Ester

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P A U L

L A W

2ª edição 2009


Copyright © 2009 by Paulo Antonino Scollo Junior Capa Kmila Zaoldyeck Diagramação Fagner JB.

L415e

Law, Paul Ester / Paul Law - Mogi Guaçu: 2009 128 p.: 15.24 x 22.86 cm ISBN: 978-85-90986-40-9 1. Ficção brasileira. 2. Contos brasileiros . I. Título CDD: 869

Todos os direitos reservados a Paulo Antonino Scollo Junior paulo.antonino@gmail.com Mogi Guaçu, SP – Brasil


Paulo, Maria de Lourdes e Giovanni, eterna famĂ­lia; Para minha esposa Miriene; Para minha filha BĂĄrbara; Aos amigos verdadeiros.



I

E RA

UMA VEZ

— P

or um acaso — perguntou Ester àquele homem que encontrara em seu caminho — sabe como faço para

voltar para minha casa? O homem surpreso pela pergunta e por ver mais alguém além de si por ali, virou-se para a interrogadora: — Onde moras? — baforou a fumaça do cigarro que fumava. — Moro na Rua das Seriemas! Na cidade — Ester colocou a mão sobre os olhos para protegê-los do sol. — Na cidade? Acho que não há nenhuma por estas bandas. A criança suspirou. Era uma menininha de oito anos e de pele clarinha, já toda vermelha por causa do sol. Tinha o vestido azulado com algumas rendas brancas, bem judiado pelo tempo. Seus cabelos eram dourados, tecidos por cachos grandes. Os olhos de um azul esverdeado e suas bochechas bastante rosadas. Carregava consigo uma boneca de louça de madeixas lisas e amareladas cujo nome era Amélia. — Mas eu sei quem pode ajudá-la — o homem jogou a bituca do cigarro no chão árido e pisou sobre ela. — O Mascate Zeca vende de tudo e certamente terá um Caminho Para Casa que possa vender a você. Ester se alegrou como da oportunidade em que avistara aquele pálido e magro senhor: — Oh! Que maravilha! Onde eu encontro este tal mascate? — depois de dizer, refletiu — E o que é um mascate?


PAUL LAW — Começando pela sua última pergunta, mascate é toda pessoa que vive do comércio! Aqueles que vendem as coisas, entende? A menininha assentiu com toda a sua atenção, mas então, antes que sua primeira pergunta fosse respondida ouviu-se passos firmes. Ester colocou a mão sobre os olhos mais uma vez e fitou um pequeno exército que se aproximava. Eles vestiam vermelho e lembravam muito soldadinhos de chumbo. O homem pálido que agora parecia desolado procurou outro cigarro em sua camisa rasgada: — Lá vêm eles. — São seus amigos? — Ester quis saber. — Não — o homem acendeu outro cigarro. — Eles são soldados. Estão aqui para me matar de novo — baforou. Ester colocou a mão nos lábios, assustada: — Matar você? Por que não foge? — De que me adiantaria? Se escapar hoje, amanhã não terei a mesma sorte. Morro uma vez por dia. — Que fez para merecer esse castigo? O homem magro e pálido tinha os cabelos castanhos e pintados pela poeira. Suas vestes, que estavam em farrapos, consistiam em uma camisa xadrez velha e uma calça jeans desbotada. Tinha 40 anos, ou um pouco mais e os olhos castanhos cansados. — Morrer todos os dias é a pena que recebi por ter cometido um crime — respondeu ele. Ester não pôde entender o que significava crime e nem pena. Sabia que era algo muito ruim, tirando por base a cara de leite azedo que seu novo amigo tinha feito: — Venha comigo! Vamos fugir — a menina agarrou o braço do homem. — Não vai adiantar. — Claro que vai! — a pequena criança forçou para arrastar o desanimado — Corra!

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ESTER Os solados de vermelho que estavam mais próximos sacaram seus rifles de forma sincronizada e ao mesmo tempo em que marchavam, miraram para a dupla que pretendia fugir. Ao som dos disparos das armas de fogo, Ester e seu novo amigo dispararam deserto adentro em fuga. Como os soldados andavam apenas em ritmo de marcha militar, com um pouco de esforço, conseguiram escapar. Os pezinhos de Ester que batiam com força sobre o solo árido daquela região, seguidos pelos do homem que deveria morrer todos os dias, não descansaram até que não se ouviu mais nenhum disparo e nem o som das botinas dos soldados. — Estamos salvos! — a criança olhou para trás e não viu nenhum inimigo. — Que bom. — Passarei a noite vivo dessa vez — sorriu o homem. — Como chamas? Estamos a conversar e ainda não sei o seu nome. — Minha graça é Baltazar e a sua? — Chamo-me Ester; como minha falecida avó se chamava. — Falecida? Por quantas vezes? — Ah não! De onde venho, falece-se apenas uma vez... — Entendo — fez-se uma pausa de alguns segundos. — Como me ajudou a escapar dos soldados eu vou levá-la até o Mascate! — Baltazar mesmo quebrou a quietude. Ester havia se esquecido! O Mascate Zeca poderia lhe ajudar a voltar para casa. Baltazar disse que ele poderia vender-lhe um caminho de volta, agora lembrara: — Sim, Baltazar! Eu ficaria imensamente grata! O homem magro sorriu e balançou sua cabeça: — Pois então me siga! O Deserto onde a menina Ester tinha encontrado Baltazar era um local muito estranho. De dia era muito quente e durante a noite, muito frio. Não havia árvores, casas ou pessoas por aquelas bandas. Existiam apenas

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PAUL LAW montes e montes de areia, um maior que o outro. Ester chamou-os de colinas de areia. Não era possível saber para onde deveria se seguir, pois todos os caminhos pareciam levar a lugar algum. Contudo, Baltazar sabia bem para onde seguir, notou Ester. Ele tinha convicção em seus passos, como se vivesse por ali por muito tempo, bem diferente dela. Quando o sol ia se escondendo por entre as colinas de areia, Baltazar parou: — Veja, Ester! O pôr-do-sol! Faz tempo que não vejo um. Sempre estou morto quando ele acontece. Então Ester e Baltazar ficaram ali por alguns minutos até que o sol se escondesse por completo e o frio substituísse o calor escaldante. Tudo da noite para o homem pálido era maravilhoso, dado o tempo que ficara sem ver aquelas coisas. Comentava com Ester todas aquelas belezas enquanto caminhava para o local onde estava o Mascate. Dizia da lua, das estrelas, do acinzentado das cores pela falta de luz e do barulho do vento. — Brrrrr, estou com frio! — a menina agarrou seus ombrinhos. — O Deserto é assim durante a noite! — Não sente frio? — Sinto! Mas gosto de senti-lo! Faz tempo que não o sentia por estar morto. — Você é maluco — Ester franziu a testa. Baltazar sorriu e depois continuou: — Caminhamos por muito tempo! Acho que podemos ficar por aqui para descansarmos para a caminhada de amanhã. Está muito escuro e frio para continuar — Baltazar colocou a mão em cima da cabeça amarela de Ester. — Está bem! — assentiu a menina. — Estou ansioso para dormir! Faz muitos anos que não sei o que é dormir! — Eu bem sei! Você está sempre morto quando é chegado o momento de dormir — Ester imitou Baltazar falando. — Isso mesmo!

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ESTER O homem magro deitou sobre a areia quente daquele deserto e fechou os olhos: — Deite-se na areia! Apesar do frio provocado pelo vento, o chão ainda está quente por causa do calor do dia. A menina fez o que Baltazar tinha lhe dito: — Que delícia! Está tão quentinha essa areia! — ela se enfiou por de baixo de um montinho de areia. — Boa noite, criança! — disse o homem por fim. Ester lhe respondeu: — Boa noite. Então os olhos se tornaram pesados demais e a dupla dormiu ali sob a guarda das estrelas e sob o calor da areia. Ester infelizmente não pôde dormir por muito tempo, pois uma voz fininha lhe chamou do mundo dos sonhos. — Ester! Acorde! — dizia. A menina abriu um olho e fez uma careta de sono. Aos poucos a imagem de sua boneca de louça foi se fazendo em pé, em frente às suas vistas. Ester distinguiu o vestido avermelhado e de rendas brancas de Amélia que sacudia com o vento. — Ester, vamos brincar! — a boneca cruzou os braços — Desde que nos perdemos de casa você não brinca comigo. — Desculpe, Amélia! Ando preocupada por estar longe de casa. Por que não dorme como Baltazar? — Bonecas não dormem! — Amélia fez uma careta — Nós brincamos! — Ah, Amélia! Estou cansada! Andei o dia todo, não quero brincar com você. — Você não gosta mais de mim, Ester! — Amélia saiu correndo pela areia daquele deserto. — Não é isso! Amélia volte aqui! Ester afastou a areia que cobria o seu corpo e se levantou apressada. Correu atrás da sua boneca deserto adentro.

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PAUL LAW — Volte aqui! — gritou a menina. Ao longe, Ester viu a boneca parada perto de uma mulher. Ao se aproximar, a garota pôde notar que se tratava de uma moça muito bonita, tinha os cabelos muito lisos e compridos, extremamente negros. Vestia branco e estava descalça. Mais perto, Ester parou de correr e viu que a mulher tinha o rosto ameno e o olhar de um azul que se parecia muito com cinza. — Boa noite! — disse a menina. — Desculpe incomodá-la, mas minha boneca saiu correndo e vim buscá-la! — Boa noite! — disse a mulher com desdém. — É um prazer receber vocês aqui no Deserto — a mulher suspirou e fitou as estrelas. — O prazer é todo meu! Por um acaso você sabe como faço para voltar para casa? Baltazar está me ajudando, mas talvez você possa ser mais eficiente que ele! Não sei como vim parar aqui. Mas a mulher continuou a fitar as estrelas como se não tivesse ouvido uma só palavra do que Ester tinha dito. — A senhora parece tão estranha. Fala que é um prazer nos receber quando seu coração parece dizer o contrário... — a criança abaixou a cabeça. — Ora, menina! Que ousadia! Eu digo a verdade! — finalmente a mulher fitou Ester com seus olhos acinzentados. — Desculpe — Ester começou a desenhar com o pé na areia quente — Não era minha intenção ofendê-la. — Não ofendeu. — Ah, que bom! — a criança sorriu. — E ainda fica feliz! — a mulher cruzou os braços e voltou a fitar as estrelas. Ester não conseguiu compreender aquela moça, resolveu mudar de assunto: — Como é o seu nome? — Chamo-me Maria Falsa.

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ESTER — Eu me chamo Ester, como minha falecida avó. Esta fujona aqui é Amélia. — Linda a sua bonequinha — Maria Falsa fez uma cara de nojo. — Eu adoraria brincar com ela caso não tivesse que ir embora. — Ah, mas já vai? — Ester ficou triste. Maria Falsa sorriu: — Corta meu coração, mas preciso ir — saiu saltitando e desapareceu pela noite. — Mulher estranha — Amélia ergueu os braços para que Ester pudesse lhe pegar.

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II

U MA

E

TROCA PERIGOSA

ster estava com Amélia nos braços e com o rosto avermelhado por causa do sol. Ao seu lado, Baltazar mantinha sua camisa aberta e

tinha o corpo brilhando por causa do suor. Andaram por toda aquela manhã. Quando Baltazar olhou o horizonte viu uma cerca maltratada pelo tempo que conhecia bem. Sabia que aquela cerca velha era a extremidade do Deserto e daí disse entusiasmado: — Ester, chegamos! Estamos nos aproximando da propriedade do Zeca! — Ah, que bom! Estou muito cansada — a menina olhava para o chão enquanto caminhava. — O Deserto acaba aqui? — Sim! Seguindo pelo caminho que seguimos, deixaríamos o Deserto bem no início das terras do Mascate. Se você não estivesse comigo, certamente teria sucumbido ao calor, pois são raras as pessoas que saem vivas das areias do Deserto. Depois de mais alguns passos a dupla chegou até uma porteira de madeira bem velha já em decomposição pelo cupim. Pularam por ela porque estava trancada com uma corrente e cadeado enferrujados. Havia uma grande casa logo à frente, cercada por um jardim abandonado. A casa era muito velha tal qual a porteira. Tinha o telhado escurecido pelo tempo e as janelas descoradas. O reboco estava se soltando e tudo parecia dormir fazia muito tempo. As portas e as janelas estavam todas fechadas:


PAUL LAW — Acho que ele não está em casa, Baltazar. Se é que alguém viveu por aqui nos últimos anos — Ester notou que a grama do jardim estava muito alta. — Está sim — Baltazar deu dois toques na porta e depois de um tempo deu o terceiro. Uma janelinha que tinha espaço para um olho se abriu na porta pintada de azul. O olho castanho falou: — Quem está aí? — Eu, Baltazar. — Baltazar, o que morre todos os dias? — Não. — Como não? — Não morri ontem. Estou disposto a tentar não morrer mais! Esta menina que vem comigo — Baltazar colocou a mão no ombro de Ester —, me mostrou que vale a pena viver! — Bom para você! Agora vá embora! — Zeca fechou a portinha por onde cabia seu olho. — Viemos vê-lo, Mascate! Precisamos comprar algo. — Por que não disse logo? — a porta azul se abriu. — Entrem. Ester notou que Zeca era um homem calvo e obeso. Vestia roupa bonita, tinha algumas joias para enfeitar seu pescoço e os seus punhos. Era baixo, tinha um olhar assustado como se tivesse medo de alguma coisa: — Venham para o meu depósito. Eles desceram por uma escadaria de madeira que cantava a cada peso que sentia e se depararam com um cômodo repleto de coisas interessantes! Ali, fora o antigo depósito do Mascate Zeca: — Antes — começou Zeca —, eu saia com a mercadoria nas malas para vender! Fiz essa casa e comprei todas essas terras com o dinheiro que arrecadei nas vendas! Aconteceu que com a riqueza me veio um medo imenso de morrer e deixar tudo isso! Daí, me tranquei aqui para que a Morte não me encontre.

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ESTER — Que besteira! — Ester colocou a mão na cintura. Zeca olhou com severidade para a menina: — Você é uma criança, não pode me entender — voltou sua atenção para Baltazar. — O que quer? — Na verdade não sou eu que quero. Ester quer um “Caminho de Volta Para Casa”. — Certo. Eu ainda devo ter dessas coisas — o Mascate abriu um armário velho. — Esta menina mora onde? — Esta menina — Ester disse com ironia —, mora na Rua das Seriemas; na cidade. — Na cidade? E onde fica isso? — Você não sabe? A cidade fica longe do sítio! É o local onde as pessoas grandes vivem e trabalham. Não que quem more no sítio não trabalhe, mas é quem mora na cidade que trabalha com o computador e sentado! Quem trabalha no sítio trabalha com os braços e se cansa mais. Ah na cidade há muitas pessoas, carros e motos! — Como sabe de tudo isso? — Zeca ficou admirado com a disposição da garotinha em falar. — Hum... — Ester colocou a mão no queixo — Mamãe sempre me explicava sobre sítio e cidade. — Bem, carros e motos, não é? — É. — Puxa, caminhos para esse local são raros. Eu devo ter o último em algum lugar desse armário. Ester olhou Amélia que descansava em seus braços. Procurou nos olhos de vidro da boneca a mesma aprovação que dera ao Mascate. — Aqui está! — Zeca agarrou o mapa como se ele fosse um bebê. — Ah que maravilha! Poderei voltar para casa — Ester colocou a mão no pergaminho-mapa.

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PAUL LAW — Devagar, mocinha! Voltar para casa vai depender do quanto você vai pagar pelo mapa — Zeca colocou a mão sobre a mão da menina e a retirou do pergaminho. — Qual o seu preço, Mascate? — Baltazar disse firme. — O que vocês têm? Mostrem-me. — Tenho um maço de cigarros pela metade; um isqueiro de prata e esta corrente que carrego no peito. — É pouco, quero mais — Zeca agarrou o mapa para guardar. — Não temos mais nada — disse Baltazar. — Precisamos tanto do mapa. — Este é o porquê de ele valer tanto — sorriu maldosamente o comerciante. — Quanto mais se quer alguma coisa, mais valor ela tem, não é mesmo? — Ora, mas tenha compaixão! — Baltazar se zangou. Zeca suspirou e depois deu seu preço: — O que eu desejo; aquilo que tem bastante valor para mim e o que vai ter serventia para eu poder desfrutar da minha riqueza — o mascate fitou Ester, maldoso. — O que é? — disse a menina, interrompendo-o com sua impaciência. — Sua juventude. Baltazar entristeceu: — Mas isso seria muito... — disse por fim. — É o meu preço. Uma coisa importante por outra de igual valor! Porque com a juventude da menina, eu poderei ter uma vida toda para desfrutar de todo o meu dinheiro! Nem precisaria me esconder da morte, pois saberia que ela demoraria a chegar. Enquanto pensavam na proposta de Zeca, Baltazar e Ester ouviram o marchar das tropas que vinham. Todos os dias elas apareciam para matar o amigo de Ester, já que era a sina dele morrer uma vez por dia. Tocavam tambores num ritmo compassado e fúnebre. Baltazar ao ouvir os tambores mudou de semblante repentinamente.

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ESTER — Precisamos sair daqui! Os soldados vão me matar! — Eu sabia que não devia ter aberto a porta para você — Zeca furioso, disse para o homem magrelo. Ester interveio. — Quero muito voltar para casa! Eu aceito suas condições pelo mapa! — falou com pressa. Zeca sorriu maldosamente e Baltazar agarrou a mão de Ester para que fugissem pela escadaria velha. Quando ganharam a sala, avançaram em direção à porta azulada e a abriram com violência. A dupla correu por aquele jardim de grama alta, mas dessa vez os soldados cercaram toda a propriedade. Para onde iam viam os policiais lhes espreitando: — Por onde vamos escapar? — disse a menina ofegante. Baltazar sorriu: — Venha! — apertou a mão da menina e se dirigiu firme em direção ao pelotão de soldados que vigiavam a porteira por onde tinham entrado anteriormente. Ester quis parar de ir naquela direção e rumar por outro caminho, mas Baltazar parecia decidido. Quanto mais se aproximavam, mais o coração da menina batia apertado. Os rifles dos homens da lei já estavam apontados para a dupla: — Baltazar! — Ester tentava conter o amigo, receosa. — Eu não tenho medo de morrer, Ester — sorriu ele. Os soldados engatilharam suas armas: — Mas eu tenho... — as lágrimas começaram a se fazer no rosto vermelho da garotinha. Baltazar tratou logo de explicar: — Não se preocupe! Eles querem a mim e não você! Mal acabou de dizer essas palavras e um tiro cortou o vento e se fez contra o peito do homem magricela. Ele perdeu o ritmo com que vinha andando e largou a mão de Ester, para levá-la ao peito. Quando o segundo disparo foi lançado contra Baltazar, atingiu-o perto do primeiro e explodiu

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PAUL LAW em rubro, ao mesmo tempo em que suas pernas dobraram. Ester ficou apavorada e mordia os lábios inferiores com violência a cada disparo que era dirigido ao amigo. Tardou para os disparos cessarem e quando isso aconteceu, os soldados marcharam para sabe-lá-de-ondevieram. Ester se ajoelhou perto do ensanguentando Baltazar e o chamou aos prantos: — Baltazar! Baltazar! Ele sorriu para ela e morreu assim. Os olhos azuis esverdeados de Ester piscaram vagarosamente por algumas vezes. Estava anoitecendo e ela deduziu rápido que adormecera sobre o corpo do amigo. Quando se movimentou no objetivo de levantar, para sua surpresa, seu corpo estava maior. Ao fitar sua mão, viu que estava adulta; notou também que todo o seu corpo tinha ganhado aquela proporção. Havia, ao seu lado, amarrado com uma fitinha dourada, o pergaminho-mapa que comprara: — Então Zeca cobrou mesmo o preço que dissera. Mas ao menos tenho o mapa para casa — sua voz soou estranha a si mesma. Levantou-se e viu tudo de mais alto pouco antes de dizer: — Vamos Amélia! Mas a boneca não se mexeu: — Amélia? E nada. Desistindo de manter contato com a boneca, reparando melhor em si, Ester notou que agora estava nua, dado o fato de suas roupas terem se rasgado enquanto ela dormiu e cresceu. Ali perto, descansando na grama alta daquela região, havia um humilde vestido acinzentado e de rendas negras. Provavelmente, deduziu Ester, Zeca havia deixado aquela vestimenta para ela. Vestiu-se, puxou as mangas e afastou os cachos do rosto.

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ESTER Ester voltou para onde seu amigo jazia e se abaixou para beijá-lo na testa: — Obrigada, Baltazar. Depois abriu o pergaminho e conferiu o caminho que tinha de seguir para chegar em casa. Agora caminhava pela estrada deserta daquela região, uma mulher de cabelos dourados e de leves cachos. Do seu rosto ameno, saltava duas pedras verdes; seus olhos tinham ganhado mais beleza, mas haviam perdido o brilho da infância. Ela pouco sorria agora, mas tinha inteligência para interpretar o mapa e para se dirigir para casa.

