11ª Edição da Revista Informe Letras

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REVISTA INFORME LETRAS Ressignificando imposições: O discurso de resistência frente ao poder

ISSN 2447-1895 NOVEMBRO - 2020


Designers: Guilherme Paro, Larissa Martins e Taiza Fonseca Arte: Taiza Fonseca Capa: Etsy - Diverse women portrait Editor(a)-Geral: Carolina Fernandes Redatores: Arthur Teixeira Ernesto, Anthony Moreira Marques Colares, Gabriel da Silva Martins, Gilberto Stanchack Andrade de Lima, Gilmar Junior Ferraz Bolsan, Guilherme Henrique Paro, Larissa do Prado Martins, Luciana Ribeiro Teixeira, Marcos Henrique Lopes Rodrigues, Maria Carolina Silva de Oliveira, Shéren Salvo Freire, Taiza da Hora Fonseca Revisora-Geral: Carolina Fernandes Revisores: Guilherme Paro e Taiza Fonseca Contato: pet.letrasbage@gmail.com

Todos os direitos reservados. Estritamente proíbida a reprodução do material que compõe este volume sem a liberação prévia da equipe PET - Letras.

REVISTA INFORME LETRAS - 11ª EDIÇÃO - 2447-1895


3 SOBRE O GRUPO PET-LETRAS O PET-Letras faz parte do programa do governo federal chamado Programa de Educação Tutorial. Na Unipampa, está vinculado às Pró-reitorias de Graduação, de Pesquisa e de Extensão. Na intersecção desses três eixos: o ensino, a pesquisa e a extensão, o programa objetiva atuar sobre a graduação, a partir do desenvolvimento de ações coletivas e de caráter interdisciplinar, para formação ampla do profissional em Letras. assim como auxiliar na redução da retenção e evasão. O Programa ainda busca promover a formação ampla de qualidade acadêmica dos alunos de graduação envolvidos direta ou indiretamente com o programa, estimulando ações internas e externas que reforcem a cidadania e a responsabilidade social de todos os participantes e a melhoria dos cursos de graduação.O Grupo PET do Curso de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa do campus Bagé existe desde 2010, tendo como eixos a leitura, a oralidade e a escrita nas diversas mídias. Para levar os acadêmicos a desenvolver tais habilidades, promove oficinas, minicursos e produções acadêmicas coletivas. O trabalho é desenvolvido de maneira integrada através de atividades variadas, entre elas, a confecção de nossa revista digital, a revista Informe Letras.

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4 EDITORIAL Estimado sujeito leitor, Esta Revista foi elaborada por alunos de graduação do curso de Letras - Português da Universidade Federal do Pampa Campus Bagé, vinculados ao PET - ( Programa Educacional Tutorial). E enquanto futuros professores de língua portuguesa escrevemos textos para essa edição que refletem nossa imagem como sujeitos em luta. Incentivados a partir do projeto de Pesquisa Análise de Discursos de Resistência, desenvolvemos análises de discursos que nos permitiram nos conectar com o mundo que nos permeia, nos mudando e mudando o outro. Nas páginas que virão a seguir o leitor encontrará a reivindicação de direitos que o discurso dominante não permite que seja exposta claramente, mas, nós reivindicamos através das palavras desta revista. Por exemplo, os direitos das mulheres indígenas, de mulheres obterem, a partir de luta no Senado, o direito de um banheiro feminino, o de doar sangue independente da orientação sexual, de crescer uma criança livre de estereótipo de gêneros, do reconhecimento da doméstica como um sujeitotrabalhador e de direitos, livre da submissão do discurso dissimulado de que é “quase da família”, entre outros. E, para finalizar, desejo a todos uma boa leitura. Maria Carolina Silva de Oliveira

Neste número:

Taiza Fonseca

Larissa Martins

Shéren Freire

Arthur Ernesto Gabriel Martins

Maria Carolina

Gilberto Andrade Anthony Colares Luciana Teixeira Gilmar Bolsan Marcos Henrique Guilherme Paro


5 SUMÁRIO : 06-12 DISCURSO DE RESISTÊNCIA MULHER INDÍGENA BRASILEIRA Por: Taiza da Hora Fonseca

54-57 MULHERES-POLÍTICAS: A RESISTÊNCIA NA VIDA PÚBLICA Por: Gilberto Stanchack Andrade de Lima

DA

13-21

58-72

A DESIGUALDADE DE GÊNERO NO BRASIL: O PROTAGONISMO E RESISTÊNCIA DAS MULHERES NA MARCHA 8M Por: Larissa do Prado Martins

ECOS DE UMA VOZ SUPRIMIDA: A RESISTÊNCIA DA MULHER NA EDUCAÇÃO, DO APRENDIZADO À DOCÊNCIA Por: Anthony Moreira Marques Colares

73-78

22-28

REFLEXÕES E ASPECTOS IDEOLÓGICOS: DEBATENDO AS RELAÇÕES ENTRE MATERNIDADE E A INSERÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO Por: Luciana Ribeiro Teixeira

O ABORTO COMO FORMA DE RESISTÊNCIA Por: Shéren Salvo Freire

29-44

79-82 RESISTÊNCIA FEMINISTA E O DISCURSO POLÍTICO RELIGIOSO: O QUE É "SER MULHER"? Por: Gilmar Junior Ferraz Bolsan

DISCURSOS DE RESISTÊNCIA: A LUTA PELA PELO CONHECIMENTO DA CLASSE DAS DOMÉSTICAS "Ela é como se fosse da família..." "Mas não somo da sua família." Por: Arthur Teixeira Ernesto

45-48

83-91

O CARÁTER REACIONÁRIO DO DISCURSO BOLSONARISTA Por: Gabriel da Silva Martins

O SANGUE HOMOSSEXUAL COMO FATOR DE RISCO Por: Marcos Henrique Lopes Rodrigues

49-53

92-97

COMO BANHEIROS PODEM REPRESENTAR A RESISTÊNCIA DAS MULHERES? Por: Maria Carolina Oliveira

OS ESTIGMAS DO FEMININO ENTRE AS CRIANÇAS Por: Guilherme Henrique Paro

98-99 ENTREVISTA COM A ESCRITORA LUISA GEISLER


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‘’BONITO É FLORIR NO MEIO DOS ENSINAMENTOS IMPOSTOS PELO PODER’’: O discurso de resistência da mulher indígena brasileira.

Taiza da Hora Fonseca

Sabemos que a mulher foi parte fundamental para a construção do Brasil que conhecemos na atualidade, bem como foi um dos sujeitos que mais sofreu violências ao longo da história, tais violências não recaíram tão somente sob seus corpos, mas também sobre como sua imagem foi retratada pelos historiadores ao longo dos tempos, muitas tiveram suas atuações invisibilizadas, silenciadas ou foram culpabilizadas pelas opressões que eram protagonizadas pelos homens europeus contra elas. Um grupo social que pode ilustrar todas as formas de violência sofridas são as mulheres indígenas, que tiveram seus corpos, a terra e sua cultura violadas e, posteriormente, tiveram sua imagem, ao longo da história, desvirtuada também. Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala (2006) contribuiu

para criação do estereótipo indígena lascívia, desprovida pudores, afirmando que:

da de

O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregarse nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho. (FREYRE, 2006, 1933, p.161)

A construção desse imaginário contribuiu para que, ao longo do tempo, a mulher indígena fosse vista enquanto objeto sexual, progenitora dos filhos miscigenados da


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colonização, atribuída a comportamentos sexuais deliberados pressupondo consentimento. Tendo isso posto, neste artigo, pretende-se discutir e analisar como se deu a construção do imaginário da mulher indígena enquanto sujeito dominado e tentar compreender o processo discursivo de conservação da ideologia patriarcal e discriminatória contra as mulheres indígenas brasileiras, processo este que adestrou e designou certo lugar às mulheres dentro da sociedade, bem como marginalizou a mulher indígena e sua cultura. Além disso, pretende-se observar quais foram as formas de resistência que essas mulheres encontraram para sobreviver às opressões, bem como, refletir se essa construção social que coloca a mulher indígena enquanto sujeito subalterno ainda ecoa na atualidade.

