais corajosos e destemidos do mundo faziam parte da Ordem dos Virtuosos. Eles agiam como força de apoio contra o mal. — Serei um cavaleiro virtuoso em breve — informou Jorge II. Fryz não perdeu a chance: — Só depois de crescer! — Ora! Vou lhe cortar a língua por essa afronta! — Jorge sacou sua espada curta mais uma vez.


PAUL LAW Então desembocaram no salão principal do castelo de onde se via, lá no fundo, três tronos. Soldados beiravam o salão e ao final, súditos abanavam uma mulher de vestes esmeralda e cabelo rubi; era Ádria. Jorge guardou sua espada. A mãe o avistou de longe e ergueu a cabeça. Aproximou-se então o príncipe, devagar, logo depois de pedir para os visitantes esperarem. Quando estava perto da rainha ela lhe disse: — Ajoelhe-se. Jorge II obedeceu. Ádria era muito bela, sempre fora e sempre seria. Os olhos amarelos e a pele clara sem imperfeições teciam uma figura imponente, digna de honras. Lábios grandes e contornados por vermelho sorriam quando tinham alguém aos seus pés, de joelhos. — Meu filho, levante-se! — ela o beijou na testa. Jorge se levantou. — Quem são esses que trazes à minha presença? — Um mágico e uma mulher que não sei o que faz! Percebo que ela está doente, mas disse-me enquanto vínhamos que tem um presente para a senhora! Mas Ádria não se interessou: — Mesmo de longe pude notar que a mulher tem feridas pela pele! Ela é impura e recebê-la não seria atitude digna de uma rainha. Só por curiosidade que presente seria? — Ela explicou que traz consigo uma espada forjada em prata e de cabo dourado, feita por uma tal de Joana Cospe Facas. Ao ouvir este nome, Ádria se levantou do trono com violência: — Veio a mando dessa desonrada mulher? Essa espada é para me matar? — Não. A espada é um presente, disse ela. Feita pelo último grito de Joana, pouco antes de morrer. Ela pediu para Edissa oferecer a arma singular como prova de seu arrependimento. Joana precisa das suas desculpas.

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EDISSA Ádria suspirou: — Meu filho, o teu coração jovial é ingênuo. Por certo essa mulher e esse homem vieram aqui para vingarem a amiga morta! — Não sou ingênuo, mamãe! Sou um cavaleiro virtuoso! Ádria não deu atenção ao filho. Ao invés, mandou seus soldados capturarem Edissa e Fryz para jogá-los em seu calabouço. Furioso com a atitude da mãe o pequeno Jorge saiu do castelo pisando alto. As celas estavam vazias aquela noite e Edissa juntamente com Fryz eram as únicas pessoas presas ali. As grades enferrujadas e o local cheirando a mofo: — Que maravilha! Espero que a comida seja boa! — disse Fryz. — Já é a segunda vez que me encontro presa! — retrucou Edissa. — Nem deixaram você pedir as desculpas! — Fryz se sentou. — Preciso me curar para poder falar com Ádria! Ela, tão bela, não se sujeitaria a me ouvir assim doente e feia. Ouviu-se passos. — Hora da janta! – Fryz esfregou as mãos. — Cale-se, mágico inútil! — aproximou-se um cavaleiro mirim de elmo na cabeça, escondendo seu rosto. — Príncipe pequeno? O que faz aqui? Jorge II tinha vindo de arma em punho. — Vai nos matar? — o mágico se afastou das grades. O jovem príncipe desferiu um golpe com sua espada curta e o cadeado que mantinha a cela trancada se partiu: — Vim soltar vocês! Acredito nas sinceras desculpas que querem pedir para minha mãe! Edissa se abaixou: — Sabe o que acaba de fazer?

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PAUL LAW — Sim! Estou decidido! Vou com vocês obter a cura para suas feridas! Ouvi tudo, que conversavam pouco antes de resolver soltar vocês! Depois voltaremos para minha mãe. — Não acho boa ideia, Edissa! O fedelho vai nos atrapalhar! — Quieto, Fryz! — Edissa se zangou. — Quer mesmo ir, Jorge II? Tem noção de que talvez não voltemos? Jorge II ergueu sua viseira: — Tenho certeza absoluta!

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VI

F LORA

J

É QUEM PODE CURAR

E DISSA

orge conhecia os caminhos secretos para deixar o reino de sua mãe, pois seu pai na oportunidade em que o treinou, mostrou essa rota

de fuga para o caso de o reino ser invadido por um inimigo invencível. Era um túnel estreito que saía de trás da estátua de Ádria no jardim do castelo e desembocava num gramado extenso e montanhoso. Jorge fitou as estrelas e disse: — Está vendo a Estrela Polar? Ela nos orienta para o norte. — Por que devemos ir para o norte? — indagou Edissa. — É lá que se encontram as terras de Flora, o deus na natureza. Acredito que ele possa curar-te, Edissa. — Será? — Ouvi histórias quando menino de que ele devolvia a saúde às pessoas quase mortas — finalizou Jorge II. A Estrela Polar reluzia dentre as outras estrelas da constelação de Ursa Menor. — Que estrela bonita! — observou Fryz. — Quem pregou uma ursa pequena no céu com estrelas? Jorge caminhava entre Edissa e o mágico: — Como é que eu vou saber? Edissa disse: — Vamos continuar nossa caminhada enquanto está noite. Quando chegar o dia perderemos nossa estrela-guia. E andaram por toda aquela noite, subindo e descendo as montanhas


PAUL LAW de grama, rumando para o local que apontava a Estrela Polar. Quando o dia estava quase chegando ao fim, no alto de uma montanha de grama, o trio se deparou com uma criança de vestes encardidas e de cabelo prateado que reluziam como o brilho da lua. Sua pele era dourada e brilhava, dando a ela uma aparência fluorescente. Os olhos, duas pedras de prata: — Quem é você? — quis saber Edissa. A menina se assustou com a indagação, mas depois disse: — Sou Aurora, filha da Noite com o Dia. — Você brilha! Parece uma estrela do céu! Aurora sorriu: — É muita gentileza sua! Estou aqui para preparar as coisas para o amanhecer. Mandar os animais noturnos dormir e cobrir as folhas com orvalho. Também guio os animais do céu para que venham passar o dia na terra. — Como assim? — indagou-lhe Fryz. — Os animais de minha mãe estão no céu, presos por estrelas e quando chega a manhã eu os desço. Ursa Maior, Ursa Menor, Leão, Touro, Áries que é o carneiro! Todos eles! — Muito interessante, Aurora! Aurora ficou séria de repente: — Como é o seu nome? Que mal te aflige? — apontou para as feridas de Edissa. — Chamo-me Edissa e muitos males me assolam. Mas eu estou em peregrinação para conseguir a cura de minhas feridas para assim ser recebida pela Rainha Ádria e então conseguir as desculpas dela para uma pessoa que fiz juramento. Aurora sorriu e seus dentes pareceram brilhar: — Pois eu posso ajudá-la — então uma ursa pequena veio em direção da criança, saindo de trás da árvore. — Essa aqui é Ursa Menor, um dos animais de minha mãe. Vou emprestá-la a você para que chegue ao norte. Basta segui-la que chegará ao seu destino.

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EDISSA Edissa assentiu a tempo de a ursinha começar a correr. Aurora deu seu último aviso: — Vão! Ursa Menor já está seguindo para o destino de vocês. E eles foram, sem nem ao menos se despedirem de Aurora. O calor estava insuportável, quando o trio alcançou uma propriedade cercada de arame farpado. Jorge II que já havia estado ali com seu pai, disse: — Chegamos aos Campos de Flora. — Ah que bom! Assim poderemos devolver a ursinha para Aurora! Mas Jorge foi firme: — Nada disso! Os campos são vastos e ainda precisaremos de orientação para chegarmos até a casa de Flora que é ao norte. — Mas que calor, não acham? — Fryz tirou seu sobretudo e ouviu-se o barulho da espada cair na terra. — Ops! — Então a mágica de sumir com a espada era um truque? — Não! — justificou o mágico —, é que resolvi trazer a espada de volta! Por falar em espada, lembrei que esqueci do meu cavalo! Ele ficou no reino de Ádria. Jorge II e Edissa fitaram-se. Fryz pegou a arma da terra: — Não preciso que acreditem em minha mágica! Eu acredito — e a espada sumiu mais uma vez. A Ursa Menor corria a frente, indicando o caminho a ser seguido e levando todos para o objetivo que tinham: encontrar Flora. — Vamos! — disse Jorge II. Fryz não disse mais nada, parecia chateado. Edissa e Jorge respeitaram o silêncio até que algo o quebrou de propósito. Tratava-se de soldados de farda verde que desciam pela montanha a frente cantando uma canção de guerra. Edissa teve medo, pois eram muitos, mas Jorge não. Sacou sua espada e abaixou a viseira de seu elmo:

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PAUL LAW — Venham cães indignos! Fryz, por sua vez, deu meia volta para fugir: — Eu vou é dar o fora daqui. Mas, para frustrá-lo, a tropa amarela dos soldados de Ádria vinha do sul. O trio estava no meio de dois exércitos inimigos: Os de Remorso, de verde e os de Ádria de amarelo. — O que faremos agora? — falou Edissa, com desespero em sua voz.

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VII

A

F

IRA DA

N OITE

ugir das masmorras de Remorso despertou a ira daquele rei contra Edissa. Escapar do reino de Ádria levando consigo o filho da

rainha, por sua vez, desencadeou na rainha ira similar. Quanto mais Edissa fugia, mais ela se complicava com as pessoas: — Acho que Jorge tem mesmo razão! Temos que lutar! Fryz colocou a mão na testa de Edissa: — Está com febre? Como vamos lutar contra todos esses soldados de Remorso? Se voltarmos para trás, encontraremos com os militares de Ádria! Temos é que fugir para o leste! — Não! Não vê que quanto mais fugimos, mais problemas criamos! Acho que está na hora de enfrentarmos nossos inimigos! — Pois é isso mesmo! — disse Jorge. A ursinha continuava avançando na direção dos homens de Remorso. Edissa deu o primeiro passo no rumo dos soldados, seguida de Jorge II já de espada curta em punho. Fryz ficou parado, de braços cruzados. — Isso é loucura, mas e daí? — resolveu seguir seus outros companheiros, sorrindo. Os soldados de Remorso armaram os rifles e Jorge sacou seu escudo: — Abaixem-se — ordenou o pequeno cavaleiro. Os tiros pipocaram o escudo de Jorge e quando cessaram, o trio se ergueu e avançou contra os inimigos. Jorge II ia à frente e usando de sua técnica rara de matar consciência derrubava soldados apenas com o olhar; às vezes usava a espada curta para


PAUL LAW o ataque e o escudo de prata para defesa. A morte de consciência era uma técnica poderosa que consistia em desmaiar pessoas apenas com um olhar. Edissa, por sua vez, ficou com Fryz que usava dos punhos para afastar alguns soldados. — O príncipe é um bom cavaleiro! — observou Fryz. — Mas mesmo assim, isso não vai acabar bem, a não ser que lancemos os nossos inimigos contra eles mesmos! — Como assim, Fryz? — aquilo pareceu confuso para Edissa. O mágico não respondeu. Pegou na mão dela e correu em direção contrária à batalha. Uma parte do exército de Remorso o seguiu e acabou por encontrar com o exército de Ádria, que vinha. Fryz não perdeu tempo e disse: — Soldados! Vejam! Esses são os inimigos do Príncipe Jorge! Mais a frente o próprio príncipe os enfrenta sozinho! Vamos ajudá-lo! Os soldados de Ádria marcharam velozes de encontro aos soldados de Remorso e a batalha se intensificou. Jorge II percebeu a ajuda, mas não disse nada, continuando sua luta. Fryz e Edissa aproximaram-se dele: — Não precisa mais lutar, Pequeno Príncipe! — falou Fryz. — Os homens de sua mãe assumem daqui! Aproveitamos a chance para fugir, o que acha? Jorge mesmo contrariado assentiu, depois que Edissa lhe explicou que se não fosse naquele momento, os soldados de Ádria o levariam de volta à mãe. — Cansa-me muito essas batalhas! — bocejou o mágico enquanto saía sem ser notado junto dos outros. Edissa observou que Fryz era muito esperto. Parecia maluco, mas era inteligente e isso a fazia admirá-lo. Era como se ela visse nele, apesar de sua loucura aparente, alguém bom. O mágico continuou: — Edissa, vamos depressa! Temos que aproveitar a batalha para fu-

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EDISSA girmos! Quando eles perceberem que têm inimigos em comum e que esses inimigos somos nós, não tardarão a decretar a paz! Edissa apertou o passo, seguida de Jorge. A Ursa Menor ia a frente, ligeira, e o trio logo atrás dela. Quando estava quase anoitecendo e depois de distanciarem da batalha dos soldados de rei Remorso e os da rainha Ádria, Edissa estava agora mais perto de seu objetivo. Atrás de seis montanhas, no pico da última, já se via uma casa de fazenda, cercada por casas menores. Um menino de roupa encardida e de cabelos compridos e brilhantes, cuja feição era similar à da menina Aurora apareceu de repente e disse: — Eu sou Crepúsculo, filho da Noite com o Dia e estou aqui para ajudar minha mãe a colocar seus animais no céu — ele fitou a ursinha que acompanhava o trio. — Vejo que um desses animais está com vocês! — Aurora nos emprestou para ajudar-nos a chegar até Flora. Crepúsculo sorriu: — Ela fez isso? Pois me devolvam a Ursa para que eu a coloque no céu. Edissa acariciou a cabeça da ursinha e a entregou para o menino brilhante. Quando Crepúsculo colocou a Ursa Menor em seus braços, grudou sua cabeça e a torceu de maneira que veio a quebrar-lhe o pescoço: — Não! — gritou Edissa. — Você a matou! — É claro que eu a matei! Quando minha mãe chegar e ver sua ursa morta, ela culpará Aurora por tê-la emprestado a vocês. Então ela condenará minha irmã à morte e eu serei o único herdeiro de minha família! — Como você é malvado! — disse Edissa. Jorge sacou sua espada: — Vamos matá-lo! — Não podem! — o menino desapareceu, deixando a Ursa Menor com o pescoço quebrado sobre o gramado. Fryz fitou Edissa nos olhos como nunca havia feito antes, como se pressentisse alguma coisa. Ele sorriu como um palhaço empolgado pelo

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PAUL LAW ofício, pouco antes de piscar e depois se voltar para a ursa falecida à sua frente. Quando a Noite chegou, aparecendo depois de um clarão intenso, observou as estrelas e notou logo que faltava um animal. A mulher de vestido que brilhava como a lua cheia e pele fluorescente, tinha os cabelos brancos e lisos cobertos por pó de estrelas. Os olhos de prata também brilhavam. Fitou com desdém aquele trio e disse: — Diga, Crepúsculo, onde está minha Ursa Menor? O menino reapareceu. Abaixou a cabeça e se aproximou: — Mamãe, Aurora a emprestou para esse trio desordeiro e eles a mataram! Veja no gramado! Noite franziu o cenho numa expressão que mesclava pena e ira: — Que crueldade! — aproximou-se da ursinha falecida —, pois vão pagar por isso! Ah se vão! — os ventos aumentaram bruscamente. Crepúsculo ainda disse: — Aurora é a culpada, mamãe! Ela quem foi irresponsável! — Ela será igualmente punida, meu filho! Eu não a quero mais como filha! Era mais ou menos isso que Crepúsculo tinha planejado. Não exatamente, pois em seu plano, sua irmã seria condenada a morte, mas o que estava acontecendo bastava. Edissa tentou argumentar: — Foi o seu filho que matou a ursa! Ele quer ser o único herdeiro de sua família! Noite lançou um vendaval poderoso contra Edissa, Jorge e Fryz: — Calada! Com a força daquela ventania, árvores foram arrancadas e o trio foi lançado com violência montanha a baixo. Noite disse, ainda furiosa: — Um humano comum não sobreviveria a este vendaval. Que lhes sirva de lição!