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III

O

POVO DOS BRAÇOS VIRA DOS

A

s árvores queriam abraçar Ester. Andara por tanto tempo que agora estava no ventre de uma floresta. Seus pés descalços

acariciavam as folhas secas e ouvia-se estalidos vez ou outra por causa de alguns gravetos. A mulher dos cachos dourados afastava os cipós do seu caminho pensando que deveria fazer muito tempo que ninguém passava por ali. Mas para contrariá-la, havia alguém em meio à escuridão. — Moça! — disse Ester. — Ei você, como é mesmo o seu nome? Lembro-me de você! A outra mulher que estava sentada sobre um tronco seco e que tinha o corpo banhado pela luz da lua se virou para Ester. — Eu não sei quem é você — disse ela com desdém. — Sou Ester, e esta é Amélia! — Ester levantou a boneca para mostrála. — Lembro-me da boneca, mas não estou reconhecendo você. — Ah, nem deveria mesmo. Estou adulta agora, já que usei a minha infância para comprar o Caminho de Volta Para Casa. Esqueci-me o seu nome, como era mesmo? Maria de quê? — Maria Falsa! Estou lembrada de você, a menina que me encontrou noite passada no Deserto. Eu sinto muito por ter perdido a sua infância — Maria tentou esconder o sorriso. Ester percebeu agora o que Maria tinha de estranho, porque ela parecia falar uma coisa e sentir outra:


PAUL LAW — Você, está sendo falsa. — Eu? Nunca! — Está sim. — Está muito bonita agora, moça — Maria quis mudar de assunto. — Obrigada — Ester fez um gesto de agradecimento. — Preciso seguir meu caminho para voltar para casa. Maria deu de ombros: — Isso, vá e me deixe aqui! Sua falta de educação te impede de perguntar se desejo seguir contigo? — Mas da última vez que nos vimos, foi você que quis ir embora! — Mas agora quero ir embora com você, posso? Estou procurando minha irmã e a busca solitária não tem me rendido muito. Ester pensou por um momento e depois disse: — Pode sim! Faremos companhia uma à outra. — Que bom! Assim poderei fugir do Soberano — Maria saltou do tronco de onde estava sentada. — Está fugindo desse tal de Soberano? Tem medo? — Ester começou a andar e Maria lhe seguiu. — Eu fujo e procuro... Aquelas palavras de Maria Falsa soaram verdadeiras. Ester lhe disse: — Quem é esse Soberano? — Soberano é o dono de tudo isto que teus olhos podem ver! Ele está atrás de nós... — Por quê? — Porque nós o deixamos nervoso! Ele nos procura desde então para nos punir e assim acalmar sua cólera — Maria fitou a lua. — Você e mais alguém fez mal a esse Soberano? Maria Falsa gargalhou: — Ele nos fez mal! Ester se calou. A história de Maria e Soberano era interessante, mas talvez não fosse oportuna para o momento. A menina tinha em mente

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ESTER seguir seu caminho e quanto menos soubesse sobre as loucuras daquele lugar onde se encontrava, melhor seria. Por isso decidiu continuar a andar sem perguntar mais nada. Continuou sua caminhada guiada pelo mapa e seguida agora pela mulher bonita das madeixas negras. Ela respeitou o silêncio, caminhando ao lado da garota loira sem interromper a quietude em nenhum momento. Quando o céu já estava trocando de cor e o orvalho já cobria as folhas das árvores, a dupla transpassou pela saída daquela floresta. Havia desembocado em um vilarejo estranho donde saltava a vista alguns casebres velhos serpenteados por uma estrada de areia. As árvores estavam secas e não se via ninguém: — Que lugar é este? — indagou Ester. — É o vilarejo do Povo dos Braços Virados — respondeu Maria Falsa. — Como é? — Aqui as pessoas nascem com os cotovelos para dentro do braço. Elas não conseguem levar as mãos até a boca, pois seus braços dobram para fora. Não podem comer... — Puxa que castigo... — É um demasiado castigo, isso sim... — Eles não morrem? — Eu não sei. Mas acho que mesmo sem poder levar o alimento até a boca, eles devem usar das mãos para apanhá-lo e, como animais, comer do chão. — Puxa... onde eles estão agora? Não vejo ninguém! — Ester olhou para os lados. — Em suas casas se lamentando. Este povo é muito zangado e triste. — Vamos ver se podemos ajudá-los! — Ester caminhou visando um casebre logo adiante. — Espere menina! Podemos passar rapidamente por este vilarejo! Perderá o seu tempo... Mas Ester já estava abrindo a porta:

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PAUL LAW — Alô, alguém em casa? — Quem ousa? — uma voz fraca se fez naquela escuridão. — Veio zombar da minha fome? — Oh não, meu senhor! Quero ajudá-lo. — Poderia me ajudar se me matasse de uma vez. Assim me pouparia da fome. Ester silenciou e a voz continuou: — Está aí ainda? — Sim. Há muitos como você? — Há. Somos um povo fadado à fome. Nossos braços são virados e não podemos comer. — Eu lamento muito! — Você não é a única. Neste momento Ester teve um lampejo de esperança: — Acho que sei como poderei ajudar todos vocês! Ester saiu daquele casebre com velocidade, o que causou muita curiosidade ao homem de braços virados que tinha conversado com ela. Avistou ao final da rua um barracão abandonado e sorriu. Soube na hora que aquele local serviria para o que tinha em mente. Indo até o barracão Ester constatou que lá havia um fogão de cerâmica e o preparou para poder cozinhar. A moça das madeixas douradas pediu a Maria que buscasse lenha e ela resmungando disse que seria uma honra ajudar. Ester mesma preparou o trigo para fazer farinha e depois o macarrão. Também bateu os galhos de feijão preto para separá-los, escolhê-los e depois misturá-los em sua sopa. Ester olhou ao céu e agradeceu primeiro a Deus por poder estar ali e depois a Zeca por tê-la feito adulta e com isso, ter dado a ela sabedoria para preparar aquela refeição. A menina de cabelos amarelos começou a cozinhar sob a luz da lamparina, já durante a noite e o cheiro da sua sopa começou a chamar a

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ESTER atenção de todos os moradores. Aos pouquinhos, as pessoas foram deixando suas casas para ir até onde estava sendo feita toda aquela comida. Quando Ester estava acabando de preparar sua sopa uma multidão tinha se juntado em volta daquele rancho. O homem dono da casa que ela havia entrado anteriormente tomou a frente dos demais e se zangou: — O que pensam que estão fazendo? — Estamos cozinhando, não lhe parece óbvio? — Maria Falsa respondeu pouco depois de passar a colher de madeira para Ester. — Estão a zombar do nosso povo? Só porque não podemos levar o alimento até nossas bocas? — Vamos ajudá-los! — Ester continuou a mexer o caldeirão de sopa. — Eu, Ismael, líder dos Braços Virados não permitirei tamanha afronta! — Espere, Ismael! Está quase pronto o que estamos preparando! Se eu não puder ajudar dou minha palavra que poderá fazer o que bem entender de mim! Ismael com os olhos cheios de fúria disse: — Eu cobrarei sua promessa, mulher de cabelos amarelos! Maria Falsa fitou Ester receosa: — Sabe mesmo o que está fazendo? Ester não lhe deu ouvidos e continuou a cozinhar. Quando terminou com os afazeres, ela pediu a ajuda de Maria para servir a comida que por sinal, tratava-se de uma saborosa sopa de feijão preto misturado ao macarrão. Os pratos foram todos preenchidos com a sopa e os talheres enferrujados foram colocados a postos em uma mesa improvisada de cavaletes e tábuas compridas. Ismael, que como os outros apenas observava, esbravejou: — Menina! Não podemos usar os talheres!

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PAUL LAW — Claro que podem! — Ester franziu o cenho e cruzou os braços — Não lhes parece óbvio? — ela retirou seu avental de estopa velha e o deu a Maria Falsa. — Claro que não podemos! — Ismael se aproximou de punhos cerrados. — Aproxime-se mais. Pegue a colher! — Ester ordenou. — Não vou fazer isso! Ester mesma pegou a colher e colocou na mão direita do homem de braços virados: — Que teimoso! Agora a mergulhe na sopa. — Que blasfêmia! Farei para lhe provar sua ignorância e para depois eu poder me vingar dessa humilhação! Ismael fez o que Ester lhe tinha pedido e indagou: — Agora devo comer? Como farei se tenho os cotovelos virados? — Não deve comer! — Ester chamou mais um dos Braços Virados — Coloque a colher na boca dele! Façam todos dessa maneira e nunca mais passarão fome ou terão que comer como cães! A multidão se espantou. Murmurou exclamações: — A menina está certa — diziam felizes. — Como não pensamos nisso? Ismael ficou imóvel ainda com a colher de sopa em sua mão. A seguir serviu para aquele que a menina tinha chamado depois dele. — Isso funciona! — alegrou-se o homem de braços virados depois de engolir a sopa! Ismael vendo a felicidade de seu conterrâneo sorriu também e mergulhou a colher mais uma vez no prato de sopa. Ester deu sua última ordem: — Aproximem-se todos! Façam como Ismael está fazendo e comam a vontade! Depois do banquete, Ismael chegou perto de Ester e Maria Falsa que estavam sentadas na mureta do rancho. Ele fez uma reverência para as duas:

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ESTER — Perdoem-me! — Eu, te perdoar? Claro que eu perdoo... — Maria Falsa cruzou os braços e virou o rosto. — Você não me magoou nem um pouco. — O que há com sua amiga? — quis saber Ismael. — Nada! — Ester explicou. — Ela está apenas magoada com você! Mas Maria o perdoa, claro! Assim como eu! A fome trouxe amargura ao seu coração! — Sim. Mas você trouxe o remédio para essa amargura. De onde você vem? Há mais pessoas boas como você por este mundo? — Há — Ester sorriu. — Sempre há pessoas boas pelo mundo, fique tranquilo. Ismael sorriu mais uma vez e ouviu Ester dizer: — Precisamos partir agora. Estou rumando para a cidade, para a minha casa! Ismael ficou sério antes de falar: — Está bem! Mas antes leve consigo toda a nossa Gratidão! O líder dos Braços Virados ordenou a todo o seu povo para que dessem uma Gratidão para Ester. A gratidão, notou a menina, tratava-se de uma plantinha pequenina, de uma única folha e que nascia no coração das pessoas que estavam gratas as outras. Ismael retirou sua Gratidão do peito e juntou as outras em uma bolsa grande de couro que forneceu a Ester. A menina aproveitou a bolsa para guardar também seu mapa precioso. — O que você vai fazer com toda esta Gratidão? — indagou Maria enquanto caminhava pelas montanhas ao lado de Ester. — Eu não sei, Maria! Talvez eu possa trocar por alguma coisa que precise...

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IV

O E XÉRCITO

H

DE UM HOMEM SÓ

avia então, no caminho das duas aventureiras, um forte pequeno, rodeado por um riacho e por algumas pedras. Ester,

ao fitar aquele lugar, perguntou à Maria Falsa se ela conhecia ali, mas para a sua surpresa a bela mulher lhe informou que não. — Estranho... — Ester parou para admirar a paisagem. — Esta pequena fortaleza está bem no meio do caminho que devemos seguir. Quem será que mora nela? — Não sei, Ester. Mas descobriremos, não estou certa? Ester assentiu e avançou rumo ao portal principal. Tratava-se de um forte militar há muito abandonado, pois teias de aranhas teciam toda a fachada da construção de pedra. Seu telhado madeirado com peroba escurecida faltava telhas e as que tinham pareciam velhas demais. A porta de carvalho estava apodrecendo por causa dos cupins. Ao chegar perto daquela porta em decomposição Ester tocou com o dorso da sua mão o carvalho, dizendo: — Alguém está aí? Por favor, precisamos passar! — É inimigo? — uma voz grave soou abafada. — Renda-se cão! — Não somos inimigos! Somos Ester e Maria, amigas! — Como saberei que é amiga e não inimiga se passando por amiga? — Ora, que desconfiado! O que uma amiga faz que uma inimiga não? — Ester quis saber.


PAUL LAW — Hum... não sei, mas amigos sempre são gratos aos outros amigos! Os inimigos, nunca! — Eu tenho muita Gratidão! Abra um pouquinho a porta para eu te dar. A porta se abriu um pouco e por entre a fresta Ester passou um pouco da Gratidão que recebera do Povo dos Braços Virados ao homem que murmurou: — Você não é inimiga se porta este tanto de Gratidão! Perdão pela minha cautela, é que nestes tempos de Soberano todo cuidado é pouco — a porta se abriu. Ester notou que se tratava de um homem vestido como soldado. Era jovem, bem sadio, tinha a pele escurecida pelo sol, as madeixas enroladas e cobertas por um quepe. Sua farda era azul, diferente dos algozes de Baltazar que vestiam vermelho. Tinha várias medalhas presas em sua roupa e um olhar firme. — Entrem! — disse ele pouco antes de certificar de que ninguém seguira as meninas. — Você é um soldado? — Sou. O único que restou... — Vi um monte de vocês que mataram meu amigo. — Aqueles são os homens do Soberano. Não os chamo de soldado. Soldado de verdade só existe um: eu. — Este forte é só para você? — Maria Falsa perguntou. — Agora sim. Depois que fomos atacados não restou mais nenhum companheiro de tropa. — Por que não foi embora? — Um soldado jamais abandona seu posto! Meu comandante não me deu a ordem para abandonar a base! — Mas ele não morreu? — Sim, mas não disse que eu estava dispensado antes! Então não estou!

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ESTER Ester coçou a cabeça: — O que pretende fazer? — Lutar, oras! O que os soldados fazem? — Por uma causa perdida? — Maria Falsa suspirou. — Enquanto eu viver, ainda há esperança para o meu exército! A causa não está perdida! Disse que estavam em duas, mas há um terceiro! — o soldado apontou seu rifle para Amélia que estava no colo de Ester. — Ela é minha boneca! Parece morta agora... — Confirma isso? — o soldado perguntou para Maria. — Sim. — Está bem! — o soldado afastou sua arma. Ester e Maria saciaram a fome com o banquete preparado pelo guerreiro solitário. Ele tinha muita alegria em preparar tudo apenas pelo prazer de ter companhia. Sua hospitalidade fez com que convidasse as garotas para pernoitarem por ali, dada a avançada hora em que a noite se encontrava: — Vocês duas descansem que eu vou montar guarda do lado de fora! — foram suas palavras. Então as viajantes arrumaram suas camas no alojamento dos soldados e se prepararam para uma agradável noite de sono. Dado tempo, quando Ester já tinha os olhos pesados demais e quase sonhava, ouviu um disparo de arma de fogo. Como estava quase dormindo, aquilo lhe tirou todo o sono imediatamente. Ergueu-se da cama apavorada e a lembrança de Baltazar sendo executado lhe veio a mente: — Baltazar! — uma lágrima rolou pelo seu olho esquerdo — Onde você está? Ela enxugou sua lágrima ao mesmo tempo que se colocou em pé. Fitou Maria na cama ao lado, que dormia profundamente e teve a ideia de beber água, crente que o barulho que ouvira não passara de um pesadelo. Mas quando a menina atravessou o alojamento para descer as escadas de cedro

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PAUL LAW e rumar até a mina d’água lá em baixo, viu que o soldado que a hospedara tinha companhia. Tratava-se de outro soldado semelhante a ele, mas com farda avermelhada das bandas do Soberano. Desceu cautelosa para ver de perto certificando-se de que não tinha sido vista. Ester agarrou o pilar de concreto e se abaixou para poder ver melhor. Notou que ambos os guerreiros estavam escondidos atrás de pilastras de pedras e que disparavam um contra o outro. Seu amigo de farda azul efetuou disparo pouco antes de Ester poder ouvir o outro soldado dizer: — Este passou perto, mas eu não posso morrer, você bem sabe. Soberano é dono da Morte e ele a ordenou para nos deixar vivo! — Cão! Nem a morte seria o suficiente para você! Como ousa me afrontar no meu quartel? — o soldado de azul disparou mais uma vez. — Chama isso de quartel? Essa velharia caindo aos pedaços! E onde está o seu exército? — Não é da sua conta! — Eu é que tenho um exército de verdade! — respondeu o soldado de vermelho. Ele então soprou um apito que tinha pendurado ao pescoço o qual estranhamente não emitiu som algum, mas que fez ao longe ouvir-se o marchar de tropas. O único soldado de uniforme azul ficou apreensivo com aquele som, mas manteve-se firme com a mão sobre o fuzil e escondido por de trás da sua pilastra. Vários militares de vermelho entraram pelas portas de carvalho do forte ao mesmo tempo, destruindo-as. Aquele primeiro militar disse satisfeito: — É o seu fim, Daniel! Ester levou a mão até a boca para abafar um grito de horror e não ser descoberta, na mesma hora em que Daniel falou de onde estava: — Nada disso! — disparou contra um dos inimigos, acertando-o no peito.

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ESTER — É inútil lutar, soldado! — o atingido se levantou e o buraco de bala que tinha em seu corpo se fechou imediatamente — Somos imortais! — Pois eu não desisto de lutar! Então todos os outros soldados inimigos engatilharam seus rifles e começaram a disparar contra a pilastra em que Daniel se escondia. Sabiam que a construção não tardaria a ceder e depois poderiam matá-lo sem dificuldades. — Comandante, aproxima-se o meu fim! — Daniel se sentou e engatilhou sua arma olhando para as estrelas — Mas morrerei como o senhor! Como um soldado! Para a surpresa do guerreiro que já desistia da batalha, uma mão forte descansou em seu ombro, assustando-o: — Quem falou em morrer, soldado? — a voz trouxe os olhos de Daniel de volta das estrelas. — Mas o quê? — Daniel notou que na sua frente havia um soldado de farda igual a dele, mas com muito mais medalhas. — Meu Comandante! O rosto estava pálido e a roupa mais velha do que a de Daniel: — Senhor? — disse ainda assustado, o soldado que estava sozinho pouco antes. O líder exclamou: — Sentido, soldado! Daniel obedeceu levantando-se de pronto. — Pelotão! Vocês acham que um bando de maricas de vermelho vai nos vencer? Quando o Comandante disse essas palavras, Daniel percebeu que a sua volta estavam todos os seus antigos companheiros de tropa, agora de fardas azul-acinzentadas e de rostos pálidos. Pôde ouvir claramente os guerreiros dizerem: — Não senhor! — O que vamos fazer? — continuou o líder. — Lutar, Senhor!

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PAUL LAW — NÃO OUVI, SOLDADOS! — LUTAR, SENHOR!!! — Muito bem! Um militar franzino sob o olhar de Daniel que ainda tentava entender tudo aquilo indagou ao seu superior: — Mas senhor, não estamos mortos? O Comandante se enfureceu: — E essa frescura de morrer se aplica a um soldado? Ora, seu borrabotas de uma figa! Se acha que morrer é motivo para não lutar, saia imediatamente da minha tropa! — Desculpe, senhor! Ester, de onde estava, podia ver claramente todos aqueles soldados que tinham aparecido perto de Daniel. Espantada e feliz por saber que agora seu amigo tinha um exército, a menina continuou escondida. O som dos disparos do exército inimigo contra a pilastra em que Daniel se escondia até então trouxe a atenção do Comandante para a guerra. — ATACAR! — disse ele ao seu exército! Daniel e os outros se armaram e dispararam contra os inimigos de vermelho, assustando-os. — Mas que diabo! — disse um dos soldados de rubro. — Há mais soldados do que pensávamos! Soldados de vermelho e os de azul guerrearam intensamente numa batalha inútil, já que ambos os exércitos não podiam perder. O Exército Azul já estava morto e o Vermelho era imortal. Daniel era o único que temia a morte por ali, mas nem se deu conta disso, dado o calor daquela batalha. Lembrou-se quando um inimigo o atingiu com o rifle. Com o impacto do tiro em seu ombro, Daniel rodopiou no ar para depois cair de bruços sobre a terra barrenta daquele pátio. — Oh, não! — Ester não pôde segurar sua exclamação.

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ESTER O militar das bandas do Soberano que atingiu Daniel sorriu satisfeito. Depois deu a ordem aos seus guerreiros para recuarem. Ouviu-se o último disparo e os guerreiros de vermelho fugiram todos: — Fujam, seus covardes! — disse Daniel ainda de bruços. Ester finalmente pôde sair de seu esconderijo e correr em socorro do seu novo amigo, agora ferido: — Você lutou contra todos os soldados do Soberano! Venceu a todos! Se Baltazar tivesse a sua força não morreria nunca mais! — Às vezes é conveniente morrer, menina. Eu não estava sozinho — ele tentou se virar. — Quem, diabos, é Baltazar? — Você está perdendo muito sangue! — Ester colocou a mão na testa gelada do militar não dando ouvidos à indagação que ele tinha feito. — Deixe-me! — ele fez uma cara de dor. — Não vou deixar! — Ester retribuiu com uma cara zangada. Ela correu até o alojamento dos soldados e agarrou sua trouxa de Gratidão. Pegou algumas e esfregou contra um pilar de pedra para fazer pasta de Compaixão e Esperança. Finalmente rasgou um pedaço do seu vestido para depositar a solução e usá-la no ferimento de Daniel: — Acho que isso vai curá-lo! — Você é Curandeira? — Não. — Então isso não vai funcionar — lamentou Daniel. — Deixe-me morrer e voltar a fazer parte da minha antiga tropa, agora Exército Fantasma que veio me ajudar nessa batalha. — Não! — Como é? — o soldado desmaiou depois dessa indagação. Ester virou o corpo imóvel de Daniel com toda a sua força e encostou a cabeça dele em seu peito. Acabou adormecendo ali com o soldado em seu abraço. Então, quando o sol tocou suas bochechas avermelhadas, Ester notou que já não estava mais no pátio daquele forte e nem viu sinal de Daniel.

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PAUL LAW Encontrava-se agora no alojamento para soldados em sua aconchegante cama. Na cama ao lado, Maria Falsa já não estava dormindo. Ester se levantou e saiu do recinto pouco depois de arrumar sua cama. Em seguida dirigiu-se para o pátio onde Maria estava se alimentando e Daniel, por sua vez, estava marchando zeloso pelo seu forte: — Daniel! — ela correu contra o rapaz. — Como está o seu ferimento? — abraçou-o. O soldado sorriu: — Não há ferimento, Ester! Você me curou totalmente. — Que maravilha! — Como sabia fazer aquele remédio? Ester deu de ombros: — Eu não sabia. Mas estranhamente, desde que fiquei adulta tenho conhecimentos de que nem fazia ideia antes. Eu ganhei, juntamente com o Mapa de Volta para Casa, Sabedoria para poder interpretá-lo. Acho que é por isso... — Entendo — Daniel ajeitou seu rifle nas costas e continuou. — Eu tomei uma decisão e vou abandonar o forte! Ester se assustou: — Vai desistir de lutar? — Não necessariamente, mas vou acompanhar você até a cidade! A menina perdida deu pulos de alegria. Naquela manhã Ester, Maria Falsa e agora Daniel, o último soldado, partiram seguindo as instruções do mapa comprado do Mascate. Passaram pelo Vale do Eco, onde Ester conversou com seu eco e mais tarde, perto de onde Judas Perdeu as Botas, foi que o grupo se deparou com algo inusitado: — É lindo — disse Ester. — Nem é — Maria Falsa se mostrava admirada. — O castelo e as casas são lindos... — Daniel observou.