A colonização no Brasil e a domesticação dos corpos das mulheres indígenas Desde o período da colonização no Brasil, a mulher indígena passou a experimentar a repressão advinda dos europeus que invadiram suas terras, estas mulheres passaram a vivenciar abusos e violências em diversos níveis. Segundo Caio Prado Júnior (1957, p.25), a colonização viria a ser uma vasta empresa comercial para “explorar os recursos naturais de um território virgem’’ e, dessa forma, somos apresentados a um princípio econômico, social e político que pode

Patriarcado pode ser entendido como uma instituição social que se caracteriza pela dominação masculina nas sociedades contemporâneas em várias instituições sejam elas políticas, econômicas, sociais ou familiares. É uma forma de valorização do poder dos homens sobre as mulheres que repousa mais nas diferenças culturais presentes nas ideias e práticas que lhe conferem valor e significado que nas diferenças biológicas entre homens e mulheres (MILLET, 1969, p. 58).

A consolidação dessa ideologia a partir das relações de poder frente aos sexos durante o período colonial se deu em diversas esferas no âmbito social. Segundo Verena Stolke (1999, p. 18), da Universidade Autónoma de Barcelona, nos primeiros anos de ocupação do território brasileiro, os colonizadores não só se apropriaram das terras indígenas como submeteram os povos nativos a trabalhos forçados tanto no espaço de produção como no doméstico, e sujeitaram mulheres indígenas e mulheres negras a todas as formas de abuso e violência sexual. A exploração do corpo da mulher indígena brasileira, de certa forma, era vista como a exploração da terra, como nos apresenta Sandra Regina Goulart de Almeida (2007, p. 462) em seus estudos sobre análise de figuras e mitos literários, onde ela exemplifica a forma como a terra a ser explorada era projetada no imaginário europeu como “emblematicamente representada como uma mulher bela, sedutora e atraente, cobiçada por seus dotes promissores e beleza exótica”

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e conclui que o território que viria a ser explorado era visto essencialmente como forma feminina “como uma terra virgem a ser descoberta, explorada, possuída e usurpada”. Esse paralelo entre a natureza e o feminino produz o efeito de vulnerabilidade, algo que é passível de exploração e de posse, dando ao homem conquistador dois objetos de cobiça: a terra e a mulher. E diversos autores trazem esta comparação à tona:

O corpo feminino simboliza, metaforicamente, a terra conquistada ao encontro dos dois mundos por meio de oposições de gênero. Nesse contexto, em um movimento metonímico, possuir a mulher nativa equivaleria a possuir a nova terra recém-revelada aos europeus (ALMEIDA, 2007, p. 462).

Dessa maneira, a mulher indígena acaba por se tornar duplamente colonizada, pois além de ter sua terra arrancada de sua posse, passa a ter seus corpos e vozes tomados também. Para Spivak (2014), em Pode o subalterno falar?, essas mulheres foram jogadas à subalternidade, e, portanto, foram duplamente oprimidas pelo que a autora justifica enquanto uma ‘’violência epistêmica do imperialismo apontada até aqui e pela dominação masculina conservada pela construção de gênero’’. Embora, na atualidade, o colonialismo tenha sido extenuado politicamente, ele ainda se mantém no discurso e na formação ideológica dominante no ocidente, o que faz com que, ainda nos

(Mulheres indígenas de várias etnias na plenária do Acampamento Terra Livre. Foto: L. LANDAU)

dias de hoje, mulheres indígenas continuam a sofrer o que chamamos aqui, nesse artigo, de dupla colonização, dessa forma, perpetuando e naturalizando tais violências contra seus corpos, terras, culturas e vozes. E, portanto, apesar de termos, na atualidade, avançado em diversos aspectos para equiparar direitos sociais para as mulheres indígenas, não podemos negar que essas construções ideológicas e discursivas são determinadas historicamente, como a autora Del Priore aponta: Os comportamentos femininos não podiam ser dissociados de uma estrutura global, montada sobre uma rede de tabus, interditos e auto constrangimentos sem comparação com o que se vivera na Idade Média. Adestrar a mulher fazia parte do processo civilizatório e, no Brasil, este adestramento fez-se a serviço do processo de colonização (DEL PRIORE, 1993, p.27)

Se essas construções ideológicas foram determinadas historicamente, é na atualidade que as mulheres


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indígenas retiram o véu que as cobriu, e também, as marginalizou, elas passam a ocupar espaços que lhes foram ideologicamente negados, e produzem o que chamamos aqui, nesse artigo, de resistência.

A resistência das mulheres indígenas no Brasil atual Apesar da extensa violência sofrida pelas mulheres indígenas durante o processo de ocupação e expansão do processo colonizador no Brasil, as mulheres indígenas sempre encontraram formas de resistir a essas opressões, mesmo que a resistências lhes custasse a vida. Ao longo dos séculos, apesar da manutenção das desigualdades sociais e construção do discurso que ainda coloca esta etnia à margem da sociedade, políticas públicas no âmbito político passaram a existir para garantir o direito desses sujeitos à existência e propriedade sobre a própria terra, direito esse conquistado após longas décadas de reivindicações. Foi, então, apenas em 1910 que passam a existir os primeiros mecanismos jurídicos e administrativos, em âmbito federal, para garantir os direitos dos povos indígenas. Um marco importante foi a criação da FUNAI – Fundação Nacional do Índio, que é um órgão indigenista garantido pela Lei n° 5.371 de 1967, vinculado até o ano de 2018 ao Ministério da Justiça,

esse órgão institucional passa a proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil, garantindo que sua terra, organização social, línguas, costumes, crença e tradições sejam mantidas em plena autonomia. Essas conquistas só foram possíveis pelas grandes reivindicações desses povos através de movimentos sociais geridos por eles, e as mulheres indígenas são peças fundamentais na luta pela manutenção de seus direitos, como a luta pela proteção de seus territórios, em defesa do meio ambiente, saúde e acesso à educação, bem como, as pautas mais específicas no que diz respeito ao gênero feminino, como a discussão sobre a violência contra as mulheres indígenas.

VOCÊ SABIA? Você sabia que pela primeira vez na história, em 2018, tivemos uma candidata indígena a vice-presidente? Seu nome é Sônia Guajajara, formada em Letras e enfermagem e é especialista em Educação especial pela Universidade Estadual do Maranhão.

Além disso, essas mulheres fazem parte de organizações coletivas como a Associação das Guerreiras Indígenas, a União das Mulheres Indígenas na Amazônia Brasileira, Movimento de Mulheres do Xingu, entre diversos outros que, gerido por elas, garantem a participação na discussão política em

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âmbito nacional, defendendo e garantido a existência destes povos em seus territórios. Assim, nas últimas décadas no Brasil, mulheres indígenas passam a ocupar os espaços sociais que lhes foram historicamente cerceados, ainda que não a maioria, diversas dessas mulheres ocupam as Universidades, os Movimentos Sociais e a Política para que suas vozes ecoem mais forte do que os silenciamentos que foram impostos. Essa voz em sentido de denúncia pode ser encontrada em produções de mulheres indígenas que são escritoras e ativistas, como a Eliane Potiguara, que é professora, escritora e ativista pelo direito dos povos indígenas no Brasil. Em suas produções, podemos compreender a dor do processo de domesticação que a colonização impôs sobre o corpo da mulher indígena, como ela diz neste belo poema:

Não sou violência Ou estupro Eu sou história Eu sou cunhã Barriga brasileira Ventre sagrado Povo brasileiro Ventre que gerou O povo brasileiro Hoje está só… A barriga da mãe fecunda E os cânticos que outrora cantava Hoje são gritos de guerra Contra o massacre imundo. (POTIGUARA, 2004, p. 34-35).