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VIII

A

E

MORTE DE

F RYZ

dissa abriu os olhos vermelhos subitamente. Galhos estavam por cima de seu corpo e seu braço direito parecia quebrado, doía ao

tentar mexê-lo. Levantou apoiando-se no braço esquerdo para procurar Fryz e Jorge. Este último não foi difícil de encontrar: — Eu estou bem! Minha armadura me protegeu dos vendavais de Noite — Jorge estava sentado em um tronco caído. Edissa sorriu: — E Fryz? O cavaleiro pequeno ficou sério: — Lamento — ele tirou o elmo. Edissa receou pelo pior: — Do que lamenta? — O mágico está morto, ali perto do rio. Ela não acreditou, tinha que conferir pessoalmente. Aproximou-se rápida do corpo de Fryz que jazia na beira do riacho e observou que sua cabeça estava molhada, tingida de vermelho. Ela que estava viva, viu-se num desespero tão grande que pensou ser melhor estar morta também para não ter de passar por aquilo. Seus olhos derramaram tantas lágrimas, seu nariz estava cheio e ela podia se ouvir chorando. Nunca imaginou que perder Fryz pudesse ser tão dolorido. É que Edissa não tinha dado muito valor ao amigo enquanto ele estava vivo e agora era tarde demais. Pensou em vingança como algo para dar-lhe motivos para continuar, seria um de seus objetivos. Teve medo, também um pouco de desespero e


PAUL LAW voltou a pensar na vingança. Era melhor. Jorge II se aproximou: — Ele bateu com a cabeça em alguma pedra — disse. Edissa tapou o rosto com a mão ferida; queria esconder seu pranto: — Isso não é justo! — disse ela entre choro. Jorge ficou silente ao passo que Edissa fechou a mão que ainda escondia seus olhos: — Noite me paga! — as árvores em volta começaram a pegar fogo. Jorge fitou aquele fenômeno admirado: — Tu que estais a atear fogo nas árvores? Mas Edissa não respondeu. Apertou o passo e seguiu o rumo que a levaria até Flora. No caminho, Edissa notou que depois da noite, não aconteceu manhã. O dia foi direto para a sua metade e as estrelas continuaram a dividir o céu com o sol. Deduziu que Aurora havia sido impedida de fazer manhã e isto foi mais um motivo para a mulher de olhos vermelhos querer vingança da Noite. Edissa mal podia esperar para reencontrá-la. Então, ela chegou à entrada da sede de Flora. Era no pico da última montanha e cercada por vários casebres. A casa principal por certo, pensou a moça, devia ser a de Flora. Bateu na porta dela: — Ô de casa! A porta de abriu: — Você é Flora? — perguntou Edissa. E o homem de vestes bonitas respondeu: — Não. — O conhece? — Não. — Mas fui informada de que ele é o dono dessa propriedade. — Não. — O senhor só sabe dizer “não”? — Não — e fechou a porta.

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EDISSA Edissa bateu mais uma vez, só que o homem não abriu a porta. Quis então perguntar a alguém que morava nas casas menores. Bateu na primeira que era a menos feia delas: — Conhece Flora? — disse para a mulher que lhe atendeu. — Sim! — Ah que bom! Ele mora aqui? — Sim. Edissa começou a estranhar: — Ele saiu? — Sim. — E você só sabe dizer “sim”? — Sim — e a porta se fechou. Edissa não bateu na porta pela segunda vez, pois deduziu que se batesse não lhe abririam, como ocorreu da primeira vez. — Que fazemos agora, Jorge? O menino deu de ombros. Subindo a montanha e chegando ali, apareceu um homem de vestes simples, de chapéu de palha na cabeça que arrastava o corpo de Fryz. Ao vê-lo, Edissa ficou aflita: — Que pensa fazer com o corpo do meu amigo?

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IX

V OCÊ

O

É

F LORA ?

homem de chapéu de palha soltou a perna de Fryz que vinha arrastando. Fitou a mulher de olhos vermelhos e depois o cava-

leiro mirim. Então agarrou a perna de Fryz e recomeçou a arrastá-lo. Edissa se aproximou depressa: — Responda? — Ora, vocês de longe são tolos demais! Deixam lixo em nossas terras! — Você é Flora? O homem parou mais uma vez: — Onde perguntou isso? — Na casa grande só me disseram “não”. Na outra só me disseram “sim”. Ele então afastou o chapéu para coçar a cabeça. Tinha os olhos amarelos, como se fossem de gato e o cabelo avermelhado: — Pois para a casa grande eu não sou Flora. Para a outra sim. — Estou cansada desses enigmas e triste por causa da morte de meu amigo! Diga logo quem é você. O homem voltou a arrastar Fryz: — Já disse! Agora não me amole mais! Vou dar um jeito nesse corpo aqui! Jorge II sacou sua espada curta e ameaçou: — Não vamos deixar que desonre nosso amigo falecido! Mas o homem de chapéu disse apenas: — Vou enterrá-lo somente!


PAUL LAW — Espere! — disseram Jorge e Edissa em uníssono. Seguiram aquele homem que começou a descer a montanha, agora contrário de onde viera com Fryz. Em frente, se fazia um campo de terra arada, pronta para o cultivo. O que chamou a atenção de Jorge e Edissa foi o fato de o campo estar preenchido por cabeças humanas. As cabeças pareciam secas, como plantas há muito sem água: — Que é isso? — indagou, Edissa. — Ora, o que está vendo! Um campo de plantação de gente! Quem sabe eu possa plantar este homem morto e ele nasça. Um turbilhão de sentimentos se misturou na mente da jovem de olhos vermelhos. Aquele homem só podia ser Flora, o deus na natureza. Ele também podia devolver a vida para Fryz, além de curá-la de suas feridas. Edissa disse-lhe: — Planta pessoas com qual finalidade? O homem arregaçou as mangas de sua camisa xadrez e começou a cavar com a pá que estava por ali: — Planto para que se tornem pessoas melhores! Pessoas independentes que não possuem parentes. — Mas Fryz, está morto! Isso vai funcionar com ele? Ele continuava cavando: — Não sei. Nunca fiz com defunto. Jorge que amava muito seu pai e sua mãe, questionou: — Todo mundo que você planta, perde os parentes? Não possuem mãe e pai? — Claro! Eles se tornam filhos da terra. Meus seres humanos são melhores do que os tradicionais! Além de saberem pensar por si mesmos eles são defensores da natureza, afinal, são filhos dela! Jorge deduziu: — Eu não trocaria minha família para nascer da terra. — Você é quem sabe! Pode escolher a casa maior e dizer “não”, ou a outra e dizer “sim”.

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EDISSA O homem terminou de cavar e colocou Fryz no buraco de maneira que todo o seu corpo ficou dentro e sua cabeça fora. Cobriu de terra os espaços e fez uma coroa em volta da cabeça do mágico: — Pronto! Agora é só irrigar! Tomara que ele pegue. Edissa ficou de boca aberta, observando aquela cena, embora Flora não lhe desse muita atenção. Na verdade, ele largou a pá onde tinha achado e agarrou o irrigador que vinha preso à sua cintura em total desconsideração à presença dela e de Jorge II. Apesar de pequeno, o irrigador pareceu ter grande quantidade de água, já que foi usado por bastante tempo no intuito de irrigar Fryz. — E quanto a mim? — disse-lhe Edissa. — Não pode me curar das feridas para que eu possa pedir desculpas à Ádria? E agora o meu braço que parece quebrado? Flora parou com a irrigação: — Agora tenho que ir para casa, pois estou cansado de plantar pessoas. Amanhã, meu trabalho será tão árduo quanto o de hoje. — Responda-me, Flora! — Amanhã, mulher. Amanhã... E Flora seguiu de volta para o pico da montanha de onde saltava a casa maior cercada pelas casas menores. Edissa e Jorge II seguiram-no em silêncio. Quando lá chegaram, Edissa teve que fazer mais uma pergunta: — Em qual dessas casas você mora? — E você já não sabe? Quando perguntou na casa menos feia, e que não é a menor de todas, não lhe disseram que ali que eu residia? — Disseram “sim”, mas eu não acreditei. — Vocês são engraçados. Querem um “sim” e quando o tem, não acreditam nele.

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X

P LANTANDO E DISSA

E

dissa estava aprendendo como lidar com aquelas casas e seus moradores. Soube que se pedisse alento na casa maior, receberia

um “não”. Na que Flora adentrara, poderia entrar, mas preferiu experimentar as demais. Chegando à menor de todas, ao bater veio-lhe atender um homem jovem. Edissa indagou a ele: — Posso pernoitar aqui? Ele disse: — Talvez. — Jorge pode ficar comigo? — Talvez. — Pois bem! Creio não haver problemas! — e a mulher entrou seguida do cavaleiro mirim. O homem fechou a porta murmurando: — Talvez não haja problema, ou talvez sim. Quando Edissa acordou, no outro dia, não sentia suas pernas e braços. Olhou a sua volta e notou que estava enterrada até o pescoço na terra, assim como muitos outros por ali. O vento forte passou por sua cabeça que saltava da terra fofa e os seus cachos balançavam incessantemente acariciando o solo. Sentiu a água escorrer pelo seu rosto, numa mistura inusitada de afogamento com susto: — Acalme-se! Estou irrigando você! — Fez-se admiração nos olhos da moça.


PAUL LAW Era mesmo verdade. Aquele senhor de chapéu de palha e camisa xadrez, tal qual havia feito com Fryz, irrigava sua cabeça: — Flora? — disse ela — Mas o que houve? — Ah, menina Edissa, sempre com muitas perguntas nos lábios! — O homem levantou seu irrigador. — Eu te plantei! — Que isso significa? A última lembrança que tenho é de ir dormir na casa menor. Deus, por que não sinto meus braços e pernas? O velho sorriu: — É porque você não tem mais braços nem pernas! — Ele se sentou na terra barrenta. — Mas eu não quero ficar sem braços e pernas! Reverta tudo isso. — Você não veio de longe para que eu a curasse? Meus parabéns, agora ficará sem feridas — Flora estendeu a mão para cumprimentar Edissa, esquecendo-se que ela estava com o corpo todo debaixo da terra. — Ah, me desculpe! — Não! Eu não quero nascer da terra! — Edissa se lembrou de algo importante. — E Fryz, como ele está? — Ainda não pegou. Não sei se ele vai brotar... — Flora se levantou. — Bem, tenho que continuar a irrigar as outras pessoas! — Espere! O que vai acontecer comigo? O deus então abriu um sorriso de satisfação: — Acho que logo você vai perceber o que te acontecerá! Não me cabe estragar a surpresa! A aflição de Edissa por estar ali presa ao solo sem sentir seus braços e pernas foi aumentando ao longo dos dias. Com o passar deles, ela foi perdendo a noção de tempo e não soube mais precisar quando Flora retornaria para irrigá-la. O velho deus nunca mais falou com ela; cumpria sua obrigação e se ia. Isso se repetiu até o dia que choveu de mansinho e ele não apareceu. A cabeça ao lado de Edissa ficou feliz: — Que sorte a sua, menina Edissa! — Quase brotando!

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EDISSA — Não quero nascer da terra! — Edissa balançava a cabeça. — Quem te disse que é ruim nascer da terra? Por que este pessimismo todo? — Sei por mim mesma! Perderei meus parentes! Serei só! A cabeça fez um “não”: — Nascer da terra é uma dádiva! É banho de regeneração; ressurreição como nova criatura! — Não quero deixar de ser quem sou! — Vai entender que criatura nova não é deixar de ser quem você é. É se livrar dos erros passados. — E Fryz? Será que brotará? Jorge, por que não veio me ver? — Flora sabe o que faz — sorriu a cabeça, pouco antes de adormecer. A chuva engrossou. Edissa gritou: — Acorde! — mas de nada adiantou. Vencida também por um sono inexplicável, a mulher dos olhos vermelhos apagou por completo. Passaram-se mais alguns dias e Edissa não recobrou sua consciência. Contudo, Flora continuou a passar regularmente para afastar da sua cabeça as tiriricas que ali se faziam. Com o passar de mais dias a cabeça de Edissa adquiriu a coloração escurecida e murcha tal qual uma planta morta. Um dia pela manhã, ela então recobrou sua consciência. Estava debaixo da terra fofa, mas não se sentia sufocada, pelo contrário sentia-se confortável. Braços novos e pernas novas haviam brotado; na verdade um corpo todo novo descansava embaixo da terra!

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XI

O N ASCIMENTO

J

DE

E DISSA

orge II sentia saudade de sua mãe e pensou seriamente em voltar para casa. Apesar de não admitir que era apenas uma criança, no

fundo ele sabia de sua condição. Todos aqueles dias ali, vivendo em um local onde as pessoas diziam “sim”, “não” e “talvez” era insuportável. Pensou se Flora não ficaria louco um dia, ou se já não fosse. — Pois vou ver Fryz! Espero que esteja revivido! — disse o cavaleiro mirim para si próprio. — Depois, penso se fico ou se volto — levantou-se do banco de madeira da área da casa menor. No caminho, montanha abaixo, antes de chegar ao campo em que Fryz estava plantado, Jorge se deparou com uma cena inusitada. Um leão feroz estava mordendo a perna de uma menina de idade similar a dele. O cavaleiro não pensou duas vezes, avançou contra o animal de espada em punho e o acertou na altura da cabeça. O animal caiu vencido e a menina chorou apavorada: — Ah pobre leão! Jorge embainhou sua espada curta. Percebeu que se tratava de uma menina de cabelos castanho-claros e de pele pálida. Os olhos grandes eram da cor do cabelo e sua roupa consistia num vestido maltrapilho e encardido: — O que disse? Acabei de salvar sua vida! — Mas tirou a do animal! Eu preferia mesmo morrer a viver na condição que estou, sem poderes... — Sem poderes? Quem é você?


