ESTELA
P A U L
L A W
ESTELA
1º Edição 2014
Copyright © 2014 by Paulo Antonino Scollo Junior Capa Kamila Zöldyek Diagramação Fagner JB. Floral brushes designersbrush.com
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Law, Paul Estela / Paul Law - Mogi Guaçu: 2014 136 p.: 15.24 x 22.86 cm ISBN: 978-1502522900 1. Ficção brasileira. 2. Contos brasileiros. I. Título CDD: 869
Todos os direitos reservados a Paulo Antonino Scollo Junior paulo.antonino@gmail.com Mogi Guaçu, SP – Brasil
Para minha esposa e minhas filhas; Ao meu pai, minha mãe e irmão; Para Ester; Aos amigos e leitores que sempre foram fiéis.
I T AMBÉM
O
TENHO UMA BONE CA
dia começou cedo para Ester, Ernesto e Tamires. Ainda não tinha amanhecido quando o trio se encontrava em um dos
corredores do Hospital Escola. Era rotina estar ali pelo menos duas vezes na semana. Conheciam pessoas que tinham sina similar e também ocupavam os bancos do lugar naquela oportunidade. Era natural, também, observar a falta de alguém. Fosse pela morte, ou pela cura, havia aqueles que simplesmente sumiam. Ester observava a tudo com novidade. Muitas histórias eram ouvidas ali, mas se perdiam como a própria existência daquelas pessoas. Ernesto e Tamires não encaravam da mesma forma, mas tentavam fazer o que era preciso da melhor forma possível. Assim como as demais pessoas conversavam sobre o tratamento, instalações e médicos. Havia vários assuntos, alguns repetitivos, era verdade. A médica com traços indígenas era um deles. A faxineira toda tatuada, era outro, assim como o bêbado que muitas vezes era posto para fora do local. Uma rotina agitada, tensa e com muita gente, não importava o horário, o que fazia querem estar em outro local. Mas tinham de estar ali por causa de Ester. De repente, algo que não era rotineiro ocorreu. Ouviram choro, passos apressados e conversas. A porta dupla do final do corredor se abriu bruscamente e revelou uma paciente sobre a maca, acompanhada de enfermeiros e familiares. O casal se limitou a inclinar o corpo para facilitar a visão, mas Ester se levantou, atenta ao que vinha. A maca foi encostada próxima aos acentos ocupados por Ester e sua
PAUL LAW família. Os funcionários do hospital informaram às três pessoas que acompanhavam a enferma que logo voltariam e afastaram-se ligeiros. Definitivamente, aquilo não era comum, afinal, os pacientes da emergência não ficavam naquela ala. Permaneceu ali um homem, uma mulher e uma menininha que portava uma boneca. O homem conversava com a mulher que chorava. A criança mantinha-se silente, assim como Ester que a tudo observava. Ela se lembrou de que também tinha uma boneca.
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observava. Ela se lembrou de que tambĂŠm tinha uma boneca.
II T OCO
SEM SABER COMO A PRENDI
O som do violino ecoava pelos cômodos do apartamento. A execução correta, embora fosse desconhecido por quem tocava o instrumento quando e como havia adquirido tal habilidade. Os olhos esverdeados mantinham-se baixos, abertos, atentos ao violino. A mente presa em nada, enquanto o corpo se movimentava para a música. Ela lhe vinha de lugar incerto, fluía bela, completa, nova. Ester tinha vinte e seis anos. Não era casada, não tinha filhos. Residia com o que restara da sua família, um irmão mais velho, Ernesto. Este irmão casara-se recentemente e mudara-se para aquele apartamento. — Não é incrível, Tamires? — Ernesto disse para quem estava sentada ao seu lado no sofá da sala. — Ela pode aprender as coisas! O rapaz se levantou entusiasmado. Buscou as escadas que o levaria ao quarto da irmã. Ernesto era um jovem adulto. Tinha a barba por fazer, dourada. Os olhos azuis, pequenos, as sobrancelhas grossas, quase unidas; o cabelo curto, as orelhas grandes e os lábios finos. Era alto e magro demais. Agarrou a maçaneta e a girou para a direita. A porta do aposento se abriu. A garota subitamente interrompeu a execução da música quando observou o homem adentrar no seu espaço. Estava assustada, não o conhecia. — Desculpe, não queria incomodá-lo. — Continue tocando, minha irmã. Irmã? Ester se recordava de ter um irmão, mas ele era uma criança. Recordava-se da mãe, do padrasto, da boneca Amélia e podia jurar que ainda tinha oito anos de idade, ainda que aquele corpo, o seu corpo adulto,
não lhe dissesse isso. — Ester, eu sou Ernesto, o seu irmão. Você sofreu um acidente há muito tempo e uma das sequelas que teve foi não poder manter lembranças novas. Ela abaixou o violino. Sentia que era verdade o que aquele estranho lhe dizia. Ele continuou. — O doutor Társio está realizando um tratamento experimental. Ele analisou o seu cérebro e descobriu que o acidente causou um dano que te impossibilita de guardar acontecimentos recentes. Desse modo, depois de aproximadamente quarenta segundos, você esquece o que vivenciou. Ester deu dois passos para frente, inquieta. Perguntou: — Por que perde o seu tempo me contando isso? Não esquecerei? — Porque eu não acredito nele. O violino, por exemplo, foi um teste que realizamos. Sua capacidade de aprender coisas novas aumentou, apesar de esquecê-las depois. Só que com o violino isso não aconteceu! Você se lembra de como tocar. — É como se eu sempre soubesse. — Pois então! É esse mistério que o doutor Társio quer decifrar. Se der certo, poderemos resolver o seu problema. Ester sorriu. Era uma mulher bonita, de pele alva, olhos claros, cabelos cacheados e dourados. Trajava um simples vestido branco e chinelos. De estatura média, magra tal qual o irmão. Ergueu o instrumento novamente. Encaixou o violino na posição correta e passou por ele com o arco. A canção recomeçou e Ester se esqueceu de toda a conversa que tivera com o irmão. Desde que recuperara a consciência, após sofrer um grave acidente automobilístico, seus dias não seguiam. Sua existência passou a ser de quarenta segundos. Depois disso, voltava a ser Ester de oito anos. Muitas vezes, os poucos segundos eram gastos com explicação, como os que acabaram de passar. Em outras, eram gastos com exames no Hospital Escola, cujo responsável era o doutor Társio. Em outras, ainda, com a