Ainda hoje, esses gritos são necessários, pois a política de extermínio dos povos indígenas continua a ser uma realidade cotidiana, através do governo Bolsonaro, que constantemente coloca em perigo as demarcações das terras dos povos indígenas. Em 2019, o atual presidente transferiu a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura e retirou do órgão o trabalho de demarcar terras. Bolsonaro já defendeu que essas terras fossem abertas para atividades econômicas de mineração e agronegócio, o que poderíamos interpretar como uma forma de exploração e invasão desses territórios na atualidade. O ataque aos povos indígenas partindo do chefe de estado não ficou recluso à esfera discursiva, mas também produziu efeitos práticos nas ações de madeireiros, grileiros e garimpeiros, que se sentem autorizados a invadir terras, assassinando indígenas e tomando territórios para o desmatamento. Inclusive, existe uma Medida Provisória, que está em processo de votação no Congresso, e é conhecida como a MP da grilagem, que legitima essas invasões, pois ela permite que terras desmatadas com até 2.500 hectares (equivalente a 2.500 campos de futebol) se tornem propriedade de quem as invadiu irregularmente. Dinaman Tuxá, líder indígena, em entrevista para o Observatório do Agronegócio no Brasil, afirmou que as


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pessoas estão invadindo as terras porque no final se tornarão donos dela. Com as invasões das terras, esses povos enfrentam outra ameaça, também letal, que é a disseminação do novo coronavírus dentro das tribos, dados recentes da APIB - Articulação dos povos indígenas do Brasil, apontam que, em junho de 2020, 2950 indígenas já tenham sido infectados pela covid-19, tendo 264 falecidos por conta da doença, ao todo são 90 povos atingidos. Por outro lado, mobilizações vem ocorrendo, desde a organização de medidas de autoproteção, bem como, denúncias internacionais, em reunião da Organização das Nações Unidas ONU, sobre pandemia, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) fez amplas críticas a atuação do governo federal brasileiro no enfrentamento ao covid-19 entre os povos indígenas do país. Em pronunciamento lido na reunião, o Conselho lamenta que o governo tenha desconsiderado as obrigações de cuidados especiais com os povos indígenas e que tal feito poderá ter efeitos desastrosos sobre esses povos. Para o presidente nacional do Movimento Indígena do PDT, Rafael Weere, os povos indígenas devem encontrar muita força para superar ''estes novos problemas na luta pela vida, nossa história sempre foi marcada por resistência e união. Não vamos desistir jamais''. Por isso, faz-se necessário resistir, a falta de políticas sanitárias e de enfrentamento ao novo coronavírus

aliado à políticas que concede liberdade à mineradores, madeireiros e grileiros na invasão de terras indígenas pode afetar milhares de vidas.

(Fonte: Sônia Guajajara. Site Xapuri - Socio Ambiental)

Considerações Finais De fato, as mulheres indígenas sofreram violências inimagináveis durante o processo de colonização do território brasileiro, e essas violências se manifestaram de diversas formas, desde a violência física, ao genocídio de seu povo, o etnocídio de sua cultura, o silenciamento de suas vozes, o trabalho forçado, e o estupro de seus corpos. Atualmente essas mulheres encontraram formas de resistir a essas opressões oriundas do discurso opressivo perpetrado contra elas e sua cultura ao longo dos séculos, é através da política, dos movimentos sociais, da coletividade entre os povos indígenas do Brasil que essas mulheres protagonizam discursos de resistências diários. E é através dessa luta que elas florirão, como diz Potiguara:

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Bonito é florir no meio dos ensinamentos impostos pelo poder. Bonito é florir no meio do ódio, da inveja, da mentira ou do lixo da sociedade. Bonito é sorrir ou amar quando uma cachoeira de lágrimas nos cobre a alma! Bonito é poder dizer sim e avançar. Bonito é construir e abrir portas a partir do nada. Bonito é renascer todos os dias. Um futuro digno espera os povos indígenas de todo o mundo. (POTIGUARA, 2004, p. 79).

Ainda há um longo caminho para se percorrer ao encontro da equidade social e de direitos dos povos indígenas, ainda mais enquanto o discurso de quem está no poder continua a contribuir para marginalização de tais sujeitos. É preciso que a população passe a deslegitimar discursos opressivos, bem como, questione as leis que são utilizadas como arma contra a vida de mulheres indígenas e seus povos, é preciso que nos unamos a luta delas, em defesa de nossa história coletiva e ancestral.

Referências: ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Mulher indígena. In: BERND, Zilá (Org.). Dicionário de figuras e mitos literários nas Américas. Porto Alegre: UFRGS, 2007. DEL PRIORE, Mary (org.) & BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/Ed. UNESP, 1997. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo – condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. Brasília: Edunb, 1993. FREYRE, Gilberto. “O indígena na formação da família brasileira”. Casagrande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51ª ed. São Paulo: Global, 2006 (1933), pp. 156-263. GARCIA, Elisa Frühauf. “‘Ser índio’ na fronteira: limites e possibilidades, Rio da Prata, c.17501800”. Nuevos Mundo Mundos Nuevos [online], 2011. ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.POTIGUARA, Eliane. Metade Cara, Metade Máscara. São Paulo: Global, 2004. PRADO JR., C. A revolução brasileira. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1957. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.


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A DESIGUALDADE DE GÊNERO NO BRASIL: O PROTAGONISMO E RESISTÊNCIA DAS MULHERES NA MARCHA 8M Larissa do Prado Martins

Independente de ser possível a compreensão dos homens com relação à luta diária de cada mulher, ainda podemos nos deparar com situações extremamente machistas, que evidenciam a recusa desses homens sobre os direitos das mulheres, tanto em seus discursos, quanto em suas ações, embora isso não justifique ou torne aceitável a desigualdade de gênero. No entanto, também é muito comum encontrarmos mulheres que são interpeladas pelo discurso machista, limitando-se a um comportamento de reprodução desses discursos condicionado pela formação discursiva machista, “sendo determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no

processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas” (ORLANDI, 2012, p. 42) O que enfraquece o número de mulheres que estão por aí reivindicando direitos para todas, ou seja, mesmo para aquelas que não reconhecem a necessidade das mesmas conquistas. Ainda assim, é preciso levar em conta que isso acontece porque vivemos em uma sociedade cuja ideologia dominante é a patriarcal, e as mulheres são culpabilizadas constantemente pela própria repressão que recebem dos homens. E, tudo isso se mostra tanto no plano social, familiar e até mesmo no ambiente de trabalho. Como consequência, nos deparamos com manifestações que dão voz às mulheres como uma reação ao