PAUL LAW — Não me reconhece sem o brilho nos cabelos e os olhos de prata, não é? Eu sou Aurora deposta da minha função por ser responsável pela morte da Ursa Menor de minha mãe. E agora a sua ira aumentará por causa da morte de seu Leão. — Que mãe lança um leão sobre a filha? — Não foi minha mãe. Meu irmão gêmeo está tomando conta dos animais celestes dela, depois que eu fui deposta. Ele me quer morta. Jorge se aproximou e se ajoelhou: — Está ferida! Sangra como sangramos! — Sinto dores, desde que fui condenada a ser humana. Queria voltar a fazer manhãs... — Sei de Flora! Ele é louco, mas poderá te ajudar. — e Jorge pegou Aurora no colo e a carregou de volta à vila. Quando ele chegou com a menina, todos os moradores saíram das casas e vieram ao seu encontro: — É a menina que faz as manhãs! Sim, é ela! — Diziam os da casa do “sim”. — Não! Não pode ser! — Falavam os da casa do “não”. — Talvez seja! — retrucavam os da casa do “talvez”. O pequeno príncipe indagou aos que afirmavam: — Sabe onde está Flora? Uma mulher disse: — Sim! Jorge voltou para o homem do talvez: — Talvez você possa me dizer! — estava prático em lidar com aquele povo diferente. — Talvez ele esteja no campo de plantação, colhendo as pessoas que estão nascendo da terra. Sua amiga Edissa vai nascer hoje! No campo de plantação, uma jovem de pele branca e perfeita rompeu o solo com sua cabeça amarela. Nua, bela, cheirando á terra molhada:

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EDISSA — Minha nossa! — se espantou Edissa. — Sinto-me renovada, cheia de energia! — agarrou um tufo de seu cabelo. — Amarelo! Meus cabelos mudaram de cor, assim como todas as minhas feridas deixaram de existir! Céus, até minhas rugas e calos, sumiram! Edissa reparou que todas as pessoas que antes estavam ali plantadas com ela, deixaram a terra. Todas estavam perfeitas. Flora cavava em volta delas e depois as tirava do solo, como se fossem cenouras. Seus corpos novos brotavam dos velhos. O deus de enxada nas costas se aproximou de Edissa. Quando estavam próximos ela lhe disse: — Que houve? Por que estou diferente? Ele ignorou as perguntas: — Viu aqui no chão? Esta cabeça seca era você! Agora essa mulher bela que acaba de nascer da terra é você! Vim colhê-la, assim como as demais pessoas! — Eu não queria ter nascido da terra — Edissa abaixou a cabeça. — Agora não tenho mais pai nem mãe; a terra é minha genitora. — Edissa, agora você poderá ir até Ádria e conseguir suas desculpas. Você é nova! — Como se ser nova fosse voltar a ser quem eu era... — Edissa não entendeu bem a razão de dizer aquilo. Flora também não compreendeu: — Eu não sei — deu de ombros. — Preciso me juntar a Jorge e Fryz para voltarmos! Por falar em Fryz, e ele? Também nasceu da terra? Flora abaixou a cabeça: — Ele não brotou. Do olhar ainda vermelho da nova Edissa, filetes de lágrimas desceram.

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XII

H ORA

DE VOLTAR

V

estida agora com seda bege e simples, sozinha já que Flora se recusou a acompanhá-la, Edissa foi até o outro campo de plan-

tação em que Fryz estava plantado. Preferiu, antes de falar com Jorge, visitar o amigo mágico. Quando lá chegou, avistou que todas as cabeças plantadas pareciam dormir. Sentou perto da de Fryz: — Queria te agradecer! Sei que não pode me ouvir, mas mesmo assim. O vento soprou com força jogando os cabelos de Edissa contra sua face, escondendo suas lágrimas. Ela se abaixou e beijou a testa do amigo: — É estranho isso que passei a sentir por você. Queria que estivesse vivo. De volta à vila, a mulher se deparou com Jorge conversando com Flora. Uma menina de idade similar a do cavaleiro estava ao seu lado, com a perna protegida por panos. Flora dizia: — Essas ervas que apliquei em seu machucado vão curá-la senhorita Manhã. Os habitantes do local se voltaram para Edissa e tal qual da vez que Jorge chegou com Aurora, disseram que ela era mesmo Edissa, que não era e que talvez pudesse ser. A moça se mostrou indiferente: — Aurora me desculpe por fazê-la perder sua função. Sinto muito — disse a mulher renovada. Aurora sorriu: — Que bom que você logrou êxito em sua missão! Ao menos isto! Edissa forçou um sorriso. Voltou-se para Jorge II:


PAUL LAW — Vamos voltar para o reino de sua mãe? O cavaleiro assentiu: — Acho prudente levarmos Aurora conosco! Podemos defendê-la das investidas de seu irmão malvado, até que sua mãe se arrependa. Foi a vez de Edissa assentir. Virou-se para Flora e lhe falou: — Obrigada pela cura! — abraçou-o. — Cuide de meu amigo Fryz! Flora coçou a cabeça: — Lembre-se do que vivenciou aqui! — ele afastou o abraço da jovem — minha filha — fios de lágrimas desceram dos olhos dele. Edissa teve vontade de chamá-lo de pai, mas preferiu não fazê-lo: — Adeus! — foi sua última palavra. Descendo por aquelas montanhas, seguiam Edissa, Jorge II e Aurora. O caminho de volta era longo e havia a probabilidade de encontrar algum inimigo, pensou consigo Edissa enquanto observava o cavaleiro mirim e a menina manhã. Faltava pouco agora, pensou por último. Bastava conseguir as desculpas da rainha Ádria para que sua amiga Joana se livrasse de Remorso e depois ela poderia voltar para sua rotina de arrependimento. Edissa percebia agora que o objetivo de ajudar a amiga falecida tinha se tornado primordial em sua vida, que através desta intenção de ajudar o próximo ela tinha se tornado uma pessoa melhor. O sol quente no centro do céu tirou-a dos pensamentos: — Mas que calor! — disse Edissa. — Papai está próximo — respondeu-lhe Aurora. — Precisava tanto falar com ele. Jorge se lembrou: — Você é filha de Dia, não é mesmo? — Sim, mas ele sempre está ocupado demais para se preocupar com seus filhos. Eu e meu irmão fomos educados e criados quase que exclusivamente por nossa mãe. O silêncio que sucedeu às palavras da menina manhã foi a resposta

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EDISSA que Jorge e Edissa tinham para ela. Mas, este silêncio não tardou a ser quebrado pelo barulho de passos. Eram soldados de farda esmeralda, homens de Remorso: — Soldados inimigos se aproximam! — Jorge II sacou sua espada curta. Edissa colocou a mão no braço do guerreiro mirim: — Não precisamos lutar. Podemos tomar outro caminho. Então uma esfera flamejante desceu do céu e tomou a forma de um homem bem na frente de Edissa: — Mas esses soldados, o que fazem aqui? — disse o homem ao mesmo tempo que balançava a cabeça em desaprovação. — Saiam do meu caminho — voltou-se para o bando de Edissa. — Tenho que esquentar o clima para que chova mais tarde. Vou expulsar os militares com a erupção de um vulcão. — Papai! — vibrou a pequena Aurora. O homem forte de cabelos flamejantes, de pele brilhante como os raios solares e de olhos brancos, que vestia uma capa vermelha e botas negras não compreendeu: — Chamou-me de pai? Creio ter se enganado! Agora me deem licença, pois preciso trabalhar! — Sou eu, Aurora! Mamãe se zangou comigo e me reduziu à condição humana. — Aurora? Puxa, como está diferente! — ele colocou a mão no queixo. — Obedeça à sua mãe e agora me dê licença! Edissa tomou a palavra: — Sua filha precisa de ajuda, não vê? Olhe como ela está com os olhos cheios de lágrimas! Aurora começou a chorar e Dia fitou Edissa e depois sua filha, nunca fora bom em lidar com sua condição de pai.

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XIII

D IA ,

C

PAI AUSENTE

om aquela conversa, os soldados de Remorso se aproximaram e armaram seus rifles. Um deles gritou, já com o rifle apontado

para Edissa: — Renda-se e pouparemos a vida de todos! Edissa ergueu os braços. Jorge fitou-a sem saber o que fazer ao passo que Aurora continuava chorando: — Você nunca gostou de mim, papai. — Filha, papai esteve trabalhando — ele falava sem jeito —, sua mãe não te dizia? — Mamãe também não gosta de mim. Prefere Crepúsculo. Dia só pensava em se livrar daquela situação constrangedora o quanto antes: — O que quer que o papai faça? Aurora engoliu o choro: — Fale com a mamãe para que me perdoe. — Papai fala! Contanto que seja rápido! Onde está sua mãe? A menina manhã franziu a testa: — Sabe que ela só aparece quando escurece! — Minha nossa! Quando escurece eu tenho que dormir! — Fique sem dormir essa noite, papai! Por favor. Dia sorriu forçadamente: — Papai fica — precisava resolver aquilo rapidamente para que voltasse ao seu trabalho.


PAUL LAW Dia então percebeu que os soldados estavam rendendo o bando de sua filha: — O que está acontecendo? — indagou ele. — Estamos capturando todos vocês — respondeu-lhe um dos militares de esmeralda. Ele sorriu: — Enquanto eu estiver aqui, não! — levantou o braço e um dos soldados começou a pegar fogo. Os outros, vendo o companheiro queimar, fugiram. Sentindo-se segura, Edissa abaixou os braços e agradeceu ao pai de Aurora. Depois disse: — Precisamos continuar caminhando enquanto inimigos não se organizam contra nós. — Vem com a gente, papai! — Aurora agarrou o braço brilhante do pai. — Mas... — Dia tentou argumentar inutilmente à filha. Seguiram a caminhada agora protegidos pelos poderes de Dia, mesmo que contra a sua vontade. Quando estava prestes a anoitecer, já no alto da última montanha antes de chegarem à Floresta Plana que antecedia as terras de Ádria, foi que o quarteto encontrou Crepúsculo, o outro filho de Dia: — Crepúsculo, meu filho! Vá chamar sua mãe! Preciso falar com ela a respeito de Aurora — foi a ordem do patriarca ao fitar o filho. — Papai, papai... como quis reencontrá-lo! Mas Dia não se mostrou comovido: — Vá logo! — Quis reencontrá-lo para matá-lo e tomar seus poderes! — o menino brilhante se lançou veloz de faca em punho contra o pai. — Mas, o que é isso? — Dia o segurou, mas estava muito cansado por causa da proximidade da noite. A faca perfurou sua pele brilhante na altura do ombro direito. Jorge se aproximou rápido e com sua espada curta tentou acertar Crepúsculo, mas ele saltou para trás com agilidade. Dia levou a mão no ferimento assustado: — Meu filho? Quer mesmo matar seu pai?

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EDISSA Crepúsculo esfregou as mãos: — Caia na real, velho! Você nunca foi pai! Dia ficou espantado: — Mas... Jorge II tomou a conversa para si: — Cale-se, aberração! — avançou de espada e escudo nas mãos. Dia desapareceu, desolado. Crepúsculo apontou para Jorge II: — Venha filho da rainha! Sua morte vai ser meu primeiro troféu! Jorge II avançou contra o menino que fazia o fim do dia, mas teve seu golpe de espada defendido pelo pequeno vilão e sua faca. Crepúsculo aproveitou para desferir um soco poderoso contra o elmo de prata do cavaleiro mirim, arrancando-o. — Acha que minha força é humana? — o vilão sorriu satisfeito. O filho de Ádria ergueu sua espada: — A minha também não! Sou um cavaleiro virtuoso! — avançou mais uma vez. Crepúsculo desviou do ataque e enfiou sua faca na altura da costela de Jorge, perfurando sua armadura. Jorge se ajoelhou com a mão no ferimento: — Bastardo! — ralhou. — Meu próximo ataque será fatal — Crepúsculo passava sua faca de uma mão para a outra. Jorge II se lembrou das palavras de seu pai: “um guerreiro caminha por vezes rumo à morte, mas sempre ruma para a vitória.” Levantou-se e ergueu sua espada. — Minha vez de atacá-lo! — O vilão avançou em velocidade sobrenatural. Jorge sentiu a presença do inimigo e quando estavam próximos demais, atravessou-lhe com sua arma. A faca de Crepúsculo caiu no chão: — Isso não pode estar acontecendo — disse o pequeno vilão.

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PAUL LAW Jorge retirou sua espada do peito do inimigo que caiu de bruços. Imediatamente se fez noite. Crepúsculo desapareceu. — Que aconteceu? — indagou Edissa para Aurora. — Mamãe, chegou. Jorge sorriu para suas amigas e caiu de joelhos, havia perdido muito sangue.

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XIV

O

E

REENCONTRO COM

N OITE

dissa estava de joelhos, retirando a parte de cima da armadura de Jorge II quando uma luz prateada clareou o ambiente. Ela sabia

de quem se tratava. Em seu íntimo quis muito reencontrar aquela criatura para se vingar. Aurora disse: — Mamãe! Noite não respondeu, sequer desceu do céu para falar: — Quem ousou ferir meu filho? Edissa se levantou: — Você matou Fryz, sabia? Ela deu de ombros: — Queria ter matado todos vocês. — Eu quero me vingar! Dói muito lembrar que perdi meu amigo por culpa sua! Agora estou na iminência de perder outro! — Acha que me importo? Edissa abaixou a cabeça: — Sei que não. Mas se ponha em meu lugar: feriram mortalmente um dos meus e nada pude fazer assim como feriram seu filho e você também não pôde nada fazer. Noite franziu a testa: — Aonde quer chegar, mulher? — Quero dizer que você também deseja vingança pelo que fizeram com seu filho. — Quero e terei!


PAUL LAW — Ajude meu amigo ferido, por favor! — engoliu sua ira para pedir auxílio à assassina de Fryz. Os cabelos brilhantes de Noite balançavam numa dança bonita ao passo que o seu rosto demonstrava espanto: — Quer que eu ajude quem atentou contra Crepúsculo? Por acaso ficou louca? Edissa fitou Jorge caído e depois Noite: — Se devolver a saúde perfeita para aquele que atentou contra seu filho, poderá se vingar dele depois! Noite colocou a mão no queixo, havia entendido o que Edissa queria lhe explicar. Desceu do céu tocando com os pés descalços as folhas secas daquele solo. Edissa fitou-a por um segundo e ela também fixou seus olhos nos vermelhos da moça. Noite colocou a mão no ferimento de Jorge por um segundo e uma luz prateada invadiu todo aquele ambiente, ofuscando a todos. Quando o clarão cessou, o ferimento do pequeno príncipe tinha se fechado, apesar de ele ainda continuar inconsciente: — Terei de esperar a noite toda para me vingar? Este inimigo que curei ainda está inconsciente! — reclamou Noite. Edissa tomou a palavra: — Não quer trocar sua vingança contra Jorge II por uma vingança contra mim? Assim também poderei tentar me vingar do que você fez ao meu amigo Fryz. — Ora, se fosse para isso, eu não precisaria curar o menino! — Eu estou consciente e pronta para receber toda a sua vingança, pense! Noite suspirou: — Mas não quero uma simples troca de vinganças! Proponho-te um jogo! — Que jogo seria? — Sobreviver em minha cidade por um dia e uma noite. De dia pode

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EDISSA contar com meu marido e a noite comigo! — Se eu sobreviver? — Você vence e continua sobrevivendo. — E as vinganças? — Se compensam. — Meus amigos? — Ficarão aqui. — Está bem, eu concordo! — Edissa abaixou a cabeça. — Ótimo! — Noite abriu os braços e um clarão precedeu o desparecimento dela com Edissa. — Mamãe e eu? — gritou Aurora sozinha. Jorge jazia inerte ao seu lado e ela não soube o que fazer ou para onde ir. Sentou-se ao lado do cavaleiro mirim e abraçou seus joelhos: — Acorde logo, Jorge! Por favor! O dia clareou sem que houvesse manhã, indo direto para o seu meio. Aurora não pregou os olhos por nenhum momento e aquela noite havia custado a passar. Quando o sol esquentou as bochechas de Jorge II, ele despertou. Abriu os olhos devagar, sentindo dor em cada osso de seu corpo. Havia dormido de mau jeito: — Aurora, onde está Edissa? — disse o cavaleiro ao se colocar sentado, — Jorge! Que bom que acordou! Que está bem! — Que aconteceu? A menina explicou tudo para o pequeno príncipe, que ao final se mostrou aborrecido: — Mas ela não podia ter feito isso! Por certo morrerá na cidade de sua mãe. — E nós, Jorge? O que faremos? Jorge virou-se para sua pequena amiga e sorriu: — Eu vou proteger você!