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ESTER — Que lugar será este? — Não sei, Ester — Daniel agarrou seu rifle. — Vamos descobrir? Era um vilarejo bonito que cercava um grandioso castelo. As casas tinham um padrão de construção colonial e as ruas de pedra serpenteavam por elas ao passo que as pessoas despreocupadas fofocavam da vida alheia. Ester e seus amigos adentraram temerosos, ainda admirados. A menina das madeixas douradas teve a ideia de ter com um bando de mulheres idosas que transitava por aquela rua. As Fofoqueiras vestiam-se do mais puro linho e seda distribuídos em belos vestidos. Iam de casa em casa saber da vida dos outros: — Senhoras, desculpem! Mas onde estamos? — Ester se aproximou de uma delas. — Garota, você sabe da última? — vieram todas em direção da menina. — Desculpe, mas preciso saber onde estamos. — Mocinha, a princesa Ádria acaba de ressuscitar! — a velha fofoqueira abriu o seu leque esmeralda, seguida pouco depois por todas as outras companheiras. — O quê? — Eu vou te contar tudo, escute!

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V

A

A

PRINCESA

Á DRIA

fofoqueira começou: — A princesa Ádria é filha do Soberano. Uma mulher

muito linda que sempre foi desejada por todos, mas que nunca conseguiu nenhum marido, pois seu pai tinha lançado aos quatro cantos a ordem de que o esposo de sua filha viveria enquanto ela vivesse. Se ela viesse a perder a vida antes dele, ele seria enterrado junto com ela! Ah, isso foi demais para qualquer um! Todos tinham muito medo, acredite! Até que depois surgiu um bravo cavaleiro chamado Sir Jorge. Ele aceitou as condições do Soberano, casou-se com a princesa e ambos foram muito felizes! Vieram morar aqui neste castelo, mas não demorou até que Ádria adoecesse e viesse a falecer. Cumprindo com o que Soberano tinha ordenado, Jorge foi trancado junto com o cadáver da sua amada esposa numa cripta. Não se teve notícia de nenhum dos dois, até que hoje se soube que a princesa ressuscitou! — Puxa! — animou-se Ester — Que bom que a princesa reviveu. — Bom? De onde você vem? Não sabe que aqueles que voltam a vida, voltam malvados? — Mentira! — Ester fez uma careta — Eu tenho um amigo que morre todos os dias e ele não é uma pessoa ruim! — Tem certeza? Conte-nos sobre este seu amigo! Estamos curiosas! E a moça das madeixas douradas contou a história de Baltazar para as Fofoqueiras que depois de ouvi-la correram ao encontro de outras pessoas


PAUL LAW que passavam por ali, dizendo: — Vocês conhecem a história do homem que morre todos os dias? Conhecem? Ester achou aquilo estranho demais. — Então, descobriu que lugar é este? — aproximou-se Daniel — Podemos passar livremente? — Não pude saber. As mulheres com quem falei me disseram que a Princesa Ádria ressuscitou. Perguntei a elas deste lugar e elas não me responderam. — De qualquer modo — ponderou Maria Falsa —, vamos seguir nosso caminho. Ester, Maria e Daniel passaram por aquelas ruas de pedra sob olhares de muitas pessoas. As casas sempre abriam suas janelas quando o trio passava e revelavam olhares curiosos. O grupo parou sobre as pedras da rua que desembocava no castelo para pensar nas próximas atitudes. Ali havia uma praça circular e as ruas que a rodeavam estavam cercadas por soldados de farda avermelhada, os homens do Soberano. Daniel ao avistálos sacou sua arma e mirou aleatoriamente: — Cães! — Não — Ester colocou a mão na arma do seu amigo. — Espere, podemos conversar antes. Daniel recolheu o rifle e deixou que Ester fosse ter com um dos soldados de farda rubra. A moça se aproximou e disse ao homem que parecia uma estátua: — Boa tarde! — Boa tarde — respondeu-lhe o militar. — Eu sou Ester. Este ao meu lado é Daniel, soldado. Esta aqui — colocou a mão no ombro de Maria —, é Maria Falsa. Mas o soldado com quem Ester dialogava não disse nada. A menina, por sua vez continuou:

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ESTER — Vocês estão bloqueando todas as saídas! Poderia fazer o obséquio de nos deixar passar por uma das ruas? Precisamos seguir para a Cidade... — Não. Todos os caminhos são da Princesa Ádria. Ela mandou fechálos. — Ora! — Ester franziu a testa — Mas como pode alguém ser dona de todos os caminhos? E, além disso, impedir os outros de passar? — Nossa Princesa é assim, dona dos caminhos. Se insistir em passar, teremos de agir. — Pois vamos passar! — Daniel respondeu e avançou contra o soldado inimigo. Mas o soldado nem se mexeu e Daniel caiu desmaiado. — O que fez com ele? — Ester ficou assustada. — Matei sua consciência! Ester hesitou. Aquele soldado podia matar consciências. Por mais estranho que aquilo lhe parecesse, a menina não pôde imaginar outra definição de “morte da consciência” do que morte propriamente dita. Quis se afastar, mas sentiu uma forte dor de cabeça e se ajoelhou sobre a pedra para depois cair inconsciente. — Mas o que está acontecendo? — Maria Falsa indagou ao ver Ester desmaiada. Antes que pudesse alcançar sua resposta, ela também caiu inconsciente logo depois de sentir a mesma dor de cabeça que Ester tinha sentido. — Matei a consciência de vocês todos — disse o militar sem se mexer. Aproximou-se outro soldado e disse para aquele primeiro: — Algum problema? — Não. Apenas tive que matar a consciência dessas três pessoas. Queriam passar pelos caminhos sem autorização. — O que faremos com os corpos? — Levaremos para o calabouço! Com suas consciências mortas, Ester, Maria e Daniel foram presos. Contudo, os soldados esqueceram-se da pequena Amélia, boneca preferida

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PAUL LAW de Ester. O brinquedo tinha sido abandonado em cima da rua de pedra. Quando anoiteceu, no momento em que a guarda diurna era substituída pela noturna, Amélia aproveitou para fugir. Levantou-se e correu o máximo que pôde com suas perninhas de louça: — E agora? — disse a boneca ao olhar para trás. — Como vou viver sem Ester? Ouviu-se, então, barulho vindo de um latão de lixo. Amélia ficou assustada e se preparou para correr novamente, quando uma voz se fez: — Espere! — era uma voz fininha e esganiçada. — Quem está aí? — Me ajude, por favor! Eu fui jogado aqui! Amélia se aproximou do latão de lixo para ver quem estava ali e se surpreendeu: — Você é um... — Não sou um bebê. Não cheguei a nascer. — E o que você é então? — Eu sou um Feto. — Feto? — Sim. Agora me ajude a sair daqui! Meus braços são pequenos demais para que eu possa deixar esta lata. Amélia fitou aquela criança que nunca nasceu. A luz das tochas dava o tom de amarelo àquela pele e os braços mexiam intensos na tentativa de serem pegos pela boneca. Era um ser muito pequeno; menor ainda que Amélia. Tinha o corpo avermelhado devido ao sangue do processo de aborto; seu umbigo ainda continha parte do cordão que o prendia à mãe. Os olhos eram castanhos e não tinham a parte branca que todos os olhos possuem. O seu rosto era igual ao de um recém-nascido, diferenciado apenas em relação ao tamanho. A boneca estendeu seus braços de louça e pegou o Feto da lata de lixo. Colocou-o no chão e indagou: — Consegue andar?

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ESTER — Consigo! — Que bom! Preciso agora encontrar Ester! Ela foi pega pelos soldados e está presa com a consciência morta. — Então — o Feto olhou para o portal do castelo —, eu vou ajudá-la a salvar sua amiga. É minha forma de agradecer. Seguiram ambos pelo caminho que desembocava no Castelo Real. Ali, sabiam que encontrariam Ester e também a princesa Ádria, agora ressuscitada e dona de todos os caminhos. Para não serem vistos, se esgueiraram pelo jardim. Como eram pequenos, não foram notados até alcançarem a fachada do palácio. Mas os portais estavam fechados e bem guardados pelos soldados: — Ali! — Feto apontou para a grade de mármore que cercava os limites do palácio. — Poderemos passar entre as grades! Amélia assentiu. Dado o fato de serem pequenos, passariam sem problemas entre as grades. Fizeram dessa maneira para depois adentrarem naquele vergel imenso. O jardim era muito feio. As árvores estavam secas assim como as flores. Havia trepadeiras por toda parte e o gramado se encontrava amarelado. Não tinham soldados nas redondezas e os cipós se alastravam pelas paredes de pedra daquela construção. Havia um buraco por onde saia a água da chuva e foi por ele que Feto e Amélia entraram no castelo. Desembocaram numa sala estranha e mal iluminada donde sentia-se o cheiro de mofo e percebia-se a umidade. O gotejar se fazia longe e as paredes tinham musgo. Amélia se surpreendeu ao tropeçar em um túmulo.

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VI

S IR J ORGE

DA

— A

O RDEM

DOS

V IRTUOSOS

aaaaaaaaa! — gritou a boneca — Um túmulo! — Não temas — uma voz se fez naquela

escuridão. — Este túmulo está vazio. — Quem está aí? — Feto quis saber. As tochas que envolviam as paredes úmidas se acenderam magicamente e um cavaleiro se revelou: — Eu sou Sir Jorge da Ordem dos Virtuosos! Era um homem alto e forte. Tinha os cabelos castanhos e curtos ao passo que a barba contornava todo o seu rosto. Vestia-se com uma armadura que reluzia em prata e tinha a capa rubra. Seus olhos eram escuros e suas sobrancelhas grossas. — Espere! Quando eu estava no colo de Ester ouvi a sua história! Você é o homem que se casou com a princesa Ádria! — Sim! Sentem-se no túmulo que contarei o que houve. Feto e Amélia se sentaram e Jorge iniciou seu relato: — Casei-me com Lady Ádria há alguns anos por amá-la. Suportei a condição lançada por seu pai de que o homem que casasse com sua filha seria enterrado com ela caso ela viesse a falecer primeiro. Minha felicidade durou alguns anos e se espalhou por este vasto castelo que construí! O que ocorreu foi que minha amada esposa adoeceu gravemente. Sabendo da minha sina ela me pediu para fugir antes que fosse tarde demais. Respondi-lhe que jamais a abandonaria e que se preciso fosse até mesmo a


PAUL LAW morte enfrentaria para permanecer ao lado dela. Amélia já estava completamente envolvida na história e indagou: — Que houve depois? — Não lhe parece óbvio? Ádria morreu numa tarde triste e chuvosa. Eu chorei até o anoitecer e depois me trancaram com ela nesta cripta para esperar a visita da Morte. — Que triste — falou a boneca. Jorge continuou: — Depois de uns dias preso com o corpo de Ádria, acho que fui perdendo a sanidade. Amava tanto minha princesa que sempre abria seu sepulcro para vê-la, numa tentativa fútil de matar o tempo até que o fim me viesse! Seus lábios agora roxos, ainda eram um convite para o beijo, mas eu não me atrevia. Numa noite, quando eu já estava quase entregue, um estranho bicho passou por debaixo da porta de pedra da nossa cripta. Era uma cobra! Decidido, saquei da minha espada e partia-a ao meio. Mas para a minha surpresa a serpente se reconstituiu depois de um tempo e voltou à vida! Pensei então: Este bicho é mágico! Por certo poderá devolver a vida para a minha amada! — E devolveu? — a pergunta saiu instintivamente dos lábios de louça de Amélia. — Parti a cobra mais uma vez e usei sua metade para derramar sangue nos lábios secos de Ádria. Para o meu pasmo, a cobra não mais se reconstituiu depois do que fiz. Eu estava demasiado fraco e acabei desmaiando e quando acordei algo mágico havia acontecido. — O quê? — Pensei estar morto, pois na minha frente estava Ádria, bela como outrora. Ela me beijou dizendo estar feliz por ter revivido. Abracei-a com violência e ela retribuiu ao abraço. Depois ela correu até a porta de pedra e gritou para que abrissem. — E o que houve depois? — a curiosidade de Amélia a impedia de ficar silente.

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ESTER — A cripta foi aberta pelos nossos soldados e súditos que ficaram maravilhados. Ádria gargalhou maldosamente pouco antes de se virar para mim e dizer suas últimas palavras: “Jorge, tu não deverias ter me ressuscitado!”. A cripta foi fechada comigo dentro e cá estou ainda. — Ela lhe abandonou? Como pôde? Depois de tudo que você passou por ela — Amélia ficou inconformada. — Não fazes ideia do quanto me doeu. Do quanto me dói. — Vamos lá falar com essa princesa mequetrefe! — a boneca cerrou os punhos. Jorge sorriu: — Tu és engraçada, ser pequeno! Mas é fato que não podemos sair daqui! A porta se abre por fora apenas. — Meu nome é Amélia e sou uma boneca! A boneca de Ester! — Não sei o que é boneca! Muito menos quem é Ester! Mas saberei bem de ambas as coisas já que vamos passar muito tempo por aqui. Feto interrompeu: — Vamos sair, cavaleiro! Como sou pequeno, poderei passar pela saída de água e desembocar na entrada da cripta. De lá abrirei a porta para vocês! — Não creio ser possível! Mas Feto não se mostrou preocupado. Ao invés disso pediu para que Amélia lhe ajudasse a alcançar a saída de água. Aquele orifício era pequeno e se encontrava no canto esquerdo do sepulcro. Para descer por ele Feto precisava que Amélia lhe segurasse os braços. Ao som do espirrar de água o bebê não nascido passou pela abertura e ouviu-se apenas os seus passos desengonçados. Passado alguns minutos em silêncio, Feto chamou: — Amélia! Estou aqui! Em frente à porta de pedra! — Pois abra, criatura! — Não alcanço a fechadura! É muito alta para mim! — Pelas barbies! Como vamos sair agora?

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PAUL LAW — Espere! Talvez se eu usar o meu cordão umbilical como laço poderei destrancar a porta! Colocando em prática o seu plano, Feto lançou o cordão contra a fechadura e por sorte ou por perícia, laçou-a. Forçou para a esquerda e ao som de um click, o portão de pedra se abriu. — Livres! — Sir Jorge saiu apressado! — Acalme-se, homem! — Amélia seguiu-o, correndo! — Não há tempo, boneca! Preciso encontrar Ádria. — Nós também! Temos que salvar Ester! — Tu falas muito nessa Ester! Por certo ela é muito importante para ti! — Sim, sim! Ela é minha dona! Já no jardim do castelo o trio foi abordado pelos soldados de farda avermelhada e de rifles nos ombros. Quando Amélia os reconheceu parou de correr e disse: — Sir Jorge, pare! Eles são homens do Soberano! Mataram Baltazar e mataram a consciência de Ester, Maria e Daniel! — Não pare, boneca! Eu sou um cavaleiro da Ordem dos Virtuosos e não temo nenhum inimigo! Jorge sacou sua espada com perícia. Os soldados armaram-se dos rifles e miraram contra ele. Mas o cavaleiro usou seu escudo prateado para se defender dos disparos. Sacou de uma adaga que portava na cintura e atirou-a contra um dos soldados, atingindo-o no peito. Aproveitou a distração causada pelo seu ataque e avançou a um combate corpo-a-corpo. — Indignos! — bradou. Sua lâmina passou pelos corpos de todos os guerreiros derrubando-os, enquanto Amélia e Feto observavam. Cansado, o cavaleiro guardou sua arma e visou a entrada lateral do castelo. — Vamos! — disse por fim. Perto daquele portal ornamental, foi que o trio avistou dois soldados do Soberano. Aqueles, não se mexiam e Amélia deduziu:

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ESTER — Estes são os ceifadores de consciência! Eles são estáticos, mas poderosos! Sir Jorge continuou seguindo em frente. Corria antes, mas agora estava cansado e a caminhada pareceu-lhe mais apropriada. Quando chegou em frente aos dois soldados fitou-os nos olhos por um segundo e não tardou para que ambos caíssem inertes: — O quê você fez? — indagou-lhe Feto. — Matei-lhes a consciência! — Uau! — disseram em coro Feto e Amélia. Mas Jorge não se mostrou lisonjeado, tampouco perdeu tempo em explicar sobre como se matava consciências. Ao invés disso, avançou pelo saguão principal do castelo de espada em punho. Feto e Amélia seguiramno. O palácio era fantástico e vasto. O piso esmeralda e extremamente limpo refletia como espelho a imagem invertida do trio apressado. As cortinas também eram verdes e dançavam no embalo do vento, ao passo que os lustres balançavam sobre a cabeça dos visitantes. Ao fundo se via dois tronos e em um deles a silhueta de uma mulher. Ao fitá-la, Jorge hesitou por um momento, mas depois empregou firmeza nos passos metálicos. Chegou perto e viu que a mulher estava envolvida por súditos e por várias cobras que lhe enfeitavam o corpo esguio. Algumas rastejavam pelo chão. Ádria era uma linda dama, de cabelos muito longos; rubros e feito de cachos grandes. Seu queixo largo era preenchido por lábios carnudos e rosado. Os seus olhos tinham um castanho amarelado singular e seu nariz era um pouco arrebitado. Vestia-se com seda esmeralda, leve e marcadora de todas as suas curvas. Ela estava sentada despreocupada e sendo abanada por súditos: — Jorge, meu marido! — disse com desdém. — Não deverias estar morto? Na melhor das hipóteses, preso?

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VII

A

PRINCESA COBRA E MEU FILHO

A

s cobras guisaram frenéticas quando Ádria se levantou. Algumas delas lhe passaram pelas pernas e outras pelos braços:

— Responda, Jorge da Ordem dos Virtuosos! — Por que tu ages assim? Essas cobras, o que tudo isso significa, amada? — Amada? Tu me chamas de amada, mas será mesmo que me amas? Se me amasse teria morrido e me poupado de trabalho... — Ádria, escute! Tu vives! Como quis tê-la de volta! — Teu desejo se fez, marido meu! — ela abriu os braços e derrubou algumas cobras. — Eu estou viva! Jorge vacilou por um momento e Ádria se sentiu segura para deixar seu trono e se aproximar do marido. Fez assim depois de pedir para os servos se afastarem. Aproximou-se devagar e não encontrou hostilidade por parte do marido o que lhe deu condições de abraçar o corpo de ferro de Jorge. Algumas cobras passaram dela para ele neste momento. — Ame-me como antes! — insinuou a princesa com os olhos vívidos. Enfeitiçado pelas esmeraldas do olhar de Ádria, Jorge não notou que uma das serpentes lhe envolveu o pescoço e depois lhe picou. — Afasta-te, víbora! — o cavaleiro afastou a cobra com a mão direita e depois empurrou Ádria para longe de si. — Hahahahahahahahahahahaha! — gargalhou a princesa. — Tu és tolo, meu marido! Minha cobra lançou-lhe seu veneno! Lamento, mas não


PAUL LAW há nada que lhe prive de ser extinto agora. — Amada, estive a esperar pelo fim por tanto tempo, que já estou farto! Que venha logo! Mas antes, porém vou lhe mandar de volta para o sepulcro! — Jorge sacou sua espada. — Você não é a minha princesa! Ádria sorriu e se colocou em uma estranha posição de combate na qual ficava com os pés e as mãos apoiadas ao chão lembrando algum réptil. Ela guisou e avançou sobre Jorge, que se esquivou: — Tu és demasiada veloz! — o cavaleiro avançou com a espada em punho, mas foi a vez de Ádria se esquivar. Aproveitando-se, a princesa desferiu-lhe uma voadora e o arremessou contra a parede. Depois ela caminhou até ele para aplicar-lhe o derradeiro ataque, mas em seu caminho se colocaram uma boneca e um bebê não nascido. — Pare princesa cobra! — disse Amélia — Pare de machucar o Jorge! — Quem és tu que pensa poder falar assim comigo? — Sou Amélia, a boneca de Ester! — Ester, a menina que tentou roubar-me um caminho? Dei cabo dela e não tardarei a fazer o mesmo contigo se não deixar a minha frente! — Solte minha dona, princesa mequetrefe! — ameaçou a boneca! — Ora, que impertinência! A este tempo as cobras de Ádria que guisavam pelo solo, subiram pelas canelas de louça de Amélia que não demorou a sentir as picadas. — Isso não funciona comigo! Eu sou boneca — Amélia mostrou a língua. — Pois então terei que destruí-la com minhas próprias mãos! — Ádria avançou e desferiu um poderoso chute em Amélia arrancando-lhe a cabeça. — Não! — gritou Feto. — Saia, criatura! A menos que queira fim similar! — Pare, por favor! — pediu Feto — Você é minha mamãe... Ádria mudou de semblante após essas palavras. Parou naquele instante, absorvendo toda a intensidade daquelas palavras:

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ESTER — O que disse? — pediu para que Feto repetisse. — Eu sou teu filho não nascido! Jorge já vinha a este tempo. Aproximou-se cambaleando, pois o veneno já lhe fazia efeito, mas não o suficiente para impedi-lo de falar: — Tu és nosso filho? Mas como? — É a minha vez de lhes contar. E a criança não concebida começou: — Mamãe Ádria estava grávida quando morreu. Por certo que eu não deveria ser concebido, já que minha mamãe não mais vivia, mas todos sabem que ela é filha do Soberano e para ele tudo é possível. Houve uns segundos de silêncio como se todos recordassem de quem era Soberano. Feto retomou: — Pois então eu fui me desenvolvendo até perto da concepção. Papai não viu a barriga de mamãe crescer, pois ela cresceu muito rápida, no tempo de uma noite, quando ele estava desacordado. — Não sabia de tua gravidez, Ádria — Jorge retorceu de dor depois de dizer. Feto não deu tempo para que sua mãe argumentasse: — Quando fui nascer a Serpente Mágica já tinha agido sobre mamãe e ela começou a viver e eu comecei a morrer. Morri antes de nascer e o Vovô veio me visitar e me tirou de lá. Lembro-me que ele disse que eu era seu neto amado e que viveria. Ele tomou-me em seus braços e levou-me dali. Quando eu acordei estava na lata de lixo. — Meu filho! Por que não disse antes? — Jorge deixou que as lágrimas lhe invadissem os olhos. — Eu nem sabia! — Eu também não sabia! — Ádria disse baixinho. — Veja, Ádria, ele é lindo! Parece contigo! — Jorge pegou Feto no colo. A princesa levantou os olhos devagar e fitou sua criança deformada. Seu coração começou a mudar e ela sentiu o que todas as mães sempre sentem: o afeto. As lágrimas escorreram do seu rosto empalidecido. — Por certo ele é muito belo! — Ádria se aproximou, tocou Feto com

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PAUL LAW seus lábios e o bebê não nascido foi envolvido por uma luz dourada. Então toda a deformidade do seu corpo foi corrigida e seu umbigo se tornou normal. Seu tamanho ficou igual ao de um bebê recém-nascido e ele deixou de falar: — Agora tudo está correto, meu marido! — Amada esposa! — Jorge abraçou Ádria. Beijou-a. — Eu te amo tanto! Não pude nem morrer de tanto amor que senti! — continuou o cavaleiro. — Eu estava mesmo é morrendo agora pelo seu desprezo. — Jorge, eu te amo em tal proporção, que vinha do fim para não te deixar só. Deixava os braços da morte para estar contigo! A Serpente Mágica veio de lá entrelaçada em minha canela. Ela me reviveu, amado! Mas me trouxe para o mal! Meu filho foi capaz de me trazer de volta ao bem — a princesa acariciava o pequeno príncipe no colo do marido. Jorge sorriu por um momento. Depois sua expressão ganhou a de dor: — A cobra me picou e bem sei que dessa vez morrerei! Mas ao menos pude estar contigo mais uma vez, Ádria! — Meu marido eu também já não sou deste mundo! Quero morrer contigo envolvida em seu abraço, pelo veneno da serpente! — Ádria agarrou uma serpente do chão. — Beije-me! — Não! Ádria recuou após esta palavra do marido que depois continuou: — E o nosso filho? Quem cuidará dele? Ádria hesitou por um momento após esta indagação do quase extinto marido. — Tu viverás, Lady Ádria! Assim lhe ordena o seu marido — disse Jorge com lágrimas nos olhos. — Cuidará do pequeno Jorge, que um dia será Sir Jorge II dos Virtuosos! Que um dia será rei. A princesa assentiu já com os olhos molhados e a maquiagem desmanchada.