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machismo que enfrentam diariamente. Então podemos dizer que é possível encontrar na história discursos de resistência ao patriarcado que se manifestam na Marcha 8M. A marcha é uma manifestação que acontece no dia internacional da mulher em prol da igualdade de gênero, direito pela vida de todas as mulheres e combate à violência. E que nos faz lembrar que o dia 8 de março não é apenas uma data de homenagens às mulheres, porque diferentemente de outras datas comemorativas, ela não foi criada pelo comércio, e claramente tem raízes históricas que devem ser lembradas constantemente para evidenciar a importância da luta feminista. Se pudéssemos, então, fazer uma linha do tempo dos primeiros “dias das mulheres” que surgiram no mundo, o dia começaria, possivelmente, com a passeata das mulheres em Nova York, no dia 26 de fevereiro de 1909. Nessa data, as mulheres saíram às ruas em busca de melhores condições de trabalho nas fábricas, mesmo que essa reivindicação não tenha apresentado muitos resultados, já que esse mesmo problema gerou o incêndio que aconteceu em uma fábrica têxtil em 25 de Março de 1911, sendo considerado um grande desastre industrial que causou a morte de uma centena de pessoas (129 mulheres e 23 homens), que morreram no fogo ou que se

jogaram do edifício, visto o descaso das fábricas com as condições de trabalho da época, o que motivou a existência dos sindicatos. Outra data importante que deve ser lembrada é a de 1917, quando as russas socialistas foram às ruas pedir por paz e protestar contra a fome e a guerra. Nesse dia, cerca de 15 mil mulheres marcharam nas ruas da cidade, também por melhores condições de trabalho, pois, na época, as jornadas de trabalho poderiam chegar a 16h por dia, seis dias por semana e, muitas vezes, incluíam até mesmo os domingos, dado que, a situação das mulheres era muito diferente e ainda pior que a dos homens. Enquanto isso, crescia um forte movimento feminista por toda a Europa, que eventualmente se estendeu pelo mundo, sendo uma reação dessas mulheres ao discurso de resistência que começava a ser disseminado na época. E só após a revolução bolchevique, a data que comemora o dia das mulheres foi oficializada para o dia 8 de março.

VOCÊ SABIA? As origens políticas do feminismo vieram da Revolução Francesa (1789). O evento prometia liberdade e direitos políticos a todos. No entanto, houve uma contradição às promessas liberalistas que gerou a exclusão e um apagamento da participação das mulheres nesse evento.

Com isso, é muito comum nos depararmos com menções ao feminis


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mo ligadas às “ondas feministas”, momentos em que há uma verdadeira onda de movimentos organizados, e que culminaram na propagação do discurso pela liberdade. E isso quer dizer que, em alguns desses acontecimentos históricos citados anteriormente, houve uma transformação nos discursos sociais que acabam por permitir o acontecimento discursivo da formação discursiva feminista, sendo lembrados hoje por suas particularidades, pois, cada onda carrega determinadas pautas que insurgiram e dominaram debates. Por isso, é comum que se fale nas três ondas feministas, por conta das pautas majoritárias e principais dos movimentos que se relacionam com cada momento histórico específico, e que comportam diferentes posiçõessujeito dentro da formação discursiva feminista, podendo ser identificadas se avaliarmos a posição de cada grupo de mulheres em um determinado período. Sendo constituídas por tais circunstâncias históricas, a Marcha 8M acontece para reunir mulheres que tem suas diferentes lutas, em favor de causas comuns. Em razão disso, essas lutas evidenciam a permanência da desigualdade de gênero até hoje, mesmo fazendo mais de cem anos que as primeiras mulheres resistiram a esses acontecimentos, a opressão continua, e persiste da pior forma possível, como mostra na imagem a seguir:

Figura 1:

(Fonte: Jornal Brasil de fato)

A imagem mostra trabalhadoras do campo e da cidade que tomaram as principais ruas de Cametá (PA), na Marcha 8M, em busca de fazer denúncias às injustiças e violências sofridas pelas mulheres. Inicialmente podemos perceber que a mulher que carrega o cartaz é uma mulher negra, com a boca coberta por uma faixa branca e que apresenta a seguinte frase: “O silêncio mata”. A partir disso, podemos refletir sobre o silenciamento das mulheres, mais especificamente sobre “a invisibilidade da mulher negra como categoria política e denunciar esse apagamento” (RIBEIRO, 2017, p. 16), que se faz não só agora, mas desde antes do sufrágio feminista, quando


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estas que também estavam na linha de frente lutando pelos direitos igualitários entre homens e mulheres, não ganharam notoriedade por suas ações, e muito menos tiveram suas necessidades específicas pautadas pelo movimento. Esse silenciamento, não se direciona apenas à luta referente ao feminismo negro, como também, ao silenciamento de todas as mulheres que sofrem com a violência doméstica, sejam estas mulheres brancas ou negras. No cartaz, podemos encontrar a frase “vamos falar sobre feminicídio sim!”, que nos direciona a pensar que essa imposição pressupõe o discurso de que as pessoas não devem tocar no assunto para não ter que expressar a sua opinião sobre o ponto específico, além de ser uma resposta ao discurso marcado no ditado popular: “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, que é evidenciado por meio do não-dito. Em seguida, tem-se o enunciado “Respeite minhas escolhas, meu corpo, minha vida!”, no qual é possível perceber a luta contra a imposição de que a mulher deve seguir alguns padrões para que só então, ela mereça o respeito. Para Pêcheux, trata-se de assujeitar os sujeitos inseridos em determinadas relações de produção, de tal forma que esses sujeitos não poderiam sair desse assujeitamento a não ser através de uma espécie de ato de heroísmo. Althusser se referia a isso ao falar de um “mau” sujeito, ou seja, o sujeito rebelde ao assujeitamento. (1995)

O mau sujeito seria aquele que, ao não concordar com o assujeitamento, resiste às exigências da classe dominante. Assim, reivindicando os seus direitos e criticando “os privilégios daqueles a quem acostumou creditar o lugar dominante” (COSTA, 2019, p. 276). Nesse caso, ao se manifestar, as mulheres ocupam o lugar de mausujeito, não se assujeitando ao que se espera da posição-sujeito de uma mulher dentro da formação discursiva dominante, que é configurada segundo a ideologia do patriarcado. Ao pedir que haja respeito em suas escolhas, podemos pensar nas mulheres que são julgadas por não querer ter filhos, por ter mais autonomia no ambiente trabalho, por ser mãe solo ou por qualquer outro motivo que fuja do padrão determinado pela sociedade. Além disso, também há uma ilustração no cartaz, com o desenho de uma mulher com a mão cobrindo o rosto, e que se relaciona com o restante do enunciado “...meu corpo, minha vida”, e que remete às pautas reivindicatórias de outra marcha, a Marcha das vadias. A marcha das vadias é um movimento que surgiu no Canadá em abril de 2011, e desde então se internacionalizou, sendo realizado em diversos países do mundo. O movimento protesta contra o discurso de que as mulheres que são as vítimas de estupros teriam “provocado” a violência por seu comportamento, roupas ou modo de falar. Em


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consequência, as mulheres, durante o ato, usam roupas que são consideradas provocantes como lingeries, saias curtas ou apenas sutiãs, com o intuito de provar que não importa a roupa que estão usando, ainda assim, as mulheres merecem respeito, e a vítima não pode ser culpabilizada pelo ato de violência do agressor, dentro ou fora de casa.

Figura 2:

(Fonte: Jornal Brasil de fato)

Por ser um movimento heterogêneo, a Marcha 8M abre espaço para outros movimentos, com a inserção de grupos de mulheres que têm suas lutas específicas ou particulares, no entanto, com algumas reivindicações em comum, assim como foi mostrado na imagem anterior com a marcha das vadias. Em vista disso, podemos encontrar dentro dessa formação discursiva, diversas posições sujeitos, que são determinadas pelas formações ideológicas, tal que definiu Pêcheux:

A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada - ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura-histórica dada - determina o que pode e deve ser dito (2012, p. 43)

Nesse contexto, na figura 2 encontramos mulheres na cidade de Belém (PA) encerrando o ato da Marcha 8M com o manifesto "o estuprador és tu", inspirado na manifestação de mulheres contra a violência no Chile e que se espalhou pelo mundo.