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PAUL LAW Ela sorriu de volta e então ouviu-se barulho de cavalos. Jorge II com dificuldades e com a ajuda de Aurora se colocou em pé. Pegou sua espada e se preparou para recepcionar quem vinha. Eram vinte cavalos que carregavam cavaleiros trajando armaduras completas. Aquelas capas, aquele brasão era característico. Jorge II abaixou a espada e apreciou bem aqueles que vinham. Seu maior sonho era um dia fazer parte daquela tropa de cavaleiros. Esperou que parassem, fitou seu líder demoradamente, até que ele levantasse sua viseira: — Pai! — disse o pequeno príncipe.

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XV

N A C IDADE

Q

DE

S AL

uando Edissa despertou num susto, percebeu que se encontrava em algum tipo de caixote gigante e metálico ladeado por

acentos: — Onde estamos? — Disse ela assustada. Do banco ao seu lado se fez uma voz conhecida: — Estamos na Cidade de Sal e isso aqui é um trem — respondeu Dia de cabeça baixa — Meu filho tentou me matar, você viu? — finalizou ele, olhando pela janela do trem. Não havia ninguém além deles. As luzes da estação, as que ainda não estavam queimadas, piscavam irritantemente e iluminavam o vazio: — Ajude-me a sobreviver e eu te ajudo a reconquistar seus filhos! — falou Edissa. — Não sei se você vai conseguir sobreviver! A Cidade de Sal é o local onde minha esposa coleciona pessoas que fracassam! Nem sei se quero sair daqui também, já que meus filhos me odeiam e me sinto mesmo um fracassado. — Venha, levante-se! — Edissa se levantou e agarrou a mão de Dia. Desceram do meio de transporte inativo e procuraram por informações nas redondezas. Tudo parecia adormecido há muito tempo por ali. Nas calçadas, estátuas de pessoas se faziam como uma estranha decoração. Eram tão brancas e pareciam tão reais. Edissa estranhou tudo aquilo, mas preferiu o silêncio. Dia, por sua vez, não: — É este o destino que te espera!


PAUL LAW Edissa parou de caminhar e indagou: — Como assim? — Será transformada em uma estátua de sal. Ela se aproximou de uma das estátuas, a que representava uma criança assustada. Tocou com o dedo a superfície da estátua e depois levou o dedo até a boca e sentiu o gosto salgado. — É mesmo uma pessoa feita de sal? — quis saber de Dia. Ele lhe disse: — Sim. — E como posso me livrar deste destino? Dia sorriu: — Não sei se devo dizer e mesmo que eu diga acho pouco provável que esta informação te salve — pegou a mão de sua companheira — Promete me ajudar com meus filhos? — Sim, se você me ajudar a sobreviver! Ele soltou a mão de Edissa e virou de costas: — Eu não posso fazer muita coisa... — falou num sussurro. Edissa abaixou a cabeça: — Ela disse que você poderia me ajudar e que a noite ela me ajudaria. Dia se virou para Edissa: — Está bem! Eu vou te ajudar! Precisamos ficar a maior parte do tempo ocupados — e começou a andar! — Espere-me! Como assim ocupados? — Edissa foi atrás do homem de cabelos flamejantes. — O grande segredo que envolve essa cidade e que talvez não mude muito você sabê-lo, é que se sentir medo, você vira uma estátua salgada. Então era por isso que não havia ninguém por ali, deduziu a jovem de olhos vermelhos. Todos haviam sentido medo e virado estátuas. — Então não posso ficar com medo? Dia assentiu enquanto voltava a andar. Procurou uma casa que pudesse arrombar:

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EDISSA — Se entrarmos em alguma casa, você terá a sensação de proteção e durará mais tempo! Então para complicar as coisas ouviu-se o barulho de cascos. Eles antecederam a presença de um Touro e um Carneiro que dobravam a esquina, frenéticos. Eram maiores do que outros de mesma espécie: — São animais de minha esposa! Touro e Carneiro Celestes! — Minha nossa! — exclamou Edissa. — Corra! — Dia começou a correr! — Mas lembre-se: nada de medo! Agora a moça de olhos rubros começava a compreender o quanto era difícil não temer. Seria muito difícil fugir dos Animais Celestes de Noite sem ter medo e ainda por cima não recear pelo momento em que se tornaria uma estátua salgada. Edissa correu. Suas pernas novas davam tudo que tinham, mas o Touro e o Carneiro pareciam mais velozes e se aproximavam. Ela não quis olhar para trás, mas o barulho se fazia mais alto ao passo que seus pulmões também pediam descanso. — No que eu penso para afastar o medo? — disse para si mesma enquanto dobrava uma esquina. Estranhamente veio-lhe a mente a imagem de Fryz sorrindo. Ela se apegou àquela imagem e sorriu também. Entretanto, uma chifrada poderosa lançou-a para o alto e depois ela despencou, era o Touro Celeste. — Edissa, cuidado! — gritou Dia. A moça não pôde ouvi-lo. Sentiu um formigamento em suas pernas ao passo que fitava o Touro bufante.

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XVI

E CLIPSE

— O

sal, minha menina! Ele é um terrível mal para as pessoas; causador de muitas doenças, não é

mesmo? Edissa queria responder afirmativamente àquela voz que não podia identificar de onde vinha. O Touro continuava a fitá-la com fúria, mas não se atreveu a se aproximar: — Pensemos então de outro modo — continuou a voz. — Sejamos todos verdadeiramente feitos de sal, o que acha? Tal qual o sal nos alimentos, vivamos para melhorar as coisas; tal qual o sal, vivamos todos para servir. Edissa absorveu todas aquelas palavras, que naquele momento pareceram ser as únicas que existiam. Sentiu um novo formigamento em seu peito. Piscou, sua mente se organizou e suas emoções abrandaram. Dia que estava mais a frente gritou: — Isso é impossível! Você se tornou estátua de sal e depois voltou a ser humana! Edissa se levantou e o Touro Celeste continuou inerte. Ela se afastou devagar e depois correu. Então, quando se aproximou de Dia, observou que o céu estava escurecendo. Ao fitá-lo, viu que acontecia um eclipse: — Que está havendo? — disse ela para o amigo. — Eclipse, meu filho mais velho! — disse Dia. Noite se materializou ao lado do marido: — Nosso filho há muito perdido! — disse ela.


PAUL LAW Foi então que o casal se deu conta que finalmente havia se encontrado. Fitaram-se por alguns segundos: — Como você está linda! — Dia pegou a mão da esposa. Ela o abraçou: — Que saudade! Eclipse desceu do céu. Era um homem forte de um olho prata e o outro amarelo. Tinha longos cabelos dourados e brilhantes e vestia-se com um manto negro, como um monge. Sua pele era prateada e sua barba longa da cor dos cabelos, parecia mais velho do que seus pais. Sacou uma pena e começou a escrever em um pergaminho: “Tenho observado vocês! Achei que um encontro seria bom para que repensassem sobre nossa família”. Ele deu o pergaminho para sua mãe. — Mas meu filho, o que estamos fazendo de errado? Eclipse sacou outro pergaminho: “Aurora tem que ser aceita de volta a nossa família, pois eu sei que não é culpa dela o que aconteceu com Ursa Menor. Eu sei o culpado, mas não direi por que o amo e darei uma chance para que confesse e se arrependa. Sua fúria, minha mãe, é pela ausência de papai que trabalha muito. Por isso, para acalmar seu coração, vou te dar um tempo com ele”. — Oh, meu filho, sempre tão sábio! — Noite deixou que lágrimas de prata brotassem dos seus olhos. Dia tomou a palavra para si: — Mas por que nunca me disse que sentia minha falta? Que eu estava trabalhando muito? — Dificilmente nos encontramos para falarmos — explicou Noite. Eclipse pegou mais um de seus pergaminhos e escreveu: “Eu vou tomar conta dos afazeres de vocês para que possam ficar juntos por um tempo! Levarei a menina Edissa de volta para junto de seus amigos e me encontrarei com Aurora. Depois falarei com Crepúsculo e espero poder resolver tudo”. Dia e Noite assentiram ao mesmo tempo.

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EDISSA Edissa se aproximou do jovem nem dia nem noite: — Foi você que me ajudou com o medo, não foi? Ele assentiu com um sorriso. Ela continuou: — Mas você não é mudo? Como pôde falar comigo. Ele então, para a surpresa de seus pais, falou: — Os pais não escutam seus filhos.

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XVII

O S C AVALEIROS V IRTUOSOS O

N

E XÉRCITO

DE

CONTRA

R EMORSO

o acampamento, já nas terras da rainha Ádria e sob a luz de uma fogueira, o pequeno Jorge II comia uma coxa de frango.

Ao seu lado, um homem forte e de barba por fazer admirava o céu escuro: — Eclipse! — falou Sir Jorge. — Como é, papai? — indagou, seu filho. — Nem Dia e nem Noite, Dia noturno ou Noite diurna. Um fenômeno, meu filho. Aurora sorriu: — Meu irmão mais velho. Sir Jorge assentiu. Voltou-se para o filho: — Jorge II, tu não deverias ter deixado sua mãe! Por certo ela está aflita com o seu sumiço! — Papai, eu o fiz por uma causa nobre, como os cavaleiros virtuosos fazem! Vi alguém necessitando de ajuda e resolvi ajudar! — Mas sabes que agimos com disciplina! O que nos separa dos mercenários é a nossa disciplina, filho. Já não lhe havia dito isso? — Achei que minha causa era importante o suficiente para agir como agi. — Pensastes de maneira errada. Tu não lembraste a aflição de sua mãe que tem apenas a ti como filho. — Não creio ser tão importante para ela.


PAUL LAW Sir Jorge se levantou: — És nosso filho amado! Então um cavaleiro da tropa de Sir Jorge se aproximou aflito, pediu licença para interromper e avisou que uma tropa inimiga fora vista nas proximidades: — São eles, meu senhor! Os soldados de rei Remorso se aproximam mais uma vez! — foram as palavras do cavaleiro. — Mas, nós já não os derrotamos antes? — Sim! Mas esses são outros! Acho que Remorso tem um bom motivo para empenhar tantos soldados! — Seja como for, avise o resto da tropa para que fiquem preparados! Nesta noite de dia, haverá guerra! Edissa voltou à floresta onde tinha deixado seus amigos, precisamente no alto de uma árvore. Eclipse a trouxera, mas tivera que resolver alguns problemas relativos às funções de seu pai e sua mãe. Por essa razão não pudera ficar. Prometeu retornar assim que as coisas estivessem acertadas. Para a surpresa da mulher de olhos rubros uma batalha violenta estava prestes a ser travada lá embaixo: cavaleiros contra militares de farda verde, estes últimos portando rifles e os primeiros escudos e espadas. Ela teve medo e se escondeu atrás do tronco. Depois disse para si mesma: — Eles vão lutar por minha causa e nem sabem. Os que sabem, não lutam por eles mesmos, mas sim por alguém ou para alguém. Edissa reconheceu, no lado dos cavaleiros, Jorge II e Aurora e no lado dos soldados viu rei Remorso: — Ele está aqui pessoalmente — abaixou a cabeça. Rei Remorso tinha o rosto coberto por um capuz marrom e portava uma lanterna velha na mão direita. Estava à frente dos seus soldados. Sir Jorge estava à frente dos Cavaleiros Virtuosos. Remorso falou:

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EDISSA — Saudações Sir Jorge dos Virtuosos! Sou rei Remorso e estou aqui por causa de uma de minhas súditas! Ela fugiu e vim reavê-la! — De quem falas, Arrependimento? — Sir Jorge foi firme. — De Edissa. Ao ouvir aquele nome, o cavaleiro virtuoso deu um passo para trás: — Não há ninguém com este nome entre nós! — disse depois, recuperando toda a sua firmeza. — Há sim! — gritou Edissa do alto da árvore. Jorge II sorriu ao olhar para cima: — É ela, papai! Aurora também olhou para o alto. — Edissa, você conseguiu! — disse a menina-manhã. A mulher de olhos vermelhos fitou todos de onde estava. O ventou soprou e desmanchou seu penteado dourado. Do capuz que escondia o rosto de Remorso, deu para ver um sorriso amarelo: — Você está diferente! Não importa, continua sendo minha! Venha por bem e não me faça matar todas essas pessoas. Edissa desceu da árvore e se aproximou dos virtuosos. Sir Jorge fitou aquela mulher intrigado: — Quem és tu que despertaste tanta ira em Arrependimento? Edissa abaixou a cabeça: — Sou alguém que se arrependeu. Rei Remorso ergueu sua lanterna: — Está vendo? Não disse que ela é minha? Sir Jorge fitou a mulher e depois o rei inimigo. Os cavaleiros dele estavam preparados para iniciar o confronto, assim como os soldados esmeraldas. Mas Sir Jorge era sábio: — Se dizes que se arrepende assume ser mesma súdita de Remorso! Esta batalha será injusta se for travada para defendê-la. Edissa gesticulou um “sim”.

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XVIII

E DISSA

T

É LEVADA POR

Á DRIA

udo em vão, foi o que pensou Edissa ao caminhar em direção a Remorso. Tinha se esforçado tanto para conseguir as desculpas

de Ádria e agora tudo estava acabado; havia chegado tão perto. Então para contrariá-la mais uma vez ouviu-se: — Pare! — era a rainha Ádria, belíssima, vestida de ceda verde e de cabelos rubros soltos, do alto de seu alazão negro. Remorso deixou que sua lanterna caísse. Edissa parou e se voltou para a rainha: — Majestade! Como quis vê-la! Preciso muito lhe pedir algo! Mas Ádria não lhe deu ouvidos. Ao invés disso ordenou: — Ninguém é bem-vindo em minhas terras sem minha autorização. Nem mesmo você, Remorso! Por isso, ordeno que saia. — Com todo o prazer, Ádria — disse Arrependimento. — Mas quero levar comigo Edissa, quem vim buscar. — Ninguém leva nada de minhas terras! — Ora, Ádria! Ela é minha! Vai defendê-la? Seu esposo já disse que uma guerra para defender Edissa é injusta, posto que ela mesma admite sentir-se culpada! — Uma guerra para defender Edissa é mesmo injusta, mas para defender minhas terras de intrusos é justa! — Ádria ergueu a mão direita e soldados de farda amarela começaram a surgir em volta das tropas de Remorso e dos Virtuosos. Eram muitos e uma batalha naquelas condições para Remorso seria


PAUL LAW como aceitar a derrota. O rei então disse: — Não creio que irá me desafiar? — Não é desafio, é expulsão! Saia de minhas terras, Arrependimento! — E minha Edissa? Pela primeira vez Ádria fitou Edissa. Viu nela algo familiar, mas não soube precisar o que era. Edissa temendo o pior colocou-se a argumentar: — Majestade, eu só preciso de um minuto com a senhora! Depois irei com Remorso, de bom grado! Tenho muito que lhe... — Cale-se! — interrompeu a rainha. — Não lhe ordenei que falasse. Edissa abaixou a cabeça. Remorso insistiu: — Dê-me Edissa! — Não. Ao menos por agora. Preciso castigá-la pela insolência em levar meu filho para longe! Depois, se ela ainda estiver viva eu lhe entrego. — Dou-te três dias, Ádria — vociferou Arrependimento. — Depois disso, voltarei com todas as minhas tropas para tomar-lhe Edissa e essas terras! Os soldados da rainha armaram os rifles, mas Remorso virou-se e junto de seus soldados, rumou em sentido contrário. Edissa continuou de cabeça baixa e pôde ouvir a ordem de Ádria: — Guardas, prendam Edissa! Sir Jorge aproximou-se do cavalo em que a esposa montava: — Saudações, amada! Há mesmo a necessidade de prendê-la? — Saudações, meu marido. Há várias atitudes do passado de Edissa que justificam tal prisão, tomei conhecimento! Mas utilizo a de raptar meu filho Jorge II! — a rainha deu meia volta com seu animal e galopou rumo ao seu castelo. Os soldados de amarelo capturaram Edissa que não resistiu. Jorge II se aproximou: — Não se preocupe, Edissa! Papai está aqui e juntos argumentaremos com mamãe sobre o seu pedido! A mulher de olhos vermelhos sorriu e foi levada pelos soldados.