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ESTER — Deixe-me morrer com o gosto do seu beijo nos lábios é o meu ultimo desejo. Então os lábios carnudos de Ádria se encostaram aos descoloridos de Jorge e ele morreu naquele beijo. Ester ouviu ao longe um gotejar. O som rítmico foi lhe trazendo de volta. Não sabia onde estava tampouco por quanto tempo ficara desacordada. Sua consciência foi voltando aos pouquinhos ao passo que o gotejar ganhava mais volume. Piscou por algumas vezes e reconheceu o local onde se encontrava. Era uma cela escura, mas a porta estava aberta. As grades enferrujadas pareciam convidá-la para sair: — Onde estou? — No calabouço do castelo — uma voz conhecida lhe informou. — Fomos salvos! Era Daniel, sabia a menina: — Lembro-me que estávamos para sair da cidade por um dos caminhos da Princesa Ádria quando um soldado lhe matou a consciência! — Ele matou a sua e a de Maria também! Estranho é que estamos livres e nossas consciências foram ressuscitadas! — Estou tão triste de estar livre — saltitava Maria Falsa. — Que azar o nosso! — O que será que aconteceu? — Ester se levantou. — Vamos descobrir — Daniel disse pouco antes de deixar aquela cela, acompanhado de Ester e Maria. Subiram as escadas de pedra daquela prisão ao passo que os seus narizes inalavam o cheiro de enxofre. Quando ganharam a superfície, alguém lhes aguardava: — Saudações, Ester! Eu sou Ádria. Ester fitou aquela linda mulher com um bebê nos braços. Sentiu medo.

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VIII

A G ARRAFA

QUE NUNCA SE ESVAZIA

— D

eixe-me ver se entendi — Ester coçava a cabeça. — Você estava má e por isso nos impediu de seguir

viagem! Agora está bondosa novamente, é isso? — Não exatamente, mas creio ser próximo da verdade — respondeu Ádria depois de se aconchegar em seu trono. — Mas eu destruí sua boneca quando estava má, por assim dizer... Ádria pediu para que um dos seus servos trouxesse o brinquedo decapitado. — Lamento! — disse ela. Ester ao fitar Amélia sem cabeça sentiu seus olhos se encherem de lágrimas: — Amélia... — A pequena Amélia junto de meu filho e de meu falecido marido foram quem me salvaram! Perdoe-me se conseguir, Ester! Ester passou com o dorso da mão sobre os olhos para enxugar suas lágrimas e depois recebeu do súdito da princesa o brinquedo com a cabeça separada do corpo. Voltou sua atenção para Ádria e lhe disse: — Eu lhe perdoo — Ela levantou seus olhos azuis esverdeados ainda cheios de lágrima para a princesa, pouco antes de guardar Amélia em sua bolsa. — Eu matei o meu marido também, se isso lhe serve de consolo.


PAUL LAW — Não me serve de consolo! Não é com a sua dor que vou curar a minha. Ádria fitou Ester. O olho direito da princesa deixou escorrer um fio de lágrima, mas ela não mudou de semblante. — Usando das minhas atribuições de filha do Soberano, hei de lhe conceder um desejo. Pois então escolha bem o que vai pedir. Meu poder é vasto para realizar as coisas que me pedem, mas não para realizar o que eu mesma desejo! Ester fitou Maria e depois Daniel. Ambos pareciam saber o que a menina ia desejar. Então Ester disse: — O meu desejo é... — foi interrompida por Ádria: — Pense bem. Fortuna? Imortalidade? A boneca de volta? Voltar para casa? Como prova do meu arrependimento lhe concederei o que pedir sem repudiar! Escolher voltar para a casa seria a escolha óbvia, mas então: — O meu desejo é que o seu marido ressuscite. Ádria se espantou: — O teu desejo é o que posso realizar! Que amanhã pela manhã, viva o meu marido! Ester sorriu apesar do espanto de Daniel e Maria. — Tua alegria fará a minha... — disse ela por fim. Sobre a terra forrada de folhas secas e debaixo de árvores que lembravam rachaduras em paredes, Maria, Daniel e Ester trilhavam na direção apontada pelo mapa. Tinham deixado o vilarejo de Ádria fazia algumas horas e ninguém ousou tocar no assunto “o desejo de Ester”. A menina agora tinha permissão para trilhar por aquele caminho, pois Ádria tinha lhe concedido o direito. — O que é aquilo? — Ester colocou a mão em cima dos olhos. — Parece uma casinha! Tem uma mesinha do lado de fora. Daniel tentava decifrar também:

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ESTER — Parece que há um sujeito sentado ali! — Não vejo perigo de nos aproximarmos! — Maria se escondeu atrás do soldado. Conforme o trio chegava perto daquela casinha que preenchia o espaço entre duas árvores secas e grandes, puderam notar que se tratava de um bar e que ali estava um boêmio debruçado sobre a mesa. A garrafa estava caída e vazia ao passo que a superfície, molhada. — É um boêmio! — disse Daniel — Ora, que corja de gente! Ester pediu silêncio ao amigo. Talvez o sujeito acabasse acordando com tanto barulho e isso Ester não queria que acontecesse. — Vamos passar sem chateá-lo! É melhor que não acorde, não acham? Mas quando Ester passou ao lado do bêbado que dormia, reconheceu aqueles cabelos e seus olhos se encheram de alegria. Correu até a cadeira e chacoalhou o homem que dormia: — Baltazar! Oh meu Deus! Como quis reencontrá-lo! Acorde, por favor! Baltazar permanecia imóvel sobre a mesa que cheirava álcool. — Baltazar? — Ester mexeu no ombro do amigo. Daniel se aproximou e agarrou o pulso do homem beberrão. Depois deu a notícia: — Ele está morto, Ester! — Vamos esperar ele reviver! — Ester cruzou os braços. — Baltazar morre todos os dias e demos azar de encontrá-lo agora. É certo que os soldados do Soberano já passaram por aqui para matá-lo! Ester teve que explicar a Daniel e a Maria a história de Baltazar. Relutante, os dois concordaram em esperar o tal homem ressuscitar. Sentaram-se então em volta da mesinha em que Baltazar estava debruçado. Uma tarde de domingo Ester brincava com Amélia em seu quarto quando ouviu alguém lhe chamar pelo nome. Nunca tinha ouvido aquela voz e estranhou. A criança desceu as escadas e com a curiosidade aguçada

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PAUL LAW se dirigiu até a porta da sala para ver quem a chamava. Quando chegou, viu que a porta já tinha sido aberta pelo seu padrasto e que sua mãe via dali o que se sucedia: — Eu vou lhe ensinar uma boa lição! — a voz do seu padrasto se fazia furiosa. — Não! — o homem colocou a mão sobre a cabeça numa tentativa fútil de se defender. — Quero ver Ester! — Você vai ver é o meu murro! E o homem bêbado foi espancado ali na porta da casa de Ester. A menina viu tudo e mesmo sem saber de quem se tratava teve muita pena daquele homem. Sua mãe foi até lá e impediu que o padrasto continuasse com o espancamento. Trouxe-o para dentro de casa e fechou a porta deixando aquele homem ali estendido. — Ei, moça? O som trouxe Ester de volta de um sonho ruim. Era a voz de Baltazar deduziu ela ao mesmo tempo em que seu coração se alegrava: — Baltazar! — a menina abraçou o homenzarrão. — Que saudade! — Eu não sei quem é você! Mas não vou recusar o abraço de uma mulher tão bonita! — Essa foi boa! — Daniel falou depois de uma gargalhada! Ele estava falando mole assim como Maria: — Ester você dormiu! — disse a mulher falsa. — Nós ficamos aqui bebendo com o seu amigo que ressuscitou! — Eu posso ser o que essa guria quiser! — Baltazar esvaziou o copo que estava pela metade. — Eu sou Ester, não se lembra? A menina que ajudou você a não morrer um dia! — Eu bem me lembro dessa menininha, ah se me lembro! Mas você é uma mulher adulta e bem diferente dela!

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ESTER — Usei da minha infância para comprar o Mapa de Volta Para Casa! Por isso estou adulta. — Você parece muito com a minha mulher... ex-mulher ou sei lá o que — Baltazar coçou a cabeça. — Mas não sou, lamento! — Não se lamente! Pegue um copo e nos acompanhe! Minha garrafa nunca fica vazia olhe! — Baltazar mostrou a garrafa de bebida que estava sempre cheia. — Ela só esvazia se ficar deitada em cima da mesa! — Essa garrafa é muito boa! — observou Daniel. — Não quero beber isso! — Ester se zangou. — Vocês estão esquisitos... Mas antes que eles pudessem responder para menina, ouviu-se os passos de um soldado do Soberano. Era um homem forte de farda vermelha aberta no peito e de cabelos negros nem curtos e nem compridos. Seus olhos castanhos brilhavam de maldade e ele sorria com o canto dos lábios. Portava um fuzil no ombro e uma faca no cinto. Aproximou-se dos que estavam ali sentados e disse: — Boa tarde! — B... Boa tarde — disse baixinho, Baltazar. Mas Ester se encheu de alegria mais uma vez. Ela conhecia aquela pessoa! Pela primeira vez desde que havia se perdido de casa tinha encontrado alguém conhecido. Sem hesitar se levantou em velocidade para abraçar aquele homem de farda rubra e aberta: — Padrasto! Oh que alegria ver você! Por favor, me leve para a mamãe! Quero voltar para casa! O homem não retribuiu ao abraço: — Moça, se afaste! Não lhe conheço! — Ora, como não! Eu sou Ester! — Nunca ouvi falar de nenhuma Ester — disse ele, pouco antes de afastar a menina. — Ei garçom! Traga-me uma garrafa de cachaça! Dessas que não se acabam! — O homem gritou para a casinha ao lado.

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PAUL LAW Do casebre saiu um senhor baixinho, calvo, já velho e obeso. Portava uma garrafa similar a que Baltazar tinha e ofereceu ao homem do Soberano sob o olhar confuso de Ester que estava ao lado. — Desculpe, senhor! — disse o garçom com receio. — Mas não tenho mais mesas e nem cadeiras! — Pois então tire esses vermes das que você tem para que eu possa me sentar. — Vamos sair, pessoal! — Baltazar se levantou — Está maluco? — foi a vez de Daniel se erguer. — Está para nascer um cabra que vai me tirar de uma mesa de bar! — Pois e se este cabra já tiver nascido? — ameaçou o homem de farda vermelha. — É o momento de ele deixar de viver! — É bem valente homem de farda azul! Quero ver se atira tão bem... — Vocês do Soberano são todos iguais! Não são soldados de verdade... — Não o desafie! — pediu Baltazar. — Ele é muito forte! — Pois bem! Chega de papo e vamos para o que interessa! Proponho um duelo pela mesa! — Já está aceito! — Daniel respondeu ao homem de farda avermelhada. Ester ficou aflita.

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IX

M ORTE

— A

DE QUEM JÁ MORREU

chei que eu estava aposentada! — uma voz se fez de lugar algum. — Dizem que não é para eu levar

mais ninguém, que eu não preciso mais trabalhar e tudo mais! Mas cá estou a exercer minha função mais uma vez! Ester se assustou ao ouvir aquela voz que vinha de não-se-sabe-onde: — Quem está aí? — Ora! E ainda eu tenho que aturar perguntas! Onde já se viu uma coisa dessas! — Por favor, diga-me! — Quer bancar a educada? Pois então continue! Meu nome é Lady! Eu sou a Morte, se você quer saber — Então uma mulher portando um guardachuva se materializou. Ela vestia preto e tinha os cabelos de ébano em cachos longos. Sua pele era clarinha e os olhos de um negro vazio. Os lábios também pretos, ao passo que o queixo um tanto largo. Parecia vestida para evitar a chuva, toda coberta com calça de lona e jaqueta. Tinha botas de salto alto e portava um guarda-chuva negro. Suas vestes não condiziam com o padrão daquele mundo, mas lembravam muito à roupa de motoqueiros lá da terra de Ester. — Você é a morte? — a menina perdida indagou curiosa. — E quem mais você esperava? — ela colocou a mão na cintura. — Eu vim aqui por causa do duelo.


PAUL LAW — Eu já ouvi dizer que você tinha se vendido para o Soberano, é verdade? — Ora! Quem você acha que levou Jorge dos Virtuosos para o Outro Mundo? — Lady se aproximou de Ester. — Ele voltou de lá por causa de um desejo que Ádria concedeu a uma moça tonta que quis dar uma de bondosa! — Pois saiba que esta moça sou eu! — Ester cruzou os braços e franziu o cenho. — Eu imaginava isso... — Por que ninguém menciona sobre a sua aparência? Baltazar que morre todos os dias nunca disse nada — Maria Falsa quis saber. — Não lhe parece óbvio? Porque ninguém me vê! Eu apenas me mostrei agora porque a menina chatinha quis me conhecer! Mas chega de papo! Vamos ver o duelo porque tenho que levar o perdedor comigo! Lady se sentou no lugar de Daniel que agora estava em pé e de costas para o homem de farda avermelhada. Ester chamava-o de Padrasto, pois ele tinha a mesma feição do seu tutor. Contudo, ele não parecia ser a mesma pessoa que a moça conhecia, dado o fato de não reconhecê-la. Como não sabia como aquele soldado se chamava, ficou sendo Padrasto mesmo. Os duelistas contariam até dez e virariam para atirar, como mandava o Regulamento de Duelos de Arma de Fogo. Todo soldado conhecia tal lei. Ester e Maria estavam em pé, aflitas. A possibilidade de o amigo soldado vir a ser levado pela Dama do Fim era insuportável. — Andem logo com isso! — disse a Morte. — Eu quero ir embora logo — Olhou para o pulso como se estivesse vendo as horas, mas não tinha um relógio. Ali perto: — Está pronto? — sorriu Padrasto. — Um soldado está sempre pronto.

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ESTER — Então vamos começar. Eles começaram a contar afastando-se. O ritmo de ambos era o mesmo e a distância dos passos similar. Quando totalizassem dez passos, se virariam e atirariam. Daniel habilidoso sacou seu rifle que repousava em seu ombro e o engatilhou. Depois de mirar atirou com precisão, fazendo com que o chumbo acertasse o peito de Padrasto. O homenzarrão tombou de costas e Daniel sorriu: — E eu não sabia! — disse o amigo de Ester, cheio de si. Lady se levantou e conferiu a cena do duelo. Depois se sentou num suspiro. Ester e Maria ficaram sem entender, mas antes que pudessem perguntar ouviram mais um disparo e se voltaram para a cena do duelo. Para a surpresa de ambas, Padrasto agora estava de pé e havia atingido Daniel com um disparo. O amigo soldado segurava o peito com a mão agora rubra: — Mas eu tinha te matado — disse ele numa expressão dolorosa. — Covarde! — Havia sim! Mas o Soberano comprou a Morte! Não morremos mais! — Padrasto olhou para Lady que se mantinha sentada inexpressiva. — Isso é injusto! — protestou Ester ao se aproximar de Lady. — Você não pode fazer isso! Morte bocejou: — Menina, o que você entende de justiça? No final todos nós morremos mesmo! — Meu coração me diz o que é justo e isso não é! — Tá... Agora me dê licença para eu levar o seu amigo! — Não! — Vai ficar no caminho da Morte? — Se preciso sim! Pela justiça! Então para o pasmo de Lady e Ester, fantasmas começaram a se fazer em volta das duas, num circulo arrepiante. Ester já os tinha visto antes, na

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PAUL LAW oportunidade em que conheceu Daniel. Sabia que eram os outros soldados companheiros do jovem militar que haviam sido mortos pelos homens do Soberano. Um deles flutuou até Lady e lhe disse assim: — Ester está certa! O que não é justo não pode ser feito! — Ora, e agora mais essa! Fantasmas! E quem é você para me dizer o que fazer? — Eu sou o General Gabriel, Primeiro Comandante do Exército de Verdade! Morto em batalha pela salvaguarda do Mundo contra o Exército Vermelho do Soberano! — Ah, que bom que o senhor apareceu! — Ester falou aliviada! — Mas o que você espera que eu faça, general? — Lady abriu os braços. — Bem sabe que Soberano é dono de tudo! — O mesmo que fez ao homem de vermelho! Não leve Daniel! Exijo um duelo novo e que quem morrer seja levado, preservando a justiça! Soberano ainda não é dono da Justiça, é? — Eu vou fazer isso — suspirou a Morte. — Mesmo porque não fui justa. Que comece o duelo, mais uma vez! — ordenou a dama num semblante tedioso. O ferimento de Daniel foi fechado e ele passou a gozar de perfeita saúde. Voltou à posição inicial e contou os dez passos para atirar. Contudo, antes que pudesse agarrar seu rifle, o chumbo estourou seu peito e ele caiu de joelhos. Os fantasmas, Ester e Maria ficaram apavorados, ao mesmo tempo em que Padrasto gargalhou. — Agora foi justo! — Lady se levantou. Padrasto não parava de gargalhar e ninguém teve coragem de se aproximar da cena do duelo, exceto a Morte: — Uma felicidade! Peça-me e eu te atenderei — disse Lady com seriedade. Todas as pessoas antes de morrer têm o privilégio de sentirem-se feliz. Por isso que Lady sempre lhes concede uma felicidade final. Isso explica o porquê de todo mundo ter uma melhora pouco antes de falecer.