Estuprador é você, O patriarcado é um juiz que nos julga por nascer E o nosso castigo é a violência que você vê É o feminicídio, a impunidade para os assassinos, É o desaparecimento É o estupro A culpa não é minha, nem onde estava, nem como me vestia

Link de acesso: https://youtu.be/aB7r6hdo3W4

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A música e a coreografia é de autoria do coletivo interdisciplinar chileno Las Tesis, e foi apresentada pela primeira vez nas ruas de Valparaíso, a 120 quilômetros da capital chilena, em meio a uma série de intervenções organizadas por um grupo de teatro local. Em questão de dias, a performance se expandiu e se tornou um fenômeno internacional, sendo interpretada por milhares de mulheres em diferentes cidades ao redor do mundo. E, acima de tudo, se tornou um hino feminista, ao denunciar a violência contra as mulheres e expor as teses feministas sobre um estado opressor que desde o início dos tempos confina as mulheres a uma posição inferior à dos homens. Nesse sentido, podemos entender a coreografia las tesis como um “acontecimento artísticodiscursivo”, por “pensar sobre a performance para além da arte, buscando investigar se o corpo em protesto pode ser tomado como ato performático, estreitando as relações entre o corpo, o discurso, a arte e a subversão" (COSTA, 2019, p. 276). Assim, a performance passa a ser uma forma dessas mulheres se manifestarem e resistirem à opressão que elas sofrem desde sempre.

VOCÊ SABIA? A chegada da pílula anticoncepcional foi um desenvolvimento da ciência, mas não foi só isso. Nos Estados Unidos e nos principais países da Europa, as mulheres se mobilizaram pela sua emancipação no que mais tarde seria conhecido como a segunda onda feminista

Figura 3:

(Fonte: Jornal Brasil de fato)

A figura 3 nos mostra um grande grupo de mulheres carregando uma faixa reivindicando direitos. Nesse caso, é comum encontrarmos em uma manifestação faixas como esta, através das quais, as mulheres exigem o direito à democracia. Afinal, desde antes do sufrágio, as mulheres resistem a essa desigualdade que influencia até hoje a existência apenas de 10% das mulheres no congresso nacional, embora elas façam parte de 52% da população. Nesse cenário, podemos dizer que o exercício da política deveria ser uma forma de pleitear direitos, cidadania, acesso a bens e políticas de assistência para pluralidade de grupos sociais que compõe uma sociedade. Entretanto, no caso do Brasil, apesar da grande diversidade étnica, racial, de gênero e etária, a política é monopólio de uns, e a maioria da população não está sendo igualmente representada nas estruturas de poder instituídas. E, essa representação é ainda menor para a população negra e povos indígenas.


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Por isso, movimentos como a Marcha 8M são importantes para que esses determinados grupos se reúnam e ganhem voz em favor de seus direitos, visto que as leis para o bem comum de todos são discutidas pela classe dominante. Assim fica fácil entender porque suas demandas quase sempre são desconsideradas. Dessa forma, esses grupos seguem resistindo, e denunciando as interdições de um sistema patriarcal, capitalista e racista às minorias, na luta por um estado democrático de direito.

Figura 4:

(Fonte: Jornal Brasil de fato)

Ainda assim, encontraremos em diversas manifestações faixas como a que é apresentada na figura 4, que em seu contexto exibe o descontentamento das mulheres com relação ao presidente da república. Não será difícil, também, encontrar em noticiários ou entrevistas em que o presidente Jair Bolsonaro dissemina falas discriminando as mulheres,

tornando esses atos práticas recorrentes, e fortalecendo a legitimação desses discursos de ódio direcionados às mulheres, sem levar em conta o fato de que, o Brasil, está em quinto lugar no ranking entre os países por casos de feminicídio, sendo que 66% dos casos acontecem dentro de casa, e só entre 2019 a 2020 tivemos um aumento de 12% desses casos, por isso, os dados apontados só reforçam que os discursos de ódio do presidente direcionado às mulheres, faz com que os agressores pensem que é aceitável a violência contra a mulher. E mais uma vez, as mulheres precisam resistir a essa tentativa de desqualificálas como pessoas que não são capazes de desempenhar as mesmas tarefas que os homens, além de serem culpabilizadas por sofrerem violências, ou consideradas “vadias”, por não se adequarem ao que se espera da sociedade, e até mesmo por revoltar-se ao absurdo que é desigualdade de gênero no país. Nesses termos, podemos refletir também sobre o que vem sendo feito pela pastora evangélica e ministra da mulher, da família e dos direitos humanos, Damares Alves, que atua no cargo desde a atualização do novo governo, e que traz em seus discursos posicionamentos que são interpelados pelo discurso machista. No entanto, a ministra declarou em notas para os jornais a sua posição sobre a mulher na sociedade, deixando o protagonismo da mulher de lado, e sugerindo que as mulheres também

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podem atuar no mercado de trabalho desde que ainda cumpram as tarefas domésticas, cuidem dos filhos e do marido, e se dediquem a “consertar as bobagens feitas pelos homens”, ainda deixando claro que a ausência das mulheres em casa pode afetar a criação dos filhos, como se esta fosse uma tarefa única e exclusiva das mulheres, isentando os homens dessas responsabilidades.

discurso de que a mulher está ligada à reprodução, visto que, a imagem da mulher sempre esteve atrelada, social e economicamente, a sua função reprodutiva, e ao patriarcado, assim como o capitalismo insiste até hoje na exploração dessa capacidade discriminando as mulheres com base em seu sexo.

1 ° Discurso da ministra Damares:

Em função desses acontecimentos, podemos dizer que os diversos desafios e conquistas dos movimentos feministas assumiram distintas posições-sujeitos ao decorrer do tempo, sendo ressignificadas a partir das condições de reproduções de cada época. Dessa forma, podemos afirmar que

“A mulher nasceu para ser mãe. Também, mas ser mãe é o papel mais especial da mulher. A gente precisa entender que a relação dela com o filho é uma relação muito especial. E a mulher tem que estar presente. A minha preocupação é: dá pra gente ter carreira, brilhar, competir, consertar as bobagens feitas pelos homens. Sem nenhuma guerra, mas a gente conserta algumas. Dá pra gente ser mãe, mulher e ainda seguir o padrão cristão que foi instituído para as nossas vidas”. Fonte: Hypeness

Nesse pronunciamento, é perceptível a sua identificação com a ideologia patriarcal referenciada pela formação discursiva religiosa de onde ela fala como pastora de uma Igreja Evangélica, e que esclarecem a posição dela sobre a representatividade da mulher na sociedade. Ao falar que “a mulher nasceu para ser mãe”, ela distancia as mulheres da sua própria essência que foi ressignificada após a segunda onda feminista, e aproxima ao

Considerações finais

a ideologia sempre-já, interpelou os indivíduos como sujeitos, o que nos leva a precisar que os indivíduos são sempre-já interpelados pela ideologia como sujeitos, e nos conduz necessariamente a uma última proposição: os indivíduos são sempre-já sujeitos (p. 102, 1970, ALTHUSSER)

Nesse contexto, todas essas ressignificações na verdade são os efeitos de sentidos produzidos ideologicamente por uma formação discursiva feminista, que existe em função da existência da formação discursiva machista, e que são reproduzidos e modificados em um novo período, dando início a


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diferentes posições-sujeitos. E tudo isso só é possível devido, ainda, à existência da opressão que determina como seu oposto o discurso de resistência. Por isso, de fato, as mulheres sofreram muito em virtude da opressão engendrada pelo discurso machista. No entanto, o novo governo brasileiro nos mostra que não há garantias de que esses poucos direitos adquiridos serão mantidos, visto a propagação do discurso machista e o número de mortes por feminicídio que segue crescendo porque o discurso machista ainda

persiste e até mesmo o de ódio que objetifica a mulher, e ainda tira-lhe a humanidade. Em vista disso, não devemos deixar esses acontecimentos caírem no esquecimento para que a luta das mulheres contra a desigualdade de gênero tenha continuidade. Posto isso, cabe aos movimentos unir-se em torno de uma causa em comum que é a desigualdade de gênero para que só então todas possam reivindicar que o governo invista em políticas que possibilite e garanta direitos iguais para ambos os gêneros, como acontece na Marcha 8M.