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EDISSA Edissa foi levada para o calabouço nas dependências do vilarejo que rodeava o castelo da rainha Ádria. Ali, sentada no feno, aguardou pelo momento em que seus amigos convenceriam a rainha a recebê-la. Depois disso, estaria pronta para voltar ao Reino de Remorso, pensou consigo. Mas se passou um, dois, três dias sem que algo acontecesse. Naquele confinamento com a solidão a mulher nascida da terra, achou que tinha sido esquecida por todos. Pior que o arrependimento é o esquecimento, imaginou. Depois de três dias sem ver ninguém e inclusive sem comer, vivendo graças a água que havia em um balde velho, Edissa ouviu passos. Sua euforia foi imediata, ela começou a bater na grade para chamar atenção: — Socorro! — disse quase sem forças. Mas os passos continuavam sem palavras. Quando o dono deles se revelou pelo portal do calabouço, a moça ficou assustada. Não sabia o que dizer, mas seu coração bateu forte: — Fryz!

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XIX

F RYZ

O

RETORNA

mágico outrora morto pelos ventos de Noite, parecia mais vivo do que nunca. Trajava seu sobretudo negro e os cabelos encara-

colados desciam pelo seu rosto esbranquiçado por maquiagem. Em sua mão direita uma bolinha vermelha passava de dedo em dedo: — Olá, Edissa! Edissa não teve palavras, talvez estivesse vendo fantasmas. Fryz se aproximou e colocou sua bolinha sobre a mão da mulher de olhos vermelho e a fechou. Ela sentiu o toque do amigo outrora falecido, não era um fantasma: — Fryz, então você brotou? Flora conseguiu trazer você de volta? Mas o mágico estava preocupado com o truque: — E sumiu a bolinha! — disse ele ao abrir a mão da amiga. — Responda, Fryz! — lágrimas intrusas queriam invadir o rosto de Edissa. — Não brotei. Continuo mortinho da silva. — Mas como está aqui, aparentemente vivo? — Mágica! — ele fez um gesto estranho com as mãos. — Fiz meu número de desaparecimento lá no Outro Mundo e voltei para cá — explicou. Edissa não entendeu bem: — Você estava fazendo mágica no Outro Mundo? Sua mágica consistia em desaparecer lá e aparecer aqui? — Na verdade era só desaparecer e depois reaparecer. Acho que algo deu errado — ele colocou a mão no queixo.


PAUL LAW Mas Edissa não se importou com os motivos que ensejaram a volta do amigo querido, tê-lo de volta já era o bastante. Ela sorriu: — Como quis que voltasse. — Vou te tirar daí e depois vamos falar com Ádria! Só que Edissa estava muito contente em rever Fryz, que os outros objetivos não lhe pareceram importantes. Nem percebeu como o mágico conseguiu abrir sua cela. Lançou-se num abraço apertado contra o seu salvador. Edissa começou a chorar de forma contida, mas depois descontrolouse em um pranto mais alto. Fryz apertou-a num abraço: — Está tão linda! Mais ainda do que antes, agora como cabelos dourados! — Fryz, meu coração doeu tanto quando você morreu! Não sabia que era tão importante para mim! Agora ele bate forte de alegria! — Ah, Edissa — ele afastou o abraço — isso que sente é muito raro de se sentir, sabia? — O que é? Fryz fez breve silêncio. Edissa quis que falasse: — É muito estranho. Se sabe o que é, me diga! — Não posso dizer. Pelo que sei, a última pessoa que disse não acabou muito bem. — Como sabe que ela não acabou bem? Talvez ela não tenha nem acabado... — De qualquer modo, prefiro não dizer — Fryz se aproximou e pegou as mãos de Edissa. — Gosto de sentir e não preciso de palavras. Ele beijou os lábios de Edissa brevemente, deixando a moça sem reação. Edissa ainda tinha um turbilhão de sensações em seu ser desde que fora apresentada ao beijo. Sentia-se leve, feliz e para ela, aquilo havia sido tão intenso, diferente. Estava agora, junta de Fryz, pelas ruas do vilarejo de Ádria rumando

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EDISSA em direção ao castelo real. Obrigaria a rainha Ádria a recebê-la e a aceitar as desculpas para Joana de uma vez por todas. Não ousou conversar com Fryz durante a caminhada; não sabia o que dizer dada aquela situação singular. Afinal, o que se sucedia ao beijo? Como ficaria a relação de ambos agora? Para o mágico, segundo Edissa, as coisas não pareciam ter mudado muito. Ele ainda estava morto, ressurgido pelo fracasso de seu número de desaparecimento, mas dessa vez a mulher de olhos vermelhos o observava mais atenta. Quando Edissa chegou ao portal de entrada do castelo, os guardas de amarelo se afastaram para que ela pudesse entrar. Ela os fitou desconfiada, mas preferiu não dizer nada. Caminhou seguida de Fryz sem que ninguém tentasse impedir, até o salão principal onde era aguardada. No trono à direita estava Sir Jorge e no da esquerda Ádria sua esposa e rainha. Ao lodo dela, em pé, Jorge II e ao lado do virtuoso, Eclipse e Aurora. Aurora agora não tinha mais feições humanas, posto que recuperara o cabelo prateado e brilhante, assim como sua pele de outrora. Seus olhos tinham voltado a ser duas pedras acinzentadas, brilhantes e Edissa interpretou isso como aceitação da menina-manhã de volta à sua família estranha. Chegando perto do trono de Ádria, a mulher de olhos vermelhos se ajoelhou e preparou seu pedido.

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XX

AS

DESCULPAS PARA

— O

J OANA

que você disse? — Ádria se levantou do trono. — Quer que eu perdoe quem amaldiçoei por atentar

contra meu casamento? — Conheci Joana Cospe Facas nas masmorras de Remorso e sem suas desculpas, ela nunca sairá de lá — respondeu-lhe Edissa. — Ótimo! — Ádria se sentou. Sir Jorge, sempre sensato, argumentou com a esposa: — Amada, nada abalou nossa união e nunca haverá algo que a abale. Levar essa maldição a diante é como dar importância demasiada a algo que não mereça. Ádria olhou desconfiada para o marido: — Mas é claro que é importante! Tanto que sofremos para ficarmos juntos! Não admito que alguém tenha a audácia de tentar roubar-te de mim, Jorge! Edissa continuou de cabeça baixa: — Ela errou, majestade e se arrepende. — Arrepender-se não desfaz o que foi feito, não estou certa? — Está certa, mas é um começo. Também é certo que quem se arrepende não volta a fazer o que fez caso tenha se arrependido verdadeiramente. Eclipse sorriu e Edissa encontrou no sorriso dele um pouco de alívio, pensou se poderia ouvi-lo caso ele lhe falasse, mas foi Aurora que tomou a palavra:


PAUL LAW — Eu sei o que Edissa passou para conseguir estar aqui, Ádria. Quantos desafios ela venceu para conseguir as suas desculpas. Ádria deu de ombros: — Nem é para ela essas desculpas! Acho tão inútil tudo isso, lutar por outrem! Foi a vez de Jorge II falar: — Mamãe, e o que você fez para me trazer de volta? Não foi lutar por outrem? Ádria sorriu: — Ora, mas você é meu filho, carne de minha carne! Fryz abriu os braços e num golpe de agilidade fez aparecer em sua mão direita a espada de cabo dourado, feita pelo último suspiro de Joana Cospe Facas: — E nós, humanos? Não somos todos feitos da mesma carne? — disse ele ao estender a espada para que a rainha pegasse. — Presente de Joana, pelas desculpas! — sorriu o mágico. Ádria pegou a arma rara e a analisou: — É linda! Edissa sorriu pela primeira vez: — Eu vi Joana fazendo-a — depois entristeceu. — Vi-a morrendo para fazer essa espada. A rainha Ádria fitou Edissa com calma, ela não tinha o costume de observar as pessoas, mas se viu curiosa: — Você parece se importar muito com o destino da mulher que atentou contra minha felicidade. Qual é o seu interesse nisso tudo? — Que alguém possa se importar muito com o meu destino, um dia. Todos olharam cheios de pena para aquela mulher de joelhos. Ádria continuou com o interrogatório: — Você entende agora o maior castigo que eu te impus? Edissa gesticulou um “não” com a cabeça. — O esquecimento — disse Ádria antes de fazer uma pausa para a re-

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EDISSA flexão. — Deixei-te a mercê da solidão por três dias para que sentisse como é ser esquecida por todos! Fiz, inicialmente para castigá-la por ter levado meu filho de mim! Não sabia que ele havia ido por vontade própria e me deixado sozinha! — A senhora fez comigo o que achou que eu havia feito com a senhora. — Exatamente! Dei-te o que senti e agora percebo que agi errado. Edissa levantou a cabeça: — Majestade, a senhora desculpa Joana Cospe Facas por ter atentando contra o seu casamento? Ádria se levantou e pediu para que Edissa fizesse o mesmo. Fitou primeiro o marido, depois o filho. Por conseguinte, passou rapidamente pelos olhos de Eclipse, Aurora e Fryz. Parou nos vermelhos de Edissa: — Eu a desculpo! Edissa não se conteve e abraçou Ádria. A rainha retribuiu o abraço e falou: — Aprendemos lições valiosas, Edissa. — fora a primeira vez que a rainha mencionava aquele nome — Por essa razão, há uma condição para validar minhas desculpas. Edissa afastou o abraço de Ádria: — Qual seria? — disse ela. — Que você consiga as suas próprias desculpas!

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XXI

M INHAS

N

DESCULPAS

ada mais gratificante do que a luz do dia após a escuridão da noite. Noite, aliás, estendida por alguns dias por Eclipse a fim de

conferir aos seus pais um pouco de descanso e a possibilidade de estarem juntos. Contudo, agora, tudo havia voltado ao normal: Aurora voltara a fazer manhãs, Dia a cuidar dos dias. Pensando a respeito, Edissa deduziu que também Crepúsculo continuaria a cuidar do entardecer e Noite das noites. Talvez uma trégua entre ela e a família de Aurora tinha ocorrido graças a intervenção de Eclipse. Havia ainda a condição de Ádria para que as desculpas conseguidas para Joana valessem. Edissa tinha que conseguir suas próprias desculpas e isso seria, apesar de no fundo querido, muito difícil. — Que vai fazer? — disse Fryz enquanto balançava as pernas do alto do muro do castelo de Ádria. — Não sei — disse Edissa olhando o sol se erguer no horizonte. — Vamos ao encontro de quem pode te desculpar, Edissa! — o mágico se levantou e deu um soco no ar. Edissa não disse nada, mas ouviu-se uma voz vinda de lugar algum: — Achei você, mágico de araque! Uma mulher esguia de pele bem pálida e de cachos grandes, negros, que trajava um vestido de noiva preto muito bonito com detalhes em vermelho e com saliente decote se materializou entre Edissa e Fryz. As mãos dela estavam cobertas por luvas negras e seguravam um buquê de rosas, os olhos vazios pareciam fendas para outra realidade.


PAUL LAW — Morte — disse Fryz. A mulher sorriu: — Estávamos todos esperando você reaparecer! — Meu número me trouxe de volta ao Mundo dos Vivos, Lady. Lady Morte deu seu buquê para Edissa e depois se aproximou de Fryz: — Você está morto, mágico! Tem que voltar para o local reservado aos mortos! Vim buscá-lo. Edissa pegou na mão de Lady: — Ele não pode ficar? Ficarei sozinha se o levar! Morte se afastou: — Claro que não! Você já viu algum morto vivendo entre os vivos? Fryz interrompeu: — Deixe-me despedir de Edissa, ao menos? Lady deu de ombros: — Contanto que seja rápido! Tenho muitos para levar ao Mundo dos Mortos. Fryz se aproximou de Edissa e a abraçou: — Mesmo morto e longe, estarei contigo — ele apontou para o peito de Edissa —, no seu coração. — Não vou conseguir, sem você! Fryz a beijou demoradamente. Lady pigarreou no intuito de interromper a cena amorosa. Entendendo, Edissa afastou-se do mágico: — Adeus! — disse ela com lágrimas nos olhos. Ele sorriu: — Logo dou um jeito de voltar! — piscou. Morte e Fryz desapareceram pouco depois e Edissa permaneceu ali, esperançosa de que o “mais que amigo” mágico voltasse. Mas não foi Fryz que voltou. No entardecer daquele dia, um ser indesejado reapareceu no vilarejo de Ádria e Jorge. Tratava-se de rei Remorso e toda a sua tropa de soldados de uniforme esmeralda. Eram tantos, mas eram tantos, que todas as ruas da vila ficaram cheias de gente, tal qual uma

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EDISSA procissão. Ádria de seu castelo recebeu a notícia da chegada do inimigo, mas não se preocupou. Sabia o que sucederia. Edissa ainda estava em cima do muro quando percebeu Remorso nos portões do castelo. Ele estava a frente de seu exército e empunhava sua lanterna enferrujada: — Abra, Ádria! — ele ergueu sua voz. — Ou colocaremos seus portões abaixo. Edissa disse do alto: — Não precisa entrar, se quem busca está aqui em cima do muro — disse ela ao se levantar. Arrependimento ergueu sua cabeça e sorriu ao fitar Edissa: — Ah, minha Edissa! — Eu vou com você, Remorso, como havia dito anteriormente. — Eu não acreditei em sua palavra, Edissa! É que seus antecedentes te prejudicam, se me entende bem. — Não importa! — Edissa desceu do muro. — Vamos! Remorso desistiu de tomar as terras da Rainha Ádria, já que tinha reavido aquilo que viera buscar. Com Edissa em seu poder, ele poderia reinar tranquilo em suas terras de culpa, pois não havia alguém que sentisse remorso e não fosse seu.