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ESTER — Eu — Daniel disse com dificuldade —, aprendi uma coisa muito importante com Ester... Quero, como última felicidade, que ela volte para casa. Todos se surpreenderam e Lady disse: — Isso não é um desejo possível! Eu não posso levar pessoas para um lugar que não seja o Mundo dos Mortos. Peça-me outra coisa que te deixaria feliz! — Então... quero que Ester volte a ser criança. — Sinta sua felicidade final — Lady abriu seu guarda-chuva e um raio caiu sobre a mulher de cabelos dourados cacheados. Depois choveu bruscamente e Ester passou a ser a criança que era no início. Até mesmo suas vestes voltaram a ser as mesmas. A menina banhada pela água torrencial chorou de soluçar. A criança agora se aproximou de Daniel que ainda estava de joelhos e o ouviu dizer: — É o mínimo que eu podia fazer, Ester! Eu sabia que você era uma criança, sempre soube! Seus anos foram usados para comprar o Mapa de Volta Para Casa, mas minha felicidade os devolveu a você! Minha alegria seria fazer algo de bom para você e agora posso morrer feliz! — Não, por favor! — a pequena Ester se lançou contra o peito do ferido Daniel — Não vá! Morte se aproximou dos dois e disse: — Então está feito! Eu declaro Daniel enfim morto! O soldado caiu de bruços mantendo o seu sorriso. — Ora, mas eu não morri? Por que ainda vejo vocês? — Daniel abriu os olhos, espantado. — Eu nem pensei nessa possibilidade... — Lady falou com a mão sobre o queixo, num ar pensativo. — Que possibilidade? — Quis saber a pequena Ester que estava afastando as lágrimas dos olhos e fitando o surpreso soldado que se

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PAUL LAW levantava. — Simples, minha cara menina! Daniel sempre esteve morto! Desde quando os soldados do Soberano mataram o seu exército! — Então, o que vivi desde aquela batalha — Daniel tentou entender —, inclusive conhecer Ester, foi tudo depois da minha morte? — Sim! Por isso, vou ter que desfazer o desejo que te realizei! Não pode valer, pelo bem da justiça! Eu já havia realizado um desejo seu, eu bem me lembro agora! Você havia me pedido para permanecer no Forte do seu exército! Daniel se aproximou da pequena Ester e a acariciou nos cabelos: — Sinto muito, Ester! Queria muito ter conhecido você antes de morrer ou ao menos fazer algo de bom para você... — Não se preocupe, Daniel! Você me fez muito bem! — a pequena menina abraçou a cintura do soldado. — Ainda bem que nos conhecemos! Lady interveio: — Pela justiça, eu desfaço a ultima felicidade de Daniel! KABOOOM Mas um raio trouxe Ester de volta para a idade adulta. A chuva ainda continuava no seu ritmo e o olhar da novamente mulher Ester era banhado por aquela água e suas lágrimas se misturavam: — Tem que ir mesmo? — disse ela. — Sim! Só não fui ainda porque não sabia que estava morto! Agora que sei, não posso ficar... Lady se aproximou e pegou a mão de Daniel: — Vamos? — Sim. Daniel abraçou Ester com afeto: — Sorte no seu caminho de volta! — E desapareceu ele, Lady e o Exército Fantasma, depois do clarão de um trovão.

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X

NA

B

VERDADE EU SOU O

S OBERANO

altazar estava estendido naquele chão árido e fazia cara de dor. Respirava com dificuldade, pois tinha os lábios cortados e nariz

quebrado. Padrasto o tinha espancado por divertimento próprio. Seu sangue escorria pelo rosto, se misturava ao seu suor e ele implorava para que o agressor parasse com aquilo. O dono do bar estava com medo e não saiu mais para visitar a mesa: — Cão! Eu já te disse para não vir aqui não disse? — falou o soldado de vermelho. — Desculpe... eu não virei mais! — respondeu-lhe Baltazar com dificuldade. — Pare, por favor! — Ester pediu em pranto ao se aproximar correndo. Padrasto deu um chute no estômago do caído Baltazar e se virou para a mulher: — Você quer que eu pare? — o soldado do Soberano sacou sua faca do cinto. — Eu posso parar e começar em você, o que acha? Ester deu um passo descalço para trás. — Eu vim aqui por um propósito, sabia? — ele a agarrou pelo braço. — E ele não é matar este bebum fedorento do seu pai! — Pai? — Ester parou de se debater. — Sim! Este lixo humano é seu pai! — disse o vilão referindo-se a Baltazar.


PAUL LAW — Mas eu nunca conheci o meu pai! Como posso saber que você fala a verdade? — Ester voltou a se debateu tentado se soltar do inimigo. — Ora, eu não sou seu padrasto? Quem você acha que eu espanquei daquela vez em nossa casa? — sorriu o homem mau. — Não! Meu padrasto sempre foi bom comigo! Você disse também que não me reconhecia! — E não reconheço mesmo! Mas eu sei que este lixo no chão é o seu pai! Eu sou detentor de todas as lembranças. Assumi esta aparência de seu padrasto porque me pareceu apropriada! Eu sou, na verdade, o SOBERANO. Quando esta palavra saiu da boca do soldado um raio cortou todo o céu e Ester estremeceu sentindo todos os pelos do seu corpo se arrepiarem. Maria Falsa saiu correndo juntamente com o Dono do Bar. A menina Ester notou suas pernas moles e Soberano a agarrou pelo pescoço ainda de faca em punho. Disse depois: — Eu sou dono de tudo! Você é uma intrusa em meu mundo e está me aborrecendo! Mas de hoje essa bagunça não vai passar! Eu vou te matar, menina! — sorriu o vilão. Seus olhos estavam vermelhos e seus lábios descoloridos mostravam dentes amarelos num sorriso. Soberano aproximou a faca do peito de Ester, mas então ouviu-se uma voz: — Afaste-se da minha filha, seu imundo! O vilão sorriu calmamente. Depois se virou ainda com o pescoço de Ester em sua mão: — Ora, o que temos aqui? O bêbado moribundo vai defender a filha? Vai ousar enfrentar o Soberano? — Pela minha filha eu seria capaz de lhe enfrentar, Soberano! — Você nem sabia que era o pai dela! Ouviu-me falar! Acredita que eu estou falando a verdade? Baltazar hesitou por um momento e Soberano continuou: — Vá tomar sua pinga! Deixe-me em paz...

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ESTER Soberano se voltou para Ester com malícia nos olhos rubros: — Vamos, dê-me a sua dor! Eu gosto de possuir as coisas e meu desejo é possuir a sua dor agora! — ele agarrou com força aquela faca. Quando foi desferir o ataque contra a menina, uma garrafa se estilhaçou contra o seu crânio, fazendo-o largar Ester. Baltazar havia atingido o vilão com sua garrafa de cachaça. — Corra, Ester! — disse ele numa careta. — Corra! — e disparou na frente. A garota perdida atendeu a recomendação de Baltazar e correu logo atrás dele! Estava dando tudo que suas pernas adultas tinham para se manter longe do Soberano. Ele causava-lhe muito medo! A chuva ainda caía forte quando a moça se lançou em meio à floresta. Esqueceu-se de seguir a rota do mapa e se emaranhou em qualquer direção. — Deus nos proteja do Soberano! — Deus não vai te ouvir, menina! — uma árvore disse para Ester. — Soberano é dono de tudo! — Ele quer a sua dor e é melhor que você dê o que ele pede! — disse outra! — Ester, você não tem escolha! — disseram as árvores em coro. Ester se afastou delas e abraçou Baltazar: — Estou com medo! Baltazar abraçou a moça com carinho. Ainda estava ferido dos ataques do inimigo, mas isso parecia insignificante naquele momento. No meio daquele abraço, o boêmio avistou uma caverna ao longe e sugeriu para que se escondessem por ali. Baltazar e Ester se dirigiram até o fundo daquela gruta, pois sabiam que com a escuridão da tempestade e com a profundeza da caverna, seria difícil para o inimigo encontrá-los. Quando estavam se sentindo mais protegidos, Baltazar indagou o que vinha pensando: — Ester, eu sou mesmo o seu pai?

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PAUL LAW Ester fitou-lhe nos olhos: — Você quer ser? Baltazar sorriu: — É o que eu mais desejo! — Então você é! Eu nunca tive um pai — abraçaram-se. O efeito do álcool tinha passado e Baltazar estava mais lúcido quando a chuva cessou. Tinha o nariz partido e algumas costelas quebradas, mas sabia que quando morresse, voltaria saudável para sentir toda a dor de uma nova morte. Sua vida era assim e não havia o que ser feito. Pelo menos agora ele tinha uma grande responsabilidade que era cuidar da sua filha Ester. Queria muito ajudá-la e pensando dessa maneira disse: — Precisamos seguir caminho! O mapa aponta para o local de onde você vem e onde você estará salva. — Mas pai, Soberano não é dono de tudo? Por certo é impossível alcançar o meu destino — ela abaixou a cabeça. — Lembra do que houve quando a Morte veio buscar quem perdesse o duelo? Soberano ainda não é dono da Justiça! Há uma esperança, filha! Ester sorriu: — Eu não tinha pensado nisso! Temos a Justiça como arma! — Isso mesmo! — levantaram-se do esconderijo. Segundo o Mapa de Volta Para Casa, Ester e Baltazar tinham desviado da rota por pouca coisa. No entanto, para voltar ao caminho correto tinham que passar pela cabana onde Daniel havia descoberto que estava morto. Teriam que passar por onde foram atacados pelo Soberano em pessoa. Ester estava muito preocupada com o paradeiro de Maria Falsa, sua amiga. Desde o mencionando incidente, a moça não tinha mais encontrado a amiga. E se o Soberano a tivesse atacado? Por falar no vilão, quem lhe assegurava que ele não estava por ali ainda? — Pai, mas e se o Soberano aparecer novamente? — Corremos! — disse Baltazar. — O mais que podemos! — acrescentou pouco depois.

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ESTER A conversa foi interrompida quando a dupla chegou até a cabana. Adentraram pela porta de carvalho carunchada e se depararam com o Dono do Bar encolhido e chorando. Estava tudo quebrado em seu rústico estabelecimento e ele parecia estar abalado emocionalmente: — Alô — disse Ester —, está tudo bem? — Ele esteve aqui! Ele veio! Eu não consigo parar de tremer! Ester imaginou de quem o homem falava, mas preferiu confirmar: — Ele quem? — Você sabe! — O Soberano? — Shiiiiiiiiiiu!!! Não o chame! Se ele resolver voltar? — O que ele fez a você? Onde está Maria, minha amiga? — Ele não fez nada a mim. Quanto a sua amiga, perdi-a de vista quando corremos para fugir dele. — Então por que teme tanto quem nada te fez? — Ora, quem nada me fez pode fazer tudo comigo! Ester achou aquela resposta esquisita e antes que pudesse indagar sobre o assunto, seu novo pai disse: — Eu sempre vim aqui beber minha pinga, você sabe Dono do Bar! E sempre este Soldado de farda avermelhava vinha aqui me espancar! Eu não sabia que ele era o Soberano... — E não é! Mas o Soberano é dono de tudo, inclusive dos corpos das pessoas que lhe são súditas! — Então o soldado estava possuído pelo Soberano? — Sim! O Verdadeiro rosto do Senhor de Tudo é um segredo! Ester interveio: — Ele assumiu a forma de meu padrasto. Disse-me que fez isso porque era dono das minhas lembranças! — Eu não sei bem de onde vem os Soldados do Soberano! Mas sei que eles são perigosos! Tenho muito medo!

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PAUL LAW — Está bem, Dono do Bar! — Baltazar bateu com a mão no balcão partido. — Vamos seguir nosso caminho! Ficaremos atentos... — Não volte mais aqui, Baltazar! Soberano pode estar atrás de você ou dessa mulher que está contigo! — Não voltarei!

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XI

A O RDEM

O

DOS

V IRTUOSOS

SALVA

E STER

s tambores ecoaram fúnebres entre as árvores, fazendo com que os pássaros deixassem seus ninhos numa bela revoada.

Ester se virou atônita e agarrou a mão de seu pai. Ela sabia que eram os Soldados do Soberano que vinham para matar Baltazar, aquele que morria todos os dias. — Corra, são eles! — disse a garota. Baltazar acelerou o passo e seguiu Ester. Depois de se emaranhar em meio aos cipós e folhas daquela floresta, a dupla se deparou com uma belíssima plantação de girassóis. Logo atrás vinha o Exército Vermelho do Soberano tamborilando uma canção de guerra: — Estamos em campo aberto! Será muito fácil me atingirem com o rifle, Ester! É melhor que você siga e eu encare o meu destino! — Não, pai! Vamos conseguir! Mas antes que pudessem pensar em um modo de escapar, ao som de um tiro, Baltazar se contorceu. Ester parou de correr após isso e constatou que seu pai tinha ferimento de bala nas costas. O sangue de Baltazar começou a manchar de rubro sua camisa xadrez e Ester com lágrimas nos olhos tentou arrastá-lo: — Vamos! — disse a menina quase chorando. — Deixe-me, filha! Corra! Salve-se! Depois — ele fez uma careta de dor —, quando eu estiver bem morto você volta! Espere eu ressuscitar para seguirmos caminho! Tenho medo de deixá-la!


PAUL LAW A este tempo a marcha dos soldados já se ouvia bem próxima e notava-se que eles feriam os girassóis com seus coturnos empoeirados. Pararam há alguns metros de Baltazar e Ester que ainda se esforçavam para fugir. Prepararam os rifles. Baltazar abraçou a filha com toda a força na intenção de usar seu próprio corpo como escudo e salvá-la. Depois do tamborilado fúnebre e dos clicks, veio a rajada de disparos; em seguida, o silêncio. — Pai? Pai? — Ester chacoalhou o corpo de Baltazar que estava debruçado sobre ela. — Vamos continuar! Não houve resposta e Ester viu um fio rubro de sangue escorrer pelo seu braço quando estava mexendo com o corpo do pai. Então uma dor forte se fez em seu peito e ela entendeu o que tinha lhe acontecido: — Oh, Deus! Eu fui atingida! — notou que seu vestido acinzentado estava agora úmido no lado do coração. A moça sentiu-se enjoada com aquela visão e abraçada ao corpo do pai que jazia sobre ela, faltou-lhe os sentidos. Boi, boi, boi... Boi da Cara Preta. Leve essa menina que tem medo de careta. Essa era a canção preferida de Ester. Ela sentia medo do Boi da Cara Preta e não queria ser levada por ele. Bárbara, mãe da menina achava tudo aquilo muito engraçado e sempre a ameaçava dizendo: — Se não dormir agora, o Boi da Cara Preta vai vir pegar você — a criança sempre obedecia depois da ameaça. — Pai! — Ester acordou num susto — Pai, vamos! Temos que continuar correndo, eles vão nos matar!

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ESTER — Quietinha aí, menina! — uma voz suave se fez depois do som da água caindo em um balde. Ester não acreditou no que seus olhos estavam lhe mostrando. Aquela mulher bonita de cabelos amarrados e dourados era sua mãe! Tinha o olhar cansado e riscado por algumas rugas. Seus olhos azuis fitavam o pano encharcado e avermelhado. — Mamãe! Deus, que saudade! — Eu não sou sua mãe! — a mulher ralhou, mas nem olhou para Ester. — Estou cuidando do seu ferimento. Ester se sentou na pele de urso que lhe servia de cama e abraçou quem lhe fazia curativo. Estavam em uma tenda acinzentada e armada sobre tocos de cedro. — Mamãe! — Afaste-se, por favor — pediu a senhora. — Você ainda precisa descansar! Veja — a mulher pegou Amélia agora com a cabeça em cima do pescoço —, eu costurei sua boneca enquanto você dormia! Ester se encheu de alegria e levou Amélia contra o peito num abraço: — Ai, Ester! Assim você me machuca! — Amélia! Você falou comigo! — Claro! Eu sempre falo com você não se lembra? — Estava sem falar comigo até agora! Foi então que Ester fitou suas mãos que seguravam Amélia e percebeu que estavam pequenas. Deduziu, por conseguinte, que tinha se tornado criança novamente. Alguma coisa tinha acontecido e a menina não sabia bem o que era. Intrigada, perguntou para quem achava ser sua mãe: — Mamãe, onde está aquele que estava comigo? — Não me chame de mãe, menininha! Ele estava morto, mas estranhamente pela manhã passou a viver novamente! Eu já tinha ouvido falar dele: o homem que morre todos os dias. — Ele é meu pai! O que aconteceu comigo? Por que deixei de ser adulta? Ester fitou seus pés pequenos.

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PAUL LAW — Bem, você levou um tiro no coração e foi salva pelos Cavaleiros da Ordem dos Virtuosos. Ela fitou a abertura da tenda para ver se vinha alguém: — Sou Curandeira! Eu tive que operar você para que sobrevivesse! Na operação amputei de você vários anos de vida! Por isso você voltou a ser criança! — Amputou meus anos de vida? — Sim! Seu coração adulto foi ferido mortalmente! Por sorte sei tirar anos das pessoas e fazê-las voltar em idade que ainda não tinham se ferido! Foi esse procedimento que realizei em você! Ester já estava mais que acostumada àquelas coisas estranhas que aconteciam por ali. Desde que se perdera de casa, havia vivido por diversas aventuras nada convencionais e tudo parecia mesmo possível. — Eu faço parte da Ordem dos Virtuosos — continuou a mulher — Estamos sempre viajando e tentando salvar as pessoas da tirania do Soberano! Amélia interveio: — Eu conheci o Jorge! Ele disse que fazia parte desse negócio aí! — Exato! Sir Jorge é um Cavaleiro da Ordem dos Virtuosos e por intermédio dele foi que nós descobrimos que vocês precisavam de ajuda! Um mensageiro do reino dele nos avisou e fomos ao encontro de vocês. A Ordem dos Virtuosos surgiu há muito tempo e tem como objetivo proteger as pessoas contra as más intenções dos reis. Uma entidade que antes era secreta, sem vinculações políticas e de organização própria a serviço do bem. Dois anos depois que o Exército de Verdade foi destruído pelo Soberano, foi que o Conselho Virtuoso tomou a decisão de colocar os Cavaleiros Virtuosos de volta a ação, com a finalidade de substituir os antigos soldados. — Daniel, um amigo meu era do Exército de Verdade! — Ester a interrompeu. — Pode ser, mas se não me engano faz dois anos que o Exército de

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ESTER Verdade foi dizimado pelo Soberano. Por isso, os Cavaleiros da Ordem dos Virtuosos voltaram a atuar como força policial no mundo. É fato que várias tropas virtuosas já foram destruídas pelos soldados do inimigo, mas ainda temos esperanças! Ester se ajoelhou em cima da pele de urso e fez uma careta, seu peito cheirava a ervas: — Mamãe, eu preciso ir para casa! Soberano está atrás de mim e eu não posso tardar a chegar ao meu destino! — Você ainda está ferida, menininha! Não pode seguir viagem! E quantas vezes eu já te disse para não me chamar de mãe? Então veio um pensamento ruim à mente de Ester: “Se o padrasto dela era o Soberano, pois era detentor de todas as lembranças, o que impedia sua mãe de ser o vilão agora?” A criança se afastou: — Você é o Soberano então! Como da vez que ele me apareceu como Padrasto! — Do que está falando? Eu te salvei! — Afaste-se de mim! — Ester saiu correndo da tenda. — Papai! Ao ganhar o campo de girassóis agora cercado por cavalos e outras tendas, a menina se deparou com Baltazar bebendo em uma garrafa similar à que tinha quebrado nas fuças do Soberano. O boêmio ao fitar sua filha lhe disse: — Ester! Que bom que acordou! — Papai, o Soberano! Ele está aqui; está naquela tenda! — Não está! Aquela mulher é uma Curandeira! Ela que salvou a sua vida, querida! — Soberano pode ser qualquer pessoa, não se lembra? — Ah sim, isso eu me lembro — sorriu Baltazar —, mas, não acho que ele seria um Cavaleiro Virtuoso! — Por que não? Seu pai lhe explicou: — Para ser um Cavaleiro Virtuoso é preciso possuir um tesouro dentro

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PAUL LAW de si! Este tesouro chama-se Virtude! A Curandeira, por exemplo, é caridosa! Aquilo era muito confuso para a pequena Ester: — Então porque o Soberano é mau que ele não pode ser um Cavaleiro da Ordem dos Virtuosos? — De certo modo... — É isso mesmo! — uma voz grossa surpreendeu Ester. — Saudações! Meu irmão mandou uma longa carta descrevendo a boneca Amélia e sua caridosa dona: Ester. O homem alto e forte saiu de uma tenda que se encontrava bem perto de onde a menina e seu pai conversavam, vestido com armadura completa e balançando a espada que vinha presa em sua cintura. Era um jovem sadio; tinha o olhar castanho e o rosto desprovido de barba, bem limpo. Suas sobrancelhas eram grossas, mas seus cabelos curtos. O queixo largo e os lábios finos. — Olá, Amélia! É um honra conhecê-la! — continuou ele. — Oi! Mas quem é você? — a boneca pulou do colo de sua dona. — Sou Sir Adam líder da Tropa de Prata dos Cavaleiros da Ordem dos Virtuosos! Meu irmão mandou-me um mensageiro sobre você e sua Ester como já disse. — Essa Ordem dos Virtuosos é famosa — cochichou Ester no ouvido da sua boneca. — e parecem gostar muito de você, Amélia! — Claro que gostam! Eu salvei o Jorge da prisão! — Amélia bateu com sua mão de louça no peito. — Meu irmão tem especial afeto por sua pessoa, Amélia! Também conserva infinita gratidão por Ester que gastou seu pedido para que ele voltasse à vida. Como forma de retribuição ele me pediu para que guiasse vocês! Pediu para que a minha tropa lhes protegesse! — Que ótimo! — Ester se alegrou. — Terei ajuda, enfim, para chegar até minha casa! — Faremos de tudo para que seu desejo se realize, milady!

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ESTER De tardezinha, quando o sol tocava as águas do riacho com seu alaranjado, foi que os cavaleiros estavam prontos para partir junto de Ester e sua boneca. Totalizavam treze pessoas, todas muito bem armadas e de armaduras completas. Ester reparou que um dos soldados segurava uma bandeira rubra que tinha o símbolo de uma águia branca ao centro. Deduziu ser aquele o símbolo deles. Baltazar mantinha-se muito feliz, sempre com uma garrafa nas mãos e foi na garupa do cavalo da Curandeira, quem Ester tinha por mãe. — Repare, Amélia — disse a menina para sua boneca —, papai parece muito feliz com mamãe. — Isso é bem verdade, Ester! Mas precisamos tomar muito cuidado, pois aqui nunca sabemos ao certo o que está acontecendo! — Tenho medo dessas esquisitices! Minha mãe não me reconhece e meu pai tem que morrer todos os dias. É como se eles estivessem comigo, mas não estivessem não sei se você me entende. — Eu te entendo, Ester — disse a boneca. — Tenho certeza que tudo vai voltar ao normal quando voltarmos para casa! — É a minha esperança, Amélia! Os cavalos seguiam pelo caminho que o Mapa de Volta Para Casa apontava sob o comando de Sir Adan que o portava e que carregava em sua garupa as tagarelantes Ester e Amélia.

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XII

A M URALHA

E

N INA

— U

ma muralha! — Ester colocou sua pequena mão sobre os olhos. — Que enorme! Toca o céu!