Referências CAMARGO, Gilson. Aborto: quando a lei mata. Extra Classe, 2018. Disponível em: https://www.extraclasse.org.br/geral/2018/09/aborto-a-lei-mata/. Acesso: 08 de maio de 2020. ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1RZPfxPNqbdhqG5dng3souWqXnsIaobx/view?usp=drivesdk PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trdadução Eni Pulcinelli Orland - 2 edição - Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte, MG: Editora Letramento, 2007. PFEIFFER., Claudia. FONTANA, Mónica. Discurso, cultura e mídia: pesquisas em rede. RS: E-book Copyright, 2019. SANTOS, Magda. O feminismo e suas ondas. Cult, 2017. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.

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O ABORTO COMO FORMA DE RESISTÊNCIA Shéren Salvo Freire

O sujeito mulher negra brasileira chegou ao país durante a escravidão por meio da opressão e sofre com ela até os dias de hoje, pois teve sua imagem construída pela ideologia escravagista, consequentemente, as violências que sofreu no período seguiram até a época atual. Uma das violações sofridas pelas escravas que se perpetua até hoje é a de seu corpo. A escrava era abusada sexualmente, obrigada a ter um filho fruto de um estupro e, não obstante, era obrigada a ser ama de leite, esta mulher não possuía poder algum sobre seu corpo, era silenciada por sua condição de propriedade do senhor de escravos. Essas agressões não se perpetuaram só fisicamente, já que, para amenizar os efeitos do abuso sexual e culpabilizar a vítima, criou-se todo um imaginário da mulher negra como “safada”, “gostosa”, “fácil” e hipersexualizada. O entendimento de mulher hipersexualizada, na verdade,

mascarava a violência sofrida por elas, pois gerava o imaginário de que o homem branco, ao abusá-la sexualmente, a via como feminina ou como mulher, mas na verdade não, como diz Angela Davis (2016, p. 25):

Mas as mulheres também sofriam de forma diferente, porque eram vítimas de abuso sexual e outros maus-tratos bárbaros que só poderiam ser infligidos a elas. A postura dos senhores em relação às escravas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmea.

Acho interessante ressaltar que, da mesma forma que não recebia nenhum alívio da opressão por ser mulher, a escrava também não


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recebia nenhum amparo por estar grávida ou ser mãe, quando grávida, ela deveria trabalhar da mesma forma que os outros escravos. Davis (2016, p. 25) diz: “na verdade, aos olhos de seus proprietários, elas não eram realmente mães, eram apenas instrumentos que garantiam a ampliação da força de trabalho escrava” de forma igual, Mott (2016, p. 8) fala que os proprietários de escravos eram aconselhados a tratar “bem seus escravos para que eles ficassem felizes e assim reproduzissem servos e servas”, com isso, gerando mais mão-de-obra escrava para o senhor de escravos, e imediatamente, gerando mais lucro. Esse pensamento nos remete ao que diz Althusser (1980) quando explica que as condições de produção devem ser reproduzidas, ele mostra que uma forma de reproduzir a mão-de-obra é através da ideologia por intermédio da escola. No caso da escravidão, não era interessante reproduzir uma ideologia, pois os escravos não tinham o direito de pensar sobre trabalhar ou não, eles eram obrigados, então o método mais fácil era eles próprios se reproduzirem. Ribeiro (2017) nos diz que as escravas utilizavam o aborto como forma de resistência a essa dominação do senhor de escravos. Muitos autores consideram que a resistência da mulher escrava ao abortar era apenas para impedir que seu filho fosse exposto à escravidão, mas com isso eles ignoram toda a questão da escrava ser objetificada e silenciada

(Imagem retirarda do Google)

pelo senhor de escravos que a submetia ao estupro e, ainda, lucrava com sua gravidez. Isso se dava de duas formas: seria mais um escravo para mão-de-obra e, a escrava poderia servir de ama-de-leite para os filhos do senhor. As escravas não consentiam com a ideia de ser ama-de-leite dos filhos dos senhores, o que não é de se espantar, visto que elas deixavam de amamentar seus próprios filhos para amamentar os filhos dos senhores. Há registros, de acordo com Mott (2016), que mostram que as escravas colocavam pimenta no bico do seio ou davam um pedaço de tecido para que as crianças chupassem. Em contrapartida, nos dias atuais, as mulheres negras seguem sendo objetificadas e silenciadas pela ideologia dominante que hoje é difundida pelos aparelhos ideológicos de Estado e não mais pelo senhor de escravos. Segundo Althusser (1980), o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia, por conseguinte, a imagem da mulher negra é constituída sobre o preconceito de sujeitos interpelados por, pelo menos, duas formações

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discursivas, a racista e a machista. Ambos os discursos são ideologias dominantes, usadas como armas para padronizar e determinar os sentidos que circulam em nossa sociedade. Essa ideologia dominante faz com que a mulher negra ainda seja a que mais recorre ao aborto e a que mais morre por conta da sua criminalização, visto que ela não tem condições de pagar para realizar o aborto em uma clínica com um profissional da área médica. Podemos afirmar que a mulher negra faz do aborto também uma forma de resistência, seja devido à estrutura do racismo que não permitiu que o povo negro recebesse nenhum tipo de reparação por conta da escravidão, por isso, assim como a escrava, a mulher que aborta, muitas vezes, é mãe solteira, trabalha sem carteira assinada e não recebe qualquer auxílio do governo para ter o filho; seja devido às tentativas do governo em desumanizá-la criando situações para dominá-la de acordo com as suas conveniências, como a criminalização do aborto ou esterilização de mulheres forçadamente. Neste texto, tenho o intuito de analisar o discurso de resistência das mulheres negras sobre a criminalização do aborto. Para isto, irei analisar as falas de duas mulheres que estão dentro do movimento feminista negro, cujo discurso tem alguma influência na sociedade brasileira. São elas, a mestre em filosofia política e colunista do jornal “Folha de São Paulo”, Djamila Ribeiro

(Lívia Casseres - fonte: STF Notícias)

e a Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro e coordenadora do Núcleo Contra a Desigualdade Racial (NUCORA) Lívia Casseres.

Recorte 1 O primeiro recorte que irei fazer é da fala da filósofa Djamila Ribeiro em um debate sobre o aborto que ocorreu em São Paulo, no ano de 2016. O vídeo do debate está publicado no canal de YouTube sob o título de “Az Mina”, um instituto sem fins lucrativos que têm por objetivo combater os diversos tipos de violência que atingem as mulheres brasileiras. A filósofa inicia sua fala com a famosa frase de Simone de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se”, e explica:


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SD1: Porque, quando a gente nasce essas construções elas são anteriores a nós, então, a gente já nasce em uma sociedade onde já existem todas essas determinações e destinos e um dos destinos da mulher atribuídos nessa sociedade é ser mãe. Então eu acho que essa questão do aborto ser crime tem relação direta com a maternidade compulsória... Então, a mulher “tem” que ser mãe, ela “deve” ser mãe “porque é um destino”, “porque é natural” “isso faz parte da natureza feminina”, né? Então, eles querem naturalizar construções que foram feitas socialmente, posições sociais.