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XXII

A RREPENDO - ME

DE TER DESISTIDO

A

s terras de Remorso são longínquas, cercada por montanhas altas quase que intransponíveis. Da primeira vez, Edissa havia

saído de lá graças a carruagem mágica do próprio rei Remorso, mas agora essa carruagem não existia, assim como sua vontade de fugir. Transportada como um tesouro valioso, assim que chegou ao conjunto de prisões de Arrependimento, a jovem foi levada direto para uma cela preparada, com feno no chão e grades de metal novo. Os dias se passaram ali como em qualquer outro lugar, mas para Edissa, eram como horas. Desde que havia chegado, sua rotina era de reflexão. Sentada no chão de feno de sua cela, ela buscava entender sua culpa e a razão de estar ali, presa. Entretanto, num desses dias que pareciam horas, uma voz conhecida, há muito não ouvida, trouxe-a de volta dos pensamentos: — Edissa! Enfim te encontrei! Quando soube do seu retorno procureite por todos os calabouços de Remorso! Era uma mulher bonita cujos cabelos soltos eram lisos, de coloração castanha, claros. Seus olhos pareciam duas pedras amarelas, ao passo que as maçãs do rosto se encontravam levemente rosadas. Os lábios, que esticavam num belo sorriso, eram carnudos e belos. Vestia-se de seda branca distribuída num vestido simples: — Não me reconhece, não é? — continuou a mulher bela. — Tua voz não me é estranha. — Sou eu, a Joana!


PAUL LAW Edissa abriu um sorriso ao ouvir aquele nome. Pela aparência de sua amiga, por não estar cuspindo facas e a julgar por ela não parecer um fantasma, concluiu por duas coisas: Joana não havia morrido e as desculpas devolveram a beleza da moça. — Joana! — Edissa levantou-se do feno. — Puxa, como está linda! — Na verdade, Edissa, meu nome é Miranda! Apelidaram-me de Joana Cospe Facas por causa da maldição que me assolava! Como você conseguiu as desculpas de Ádria voltei a ser quem eu era — ela deu uma voltinha. — E você não morreu quando tomou aquele tiro quando tentávamos fugir? — Não! Por sorte o tiro não foi fatal, mas voltei à prisão depois da sua fuga. Fiquei lá, até o dia que você conseguiu minhas desculpas e me eximiu de culpa! Sou livre! Edissa se aproximou da grade: — Que bom! — disse. Miranda sorriu: — Vou tirar você daí para que possamos conseguir as suas desculpas! Assim, será livre como eu! — Não, Joana, digo: Miranda! Eu disse a Remorso que ficaria com ele depois que conseguisse falar com a rainha Ádria. Miranda chacoalhou uma chave: — Já não acha que ficou tempo suficiente sentindo-se culpada? Estranhamente nenhum soldado de farda verde quis recapturar Edissa, já que ela havia sido libertada por sua amiga Miranda. Era como se ela pudesse transitar por todo o reinado de Remorso sem que tentassem prendê-la. Miranda explicou-lhe: — Você não sabe, mas aqui no Reino do Arrependimento, ficamos presos por nossa própria vontade! Sentimos merecedores de prisão e por isso os soldados de Remorso nos prendem! Eles farejam nossas culpas. Edissa quis saber:

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EDISSA — Então eu poderia ter deixado a cela quando quisesse? — Sim. Você só não pode é deixar os limites das terras de Remorso, pois aí os soldados lhe capturarão — Miranda apontou para o castelo de Rei Remorso. — Não é bonito o castelo dele? Edissa assentiu e a mulher bela continuou: — Não precisaremos ir longe para ter suas desculpas! Aquele que você busca está aqui nas dependências de Arrependimento. — Como sabe quem busco? — Edissa parou de andar. Miranda sorriu: — Não sei, fingi que sabia para que me dissesse. — Se fossem pessoas, eu não poderia encontrá-las já que estão todas mortas. Não quis dizer a Ádria, mas não busco alguém que possa me desculpar. — Então como conseguirá se livrar da culpa? — Miranda parou de andar. — Dentre muitas coisas das quais me arrependo, arrependo-me de ter desistido — Edissa soltou suas palavras como desabafo. Miranda fitou a amiga que estava de cabeça baixa. Ela não soube o que dizer e o silêncio pareceu mais apropriado do que soar falsa. Edissa mesma continuou: — Primeiro me perdi de casa. No intuito de voltar, vendo que não conseguiria, desisti e aí perdi-me de mim mesma. — Que complicado, Edissa! — interrompeu Miranda. — Depois de perdida, cometi um monte de atrocidades, quis me tornar poderosa e aí perdi mais coisas — Edissa se virou de costas. — Fui perdendo tudo: respeito, admiração, honra e por fim a saúde. Quando isso aconteceu, me bateu um sentimento ruim, de vazio, como se eu estivesse doente por dentro também. — Arrependimento — Miranda deduziu. — Foi então que rei Remorso me encontrou e me trouxe para cá.

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XXVIII

M IRANDA

C

ENCONTRA UMA SOLUÇÃO

omo conseguir que a culpa por desistir deixasse de existir no coração de Edissa? Pensou consigo Miranda, enquanto olhava

para as estrelas. Deitada no gramado extenso do alto de uma montanha ela pensava num modo de ajudar a amiga que havia voltado para a cela, pois se achava digna de ali permanecer. Matutou por muito tempo. Tanto que seu pensamento foi ganhando volume até se fazer em monólogo: — Se desistir é uma ação, para anulá-la penso ser necessária uma outra ação — falava a mulher bela consigo mesma —, mas que ação seria? O contrário de desistir é insistir e então se Edissa insistir poderá muito bem anular a desistência! Anulando-a, anula-se a culpa, eis aí a solução! O fim do pensamento de Miranda alcançou a manhã e com ela Aurora, a menininha responsável por descer os animais celestes da noite e colocar o orvalho nas plantas. Quando Aurora chegou e viu aquela bela mulher olhando para o céu, pediu licença: — Linda mulher, dê-me licença para que eu possa colocar o orvalho no gramado? Miranda se assustou: — Quem é você que apareceu do nada? — indagou. — Chamo-me Aurora, mas muitos me conhecem como Manhã. Recentemente perdi meus poderes e fui ajudada pro Edissa e Jorge II! Agora tudo está bem, quer dizer, quase tudo, pois meu irmão gêmeo Crepúsculo não aceitou a minha volta e fugiu de casa. Não reparou que ontem não houve


PAUL LAW entardecer? Mas Miranda não prestou total atenção nos dizeres de Aurora, apenas na parte em que ela mencionou o nome Edissa: — Você conhece Edissa? — Claro que sim! Aurora contou toda a aventura que tivera ao lado de Edissa e Jorge II, ao passo que Miranda retrucou explicando que ela era quem precisava das desculpas da rainha Ádria. — Oh, então você é Joana Cospe Facas! Miranda assentiu: — Agora quero retribuir o que Edissa fez por mim, livrando-a de Remorso. Durante a noite pensei e vários modos de fazê-lo e acho que sei como. — E como? — quis saber Aurora. Miranda sorriu e pareceu que o mundo ficou um pouco mais bonito: — Venha comigo que no caminho te explico! Vamos tirar Edissa da prisão! — Você está me dizendo que temos que fugir dos domínios de Remorso? — surpreendeu-se Edissa ao ouvir Miranda. — Entendi tudo, Edissa! — argumentou Aurora que iluminava aquele calabouço escuro com seus cabelos brilhantes. Edissa gesticulou um não com a cabeça, mas Miranda disse empolgada: — Temos que ir ao local onde você desistiu para que possa persistir! — e explicou toda a sua conclusão sobre anular o desistir pelo persistir. Edissa até que entendeu, mas não achou possível. Disse para suas duas amigas: — Dei minha palavra que ficaria aqui! Se fugirmos, despertaríamos a ira de rei Remorso que colocaria todo o seu exército atrás de nós. — Você não teve medo disso quando buscou minhas desculpas —

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EDISSA respondeu Miranda. — Não entendo o receio de agora. Edissa abriu sua cela empurrando a porta enferrujada: — Não creio ainda que isso vá funcionar! Há muito desisti e sei que não encontraremos as coisas como daquela época! — Pare de ser pessimista e me siga — disse Miranda agarrando Edissa pelo braço. Caminharam pelas ruas que circundavam o castelo de Remorso até chegar ao local em que havia um grande portão dourado fechado e guardado por quatro soldados de farda esmeralda. Edissa parou quando entendeu que Miranda a levava diretamente ao portal: — Quer sair das terras de Arrependimento pelo portão principal? — Tem local mais apropriado? Quem vai desconfiar que saímos pelo local menos provável? Espere-me aqui que vou falar com os guardas. A bela mulher ajeitou o cabelo com as mãos e caminhou em direção aos homens que zelavam pelo portal. Quando os soldados avistaram-na, se apaixonaram imediatamente devido a beleza singular de Miranda. Isso acontecia com todos os homens que não tinham encontrado amor verdadeiro. Miranda precisou apenas pedir para que abrissem os portões para ela e suas amigas e que não dissessem a ninguém que elas haviam fugido por ali. Eles assentiram de prontidão e elas saíram tranquilamente. Edissa se espantou ao olhar para trás e ver que ninguém vinha atrás delas: — Como fez isso? — indagou à Miranda. — Seduzi-os com minha aparência! Quase sempre funciona. Aurora e Edissa ficaram boquiabertas.

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XXIV

DE

VOLTA AO LOCAL OND E

O VENTO FAZ A CURVA

E

dissa sabia que o local onde havia desistido, era o último que estivera antes do acontecimento que mudara toda a sua vida. Era a

Vila Onde o Vento Faz a Curva, ou seja, precisamente, onde a corrente de ar encontrava o retorno para voltar a todos os outros lugares do mundo. Sabia que era muito longe e demandaria muito tempo chegar até lá. Mas, Aurora ao saber deste local, sugeriu a solução: — Tanto meu pai quanto minha mãe usa o vento! Poderíamos pedir a eles que nos emprestasse para que possamos chegar até lá — referia-se à Vila Onde o Vento Faz a Curva. — Seria ótimo — disse Edissa. — Pois bem, chamarei pelo meu pai. Aurora gritou por Dia e ele demorou um pouco para aparecer. Quando chegou saudou Edissa e se apresentou para Miranda: — Sou Dia, o que cuida do período que há luz no mundo! — fez uma reverência para Miranda. — És uma linda dama! — finalizou. Miranda agradeceu e Aurora interrompeu aquele galanteio: — Papai preciso que nos empreste um pouco de vento! — explicou ao progenitor os motivos. — Mas filha, não acha perigoso ir até lá? — Precisamos eximir Edissa de culpa, para que ela deixe de ser prisioneira de Remorso!


PAUL LAW — Está bem! — Dia estendeu a mão para passar um pequeno rodamoinho de vento para a filha — Tem vento suficiente para levar todas vocês até o local que precisam! — Obrigada, papai! — Aurora abraçou Dia. — Agora tenho que voltar a cuidar de meus afazeres, filha! — e sumiu. Então Aurora jogou o pequeno rodamoinho de vento no chão e uma corrente poderosa de ar soprou e a suspendeu no ar junta de Miranda e Edissa. Depois começaram a se deslocar com velocidade pelos céus, rumo à Vila Onde o Vento Faz a Curva. Edissa sentiu um friozinho na barriga enquanto sobrevoava as florestas e vilarejos. Era mágica aquela sensação de liberdade. Quando o vendaval perdeu força, a vila desejada se fazia no horizonte. Eram casas feias, árvores secas e ruas de terra tão esburacas que pareciam não transitáveis há muito tempo. Uma placa velha de madeira tinha os seguintes escritos: “aqui o vento faz a curva”. Estava quase anoitecendo quando o trio desceu do vento no portal principal daquele vilarejo. Edissa disse: — Estão vendo? Está muito diferente da vez em que eu estive aqui! Miranda indagou: — De que desistiu? Edissa olhou para o horizonte. Pensou por algum tempo, reviveu mentalmente fragmentos de seu passado para então responder: — De voltar para casa. — Pois então é hora de voltar para a casa! — Miranda pegou a mão da mulher de olhos vermelhos para que entrassem naquela estranha vila ao passo que Aurora as seguia. Quando caminhavam, perceberam que naquelas casas sem portas e sem janelas, já quase que destruídas pelo tempo, viviam pessoas. Elas não se preocupavam com o estado das suas casas nem com a chegada delas. Edissa indagou a uma dessas pessoas que estava sentada na varanda sem telhado de uma das casas:

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EDISSA — Sabe como faço para persistir? Uma vez, aqui, desisti e agora quero muito reparar este erro. A pessoa apenas disse: — Pare de brincar comigo e volte para a sua casa! — Como é? Não entendi o que o senhor quis dizer. — Ora, sei que você mora ali na casa da esquina! Edissa olhou para a casa que aquele homem dizia ser a dela: — Minha? Não me lembro de morar aqui. — Mudou seu cabelo, mas esses olhos vermelhos não me enganam! Sei bem quem é você! — E quem sou eu? — Uma Alma. — O quê? — Edissa franziu o cenho. O homem continuou tranquilamente: — Não temos nomes! Os nomes são daqueles que se separaram de nós. — Não estou entendendo nada do que o senhor está dizendo! — Vou lhe explicar. Todos os que moram aqui são Almas, ou seja, são seres que foram separados de outros seres! Esses outros seres são possuidores de nomes e venderam, trocaram ou simplesmente perderam suas Almas, nós! — O senhor está enganado! Eu tenho nome e ele é Edissa. — É nada! Acha que se chama assim porque o outro ser de quem você se separou possui este nome. Eu mesmo fui por várias vezes atrás daquele que se separou de mim, mas ele não me quer de volta! Prefere viver sem Alma, desde que mantenha sua riqueza e poder! Uma voz conhecida interrompeu a conversa de Edissa com aquela Alma: — Edissa! Que bom vê-la! Quero muito que me aceite de volta! — era uma mulher de aparência quase idêntica a de Edissa, diferindo apenas na colocação do cabelo.

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XXV

E DISSA

E A

A LMA

A

li, naquela rua esburacada via-se uma mulher semelhante à Edissa, diferindo apenas pelo fato de ter os cabelos tingidos de

nanquim. Ela sorria: — Achei que jamais nos encontraríamos novamente! — a mulher se aproximou e Edissa deu um passo para trás. — Não se aproxime! A Alma que havia conversado com Edissa antes de sua sósia chegar, disse: — Agora entendi! Uma de vocês é a Alma e a outra é o Corpo. Aurora achou tudo aquilo muito confuso e sua mente infantil não pôde compreender que havia duas Edissas; que uma era parte da outra há tempos separadas por um motivo qualquer. Miranda procurou ficar do lado da Edissa que conhecia: — Quem é ela? — disse a bela dama para a Edissa loira. — Minha Alma. Mas a Edissa morena respondeu: — Ou não! Quem te disse que você não é a Alma e eu o Corpo? — ela começou a se aproximar. Conforme ia andando, sua aparência foi mudando e ela passou a ser uma criança: — Eu tenho os poderes! E você o que tem?


PAUL LAW Edissa sentiu medo. Quase disse que tinha receio, mas preferiu o silêncio. Seria possível que ela era a Alma e aquela Edissa de cabelos negros o Corpo? — Você sabe por que nos separamos? — Edissa tentou ganhar tempo. A outra Edissa criança sorriu: — Mas é claro que sei! Nos separamos porque para ter poder precisávamos vender nossa Alma a quem o detinha! — Quem detinha o poder? — Um mascate! Ele detinha o poder e o ofereceu a nós caso vendêssemos nossa Alma a ele! Como queríamos tanto ser poderosa, acabamos aceitando. Edissa sabia que os mascates eram pessoas que de tudo vendiam e compravam no intuito de sempre obter vantagens. Eram pessoas de índole suspeita. — Não me recordo deste acordo — ela abaixou a cabeça. — Como havíamos desistido de voltar para casa, resolvemos ser poderosa para melhor viver por aqui! — Para que serve o poder? — quis saber a Edissa de cabelos amarelos. — Serve para fazer valer nossa vontade! — Eu não me lembro de usá-lo. — Pois não deveria mesmo! Você se tornou fraca depois de um tempo que viveu longe de mim. Você se arrependeu do que fez e por causa deste arrependimento, essas lembranças foram apagadas de você. — Agora compreendo — Edissa disse quase que num sussurro. Sua sósia mirim continuou: — Eu posso te devolver essas lembranças. Posso de devolver o manuseio do poder, basta que me aceite de volta. Edissa ergueu a cabeça e fitou sua Alma ou Corpo. Sentia que precisava dela para ser completa, mas não queria as lembranças de volta. Tampouco o poder, afinal de que adiantaria fazer valer sua própria vontade se as outras pessoas seriam todas contrariadas?