A menina tinha mesmo razão. Era um muro muito alto e dourado que fechava toda a redondeza. Tinha estranhos desenhos que lembravam muito retratos da própria criança e sua boneca. As imagens espalhadas pelo muro em desenhos coloridos e caricatos retratavam toda a aventura que as duas tinham vivido até aquele momento. Havia uma figura de Ester comprando o mapa; outra da menina no calabouço do palácio de Ádria e uma dela junto de Baltazar sendo atacada pelos soldados do Soberano. As de Amélia retratavam a boneca e seu amigo Feto adentrando no palácio de Ádria; outra dela sendo decapitada pela princesa e uma terceira que mostrava Amélia sendo costurada pela Curandeira. Ester prestou mais atenção nessa última porque não tinha visto sua boneca ser consertada. Sir Adan retirou o elmo e focalizou seus olhos no mapa: — Estranho. Aqui no mapa não está mencionado nada sobre esta muralha. Diz aqui que depois deste ponto já estaríamos no Cemitério! — Comandante, creio que Soberano colocou este obstáculo no caminho da menina! Repare nos desenhos. Eles são de Ester e sua boneca — opinou Curandeira. — Bem observado! — Adan assentiu. — Mas precisamos descobrir um modo de atravessar!


PAUL LAW Não havia como transpassar aquela muralha. Sua extensão era de todo o horizonte e ainda por cima não havia como ser escalada dada a altura. Adan pensou em derrubá-la. Talvez fosse possível quebrar parte dela se ele improvisasse um tronco grande para servir-lhe de soquete. Então, quando o Cavaleiro da Ordem dos Virtuosos estava para ordenar aos outros que providenciassem tal ferramenta, surgiu entre as folhas secas daquele solo um ser minúsculo e muito apressado. — Ninguém vai me pegar! — dizia ela numa voz aguda. — Pois eu sei correr e sei pular com as minhas perninhas! Era uma minúscula menina de cabelos prateados e brilhantes, feitos de cachos que escorriam até o chão. Sua pequena roupa, um vestidinho feito de fios de grama tapava-lhe o corpo dourado. Logo atrás dela vinham várias pessoas que pareciam irritadas. — Essa praga! Destruiu a minha cabana! — reclamou um! — Acabou com minha plantação! — disse outro! Um terceiro sugeriu: — Vamos matá-la! Ester ficou aflita! Sabia que a minúscula menina ia se deparar com a muralha e que os que vinham para agarrá-la, enfim conseguiriam rendê-la. Temendo esse acontecimento a menina bradou: — Salvem a fadinha, Cavaleiros! Aqueles que lhe perseguem, querem matá-la e não há como ela se salvar sozinha! Os soldados sacaram suas espadas e se puseram entre a fadinha (como Ester tinha batizado aquela pequenina) e os que vinham para pegá-la. — Parados, algozes! — falou Adan. — Ninguém vai matar esse serzinho! — Você não conhece uma Nina? — falou um homem moreno de camisa aberta no peito. — É uma praga que destrói tudo! Adan ficou confuso: — Como um ser deste tamanho pode destruir tudo? Ela é tão bonitinha!

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ESTER — Não diga isso! — reclamou aquele homem. — Agora a Nina vai crescer! Para provar que Adan não devia mesmo elogiar a fadinha, ela começou a mudar de tamanho. Instantaneamente, cresceu até adquirir o tamanho de uma mulher comum, mantendo seu incomum vestido de fios de grama. — Obrigada! — a fada abraçou Adan com carinho. — Seu elogio me fez crescer! O soldado virtuoso pôde perceber que a Nina era uma mulher muito bela, agora abraçado a ela. Tinha os olhos dourados e brilhantes, além de uma pele também brilhante e perfeita que cheirava a rosas. — Mas você é tão bonita! Depois deste elogio Nina cresceu mais e ficou do tamanho de uma goiabeira adulta: — Obrigada! — ela fez uma reverência ao guerreiro e se voltou para aqueles que lhe perseguia. — Vão embora daqui! — ameaçou chutá-los com suas pernas enormes. Eles correram, mas não antes de avisar: — Cometeu o maior erro da sua vida, Cavaleiro! Adan guardou sua espada assim como seus companheiros virtuosos e Ester se aproximou da grande Nina para cumprimentá-la: — Olá! — Olá, criança! Eu sou Nina! — Eu sou Ester! — Muito prazer em conhecê-la, Ester! — O prazer é todo meu! — respondeu-lhe a menina. Amélia que esteve silente durante todo o tempo desde o surgimento de Nina, andara pensando. Se Nina podia crescer, ela seria de extrema importância para ajudar Ester e todos os outros a passar pela muralha que se estendia no caminho; ela poderia crescer tanto a ponto de passar por cima do muro e levar consigo todos os que precisavam passar. Então, perguntou para a enorme de cachos prateados:

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PAUL LAW — Você poderia nos ajudar a passar pela muralha? — Hã? — ela ficou surpresa. — Sim! Já que você pode aumentar de tamanho, não poderia nos passar do outro lado do muro? — Vocês que me ajudaram quando estive pequenina agora me concedem a chance de retribuir! Ficarei muito feliz em ajudá-los! — Ótimo! — vibrou a boneca. — Então cresça! — Não posso crescer quando desejo! Nós, as Ninas, crescemos toda vez que alguém nos faz um elogio! Ester que adorava fazer elogios entrou na conversa: — Eu vou fazer elogios para que você cresça! Hum... — ela pensou por um segundo. — Gosto muito de você, Nina! Você é uma criatura fantástica! A giganta de mechas de prata aumentou de tamanho por duas vezes e adquiriu a altura de um prédio de dez andares. — Uau! — admirou-se Ester — Você está enorme! — Obrigada! — A voz de Nina agora parecia vinda de um Trio Elétrico. — Acho que já consigo pular a muralha! Venha Ester, suba em minha mão e te levarei do outro lado! Depois venho buscar os outros! A menina perdida fez o que Nina tinha sugerido, mas não antes de agarrar Amélia nos braços. As duas ficaram na palma da mão dourada da giganta e admiraram a floresta lá do alto, enquanto as pernas enormes de Nina transpassavam a muralha como se ela fosse uma mureta. — Aqui estamos! Do outro lado do muro! — sorriu Nina fitando a palma da sua mão com seu olho brilhante. Ester riu para sua nova amiga esquisita e depois fitou aquele ambiente esquisito. Névoas contornavam os troncos escuros e as árvores pareciam feitas de pedra. Tudo era acinzentado e pelo fato de a mata ser muito fechada, o sol não tinha como iluminar o ambiente. — Que lugar feio — disse a menina. — Parece tão triste... Nina comentou:

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ESTER — Estamos no Cemitério! Aqui é o local onde a Morte reside e onde são mantidos todos os corpos sem vida do mundo. Ester assentiu com a cabeça fazendo de conta que entendera tudo para encurtar conversa: — Nina, você poderia me colocar no chão, por favor? Depois poderia trazer os outros até este lado do muro? — Oh, Ester! — a giganta sorriu. — Você é tão ingênua! Ester compreendeu menos ainda do que quando Nina tinha lhe explicado sobre o Cemitério: — Por quê? — Porque eu não vim aqui para te ajudar! — Nina, o que você está querendo dizer? — Não lhe parece simples? Eu sou serva do Soberano! Ele me mandou acabar com você! — Não é possível! Você me enganou! Como pôde ser tão falsa? Neste momento Nina diminuiu “cinco andares” de tamanho, agora ficando da altura de um prédio menor. — Não importa! Agora colocarei um fim na história de Ester e sua boneca! — Nina ergueu seu braço direito para arremessar quem carregava. — Malvada! — Ester gritou essa palavra e Nina diminuiu mais uma vez de tamanho, voltando para a estatura de uma goiabeira adulta. No processo de diminuição de altura, a vilã acabou derrubando Ester e Amélia. — Mas o quê? — reclamou. — Ainda tenho tamanho suficiente para acabar com você e sua boneca! — Socorro! — berrou a menina perdida, se levantando com pressa para correr. —

MILADY,

O

QUE

ESTÁ

ACONTECENDO?

ESTOU

PROVIDENCIANDO UM SOQUETE PARA TENTAR TRANSPOR O MURO! — Adan gritou do outro lado, preocupado depois de ouvir os berros de Ester. Amélia se levantou pouco depois de sua dona e correu junto com ela:

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PAUL LAW — Ester, xingue novamente a Nina, pois ela diminui de tamanho toda vez que é ofendida! — a boneca inteligente tinha deduzido rápido. — É verdade! — Ester parou de correr. Nina a alcançou e disse: — Desistiu de fugir? Melhor para mim! — Você é detestável, cruel e mentirosa! — Ester mostrou-lhe a língua. — Hahahahahahahahahahaha! Isso não vai funcionar, menina! Esqueci-me de avisar: para que eu diminua de tamanho a pessoa que me fez o elogio é quem deve fazer a ofensa! Você me fez dois elogios e já me ofendeu por duas vezes, portanto não pode mais me fazer diminuir! — Oh, Deus! — Ester deu um passo para trás.

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XIII

N ÃO

POSSO ANDAR , MAS POSSO SONHAR

— É

o seu fim, Ester! — disse Nina. A este tempo a inimiga que crescia a cada elogio,

estava bem próxima de Ester e se preparava para atacá-la. — Deus me proteja! — Ester fechou os olhos para não ver seu destino. Mas então, como se o Deus da menina estivesse de prontidão, ouviu-se um estrondo que vinha do outro lado da muralha. Os Cavaleiros da Ordem dos Virtuosos estavam usando de um poderoso tronco de cedro para abalar o muro que os separavam de Ester e Amélia. O muro não tardou a trincar e depois a se partir em pedaços grandes. As rochas de formas variadas golpearam o solo num pequeno terremoto acompanhado da poeira que se formou e encobriu todo aquele ambiente. Quando a poeira se dissipou revelou Adan em seu alazão branco á frente dos outros doze cavaleiros: — Arqueiros, armem os arcos! — ordenou. Os cavaleiros arqueiros tomaram a frente do bando e sacaram suas flechas para atingir o inimigo. A saraivada de flechas que se seguiu, atingiu todo o corpo de Nina, mas não a fez cair, nem mesmo voltar-se contra os atiradores. Sir Adan, ao fitar Nina, depois do ataque de seus cavaleiros, sem querer, acabou por fazer mais um elogio: — Como ela é forte! — Adan, não! — em coro gritaram Ester e Amélia.


PAUL LAW Mas era tarde demais, pois Nina aumentou de tamanho mais uma vez e ficou da altura de um prédio de cinco andares: — Obrigada pelo elogio, Cavaleiro! — agradeceu ela retirando as flechas agora pequenas de seu corpanzil. — Retribuirei, matando Ester! O alazão branco de Adan disparou rumo a gigante, seguido dos outros Cavaleiros Virtuosos em seus cavalos: — Não se pudermos evitar! — Mas não podem! — Nina envolveu seus dedos em torno do corpinho de Ester e a levantou ao céu. Amélia que ficou no chão berrou para Adan: — Adan, rápido, xingue Nina! — O quê? — o cavaleiro não pôde compreender. Nina, por sua vez, se apressou já sabendo que a qualquer momento diminuiria de tamanho. Levantou Ester com seu braço enorme e preparou para arremessá-la ao chão com toda a sua força: — Se você que fez os elogios a Nina, ofendê-la — Amélia chamou a atenção do Virtuoso para si mais uma vez —, ela diminuirá de tamanho! Essa criatura funciona dessa maneira! Adan concordou balançando o elmo de prata: — Criatura deprimente, petulante e bastarda! As ofensas que totalizaram três fizeram com que Nina ficasse do exato tamanho de quando ela apareceu pela primeira vez. Só que como ela segurava Ester quando estava gigante, passando a ficar minúscula instantaneamente, derrubou a menina lá de cima. — AAAAAAAAAAAHHHHHH!!! — Ester gritou do alto, enquanto seu rosto era cortado pelo vento e seu corpo pequeno despencava. Fechou os olhos para não ver quando atingiria o chão, mas a dor que se sucedeu foi tamanha que ela os abriu novamente. A garotinha perdida atingiu com violência o chão de folhas secas daquele local e faltou-lhe o ar. Suas pernas tinham batido com tanta força que se partiram em diversos pedaços e Ester chorou de dor como nunca havia feito antes.

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ESTER Nina caiu ao lado de Ester, mas como agora era um serzinho, o vento amenizou consideravelmente sua queda. Satisfeita se aproximou da ferida Ester: — Eu consegui, Ester! Impedi você de seguir viagem! Mas a vilã foi poupada de continuar seu diálogo pela mão de aço de Sir Adan que a agarrara: — Você não vai mais nos causar problemas! — enfiou-a dentro de um saquinho de couro e amarrou com força. — Curandeira! Rápido, ajude Ester! — Sim senhor! — disse a Virtuosa pouco antes de descer do seu cavalo e se dirigir até o local onde Ester agonizava. Baltazar que ficou muito preocupado seguiu a mulher do bando dos Virtuosos. — Ela está bem? — disse ele. — Não sei ainda! Vou dar a ela um remédio para que desmaie e pare de sentir dor. Depois que Curandeira fez o que tinha dito que faria, o homem que morria todo dia tomou Ester nos braços e viu que as perninhas de sua filha estavam moles demais. Não precisou dos dons médicos da Curandeira para saber que estavam quebradas em vários lugares. Decidiu levá-la para uma superfície

onde

pudesse

ser

examinada

detalhadamente.

Amélia

acompanhou a caminhada de Baltazar e Curandeira até perto de uma lápide. Quando Adan se aproximou, teve tempo de ouvir a ideia da Curandeira em colocar Ester em cima da lápide para ser medicada. — Deixe-a sobre a superfície do túmulo — pediu a mulher Virtuosa. — Preciso examiná-la. — Oh, Deus! Se acontecer algo com a minha filha! — Acalme-se! — Curandeira colocou a cabeça sobre o peito de Ester. — Ela vai sobreviver!

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PAUL LAW Ester abriu os olhos vagarosamente, trazida de volta do inconsciente pelo diálogo de seu pai e sua mãe. Piscou-os por algumas vezes e depois disse: — Mamãe? Que bom que a senhora me salvou mais uma vez! Curandeira sorriu: — Acho que tivemos sorte de quebrar o muro antes que Nina lhe fizesse mais mal. — É verdade! — Ester tentou movimentar seu pé, mas não conseguiu. — Deus, minhas pernas! Elas não se movimentam! A médica Virtuosa procurou explicar: — Suas pernas sofreram danos com a queda. — Mas mamãe, por que você não curou minhas perninhas? — Usei de ervas do campo para fazer um remédio que supre a dor. Mas infelizmente não disponho de nada que possa reconstruir seus ossos partidos. — Não! Estou sem movimento nas pernas! Então as palavras de Nina afloraram na mente da menina: “Eu consegui, Ester! Impedi você de seguir viagem!”. Uma lágrima brotou do esverdeado olhar da garotinha. O desespero começou a tomar conta da criança que não conseguia mais andar: — Mamãe! Salve-me! Socorro! — Acalme-se, filha. Curandeira havia dito aquelas palavras para amenizar o sofrimento da garotinha; tinha chamado Ester de filha apenas por carinho, mas a menina erroneamente concluiu que sua mãe estava se recordando dela. — Mamãe? Você se lembrou de mim? Chamou-me de filha! A médica Virtuosa percebeu que se dissesse sim, talvez Ester se sentisse melhor. Então, depois de alguns segundos silente, disse: — Estou me lembrando! — Ah que bom!

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ESTER — A mamãe está aqui, querida! Vou ficar contigo até que se resolva isto! — Promete? — Eu prometo! Foram as últimas palavras que Ester pôde ouvir. Sem perceber ela havia inalado o pólen de uma flor azul que Curandeira tinha nas mãos. Aquela planta tinha o poder de fazer as pessoas dormirem e havia sido utilizada para amenizar o desespero da garotinha enquanto se pensava num modo de fazê-la voltar a andar. — O que faremos? — Adan se aproximou com o elmo em baixo do braço — Fomos descuidados! Jorge me mataria se soubesse disso... — Soberano é dono de tudo, Adan! — ponderou a mulher — Nós não tínhamos como fazer nada. — Temos que curá-la! Levá-la de volta para casa, como prometemos ao meu irmão! — Há uma maneira! — suspirou a mulher, como se lembrasse de algo improvável — Há muito tempo havia um mercador muito famoso, cujo nome era Zeca. O Mascate, como era conhecido, vendia de tudo! Ele tinha um tônico revitalizante, que devolvia aos aleijados o movimento das pernas. Bastava tomá-lo e os ossos partidos ou mal desenvolvidos ficavam bons! Este é o remédio de que Ester precisa para voltar a andar. — Mas como vamos encontrar este tal Mascate? — Aí é que meus poderes medicinais vão ajudar! Tenho uma poção mágica que vai fazer com que quem a tomar possa pedir o tônico em sonhos para o Mascate! — Como é? — Adan ficou confuso. — Quem tomar minha poção vai visitar os sonhos de Zeca e poderá explicar a situação a ele! Poderá marcar um local para buscar o tônico, entendeu?

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PAUL LAW — Estou entendendo — o cavaleiro colocou a mão no queixo. — Mas quem irá? E o que nos garante que este tal Mascate ainda vive? — Melhor seria se fosse alguém que ele conhecesse. Ele vive não se preocupe, pois Ester me disse que comprou o Mapa de Volta para Casa do próprio Mascate! — Por certo seria bom que ela mesma pedisse este tônico ao Zeca então! — É, acho que seria o mais certo. Quando a menina acordar mais calma, eu vou explicar tudo isso a ela. Os olhinhos esmeraldas de Ester focalizavam com toda a atenção do mundo os lábios da Curandeira. Ela lhe explicou tudo sobre a poção e a chance de voltar a andar, caso encontrasse Zeca nos sonhos. Ester entendeu logo: — Mamãe, então visitarei os sonhos de Zeca e pedirei a ele o tônico? — Isso! Mas antes você deve tomar minha poção mágica para adentrar nos sonhos do Mascate, entendeu? Ester assentiu. Ali deitada sobre a lápide escurecida de sabe-se-láquem, a menina abriu a boca para tomar a poção. A Curandeira destampou seu pequeno frasco dourado de tampa pérola e despejou um líquido esverdeado na boca da menina. Já era noite, quando Ester tomou a poção e não tardou para que suas pálpebras ficassem pesadas demais e ela adormecesse mais uma vez. Afinal, o que uma menininha inválida poderia fazer? Ela adormeceu e sonhou. Mas o sonho não era dela e sim de Zeca, o Mascate. Havia muitas pessoas, onde Ester tinha aparecido; um aglomerado de pernas que fizeram com que a menina demorasse muito para reconhecer onde estava. Foi então que notou tratar-se de algum tipo de festejo. Havia um palco distante todo iluminado pelo fogo das tochas. — Onde será que estou? — disse para si mesma. Mas sua própria voz era abafada por tantas outras conversas que se

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ESTER faziam por ali. Nos sonhos, a menina não estava inválida e podendo se locomover com habitualidade saiu em meio às pernas a procura de Zeca. Avistou pernas de ferro e concluiu logo de quem se tratava. — Adan! Sir Adan! — gritou a menina, mas não pôde ser ouvida. Notou que em volta do Cavaleiro Virtuoso, estava sua mãe e seu pai, além de todos os outros guerreiros da virtude. Ester resolveu ir até lá, mas em seu caminho surgiu quem procurava. — Olá, Ester — disse um menino de cabelos bem penteados e olhar escurecido. — Não sabe quem sou eu? — Acho que sei! — sorriu a menina. — Você é o Zeca, a pessoa que busco! — Sou o Zeca sim! Estou criança por haver adquirido os seus anos de juventude, lembra? Quando te vendi o Mapa de Volta para Casa? Ester abraçou o menino da sua idade com alegria: — Que felicidade rever você! — Igualmente! — ele retribuiu o abraço com um aperto. — Diga, mas como você voltou a ser criança? — Eu tive os meus anos amputados depois que levei um tiro! Fui salva pela minha mãe! — Ah... Vejo que viveu grandes aventuras desde a última vez que nos vimos não é mesmo? — Sim! Muitas! Mas ainda não pude voltar para minha casa! Diga-me: o que deseja de mim? — indagou-lhe o pequeno mercador. — Eu preciso de uma das suas mercadorias! Preciso do Tônico Revitalizante, para que meus ossos quebrados fiquem bons! — Mas você parece saudável! O tônico é para quem não pode andar! — Oh sim! Mas estamos nos seus sonhos, por isso pareço saudável! De verdade estou deitada sem poder me movimentar. — Que nada, você está maluca! Isso aqui é real! Eu estou de passagem por este vilarejo. Soube que haveria um show e resolvi ficar mais um pouco!

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PAUL LAW Ester não deu muita atenção para o que Zeca disse: — Você me dá o tônico? — Eu não dou nada, você já deveria saber! Eu posso vender por um bom preço, é a minha profissão! — E o que você deseja dessa vez? Neste momento, a excitação tomou conta daquela multidão e um apresentador anunciou a entrada de um grupo musical, cujo nome estranhamente era Anjos Corrompidos. Começou a trovejar e a chuva forte caiu violenta sobre a multidão. Ester lembrou automaticamente de uma pessoa que provocava este fenômeno toda vez que aparecia: Soberano — Preciso fugir, Zeca! Ele está aqui, eu sei que está! — Espere o show acabar, Ester! Não acredito que você vai embora agora! — O tônico, qual é o seu preço? — Espere, Ester! Veja o show comigo e depois negociamos! — Não há tempo, Zeca! Diga-me o que quer! Zeca não precisou ser muito esperto para ver o nervosismo que se misturava às palavras de Ester. Assumiu a mesma severidade da menina para responder: — Meu preço é o teu Livre-arbítrio! Um trovejar ecoou ao mesmo tempo em que a confusão se formou na mente da pequena Ester.