Segundo Orlandi (2009), os discursos já estão em processo antes de nascermos, nós apenas entramos nesse processo, eles não se originam em nós. O que se aproxima da fala de Djamila Ribeiro ao citar Simone de Beauvoir, quando diz que antes da mulher nascer ela já têm um destino, isso causa o efeito de sentido de que a cultura brasileira é fundamentada no machismo e racismo estruturais, e que estes determinam o modo como os sujeitos devem levar suas vidas.

SD2: então, a Simone de Beauvoir, ela fala, quando a gente cria determinações para um sujeito, a gente está colocando ele em condição de objeto, a gente está negando a humanidade. A mulher vive numa sociedade onde ela não tem o direito de se colocar como um sujeito que faz as suas escolhas, um sujeito que pode escolher os seus caminhos [...].

(Djamila Ribeiro - fonte: fronteiras.com)

Nessa SD, a filósofa ressalta que a mulher vive em uma sociedade em que ela não têm direito de escolha e que têm sua humanidade negada. Para Eni Orlandi (2012), o sujeito é pensado como posição no discurso, logo, as mulheres citadas por Djamila são proibidas de se posicionarem como sujeito para reproduzir seus discursos, pois elas ganham o imaginário que é atribuído a elas pela sociedade, sendo assim silenciadas.

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SD3: é interessante falar que o Estado, ele cria várias formas de controle do corpo da mulher, por exemplo, na década de 80 as mulheres negras eram esterilizadas forçadamente pelo Estado brasileiro. Em 91 existiu uma CPI conhecida com a “CPI da esterilização”, então as mulheres negras eram esterilizadas como uma forma, né... De não nascer mais pessoas negras [...] Essa esterilização forçada mostra como o Estado cria várias formas de controle do corpo da mulher, sobretudo do corpo das mulheres negras e mais pobres, né... Então, eu entendo a criminalização do aborto como uma violência de Estado, eu acho que tem que ser discutida por esse viés [...] A mulher negra vem sendo violentada sistematicamente, de várias formas e essa é mais uma forma, né...

Na SD3 Djamila Ribeiro mostra como o discurso dominante propagado pelos aparelhos ideológicos de Estado, - como a família patriarcal, a mídia, a escola, - consegue ter poder sobre a sociedade, ditando o lugar que cada sujeito deve ocupar e “justifica a atuação desse aparelho repressivo, falando de ordem e segurança sociais” (GONZÁLES, 1979 apud GONZÁLES, 2018). Esse exemplo da esterilização de mulheres em massa aponta o corpo da mulher negra como propriedade do Estado, visto que esse mesmo Estado, hoje, criminaliza a realização do aborto e, com isso, mata milhares de mulheres por ano, em sua maioria, as negras.

Recorte 2 O segundo recorte apresenta o discurso da defensora pública do Estado do Rio de Janeiro, Lívia Casseres, durante audiência pública da “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442” que ocorreu entre os dias 3 e 6 de agosto de 2018 no Supremo Tribunal Federal. O vídeo da audiência está disponível no canal de YouTube sob o título de “Vozes da Igualdade”. Ao defender a descriminalização do aborto, a defensora diz que:

SD4: não por acaso, as mulheres negras seguem preferenciais de violência obstétrica, ocorrências de morte materna, esterilização forçada e até crimes de feminicídio. O princípio constitucional da igualdade, na sua faceta estrutural impõe ao Estado brasileiro a obrigação positiva de promover condições de proteção igualitárias para mulheres brancas e não brancas em relação a sua vida no momento de praticar um aborto.

Nessa SD, Lívia Casseres nos mostra como o imaginário racista construído para o povo negro, principalmente para a mulher negra, por conta da falta de condições dignas dadas pelo governo para que esse povo pudesse se reerguer economicamente após a escravidão fez com que as mulheres negras não possuam as mesmas condições que


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as mulheres brancas para abortar, visto que para realizar o aborto seguro em uma clínica é necessário ter dinheiro para pagar por isso.

SD5: durante o processo de deliberação constituinte em 1988, a discussão da questão do aborto pela população brasileira se tornou absolutamente inviável, diante da distribuição de poder que foi estabelecida naquele espaço. O pacto social e racial firmado em 1988 foi entabulado por nada menos que 594 parlamentares homens brancos, dentre os quais havia apenas 26 deputadas mulheres, uma única delas negra, a constituinte ‘Benedita da Silva’. [...] A chancela de uma política penal para o aborto, adotada por uma elite política legiferante, branca, heterossexual e masculina, muito distante de ser porta voz de um consenso social, significaria avalizar esse contrato sexual e racial.

Na SD6, Lívia Casseres, ao abordar o fato de que durante a deliberação da constituinte de 1988, havia em sua maioria homens brancos discutindo sobre a questão do aborto exterioriza a ausência de sujeitos-negros nos espaços de poder mesmo que aproximadamente 50% da população brasileira se considerem negra. Ao comentar esse acontecimento histórico, ela mostra como a ausência de pessoas negras nesses espaços produz o efeito de naturalidade, torna-se natural que os negros não tenham o direito de tomar a decisão sobre seu destino, e

VOCÊ SABIA? “Em 1980, em Belford Roxo, uma mulher negra, de uns 27 anos, Marli Pereira da Silva, em plena ditadura militar, resolvera enfrentar os grupos de extermínio para afirmar que seu irmão Paulo Pereira da Silva, de 19 anos, fora assassinado por policiais militares infiltrados nestes grupos. Sem temer as ameaças de morte, Marli esteve em delegacias e batalhões tentando reconhecer os assassinos de seu irmão. Uma fotografia dela nos jornais da época destaca a mulher pobre e negra olhando firme para a multidão de policiais perfilados no pátio do batalhão da Polícia Militar, em Nova Iguaçu, numa tentativa de reconhecer os assassinos.”

principalmente, torna-se natural que as mulheres negras não decidam sobre seu destino e sejam, assim, silenciadas. Gonzáles (2018, p. 3) ao falar que os negros não possuem o direito de se posicionar explica “temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos)”, neste caso os “adultos” seriam os homens brancos. Busquei compreender neste artigo como o racismo estrutural afetou a mulher negra, discorrendo sobre como a ideologia dominante que oprimia a escrava se perpetuou até os dias de hoje. Para finalizar, afirmo

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que a ideologia pôde se perpetuar pois seguiu sendo produzida pelos aparelhos ideológicos de Estado e, isso ocorreu pelo processo parafrástico de significação. É possível afirmar também que é de muita importância o discurso de militância das duas mulheres

analisadas, pois eles resistem aos discursos que concretizam a ideologia dominante, com isso, ganham visibilidade nas mídias alternativas, fazendo resistência ao discurso do Estado.

Referências ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Santa Catarina: Editorial Presença, 1980. Audiência Pública ADPF 442. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Ny31sXYfmws>. Último acesso em 20/04/2020 às 18h30min. GONZÁLEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. São Paulo: Diáspora Africana, 2018. Acesso em 17/07/2020 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016. Debate sobre a criminalização do aborto “#PrecisamosFalarSobreAborto”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eZkEdpfGzV0>. Último acesso em: 20/04/2020, às 12h13min. RIBEIRO, Djamila. Feminismo negro: para além de um discurso identitário. Revista Cult, 2017. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/feminismo-negro-para-alem-de-umdiscurso-identitario/>. Acesso em, 20/04/2020. MOTT, Maria Lucia de Barros. Ser mãe: a escrava em face do aborto e do infanticídio. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/18594/20657> Acesso em: 16/05/2020 ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. Campinas: Pontes, 2009.