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EDISSA Edissa disse: — Aceito você de volta se deixar as lembranças e o poder. A sósia sorriu com o canto dos lábios antes de dizer: — As lembranças sim, mas o poder nunca! — Ora, por que se importa tanto em fazer valer a sua vontade? — Porque se eu não zelar pelos meus desejos, quem o fará por mim? Se cada um pensasse em si mesmo, o mundo seria um lugar muito melhor para se viver e com o poder, eu poderia obrigar a todos a fazer o que eu quiser! — Eu não concordo com você! Aprendi que nem mesmo pensando só em mim consegui encontrar uma solução. Quando passei a ajudar as pessoas foi que descobri que apenas com a ajuda de alguém poderia curar-me da culpa. — A culpa é para os fracos! — Eu não posso te aceitar de volta se pensa dessa maneira! — Lembra do que lhe falei sobre o poder? Pois bem, você não precisa me aceitar de volta, já que poderei fazer prevalecer a minha vontade! A mão da sósia mirim de Edissa começou a pegar fogo enquanto ela sorria.

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XXVI

L UTANDO

CONTRA MINHA

A LMA

A

s casas próximas começaram a se incendiar ao passo que a Alma de Edissa mudou de forma mais uma vez. Agora voltara ao ta-

manho adulto e tinha os braços envoltos por chamas douradas. Edissa não soube o que fazer. Era uma mulher comum e não dispunha de nenhum poder para se defender. Aurora, por sua vez, sentiu medo e escondeu-se atrás de Edissa. Miranda tinha o semblante de admiração: — É muito poder! — disse. — O que faremos? — indagou Edissa à amiga. Miranda sorriu: — Não se preocupe! Eu vou salvar você! — Renda-se, Edissa! Renda-se a mim que sou sua Alma! — a inimiga lançou uma esfera de chamas contra Edissa, interrompendo o diálogo dela com a amiga bela. Miranda se colocou entre as chamas e o corpo de Edissa, recebendo todo aquele fogo. A mulher linda começou a queimar: — Miranda! — gritou Edissa enquanto via a amiga sendo consumida pelo fogaréu. Contudo, quando as chamas cessaram, o corpo de Miranda começou a se regenerar com velocidade. Depois de alguns minutos, ela estava radiante novamente: — Minha beleza não pode ser destruída! — disse ela. A Alma de Edissa deu de ombros: — De nada adianta a beleza sem o poder!


PAUL LAW Miranda lhe esclareceu: — A beleza é um tipo de poder! A este tempo quase todas as casas da Vila Onde o Vento Faz a Curva estavam em chamas e as Almas que ali residiam, corriam desesperadas para se salvarem. A amiga bonita de Edissa caminhou em direção à inimiga: — Tenho mais detalhes para lhe contar sobre a minha beleza! Mas a Alma de Edissa estava furiosa: — Basta, bruxa! Vou incinerá-la de tal maneira que não haverá tempo para que se regenere! — lançou suas duas mãos para frente. — Tudo que toco com os lábios morre! — falou Miranda. A Alma percebeu então que Miranda estava próxima demais. Usou todo o fogo que tinha contra a mulher bela, tanto que era possível ouvir os ossos de Miranda estalar como madeira seca queimando. Mas o corpo em chamas tombou sobre a Alma de Edissa e deu-lhe um beijo de fogo nos lábios. A Alma cessou com o fogaréu. Tombou de joelhos ao lado do corpo de Miranda que se regenerou por completo depois de um tempo, mas não recuperou a consciência. Edissa correu para perto das duas: — Miranda! — ajoelhou e chacoalhou a mulher bonita. — Acorde! — as lágrimas se juntaram em seus olhos. A Alma falou: — Chora por essa mulher e não pela sua Alma que está morrendo! — sangue lhe escorria dos lábios negros. — O poder que tanto vangloriou não foi suficiente para salvar-te a vida, Alma! Que tens a dizer? — Salve-me! Aceite-me de volta, Edissa. Rápido! — Não sei se te quero! Tão má é minha Alma que tenho dúvida! — Há muito vivemos separadas, Edissa! Eu tive que aprender a viver sem você! Por isso me apoiei no poder!

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EDISSA — Mas agora para sermos unidas novamente vou refazer minhas exigências. — Diga-as! — Sem o poder e sem as lembranças eu lhe aceito — Edissa afastou as lágrimas dos olhos. A Alma teve medo de morrer pela primeira vez. Então disse: — Está bem! Sem o poder e sem as lembranças. — Eu te aceito de volta, minha Alma — Edissa deu a mão para que sua Alma se levantasse. Então ela primeiro se tornou transparente e depois se fundiu ao corpo de Edissa que sentiu como se algo que estava faltando houvesse sido recuperado. Olhou para o chão e agora tinha sombra, pois há muito vivia sem uma e não tinha se dado conta da razão. Já sabia que era porque não tinha Alma.

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XXVII

M IRANDA

M

DORME

iranda não morreu, mas também não recuperou a consciência. Permaneceu bela como sempre fora, só que dormindo. O rosto

rosado, os lábios carnudos quase que num sorriso. Seu corpo continuava quente, não se movia, mas havia respiração. — Que há com ela? — indagou para Aurora. — Acho que perdeu a consciência definitivamente — Aurora colocou a mão na testa da amiga bonita. — Já ouvi casos de pessoas que ficaram neste estado até que morreram de velhice. — Puxa! Não há nada que podemos fazer por ela? — Edissa se voltou para a menina-manhã. Aurora sorriu: — Posso fazer algo. Vou dar uma parte do meu poder para ela, isso vai evitar que envelheça. — Mas e para ela acordar? — Também vou lançar uma benção sobre ela. Benção é o contrário de maldição e essa consistirá no seguinte: quando houver alguém que ame Miranda de verdade e este alguém a beijar quando o dia estiver amanhecendo, ela vai despertar! Então, a pequena Aurora fez tudo que tinha se proposto a fazer. Com um toque, passou parte dos seus poderes para Miranda que não envelheceria nunca. Ela, por sua vez, dada a passagem de poder, saltou em idade uns dez anos e passou a ser uma moça linda de cabelos prateados. Recitou a benção agora com sua voz adulta e depois recebeu o abraço alegre


PAUL LAW de Edissa: — Isso é fantástico! Temos que cuidar dela até que um príncipe possa aparecer! — e Edissa apertou o abraço. Depois agarrou o corpo inerte da mulher bonita para carregá-lo. Em respeito ao empenho da amiga que havia dado sua consciência para salvá-la, Edissa continuaria seu caminho no intuito de insistir naquilo que havia desistido. Afinal, estava próxima de onde tudo tinha acontecido. Pediu para que a Alma que encontrou primeiro na Vila Onde o Vento Faz a Curva cuidasse de Miranda até que retornasse, se retornasse. Explicou para ele sobre a benção. Então Edissa e Aurora partiram rumo ao final das dependências daquela vila, onde havia uma porta pintada de verde cercada por uma parede invisível. Ela sabia que era ali a saída daquele mundo e a entrada para sua cidade. Quando as casas ficaram distantes e já se via a porta, Edissa teve uma surpresa: ela estava aberta: — Quis tanto abrir essa porta da última vez que aqui estive! Não pude! Aurora sorriu: — Ela está aberta agora! Várias emoções invadiram a mente da jovem de olhos vermelhos. Seria possível conseguir voltar para casa, depois de tanto tempo? Rever sua mãe, seu irmão e todo aquele mundo que ela havia desistido de buscar? Edissa correu para a porta verde sem pensar em mais nada. Contudo, quando ela colocou o pé para dentro do portal um vendaval poderoso a arremessou de volta: — Achou que seria tão fácil? — Disse Crepúsculo que vinha. Aurora ao avistar o irmão-gêmeo, disse: — Irmão! Estamos todos preocupados com você! Desde que Eclipse voltou você anda desaparecido!

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EDISSA — Aurora? Está diferente! — observou seu irmão. — Usei de alguns anos para ajudar uma amiga — ela explicou sobre o repentino amadurecimento. Crepúsculo deu de ombros: — Isso não importa! Eu vim me vingar de Edissa que atrapalhou meus planos de me tornar senhor de todas as fases do dia! — Mas, Crepúsculo! Somos uma família! — Basta, Aurora! Deixe-me matá-la! — Crepúsculo avançou contra Edissa, em velocidade. Edissa fechou os olhos e esperou pelo pior, mas para a sua surpresa, alguém tinha se colocado entre ela e o inimigo. Pelos trajes de monge, Edissa soube de quem se tratava: — Eclipse — disse ela ao passo que o dia escurecia. Crepúsculo tentou acertar o irmão mais velho com socos, mas este se desviava com perícia: — Saia, Eclipse! Deixe-me matá-la você também! Eclipse segurou o punho do irmão vingativo. Ambos se olharam por um tempo e então, Eclipse abraçou Crepúsculo. O responsável pelo entardecer ficou sem ação e tudo, para ele, perdeu sentido. Crepúsculo afastou o irmão: — Fique com ela! Eu não preciso matá-la! Vou matar vocês todos, um dia! — com lágrimas nos olhos ele desapareceu. Edissa quis saber: — Mas ele vai mesmo matar vocês? Eclipse disse: — De certa forma ele mata papai toda vez que aparece, mesmo sem encontrá-lo. Somos uma família diferente que quase sempre não está junta. Por essa razão, a questão do afeto é muito complicada para nós. Edissa não entendeu muito bem, mas sorriu. Eclipse estendeu a mão para que ela fosse guiada por ele.

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XXVIII

J ULIA

U

E O JULGAMENTO

ma luz forte antecedeu a aparição da silhueta de uma mulher que vinha da porta que levaria Edissa de volta para casa. Quan-

do os olhos de Edissa foram se acostumando com aquele clarão, ela reconheceu o rosto de quem vinha. Era esguia de cabelos dourados e brilhantes, longos de maneira a tocarem o chão. As pálpebras estavam costuradas para que os olhos se mantivessem fechados, mas ela sorria de um modo tranquilizador. Seu vestido era branco, limpo ao ponto de parecer brilhante, assim como sua pele. Edissa lembrou-se do nome: — Julia! Ela assentiu. Tratava-se da personificação da justiça. Um ser que era responsável pela ordem das coisas e que Edissa já conhecia. A mulher de olhos vermelhos tinha uma pergunta para Eclipse: — Por que me trouxe perante a Justiça? Ele respondeu em um pedaço de pergaminho: “Não fui eu quem te trouxe, mas ela que veio”. Julia tomou a palavra: — Isso mesmo! — Por que está me impedindo de voltar para casa? — Edissa aproveitou para indagá-la. — Edissa, minha criança, eu estou aqui para o seu julgamento! — Julgamento? Não pedi para ser julgada! Desejo desfazer-me da culpa que sinto por ter desistido. — Teu coração deseja o perdão daqueles que você machucou. Você


PAUL LAW quer o perdão para que assim deixe de se sentir culpada. Foi por isso que vim! — Julia trancou a porta por onde tinha vindo. — Então eu preciso ser julgada? — Todos precisamos, por nós mesmos. Julia ergueu os braços e uma luz cegou Edissa. Quando a luz cessou, percebeu que estava em um salão enorme de piso madeirado, muito parecido com um tribunal onde se julgam criminosos. À frente se via uma mesa alta onde deveria ficar quem presidiria a seção e ao lado direito uma pequena arquibancada onde ficaria quem quisesse assistir. Ao sul uma cadeira modesta onde se sentaria o réu e atrás mais acentos para o público. Julia reapareceu no centro da mesa alta e ao seu lado direito apareceu rei Remorso, ao passo que do lado esquerdo Flora. Rei Remorso foi o primeiro a dizer: — Podemos começar, não? Ainda bem que fui chamado para este julgamento! Onde já se viu Edissa fugir mais uma vez de meu domínio! Espero que justiça seja feita aqui hoje. Mas Flora retrucou: — Minha filha precisa de um defensor, Julia! Julia assentiu e disse: — Edissa, quem você quer como defensor? Edissa ainda estava admirada com aquele salão e imaginou em que lugar estava. Julia repetiu a indagação com mais volume e ela lembrou que não conhecia ninguém que pudesse ser um defensor, mas sabia quem podia defender-lhe de todo o coração: — Quero Fryz! — e se sentou na cadeirinha de julgado. — Esse sujeito está morto! — Remorso se levantou. — Morto ou vivo que diferença faz? — Flora deu de ombros. — Está bem, Edissa — Julia bateu com seu martelo e Fryz apareceu ao lado de Edissa trajando terno e gravata. Ele se espantou, inicialmente. Depois sorriu e fez uma reverência: — Bom dia, meritíssima! Obrigado por me trazer de volta a vida! Sabia

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EDISSA que cedo ou tarde a justiça seria feita e eu voltaria a viver. — Silêncio, defensor! Não vou lhe devolver a vida, pois não me cabe fazê-lo. Está aqui para o julgamento de Edissa! — bradou Julia. Fryz continuou sorrindo. Voltou-se para Edissa e a beijou: — Que bom que estamos juntos novamente! — disse ele. Edissa já havia se arrependido de ter convocado Fryz para sua defesa. Talvez fosse mais sensato ter Dia ao seu lado, ou quem sabe Eclipse. Por falar em Eclipse, ela percebeu que o amigo havia desaparecido. Pensou na razão de ora ela falar e ora usar pergaminho para se comunicar. Remorso tirou-a dos pensamentos: — Agora podemos começar, não é mesmo? — Ainda não — falou Julia levantando-se da cadeira central. Ela empurrou sua cadeira e desceu até o corredor central sob os olhares do público que de uma hora para outra tinha enchido todos aqueles acentos. Caminhou pelo tapete vermelho em direção à Edissa e quando lá chegou, virou-se para a mesa central: — Devo ficar ao lado de quem se socorre de mim e não no centro de uma mesa, no alto. Edissa sorriu, mas continuou sentada, pois não tinha coragem de se erguer ao lado de Julia. A incorporação de tudo que era justo começou: — Edissa, de que se arrepende?

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XXIX

A

— A

DECISÃO

rrependo-me de muitas coisas, mas a primeira delas é de ter desistido.