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XIV

EU

T

ESCOLHO PODER ANDA R

rovões cortaram o céu em pedaços grandes e iluminaram todo aquele sonho. Ester notou que ao centro do palco haviam

aparecido cinco pessoas vestidas de negro e de capuzes. Eram estranhos deduziu a criança, contudo seu interesse estava voltado para Zeca. — O que você pediu? — a menina exigiu que o mercante repetisse. — Eu te vendo o Tônico Revitalizante, pelo preço do teu Livre-arbítrio. Ester não sabia bem o que significa isso e quis saber: — O que é isso que me pede? — Vou lhe explicar. Os homens nascem com uma característica de Deus. Já ouviu falar de Deus não? — Sim. — Pois então! Deus dá aos homens o poder de agir conforme a vontade! Isso é o Livre-arbítrio! Eu quero o seu! Aquilo ainda soava muito confuso para a criança. Deduziu, pois, tratar-se de algo muito valioso aquilo pedido. — Mas isso não é muito? — as lágrimas escorreram pelos cantos dos olhos da menina loira. Zeca abraçou Ester e mais um trovão cortou o céu: — Não te peço o impossível, pense... O que lhe serviria mais? Andar ou escolher? — Mas você já não tem o seu Livre-arbítrio? — Não... Perdi tudo o que Deus me deu faz um tempo. Estou com-


PAUL LAW prando as coisas de volta. Comprei de você a juventude, de Salomão a Sabedoria e agora mais uma vez de você, terei o Livre-arbítrio. Isso se você quiser, é claro. O som da multidão eufórica interrompeu a conversa de Zeca com Ester. Alguma coisa especial estava acontecendo no palco que causou excitação. A criança e o mascate então se voltaram para o palanque e se espantaram. Os cinco cantores dispunham agora de asas negras e flutuavam: — Esses músicos, são estranhos! — observou a menina. — Não se incomode! Eles são criaturas que perderam o sentido de viver; foram banidos e depois acolhidos aqui. — Eu preciso voltar para casa, Zeca! Por isso, concordarei com a sua condição. — Está bem! — o pequeno Mascate abriu a mão e um frasco rubro apareceu em sua palma. —Acordará onde estiver com o tônico! Os Anjos Corrompidos fizeram um coral triste e a chuva amenizou. As asas negras deles reluziam e delas escorria líquido negro. Um vendaval soprou em direção ao palco e afastou o capuz de um deles. Ester se espantou ao ver aquele rosto. Era uma menina da mesma idade que ela; do mesmo rosto, mas tinha os cachos de nanquim e os olhos avermelhados. Seus lábios eram escurecidos e suas linhas contornadas por uma forte maquiagem. — Sou eu! — disse Ester. — Aquela? Não creio ser possível... — Não vê a semelhança? Apesar de o cabelo ser de cor diferente. — Ela é um ser atormentado que acabou por se tornar maléfica. Segundo o que contam, está aqui faz muito tempo... Era boa, mas Soberano conseguiu convertê-la para o mal. — Pobre menininha...

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ESTER — Ela aparenta ser menina, mas é mais velha. Não se deixe ludibriar por Edissa. — Assim que ela se chama? — Sim! Quando você a encontrar aqui, sem ser em meus sonhos, não se deixe enganar por ela. Ela dirá muitas coisas que parecerão verdades, mas não se engane! Ester assentiu. — Por que ela se parece comigo, Zeca? Já vendeu algo para ela? Zeca sorriu e agarrou as mãos de Ester: — Vendi a ela o Mapa de Volta para Casa e o Tônico Revitalizante... — Hã? Ao som do ultimo trovão, a criança de cabelos dourados acordou. — Sou eu! — a voz desesperada de Ester chamou a atenção de Curandeira que repousava ao lado. — Eu estou lá! — O quê? — disse a mulher especializada em cura. Ester respirava com dificuldade: — Foi o sonho de Zeca... nele havia um coral de músicos tristes e eu fazia parte deles... mas eu era diferente; tinha os cabelos negros e o olhar vermelho. — Como é? — indagou a mulher confusa. Ester contou tudo o que Zeca lhe tinha dito sobre a tal de Edissa, mas com um estalar de dedos Curandeira perguntou, mudando de assunto: — E o Tônico Revitalizante? Um pequeno frasco rubro se materializou ao lado do braço direito da menina, após as palavras da mulher médica. — Eu o consegui, por um preço! — Que ótimo! — ela agarrou o pequeno vidro e o destampou — Abra a boca, filha! Ester obedeceu ainda confusa. Ao engolir o líquido reluzente, a menina sentiu seu peito arder ao passo que seus olhos descoloriram: — Está ardendo, mamãe!

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PAUL LAW — Já vai passar! Ester contraiu os dedos das mãos e dobrou os joelhos, ao mesmo tempo que seus olhos retornavam ao esmeralda de sempre. Os ossinhos partidos da menina foram se curando instantaneamente e ela se colocou sentada naquele túmulo fitando os dedões dos pés que agora se movimentavam. — Funcionou! — sorriu. Curandeira abraçou Ester: — Que bom que conseguimos! — Sim, mamãe! Onde está meu pai? Curandeira afastou o abraço: — Morto. Os Soldados vieram enquanto você dormia. Os Cavaleiros Virtuosos tentaram impedi-los, mas um deles acertou Baltazar. Sei que ele ressuscitará pela manhã! — Quero abraçá-lo! — Ao amanhecer, pequena! Ao amanhecer... Ester não dormiu depois de ter tomado o tônico e aproveitou para conversar com Amélia sobre o que viu nos sonhos de Zeca. Tinha medo de um dia encontrar Edissa; de um dia ter de ouvi-la e acabar por descobrir que elas eram a mesma pessoa. Na imaginação de Ester, Edissa poderia ser ela mais velha e depois de falhar em seu intento de voltar para casa. Pelo que Zeca lhe contara, isso poderia ser possível... Ester estava fadada a não conseguir voltar? — Então Amélia — a menina recuperada penteava as madeixas da sua boneca com as mãos —, eu ainda perdi meu Livre-arbítrio e notei que não posso fazer mais nada por minha vontade. — Eu sei bem o que é Livre-arbítrio, Ester! As bonecas são muito inteligentes, você já devia saber... Por isso bolei um modo de você não precisar escolher mais nada! — E como? — a menina parou subitamente de mexer nos cabelos de Amélia.

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ESTER — Não está na cara? É só me deixar mandar em você! Sempre vou mandar você fazer aquilo que deseja! Então, como acontece com os bichos e os computadores, você obedecerá e nem vai notar a falta de Livrearbítrio! — Isso parece ótimo, Amélia! — Ester abraçou seu brinquedo com violência — Confio em você para substituir meu dom de escolher as coisas! A conversa da menina e sua boneca foi interrompida com o raiar do sol. Amélia mandou Ester correr ao encontro do corpo de seu pai, que sabia, era o desejo de sua dona. Esperaram lá até que Baltazar abrisse seus olhos. A silhueta de Ester ficou bloqueando os raios solares, pouco antes de ela ser reconhecida pela sua voz: — Bom dia! — disse. — Oh, filha! Você está curada! — Baltazar se levantou. — Sim! — Que maravilha! Deixe-me lhe dar um abraço — o homem que morria todos os dias abraçou Ester levantando-a do chão. Depois a beijou no rosto: — Estou feliz em vê-lo também — sorriu a criança. — Sim! Agora devemos seguir caminho, Ester! Quero muito te deixar em casa! Baltazar colocou sua filha no chão depois daquele abraço e ouviu os passos de lata de Adan e mais alguns Virtuosos: — Lamentamos por ontem, homem que morre todos os dias! Não podemos evitar sua morte! — Não se preocupe, cavaleiro! Esta é minha sina e já estou acostumado com ela! Adan assentiu sério e Baltazar continuou: — Temos que levar minha filha para casa! Apenas isso me preocupa! — Este é o objetivo da Ordem dos Virtuosos! Nossa missão é escoltar a criança Ester até seu destino com segurança! — Pois então cavaleiro, estamos perdendo tempo!

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PAUL LAW Pouco antes de o sol centralizar no céu toda a comitiva virtuosa já estava preparada para deixar aquele local e seguir caminho pelo Cemitério. O Mapa de Volta para Casa já apontava para o fim da jornada de Ester bem depois do Cemitério, observou Adan. Sabia, inclusive, que agora a investida de Soberano estava prestes a acontecer. O que consolava o cavaleiro é que não haveria mais chance para o vilão tentar uma segunda vez. Seria o momento de ficar frente a frente com o dono do mundo, pensava Sir Adan. Por certo, Soberano os espreitaria logo depois das terras do Cemitério. Então no caminho estreito e coberto por árvores e túmulos acinzentados, um túmulo muito bonito chamou a atenção do líder Virtuoso, tirandoo dos devaneios. O túmulo tinha a estátua em tamanho natural de uma bela mulher. Ela, a estátua, estava debruçada sobre o mármore escurecido da tumba, e foi facilmente reconhecida por Ester, antes mesmo de ela ler na lápide: — Maria! — Ester colocou a mão sobre os lábios. Aqui jaz Maria Falsa que morreu de verdade.

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XV

O

DESEJO FINAL DE

M ARIA F ALSA

— D

eus! O que houve com você, Maria? — as palavras de Ester saíram engasgadas pelo pranto que as

acompanhavam. — Você conhece esta mulher? — Adan deu a volta no túmulo. — Ela era minha amiga! Quem a matou? Quando Ester disse essa pergunta, um ser já conhecido pela menina se materializou sentada naquele túmulo: — Olá, menininha! — disse Lady com desdém. — Bem-vinda à minha casa! — Morte, por que você levou minha amiga? — Porque é o meu trabalho, criança! Maria me fez um pedido pouco antes de eu levá-la e vim aqui para cumpri-lo... — E qual seria? A Dama do Fim se aproximou de Ester e abriu seu guarda-chuva. Depois colocou a mão sobre o ombro da criança e ao som de um trovão o passado se fez na frente dos olhos da criança. — Maravilha! — Maria Falsa corria tudo que suas pernas grossas podiam. — Soberano! Ele está aqui. Corra! — Droga, droga! — dizia o Dono do Bar tentando acompanhar a moça. Correram por entre as copas daquelas árvores acompanhados pelo som das folhas sendo pisadas. Num dado momento, sob a água que castigava aquela tarde, Maria tropeçou em uma raiz grossa e quebrou sua


PAUL LAW perna direita. O Dono do Bar, não parou para ajudá-la. O pavor tomou conta de Maria e ela não sabia se sentia mais frio do que medo e mesmo se arrastando ainda tentou continuar fugindo. Mas para a sua surpresa, uma mão lhe foi estendida. — Levante-se! — disse o dono da mão. — Não temas, pois sou dono do medo. A perna de Maria que até então estava quebrada, instantaneamente, curou-se e ela pôde se colocar em pé. — Por favor, José! — disse ela chorando. O dono da mão amiga que ajudou Maria a se levantar, era a do Soldado de farda avermelhada que até pouco tempo tinha espancado Baltazar e atacado Ester. Ele não tinha ido atrás da menina, mas sim de Maria Falsa: — Você me conhece! Chama-me pelo meu verdadeiro nome, como isso fosse me causar alguma comoção... — José, por Julia! Soberano mudou de semblante quando ouviu aquele nome. Ficou mais ameno: — Acalme-se — José, que na verdade era o Soberano abraçou Maria Falsa. — Estou calma — chorou Maria nos braços do vilão. — Eu bem sei que quando diz estar calma está mesmo é apavorada. Eu causo este efeito em todos os seres. Até mesmo o céu chora quando estou presente. — Por que tudo isso, José? Desde Julia até Ester? — Explicarei com simplicidade: Eu quis ser dono de tudo você sabe. Precisei de Julia Justa, sua irmã, para que todas as pessoas ficassem desonestas! Depois comprei tudo que precisava das pessoas desonestas! Agora a menina Ester é de outro mundo e trouxe Esperança de onde veio. Como ela não é daqui, possui a Honestidade que todos os outros não possuem e ainda trouxe consigo um pouco de conhecimento...

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ESTER — Conhecimento? O que é isso? — Maria indagou ao Dono do Mundo. — Há tempos eu adquiri toda a Sabedoria do mundo! Ninguém tem Conhecimento e por isso posso reinar tranquilo sem que possam reclamar! Mas a menina Ester detém o conhecimento de onde vem e por isso é uma ameaça! Maria afastou o abraço do vilão. Ele, por sua vez, virou-se de costas: — Julia manda lembranças! Após essas palavras, Maria viu uma faísca de esperança: — Minha irmã vive? — Eu ainda não pude encontrar o Amor para comprá-lo. Por essa razão, este tipo de sentimento ainda não pode ser controlado por mim. Acabei por me apaixonar pela sua irmã. Isso tem se tornado um incomodo... — Poupe-me, José! — Maria Falsa se ajoelhou. Soberano sorriu e deu a mão para que Maria se levantasse mais uma vez: — Eu sou um rei clemente! — o Dono do Mundo falou e pouco depois ouviu-se o marchar das suas tropas. — Concedo-te a oportunidade de fugir dos meus soldados. Mas sua morte é certa, Maria, pois sou dono do Destino. — Então foi isso que aconteceu? — Ester voltou ao presente! — Quando Maria foi fuzilada pelos homens do Soberano, eu apareci para ela e fiz sua última vontade — Lady disse para a menina. — Ela queria te dar essas últimas lembranças, para que ficasse informada de dados importantes sobre o Dono do Mundo. Nem eu mesma disponho dessas informações que você acaba de ver. — Agora entendo o sacrifício de Maria! Ela quis me mostrar as armas que posso usar contra José! — José? — indagou a Morte.

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PAUL LAW — Ah, desculpe-me! Esqueci que você não pôde ver tudo que acabei de ver! — Pequena Ester — Lady colocou a mão sobre a cabeça da criança —, quando nos encontrarmos da próxima vez será para que eu possa levá-la para o Descanso Eterno. Desejo-te sorte e uma morte sem sofrimento. Após essas palavras, Lady desapareceu, deixando todos boquiabertos. Adan se aproximou de Ester: — Lamentamos pela perda de sua amiga! Que aquilo que a Morte te revelou possa ser útil para o confronto final. Ester abraçou a estátua de Maria e deu-lhe um beijo no rosto: — Obrigada. No horizonte fez-se um céu púrpuro e escurecido precedendo uma tempestade. A comitiva virtuosa seguia silente por entre as árvores e túmulos daquele vasto cemitério, já se aproximando de seu fim. Adan ia à frente portando o Mapa de Volta para Casa carregando Ester e Amélia. Logo atrás vinham Curandeira e Baltazar, seguidos dos demais Cavaleiros Virtuosos. Ao transpassar pelos portões enferrujados do Cemitério, o grupo se deparou com o vilarejo dos sonhos de Zeca. Ester reconheceu logo aquele palco e também aquelas pessoas aglomeradas. Disse a Adan que aquele local já havia sido visitado por ela na oportunidade em que adquirira o Tônico Revitalizante. Talvez encontrasse Zeca por ali, imaginou. Mas neste momento, outro pensamento lhe aflorou: Edissa! Talvez Ester pudesse encontrá-la. Os devaneios da menina foram interrompidos pela informação de Sir Adan: — Ester, estamos no ponto final demarcado pelo mapa! Depois da Vila Onde o Vento Faz a Curva, estará a Cidade, sua casa. — Ah, que ótimo! Quero que as coisas voltem ao normal, Adan! Quero sim! — Pois então, vamos atravessar logo por esta vila!

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ESTER Os cavalos passaram pelas pessoas que aguardavam a entrada dos músicos ao palco quando um vendaval bateu contra eles. Ester se escondeu atrás de Sir Adan e ele lhe disse: — Cuidado! Aqui os ventos fazem a curva e voltam para o resto do mundo! — Puxa! — Ester abraçou Adan, numa tentativa fútil de conter o vendaval — Estamos agora perto de casa! Não demorou para que o vento cessasse. De tempo em tempo, um vendaval passava pelos virtuosos e depois retornava para o resto do mundo. De certo modo, deduziu Amélia, estavam mesmo no fim do mundo. Informou a Ester sua dedução. — É verdade, Amélia! No meio de um sorriso de esperança por concluir que sua jornada se aproximava do fim, foi que Ester estremeceu. Isso aconteceu porque ela ouviu o coro daqueles seres estranhos dos sonhos de Zeca. O palco já havia sido deixado para trás pela comitiva virtuosa, quando a música despertou a atenção de todos. A menina de cabelos dourados se lembrou do nome daquele grupo musical e disse a Adan: — São os Anjos Corrompidos, Adan! A música é tão triste que faz juntar lágrimas em nossos olhos. — Achei que este grupo fosse uma lenda! Não posso ver os rostos deles! Mas parece que todos dispõem de asas negras! E meus olhos estão se enchendo de lágrimas, Ester! — disse Sir Adan. — Eles usam capuzes! — Observou Amélia. — Sim — Ester respondeu engasgando com seu próprio choro. Depois disso, Amélia se virou para Ester e viu que sua dona estava chorando. Notou que todas as pessoas choravam muito e pareciam estar muito tristes. Como ela era boneca, não podia chorar e percebeu que aqueles músicos estavam causando depressão em todas as pessoas: — Temos que sair daqui, Ester — a boneca agarrou a mãozinha da criança e tentou arrastá-la — Essa música vai matar todos de tristeza!

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PAUL LAW Mas Ester não fazia outra coisa além de chorar. — Sir Adan! Faça algo! — a boneca se desesperou. Contudo, o Cavaleiro virtuoso nada respondeu e continuou chorando igual a todos. — Droga! Será que se eu chamar o Deus que a mãe de Ester tanto chama nas orações ele viria para ajudar-nos? — Amélia se voltou para o palco. Todos choravam em um coro tão triste que assustou Amélia. Ela nunca havia presenciado tamanha tristeza, mas para a sua surpresa uma voz nada convencional se fez: — Nada poderá ser feito, Amélia! Aquela voz de coral de igreja bradou do palco. Um dos seres de capuz e músico tomou a frente dos demais, como se pudesse ler os pensamentos da boneca e responder-lhes. Abriu as asas negras e o vento soprou dele, pouco antes de começar a chover. O Anjo Corrompido começou dizendo: — Eu sou o SOBERANO e é chegado o momento final da jornada de Ester e sua boneca. Terei dela, agora, o que desejo enfim! Ao ver aquela coisa horrível e ouvir sua voz, Amélia correu e gritou: — Socorro, Deus me ajude!

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XVI

S OBERANO

E

JOGA COM

A MÉLIA

ster ao chegar se sentiu acuada. Pernas se faziam por todos os lados e o som estava alto e era possível ouvir risadas e barulho de

talheres. A confraternização estava animada, mas não para ela que nunca tinha visto aquelas pessoas. Sua mãe sorria com cortesia para todos que passavam por eles. A cidade não era distante. Norival, padrasto da menina, estava acostumado a ir até lá durante a semana entregar peças. Era um exímio motoboy e já fazia quatro anos que trabalhava na maior autopeças da cidade que residia. Não que isso fosse muito. A cidade, pequena que era, não comportava mais que três ou quatro autopeças e grande de lá, não era o mesmo de uma cidade com mais de mil habitantes. O fato era que estavam ali para relaxar em família. Sentaram-se perto da churrasqueira e logo foi servida a bebida. Bárbara disse ao esposo: — Não exagere hoje. Sabe que vai dirigir. — Ester dirige — ele passou a mão na cabeça da garotinha. — Estou falando sério, Nori. Ele fez uma careta e depois se virou para Ester: — Venha! Vamos procurar outras crianças para brincar com você. Sua mãe está muito chata — agarrou o copo de cerveja. Descendo pelo gramado que rodeava o salão de festas havia um playground e crianças de várias idades se divertiam. Norival levou Ester até


PAUL LAW lá e apresentou sua enteada às meninas que conhecia, filhas de amigos da empresa. Ester estabeleceu amizade com facilidade, ela tinha carisma. Não tardou a sair correndo para brincar com as novas amigas deixando o padrasto. — Não corra! — a ordem do vilão fez com que as pernas da boneca parassem de se movimentar na mesma hora. Amélia se virou para o ser que havia ousado dizer que era o Soberano. Notou que ele não diferia muito dos outros Anjos Corrompidos, vestindo-se de um manto negro, amarrado na cintura por um cordão branco. Seu rosto era coberto por capuz e suas asas negras pingavam nanquim; chovia muito ainda. — Boneca, não tenha medo — Soberano desceu do palco calmamente e afastou do seu rosto aquele capuz. Para a surpresa total de Amélia que imaginava que o Dono do Mundo fosse algum demônio horrível, Soberano revelou uma face serena e tranquila, de um senhor de idade avançada, já calvo e de barba rala: — É um prazer conhecê-la pessoalmente, ser criado para fazer uma criança feliz! Chamo-me José e sou o dono de tudo que seus olhos de vidro podem alcançar. Amélia se sentiu aliviada: — José! Mas você disse que era o Soberano? — Também sou conhecido assim! Sem magia, minha feição é essa que te revelo agora! As asas negras do Soberano começaram a mudar de cor e se tornaram rubras ao passo que o nanquim que escorria até então, passou a se tornar sangue: — Mas essas asas e sua mudança de cor, o sangue, não são magia? — Indagou-lhe Amélia. — Um pouco, é verdade... Disse que o meu rosto verdadeiro é este se eu não usar nenhum artifício mágico de que disponho... Eu não sou o que

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ESTER disseram a você... Posso salvá-la e também a Ester, basta que me permitam. — Como não é? Todo mundo sabe que o Soberano é um tirano e que não mede esforços para ter tudo aquilo que quer! — E isso é ser mau? — O idoso de asas fitou o horizonte. — Claro que é! — Amélia colocou a mão na cintura — Você está oprimindo as pessoas deste mundo! Está impondo a sua vontade! — Acha que eles querem ter vontade própria? Você acha que se eu deixar de existir, este mundo vai continuar existindo? Os seres que me rodeiam, são dependentes de mim! Eles nunca se preocuparam em fazer algo para si mesmo, ou para seus semelhantes! Eu faço tudo! Um trovão cortou o céu após essas palavras. Amélia se afastou: — Isso não é verdade. — Não? Amélia soube que de certo modo o vilão estava certo, mas ele mesmo não deixou a boneca pensar muito a respeito: — Estou cansado, Amélia! Queria descansar... Mas não há ninguém que tenha capacidade para me substituir por aqui. Amélia ficou meio sem entender onde o inimigo queria chegar e ele continuou: — Vamos fazer assim: eu te concedo um desejo e depois realizo um meu. Assim vamos decidir sobre o futuro de vocês. Aquilo soou perigoso e inesperado. Por um momento estavam falando da canseira de Soberano e agora o bandido vinha desafiá-la? Sem opção diferente, Amélia aceitou ainda tentando entender o que se passava: — Está bem! — disse ela. — Comece com um desejo. — Quero que todos parem de sofrer. — Que seja feita da sua vontade a realidade — Soberano estendeu a mão e os Anjos Corrompidos pararam imediatamente de cantar — Agora é a minha vez.