PAUL LAW tentativa de aprender algo. A equipe médica se empenhava em decifrar os mistérios da mente humana usando Ester como cobaia. A sua condição peculiar contribuía para que os testes fossem feitos, afinal, como para ela tudo era novidade, não se cansava dos procedimentos. Cada novo teste, ou repetição, eram sempre encarados com entusiasmo pela paciente. Para ela, era como se estivesse realizando aquilo pela primeira vez. Tudo ia bem, ela gozava de boa saúde, apesar de precisar sempre de cuidados especiais. Ernesto incumbiu-se de auxiliar a irmã em tudo e estava sempre presente. Quando o trabalho o impedia de estar, ia sua esposa, a jovem Tamires. Os testes esclareceram que uma parte do cérebro de Ester tinha sido danificada com o acidente. O processo para transformar memória recente em memória de longo prazo havia sido comprometido, o que a impedia de “guardar” os novos acontecimentos. Entretanto, fora constatado que Ester conseguia aprender algumas coisas, como a disposição dos cômodos da sua casa, alguns nomes. Os estudos avançavam pouco no entendimento da mente, mas eram fascinantes para a equipe de Társio e caminhavam para deduções intrigantes, tais como a de que o armazenamento de informações não estava condicionado a um único local no cérebro. Ernesto fechou a porta e voltou para a sala. Tinha esperança de que um dia conseguiria conversar mais do que alguns segundos com a irmã. Tinha fé de que seria lembrado; que seria chamado. Os resultados com a música eram animadores para o rapaz. — Então, como ela está? — perguntou Tamires ao perceber a chegada do marido. — Está bem. Ainda não me reconhece, mas se conformou com facilidade do que eu lhe explicava. Acredita que ela me perguntou por que estava contando que ela esqueceria tudo, se ela também não se lembraria dessa informação? — o rapaz se sentou no sofá. — Nossa cabeça é mesmo uma caixinha de surpresas — a esposa de Ernesto o abraçou.
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Tamires era morena, os cabelos cacheados, armados, vinham organizados em um penteado moderno. Os olhos grandes, negros, os lábios carnudos e o queixo fino. O corpo bonito, condizente com sua profissão de professora de Educação Física. Na manhã seguinte Ernesto se preparava para ir ao trabalho. Vestiu a sua batida camisa polo vermelha e o jeans desbotado. Trabalhava como Técnico em Informática numa empresa do centro. Apesar da condição de empregado tinha um horário flexível desde que cumprisse os prazos da empresa, dada a amizade que tinha com o dono. Apenas ele tinha essa regalia no trabalho e a justificativa era a de que precisava para cuidar da irmã problemática. Ele sempre cumprira com todo o trabalho que lhe era atribuído. Agarrou o último pão e disse a esposa: — Estou indo, qualquer coisa me ligue. — Sem problema. Minhas aulas são à tarde hoje. Pedi para a Carmem vir só depois do almoço. Ernesto maneou a cabeça em entendimento. Saiu. Tamires continuou tomando café da manhã, Ester ainda dormia. Depois de alimentada a professora de Educação Física subiu até o quarto da cunhada para conferir se tudo estava bem. A porta sempre era mantida destrancada. Entrou silenciosamente e se deparou com uma cena inusitada. A luz acesa, Ester sentada no chão com várias folhas de sulfite espalhadas em volta. Escrevia. Tamires não soube como reagir àquela cena. Interromperia? Permaneceria quieta? O que estava escrito naquelas folhas? Aproximou-se. Os passos sobre o taco do quarto chamou a atenção de Ester. Ela parou com o que estava fazendo. E observou a intrusa, assustada. Por quantas vezes Tamires tinha observado a cunhada com aquele olhar? Não sabia dizer. Abaixou-se, sentou-se. — Posso ler? Ester se afastou. — Não vou te fazer mal. Só quero ler o que escreveu.
PAUL LAW — São relatos do que vivi. Quando fecho os olhos sou outra pessoa. Vivo muitas histórias. É um mundo livre — apontou para algumas folhas.
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Paul Law é o pseudônimo de Paulo Antonino Scollo Junior, natural de Campinas, membro da Academia Guaçuana de Letra, advogado e professor de Português. Autor de Xeque-Mate, La Bandida, Rainha, além da série Estrela, com Ester, Edissa e Estela, que fecha a trilogia. Homem simples que tem alma de menino e uma imaginação fantástica. É, por isso, um menino-grande. Está sempre em busca de alguma coisa e tenta ser uma pessoa melhor. Se ele fosse um desenho, seria como aqueles que de esboço vão sendo finalizados, mas nunca chegam à arte-final. Também não poderia, já que a magia de viver é sempre ser assim: alguém que busca evoluir tendo plena ciência de que a plenitude é inalcançável. Pensou que se escrevesse, talvez conseguisse passar uma mensagem e foi assim que ele descobriu que as palavras possuem vida e se mexem por aí para formar histórias. Além de menino-grande, passou a ser considerado também como escritor.
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