Remorso interrompeu: — Ela confessou! Mas Julia não lhe deu ouvidos: — Sabe que arrependimento é muito grave, não sabe? Porque não se pode voltar no tempo e desfazer o que foi feito. — Sei sim e é por isso que sofro. Remorso interveio, mais uma vez: — Eu estava lá, quando aconteceu! Eu vi Edissa desistir de voltar para casa e voltar-se para o mal! Vi-a matar, saquear e até mesmo se vangloriar por isso! — Isso é verdade? — Julia disse quase que num sussurro. Edissa respondeu em outro: — É. Julia chorou, mesmo com os olhos costurados: — Acha justo o que fez? — disse ela. — Não. — Por que fez? Edissa se calou e burburinhos se fizeram entre os integrantes da plateia. Fryz tomou a palavra: — Importa o porquê quando já está feito? Importante é arrepender-se


PAUL LAW de verdade e não fazer de novo. Remorso retrucou: — Todos os meus súditos se arrependem de verdade e nem por isso deixam de se sentir culpados. — Isso é verdade? — perguntou Julia para Flora. O deus na natureza respondeu: — Não. — Como não? — Remorso se levantou exaltado. — Os que se arrependem verdadeiramente até se tornam súditos de rei Remorso, mas por breve tempo. Depois, como não voltam a fazer coisas das quais se arrependerão dado aquele primeiro arrependimento, passam a viver livres. — Isso é um absurdo! — retrucou Arrependimento. Julia completou: — É da natureza humana errar e aprender com os erros. Acho perfeitamente possível a explicação de Flora para o arrependimento verdadeiro. — Não! Uma vez que o ser humano se arrepende, não pode mais voltar atrás! O que está feito, está feito! — disse rei Remorso. As pessoas que assistiam ao julgamento começaram a conversar e o volume foi aumentado até que não se pode compreender o que diziam. — Silêncio! — gritou Edissa e todos ficaram quietos. Julia sorriu: — Arrepende-se verdadeiramente? — Claro que sim — disse Flora. — Se ela não houvesse se arrependido verdadeiramente não poderia ter renascido da terra, como a fiz renascer. — E você, defensor, o que tem a dizer? — perguntou Julia para Fryz. — Eu amo Edissa da maneira que ela é, meritíssima. A frase de Fryz não fez muito sentido, mas ele não se importou. Julia continuou: — Levante-se, jovem Edissa — ordenou quem presidia o julgamento. Edissa se levantou, mas ainda mantinha a cabeça baixa. Julia deu sua

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EDISSA sentença: — Eu, Julia Justa, personificação da paridade, declaro Edissa como alguém que se arrependeu verdadeiramente e como tal a eximo de se sentir culpada daqui em diante. O arrependimento para além do tempo da ação que o desencadeou e sem a ocorrência de outras condutas que o façam novamente deve ser desconsiderado. Rei Remorso deu um soco na mesa: — Isso é um absurdo! — Você sabe que não é — disse Julia com um sorriso. Remorso, como se estivesse imbuído de nova personalidade retribuiu o sorriso e depois indagou: — Qual a utilidade da plateia, neste tribunal? — O público é testemunha de minhas palavras, Arrependimento. Estão aqui para me ouvir e levar esta notícia para todas as pessoas que precisem saber sobre Culpa. — Isso não é um julgamento! Nem mesmo houve jurados, ora essa! — Numa próxima ocasião em que houver dúvidas sobre arrependimento, qualquer um da minha plateia saberá esclarecer, sem que seja preciso eu estar presente. A justiça necessita residir em cada um — Julia se virou para deixar o salão. Seus passos eram tão leves que seu corpo parecia flutuar. Edissa se levantou da cadeira dos réus e seguiu Julia, num passo um pouco mais veloz. Quando a alcançou, pegou em sua mão: — Obrigada — disse. Julia se virou e colocou a outra mão na cabeça de Edissa: — De nada — e os olhos de Edissa mudaram de vermelho para um azul esverdeado. Tudo então foi perdendo o foco e Edissa sentiu muito sono, como se fosse impossível manter seus olhos abertos.

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XXX

V IDA

J

ulia passou pela porta verde que separava o seu mundo do mundo de onde tinha vindo Edissa, desembocando num quarto de hospital.

O vento suave balançou as cortinas acinzentadas daquele leito tirando-a das lembranças. Fitou a paisagem que se debruçava sobre a janela observando que tudo ali era muito diferente do mundo em que vivia. Percebeu que sua roupa ainda era estranha devido ao padrão das outras pessoas que transitavam lá em baixo. Então percebeu como era bom poder enxergar novamente. Antes de vir, tinha pedido para que descosturassem seus olhos a fim de que pudesse reconhecer quem viera ver. Havia construções gigantescas que lembravam cubos esticados. As estradas eram cobertas por piso acinzentado e estranhos objetos se deslocavam velozes. Julia não soube precisar o que eram, mas imaginou algum tipo de animal que dispunha de pernas circulares, muito úteis para o deslocamento em velocidade. Vez ou outra emitiam um “bibi”. Viu que o chão estava muito longe e isso lhe causou náuseas: — Mas esse lugar é mais estranho do que eu imaginava — ela se afastou da janela temendo cair por ela. Resolveu descer. Para isso, abriu a porta do quarto devagar e na ponta dos pés passou pelo corredor estreito embranquecido. Ao final fitou um portal de madeira e tentou abri-lo, mas para seu desapontamento estava trancado. Ao som de um “trim” o portal se abril e revelou um caixote de madeira de onde saltava um senhor de quepe na cabeça:


PAUL LAW — Desce! – Disse ele. Julia o fitou da cabeça aos pés e continuou silente. Ele repetiu: — Desce. Ela então tomou coragem para dizer: — Procuro Jacira, você a conhece? — Não. — Ela mora aqui. — Desculpe, mas ninguém reside aqui, pois estamos em um hospital. Julia sorriu: — Ela trabalha com a vida das pessoas. — Ah, ela é alguma médica, está explicado. Bem, na recepção você poderá obter informações sobre os médicos que trabalham aqui. Suba e eu te levo até lá: — Para onde este caixote vai me levar? — Perdão? — Se eu entrar aí não poderei sair em outro local senão este em que estou agora! O senhor percebeu então, pelos trajes de Julia e pelos seus olhos assustados que ela não conhecia aquele singular meio de transporte. Tentou ser gentil: — Isso aqui se chama elevador! Se entrar vai descer até o térreo, onde poderá obter informações sobre os médicos! — Elevador? Como poderei descer em algo que tem por nome elevador? Não deveria se chamar descedor? O homem não se conteve e caiu na risada. Julia o achou louco, pois para ela sua questão era muito pertinente: — É que ele sobe também! — explicou-lhe o homem. — Agora entre para eu lhe mostrar a mágica! Julia se sentiu segura depois disso. Colocou seus pés descalços no carpete acinzentado do elevador e ao solavanco inicial começou sua descida até o térreo. Sentiu um friozinho na boca do estomago, mas preferiu não

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EDISSA comentar. Quando o portal de madeira se abriu, para o pasmo da mulher de cabelos dourados, encontrava-se agora em um local totalmente diferente daquele que estava antes de entrar no elevador: — Isso é mágico! — disse ela ao homem. Ele respondeu sem entusiasmo: — Mágico se não quebrasse toda semana! Ela saiu do elevador quase ao mesmo tempo em que muitas pessoas tentavam entrar. Todos estavam muito apressados para entrar no caixote e subir para os seus andares. Então, em meio àquele alvoroço de pessoas, Julia viu o rosto de Jacira, aquela que buscava. A mulher vestia-se com jaqueta branca, mine-blusa negra e calça branca. Os sapatos de salto alto eram negros ao passo que os pulsos e pescoço estavam enfeitados por pulseiras e colares. Os olhos puxados dela tinham um brilho especial e eram castanhos, misturando-se á coloração de sua pele morena. As orelhas eram enfeitadas por brincos de pena, lembrando traços indígenas. Essa teoria tinha mais fundamento se fosse observado os lindos cabelos de ébano e lisos que escorriam pelas costas daquela dama. Ela não disse nada. Apenas sorriu com os olhos.

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XXXI

O

O

RETORNO DE

J ACIRA

saguão principal do hospital ficou vazio e Julia encarou Jacira em silêncio. Seus olhos agora descosturados podiam trazer de

volta a sensação de reencontro com um ente querido, contudo, imaginou se não seria melhor tê-los costurados como sempre: — Então é aqui que você vive? — foram as primeiras palavras de Julia depois de tanto tempo. — Sim — sorriu-lhe Jacira. — Trabalho aqui no hospital salvando vidas. — Veste-se assim para salvar vidas? — O que a roupa tem a ver com meu ofício, Julia? Se veio aqui para criticar os meus modos, é melhor voltar, porque... — Acalme-se! Não é para criticá-la que vim, Jacira. Vim pedir-lhe ajuda. Aquelas palavras desarmaram Jacira: — Ajuda? — disse ela. — Sim. Esqueça nossas diferenças por um momento e me escute. Julia contou para Jacira toda a história de Edissa e tudo que havia se sucedido até aquele momento. — Como poderei ajudar? — perguntou Jacira. — Voltando para casa comigo. — Sabe que não sou bem-vinda em casa! Além do mais não quero ficar lá. Aqui sou mais útil! — É só por um momento, Jacira.


PAUL LAW — Que irei eu fazer lá? — No caminho te explico. Jacira suspirou pensativa. O vento soprou forte e espatifou os cabelos de ébano da índia que personificava a Vida. Há muito longe de casa, Jacira se sentia deslocada ao mesmo tempo que fitava aquela cabeça seca plantada no chão fofo. Era noite e a lua se escondia por entre as montanhas que circundavam aqueles campos de plantação de gente. Vida não queria rever Flora, então pensou em agir rápido. Abaixou-se e beijou a testa da cabeça seca de Fryz: — Viva, mágico! — foram suas palavras. Ergueu-se e notou que faltavam algumas constelações no céu. Com a ponta do dedo, pontilhou novas estrelas e formou a constelação de UrsaMenor e de Leão. Ao recuperar seus animais celestes, Noite desceu para agradecer: — Obrigada, índia! Quem és que não conheço? Jacira sorriu: — Não deveria me conhecer mesmo. De nada! — e se virou para deixar aquele lugar. Vida aproveitou para matar a saudade daqueles campos, daquele céu tão limpo e da sensação de liberdade. Aquele retorno havia feito muito bem para ela. Era como se estivesse em casa, como se estivesse voltado a ser como era, apesar de compreender que só estava de passagem. Todos os lugares para ela eram assim, como se estivesse de passagem. Lá em baixo, perto do leito do rio, Julia aguardava a irmã. Agora com os olhos costurados mais uma vez: — Então, fez? — disse ela ao ouvir os passos da irmã. — Não sei como você consegue viver com os olhos fechados diante de toda essa beleza. Julia sorriu e Jacira continuou:

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EDISSA — Fiz. — Ótimo. — Não compreendi a razão de trazê-lo de volta. Achei que a menina quisesse voltar para casa. — Talvez um dia. Sei que agora ela deseja muito ficar com o mágico. Houve um tempo de silêncio, como se ambas estivessem pensando no que mais diriam. Julia foi quem interrompeu a quietude: — Por que não fica? — Não posso. Tenho que cuidar da vida de todos os seres vivos, minha irmã. Aqui é possível que as coisas vivam sem minha interferência, mas lá onde estou não. Aqui, tudo é mágico, como um sonho bom ou um pesadelo, diferente de lá. — Entendo. Pode fazer mais um favor por mim, Vida? — O quê? — Conte para eles nossas histórias para que um dia possam viver como nós, como sonhos. Jacira sorriu, mas não disse que sim nem que não.

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XXXII

EU

E

ACEITO

dissa piscou por algumas vezes ainda recuperando sua consciência. As telhas faltavam por várias partes daquele telhado e era

possível ver o céu azul pelas frestas. Ela sorriu e se colocou sentada. A porta velha se abriu e a Alma que ela havia conhecido quando chegou à Vila Onde o Vento Faz a Curva entrou com uma bandeja enferrujada: — Bom dia, bela adormecida! — disse ele. — Bom dia, Alma! — Trouxe café e um pão. Imaginei que estivesse com fome, já que dormiu por sete dias. — Puxa, tudo isso? A última lembrança que tenho é do julgamento, da minha absolvição. Depois disso, nada mais. — Depois de abrigar o corpo de sua amiga que parece morta, mas que apenas dorme, fui atrás de você e te encontrei caída em frente àquela porta verde estranha. Vi que dormia tal qual a bela moça e te trouxe para cá. — Pois então! — Edissa se levantou. — Foi quando quis transpassar pela porta verde que fui julgada! Agora estou livre de toda a culpa! — Contaram-me isso. Aproveitaram para dizer que você acordaria em sete dias. — Por isso você sabia que eu estaria desperta! — Edissa sorriu. — E agora Edissa? Que vai fazer? Edissa se levantou. Olhou para a porta e respondeu: — Agora, meu amigo, eu vou viver. A Alma deu de ombros:


PAUL LAW — Queria eu poder viver também, mas sem minha outra parte é impossível ser feliz! Edissa trocou seu sorriso por um semblante de curiosidade: — Quem é seu Corpo? — Não posso dizer, para o seu bem. Mas fiquei muito feliz de poder ajudar você, pois ao menos pude ver quem prezo novamente. — Ver quem, Alma? — Julia. Edissa entristeceu. Soube, após esta informação, quem era o Corpo daquela Alma. Sentiu um pouco de medo, mas preferiu continuar sendo gentil: — Tenho que ir — disse ela em tom ameno. — Eu sei que tem. Edissa agarrou o pão daquela bandeja enferrujada e deixou aquela residência. Quando ganhou as dependências da rua esburacada sentiu imensa vontade de ir até o fim da vila e tentar transpassar pela porta que a levaria para casa. Quando deu o primeiro passo, sentiu o vento passar-lhe com violência trazendo consigo uma sensação boa, uma sensação de alívio no peito, coração acelerado e pernas moles. Quando Edissa se virou, viu Fryz todo vestido de branco, de maquiagem no rosto e de cabelos presos. Edissa ainda tinha todas aquelas sensações trazidas pelo vento, mas agora sentia também uma vontade incontrolável de chorar. Ele estava ali, como quis que estivesse. O mágico começou a andar em sua direção e ela ficou inerte esperando-o, como se uma força a puxasse pelas pernas. Fryz encostou sua testa à de Edissa: — Olá, Edissa. Eu não disse que voltaria? — e sorriu. — Real — ela disse em prato. — Você é real? Sinto sua pele e sua respiração. — Sou tudo o que você quiser! — eles se beijaram. Depois, Fryz explicou a Edissa que havia brotado nos campos de

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EDISSA plantação de gente de Flora, inexplicavelmente. Aurora o havia trazido até ali, graças ao vento emprestado pelo pai. O Leão Celeste, assim como a Ursa Menor reviveram também. Que Flora suspeitava de alguém que podia ter feito esses fenômenos, mas que era melhor nem mencionar suas suspeitas. Edissa não se importava com as explicações. Ela já tinha se habituado àquelas coisas tão inusitadas; tão impossíveis. Aprendera a acreditar que tudo era provável e que dependiam muito mais dela do que de qualquer outra coisa. — Não quero saber como você voltou. O importante é ter voltado. — disse ela. Fryz fez aparecer uma rosa em sua mão: — Quer casar comigo? — foram suas palavras para causar surpresa. Edissa olhou para a porta que a levaria de volta para a casa e a viu tão longe, tão distante. Em sua mente passou um filme que a remetia para tudo que fizera para estar ali. Agora, o caminho para chegar havia se tornado mais importante do que o objetivo propriamente dito e enfim ela entendeu que é assim que as coisas funcionam. Lutamos tanto por um objetivo e o que vale mesmo é essa luta e não alcançá-lo. Às vezes alcançá-lo não é o que nos fará feliz. Então Edissa respondeu: — Eu aceito.

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EDISSA

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PAUL LAW

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