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PAUL LAW Soberano fechou seus olhos e depois os abriu exibindo coloração rubra: — Quero que metade de todos que estão aqui morra! Um raio cortou o céu e quando atingiu o solo, a descarga elétrica provocada por ele dizimou metade da população da Vila de Onde o Vento Faz a Curva, metade dos Anjos Corrompidos e metade dos Virtuosos. Amélia ficou desesperada e se virou para o vilão: — Isso não é justo! Você está matando pessoas! — Para cada desejo seu, um desejo meu! É só saber o que pedir, boneca! Se me vencer neste jogo, provará ser digna de me substituir! Com o meu poder, você poderá dentre infinitas coisas, levar Ester de volta para casa! — Quero que você morra — Amélia se encheu de ira. — Assim seja feito! Depois de um raio que clareou a tudo, Lady veio buscar o vilão, mas sua alma disse assim: — O meu desejo é que eu ressuscite. E ele reviveu tal qual como antes de ser atingido pelo próprio raio. Amélia aproveitou para correr para perto de Ester, que agora estava recuperada da tristeza causada pelo coro dos Anjos Corrompidos: — Ester! Soberano está aqui! Ele está jogando comigo e acho que não posso vencê-lo! Ajude-me, por favor! Soberano gritou lá de onde estava: — Que seu desejo se realize! — O quê? Mas eu não pedi nada? — Claro que pediu! Desejou que Ester te ajudasse! Agora é minha vez — o Dono do Mundo estendeu sua mão — Que os meus soldados venham para dizimar o resto dos Virtuosos e a população deste local! As tropas vermelhas do vilão surgiram por entre as árvores que cercavam aquele vilarejo. Eram muitos e seria impossível para a Ordem dos Virtuosos vencer a todos. Amélia e Ester tentaram manter a calma, ao

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ESTER passo que Sir Adan e seu exército reduzido pela metade se prepararam para lutar. — Oh, Deus! — Ester colocou a mão nos lábios. Então ouviu-se o marchar de outra tropa. Ninguém havia desejado nada, e isso surpreendeu até mesmo o Soberano. Era o Exército Azul, os verdadeiros soldados já dizimados pelos homens do vilão há algum tempo que agora vinham, mesmo depois da morte para ajudar Ester. Daniel estava firme entre eles. — Inimigos já derrotados retornam para me importunar. Que assim seja! — virou-se o vilão para as tropas que se aproximavam. Amélia pulou excitada: — Desejo seu, agora é minha vez! Soberano sorriu: — Aprendeu rápido, boneca! O que vai desejar? — Que você se torne uma boa pessoa! — Ester tomou a vez de seu brinquedo, berrando essas palavras! O sorriso que ainda descansava no canto dos lábios do inimigo se desfez imediatamente. Aquele desejo fora inesperado e sábio ao mesmo tempo. O vilão jamais imaginara que alguém fosse desejar algo assim e em meio aos seus devaneios, o raio que cortou o céu atingiu-o. Soberano depois disso chorou sangue: — Que seja realizado o seu desejo — Disse baixinho o Dono do Mundo. Soberano se ajoelhou vencido. O sangue dos seus olhos pingou no solo ao passo que ele fez uma careta de dor. Seu corpo começou a se desfazer e foi espalhado ao vento como uma pequena tempestade de areia. Depois de um tempo nada restou do vilão. Os seus soldados desapareceram da mesma maneira em pleno combate contra os Virtuosos e os soldados do bem. A chuva tinha cessado e Ester abraçou Amélia com violência: — Nós vencemos! Adan estava confuso e comentou com Daniel:

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PAUL LAW — O que aconteceu? — Soberano foi vencido! — Isso é impossível! Lutamos contra ele por tempo demais e nunca chegamos nem perto de feri-lo! Como Ester conseguiu? — Isso eu não sei... — Pois isso não é mais importante. Temos agora que levar a menina Ester e sua boneca até a Cidade, como havíamos prometido! — Adan colocou a mão no ombro de Daniel. — Quero acompanhar vocês! Só poderei descansar plenamente, quando Ester estiver salva! Pedirei permissão ao meu comandante. Adan concordou. Depois de conferir pessoalmente os sobreviventes do ataque inimigo, o líder da Equipe de Prata da Ordem dos Virtuosos, deu o mandamento para que todos seguissem viagem. Baltazar havia morrido no ataque do Soberano, mas era sabido que logo ressuscitaria. Por isso Curandeira carregou o corpo em seu cavalo. Logo a diante estava uma porta de madeira bem velha, pintada de verde. Não havia paredes e nem nada em volta. O Mapa de Volta para Casa mostrava aquele local como a passagem de um mundo para o outro. Ao transpassar por aquela porta, Ester estaria de volta ao lar. Excitada, a menina de cabelos dourados agarrou a fechadura e tentou abri-la. Para sua surpresa e decepção, estava trancada: — Está trancada! — fez força. Adan sacou sua espada: — Poderemos parti-la com nossas lâminas. — Não! — Soou a voz de um menino de doze anos — A porta é mágica e só poderá ser aberta pela Vontade de Ester. Todos se voltaram para aquele menino. Ester o reconheceu: — Zeca! Mas o que mais desejo é ir para casa! Por que não se abre? — Ester você acredita desejar ir embora, mas não é verdade! Você me pagou o Tônico Revitalizante com o seu Livre-arbítrio. Você não tem mais vontade própria!

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ESTER Ester havia esquecido que tinha perdido o dom de escolher as coisas para poder voltar a andar! Sabia que seu Livre-arbítrio era de extrema valia, mas não imaginava que ele era a chave para deixar aquele lugar! — Devolva-me Zeca, pelo amor de Deus! — chorou a menininha. — Negócios, pequena! Negócios! — o Mascate se virou para ir embora. — Parado, criança! — Adan ergueu sua espada. Zeca parou: — Você sabe quem eu sou? — Já ouvimos sobre você, Mascate! Que foi um famoso mercador, mas que estava aposentado fazia tempo. A juventude de Ester lhe trouxe de volta, não foi? — Sim. Eu fui lendário, na minha época. Meu apelido é Zeca, mas meu nome é José Carlos. Ester arregalou os olhos, apavorada, já concluindo de quem se tratava: — Ele é o Soberano! Cuidado, Adan! — berrou a menina! Zeca sorriu: — Sim, menina! Você finalmente me conheceu pessoalmente! — um raio cortou o céu e atingiu Sir Adan dos Virtuosos, fazendo-o desaparecer completamente. — Adan! — gritou Ester. — Quem vai ser o próximo? — o menino Zeca abriu os braços. Amélia quis saber: — Já não te derrotamos? — Com o desejo? Não creio ser possível. Um dos corpos que habito foi sim destruído por vocês, mas o Soberano deixou de ser uma presença física faz muito tempo! Acharam mesmo que eu seria derrotado por um desejo que eu mesmo concedi? Não vou perder mais meu tempo, vou dizimar a todos de uma só vez! A esperança da menina perdida, juntamente com a determinação de sua boneca Amélia pareciam agora findadas. Como poderiam derrotar quem tudo podia?

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PAUL LAW Em meio àquela dificuldade, foi que um espasmo de inteligência veio a Ester. Soberano antes de tudo sempre fora um comerciante: — Nem se eu quisesse negociar com você? — Ester fez a pergunta correta. Soberano esfregou as mãos. Em seu verdadeiro corpo, ele tinha impulso de negociar as coisas: — O que tem para me oferecer, menina?

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XVII

M EU D ESEJO

A

s nuvens acinzentadas cobriam todo o céu naquela manhã triste, como se pressentissem maus acontecimentos. As ruas

brilhavam devido à garoa fina que lhes cobriam e os postes ainda eram mantidos acesos, amarelados. Vez ou outra um ventinho fazia as árvores do parque dançar. Ernesto não estava nem feliz e nem triste. Sua mente imatura, não se atinha por muito tempo a qualquer coisa. O acidente envolvendo sua mãe, padrasto e irmã mais velha, não lhe incomodava tanto, pois seus cinco anos de idade lhe impediam de compreender a dimensão de tudo aquilo. Não sabia que jamais viria sua mãe e tampouco tinha noção que sua irmã estava em estado grave na UTI do hospital municipal, podendo vir a falecer a qualquer momento. Jovem demais para carregar o fardo que lhe tinham jogado nas costas, Ernesto possuía os cabelos amarelos, cacheados e mais compridos do que o normal. Os olhos de um azul oceânico e a pele bem clarinha. Vestia-se sempre de roupas simples, que consistiam em uma camiseta branca sem estampas e uma bermuda azul-marinho. Na pré-escola, aquele dia, o garoto não estava sendo tratado de maneira diferente pelos seus coleguinhas, mas suas professoras tinham dificuldade em conter a emoção quando o viam. Era estranho estar com um menino que perdera toda a família num acidente de carro, fazia tão pouco tempo. Pobrezinho, pensavam. Ernesto foi levado mais cedo da escola, pois iria junto da avó paterna


PAUL LAW ter notícias da irmã no hospital. Como Helenice não tinha com quem deixar o menino e não haveria tempo de vir buscá-lo no fim das aulas, a senhora não viu outra solução senão a de levá-lo consigo. Aquela velha senhora era mãe do pai de Ernesto e Ester. Já havia perdido o filho e agora estava na iminência de perder a neta. Por ironia, os dois tinham sido tirados dela por ocasião do excesso de consumo de bebida alcoólica. Era uma mulher já cansada, corcunda e bem magra, que vestia-se sempre com saia florida e casaca de lã. Os cabelos bem amarrados e prateados enfeitavam-lhe a cara marcada por rugas e manchas. Seus olhos cansados nem pareciam azuis, tinham a coloração de leite azedo. — Hoje — começou a senhora tentando disfarçar sua emoção — vamos ao hospital ter notícias de Ester. O menino sorriu e chutou uma pedra de calçada: — Vovó, ela ainda está dormindo? — Está sim. — Sempre achei Ester dorminhoca demais! E mamãe, por que não acorda ela logo? A velha não conseguiu conter as lágrimas. Parou perto do parque e se ajoelhou. O vento soprou com um pouco mais de intensidade quando ela colocou as mãos nos ombros do garoto e tentou explicar: — Meu filho, a mamãe teve que viajar para longe e por isso não pôde acordar sua irmã. Ela foi morar com o Papai do céu. O menininho franziu o cenho: — Mamãe foi viajar? Então ela vai trazer de lá um presente para mim! — Não querido. Ela não vai mais voltar — Helenice abraçou a criança e derramou todas as suas lágrimas. Ester disse ao Soberano: — Minha dor! Ofereço-te minha dor para ter de volta o Livre-arbítrio. O vilão em forma de menino sorriu: — Dando-me tua dor eu te mataria. De que te adiantaria o Livre-

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ESTER arbítrio sem a vida? — Dou para você o meu amor! — Ester disse com os olhos cheios de lágrimas. Soberano se afastou: — Isso não existe! Eu nunca o achei! Quem lhe contou sobre isso? — Claro que existe! É o que você sente por Julia, não é? O mascate se enfureceu: — Cale-se! Quem te contou sobre Julia? Você detém informações importantes sobre coisas que ninguém deveria saber! — Soberano apontou para Ester. — Como pode existir uma coisa que eu não posso ter; apenas sentir? — Lançou um raio contra a menina. Todos os que estavam ali acharam que Ester estivesse reduzida a cinzas depois do ataque do vilão. Mas após o clarão, para o pasmo de todos, a menina continuava ilesa. Ester mesma não pôde de imediato compreender o que estava acontecendo. Mas depois, juntando as peças do quebra-cabeça em sua cacholinha, deduziu: — Não pode ferir quem te ama, não é mesmo? Por isso Julia nunca foi morta por você! Por isso também que o seu raio não me matou — Ester começou a se aproximar do malvado ao passo que ele continuou a lançar raios. — Afaste-se de mim! — hesitou Soberano. — O amor não existe! — Você não sente? — Cale-se! — Agora eu entendo o que Maria quis me mostrar. — Maria Falsa! — Soberano enfim entendeu como Ester sabia de Julia. — Ela usou o desejo final que a Morte lhe concedeu para te dar essas informações sobre mim! — Sim! Maria me mostrou a conversa que teve com você pouco antes de morrer! Acho que ela já sabia que a sua fraqueza era o Amor! Todo aquele tempo e o grande segredo; a grande arma para vencer Soberano era o fato de ele não poder ferir quem gostasse de verdade dele.

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PAUL LAW Por isso precisava tanto ser odiado! Porque assim seu poder poderia ser usado contra todas as pessoas! Maria Falsa deu sua vida para que Ester pudesse saber do trunfo. As pernas do Dono do Mundo amoleceram. Ele não pôde correr quando Ester se aproximou para abraçá-lo. — Vai ficar tudo bem agora! — disse a menina. Naquele abraço, os olhos da criança perdida, por um segundo, se tornaram rubros e seus cabelos enegrecidos ao passo que asas escuras rasgaram suas costas. Houve depois, como se duas energias muito poderosas se chocassem, uma grande explosão e abriu-se uma cratera. A chuva que caía sempre quando Soberano estava presente, cessou e lá dentro daquele novo buraco dormia Ester, sozinha. Quando Baltazar viu sua filha ali, pensando o pior, correu até a cratera e se jogou de encontro a ela num abraço desesperado: — Filha! — começou a chorar. — Perdão! Eu te amo tanto! Sempre te amei, quero que saiba! Meu crime, aquele pelo qual morro todos os dias, é por ter lhe abandonado! Por ter lhe trocado pelo álcool, agora me lembro... Curandeira se aproximou, sacudindo a poeira das vestes: — Nossa menina... — Bárbara! — ele se voltou para a mulher que lhe falava. — Perdão! — Abraçou-a com violência. — Acalme-se, Baltazar! Tudo vai ficar bem sem o Soberano... — Não vai! Ester está morta! Ela não pode ressuscitar todo dia igual a mim! — Deixe-me examinar nossa criança! — Bárbara se ajoelhou. A Curandeira conferiu o pulso da menina das madeixas douradas e constatou que seu coração não estava batendo. Lágrimas se ajuntaram em seus olhos azuis quando ela foi dar a notícia: — Baltazar, nossa criança está mesmo — Bárbara foi interrompida por uma voz familiar para Amélia:

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ESTER — Pare! — disse a mulher de madeixas de ébano extremamente lisas que lhe escorriam pelos ombros descoloridos. — Maria Falsa! — se surpreendeu a boneca de Ester e todos os que estavam ali. — Você não tinha morrido? Ester até chorou a sua morte. — Minha morte foi uma farsa. Na verdade, estive com minha irmã Julia Justa. Foi ela que me salvou de José. Então Maria se movimentou para o lado e revelou uma outra mulher que até então se escondia atrás dela. Era Julia Justa, esposa do Soberano. Tinha a pele bem clara e algumas sardas nos ombros. Seus cabelos dourados e muito lisos lhe contornavam todas as costas e pareciam brilhar. Seus olhos amarelados transpassavam uma paz de espírito sem precedentes e os lábios finos estavam distribuídos em um bonito sorriso. Ela era do mesmo tamanho de Maria e se vestia de seda branca, igual a irmã falsa. Descalça, se aproximou do corpo de Ester e se ajoelhou. — Olá, criança! — passou com suas mãos delicadas no rosto suado e sujo da menininha. Baltazar puxou-a pelas vestes ainda em pranto: — Traga-a de volta, moça! Por favor, traga-a! Julia sorriu bondosamente para o pai de Ester: — Levante-se, por favor! — ela estendeu a mão e se ergueu junta de Baltazar. — Quero minha filha de volta! — Ester não é daqui, homem que morre todos os dias. Ela lutou tanto para deixar este lugar e você quer que eu a traga de volta? Neste momento, um trovão serpenteou o céu e trouxe com ele a materialização de mais um ser. Estava ali Lady Morte. — Aqui estou Julia — ela fechou seu guarda-chuva. — Ótimo. — Não foi nada fácil levá-lo! — Morte se referiu ao Soberano. — Ele estava transtornado! Não entendeu como morreu e achou que ainda tinha poderes sobre mim.

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PAUL LAW — Ele terá o que Ester lhe ofereceu! Eu mesma vou ensinar a ele sobre este sentimento tão raro hoje em dia! — Julia sorriu para a irmã Morte. — Todo este tempo de tirania fez de José um ser muito mau. — Eu amo meu marido — A mulher justa fitou o horizonte. — Amei tanto este homem que tive que intervir nas coisas para impedi-lo de destruir tudo e a si mesmo! Tive que arquitetar a sua queda para salvá-lo. Lá onde você o levou ele ficará bem... — Ah, sim! Todos que vão para lá ficam muito bem. — Eu vou estar com ele em breve — Julia sorriu — É o momento de agradecer a vocês duas! A mulher justa abraçou sua irmã Maria Falsa e sua outra irmã Lady Morte: — Se não fosse pela ajuda de vocês eu jamais teria conseguido salvar o meu marido e o mundo. Amélia começando a entender se intrometeu: — Então vocês três bolaram tudo isso? Fizeram com que eu e Ester derrotássemos o Soberano por vocês? E agora que ele morreu simplesmente vocês vão deixar Ester ir para onde ele está? Maria Falsa cruzou os braços e fez uma cara de nojo: — Bonequinha, nós tínhamos que fazer o que fizemos! Julia tomou a palavra: — Amélia eu sou justa e ainda não acabei com o que vim fazer. — Traga nossa filha de volta — disseram ao mesmo tempo Baltazar e Bárbara. — Lady, o desejo que Ester fez jus pouco antes de falecer, você se lembra? — Claro, minha irmã. — Pode realizá-lo? — Por certo que sim! — Então faça!

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ESTER Ernesto demorou alguns anos para entender que nunca mais viria sua mãe; que ela havia morrido. Inicialmente não teve maturidade suficiente para compreender e depois, quando teve, já estava conformado. Sofreu menos, pois o tempo amenizou a sua dor e foi graças a ele que o menino passou tanto a entender o que lhe tinha acontecido, como a ganhar forças para superar tudo aquilo. Ele e sua avó passavam todos os dias para ver Ester, mas com o passar dos anos, aconteceu do menino se distanciar da irmã vegetativa. O esquecimento teve muito a ver com a morte de Helenice, que aconteceu cinco anos após o acidente. O menino fora criado por uma tia rica, moradora em outra cidade. Os médicos, por saberem dos segredos que envolvem o estado comatoso, não puderam atestar com certeza que Ester não se recuperaria e por essa razão, mantiveram a criança em um leito, depois de diagnosticarem de que ela tinha as funções respiratórias normais e não necessitava de aparelhos para sobreviver. Seu coma parecia, de fato, irreversível, mas não se podia matá-la. A família de Ester não quis a responsabilidade de levá-la para casa. Arrumaram estadia e cuidados para a menina no próprio hospital. Pagavam para que ela fosse mantida e alimentada. Dez anos após o acidente, fotos de Ester e informações sobre o infortúnio da menina vítima de acidente automobilístico provocado por causa de seu padrasto estar dirigindo alcoolizado povoavam e-mails. Essas coisas foram exploradas pelos operantes da rede mundial e talvez este fato contribuiu para Ernesto não se esquecer de sua irmã como deveria; aquela dor não podia deixá-lo. Na noite de natal, o adolescente viajou para a cidade que morava anteriormente. Seu intento era ver sua irmã na ala hospitalar e desejar a ela um feliz natal. Levara, nessa ocasião sua namoradinha Tamires, uma menina de quinze anos, negra, pequena e de bela feição.

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PAUL LAW — Meu nome é Ernesto — disse ele na recepção do hospital. — Sei bem que já se passou o horário de visitas, mas gostaria de desejar feliz natal para minha irmã Ester. O espírito natalino parece deixar todas as pessoas mais bondosas e foi isso que fez com que aquela recepcionista tão cansada autorizasse Ernesto a entrar no leito de Ester. Ele subiu de elevador até o último andar e se dirigiu para o quarto 305. Lá chegando, se deparou com uma menina de dezoito anos que dormia com toda a paz do mundo: — Mana, eu já nem me recordo da sua voz — ele se aproximou seguido de Tamires. A sua namorada não conseguia esconder sua pena, mas Ernesto nem notou: — Passei para te ver e te desejar um feliz natal — ele se sentou e agarrou a mão pálida de Ester. — Que Deus te abençoe e que você saia logo dessa cama! Quando o adolescente disse essas palavras, como um milagre, sentiu a mão de Ester apertar a sua. Sua cara de espanto acompanhou suas lágrimas e ele gritou: — Enfermeira! Aqui, por favor, corra!

Fim.

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Dedico esta obra à menina Flávia que vive em coma já faz dez anos. http://flaviavivendoemcoma.blogspot.com/ Paul Law


ESTER

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