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DISCURSOS DE RESISTÊNCIA: A LUTA PELO RECONHECIMENTO DA CLASSE DAS DOMÉSTICAS. “ELA É COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA...” “MAS SERÁ QUE ELAS FAZEM PARTE DA SUA FAMÍLIA”. Arthur Teixeira Ernesto

Primeiramente, dedico esse texto a todos os sujeitos que se dedicam aos trabalhos domésticos, principalmente, as mulheres que somam a maior parte da categoria da profissão doméstica, em especial para as minhas tias, irmãs e, principalmente, a minha mãe, que há mais de 15 anos se dedicou entre os trabalhos de dentro e de fora de casa, que sempre acreditou no meu esforço para “ser alguém na vida” (estou indo aos poucos, mãe). Certamente, você já fez alguma leitura literária produzida a partir do discurso escravocrata, certo? Caso você não tenha lido algum do gênero, eu trago/indico o livro “As vítimas-algozes”, de Joaquim Manuel

de Macedo (1869) e boa leitura. Para introduzir o tema de pesquisa que é sobre as domésticas, eu remeto ao título “Lucinda, a mucama”, que faz parte da terceira parte do estilo romântico de “As vítimas-algozes”. E não só na leitura desse livro, mas como em outros que já li, me deparei com as palavras mucama, ama de leite, aia, costureiras, pajens, criada, lacaia, serva, subalterna (palavras usadas para referir às escravas) e, com o passar dos tempos, esses termos foram ficando em desuso e trocados pelos vocábulos de empregada ou empregada doméstica, colaboradora, faxineira, diarista, babá, baby sitter, cuidadora, cozinheira, secretária do ar, entre outros


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significantes para designar a trabalhadora doméstica. E, através dos livros que podemos perceber como se dá a relação entre classe e raça. Este é o caso da obra infantojuvenil “Sítio do Picapau Amarelo”, escrito por Monteiro Lobato (1921), no qual temos personagem chamada Tia Nastácia, que trabalhava no sítio e ao mesmo tempo morava no seu ambiente de trabalho. Há também, na obra fílmica, a protagonista Val, interpretada pela atriz Regina Cazé, do filme “Que Horas Ela Volta?” (2015), sobre a direção de Anna Muylaert. Sendo assim, o que têm em comum com ambas histórias? É que são histórias sobre senhoras mais velhas que são tratadas ”como se fossem da família”. Mas será que elas são realmente membros das famílias dos seus empregadores? Não, porque é perceptível que as personagens não fazem parte da família dos seus empregadores, pois a ficção materializa a ideologia social dominante ou representa a estrutura social em que a história é produzida. Sendo assim, a historicidade indica que essa profissão é uma das mais antigas do mundo. E, que séculos após séculos, a categoria dos trabalhadores domésticos vivem em uma contradição de luta, porque há aqueles que se subordinam por questões de sobrevivência e também, por se tratar de uma ideologia dominante que inferioriza esses trabalhadores, e há os que lutam por reconhecimento, pois infelizmente, é uma das classes mais invisíveis na nossa sociedade.

Para fazer as análises, recorrerei ao campo teórico da Análise de Discurso que

visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos. Essa compreensão, por sua vez, implica em explicar como (o texto organiza os gestos de interpretação que relacionam sujeito e sentido (ORLANDI, 2012, p. 26).

Portanto, a partir dos objetos/fatos que irei utilizar nas análises, irei mobilizar os efeitos de sentidos produzidos pelas e sobre as domésticas. Além disso, recorrerei ao aporte teórico da obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, de Louis Althusser (1980).

O trabalho doméstico a partir da escravidão Historicamente, nos tempos do Brasil Colônia (1500 a 1822), em que, através da iniciação do ciclo do açúcar (1553) e da mineração (1750), impulsionou-se o tráfico negreiro como atividade mercantil que trouxe mulheres e homens negros do continente africano para o Brasil, com a finalidade de servir aos engenhos ou à casa branca, cuidando das plantações ou trabalhando para as sinhás. Possivelmente, é a partir daí que se inicia a mão de obra barata no nosso país, e potencializa as desigualdades


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entre brancos e negros, porque as escravas que trabalhavam na casa grande dormiam em pequenos cômodos, como as senzalas ou nos porões das casas grandes para não terem muitos contatos com os seus patrões. Em consequência disso, fazendo uma análise nos classificados de jornais atuais, percebe-se que essa prática ainda é comum, pois ainda vivemos num país que tem adoração por cultivar as tradições dos séculos passados. Como exemplo o Brasil Imperial, esses discursos se materializam, porque é comum lermos anúncios discursivos de imóveis com “dependência ou quarto de empregada”. Por isso, o discurso escravagista de certa forma se mantém no modo como são tratadas as trabalhadoras domésticas,

VOCÊ SABIA? Segundo Mario Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal e especialista em emprego doméstico, a classe conta com mais de seis milhões de colaboradores e 93% são mulheres e apenas 7% são homens, esse índice é baixo, porque vivemos em sociedade preconceituosa e machista no mercado de trabalho doméstico e, dentre outros ambientes de trabalho, porque ainda a questão é compreender como se produz essa relação entre gênero, raça e classe, com foco nas domésticas. Vale ressaltar que as ocupações domésticas não são apenas de faxineiro ou mordomo, mas também se inclui nessa categoria caseiros, jardineiros, motoristas ou chofer da família.

pois esses cômodos são apertados, com pouca iluminação e ventilação, assim como os lugares onde os escravos dormiam na época colonialista. E, ainda retratando os tempos de Brasil Colônia, os utensílios domésticos dos burgueses também eram separados dos sujeitos que eram escravizados, pois “havia” um imaginário sobre o negro a partir da imagem de escravo de que eram sujos, então,

o quarto de empregada foi criado como uma forma de controlar a jornada de trabalho da empregada doméstica, levando-a ao isolamento e ao desconforto [...], uma vez que os “laços e dependências afetivas recíprocas entre a trabalhadora e a família são diluídos na distância física, redimensionando-se para o reconhecimento do valor profissional da trabalhadora. Depois, porque ao morar na casa dos empregadores a trabalhadora fica na dependência dos horários dos donos da casa” (SANTOS, 2010, p. 35, apud DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 415).

Sendo assim, através desse discurso, percebe-se que, por mais que os anos foram passando, ainda há uma resistência da cultura desde os tempos escravocratas até os tempos de hoje, por manter nas casas essas comodidades pequenas para as empregadas domésticas, talvez como justificativa de que as domésticas não necessitassem de espaço e conforto. Isso ocasiona a manutenção da dominação e da opressão, hoje mais velada, pelo discurso de que as

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domésticas são tratadas como fossem pertencentes da família dos seus patrões. E, vale ressaltar que,

o quarto da empregada mantém a relação com o trabalho escravo, pois conserva a presteza servil do século XIX, impede o controle da trabalhadora sobre sua jornada de trabalho e tempo de descanso, além de afastar essas mulheres do convívio com suas próprias famílias (SANTOS, 2010 apud DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 415).

Portanto, historicamente, a mulher negra sempre carregou consigo as dores, as mágoas e principalmente, as marcas das chibatas, pois eram submetidas pelos seus patrões a trabalharem por horas ou trabalhavam por troca de comida ou/e água e as

relações entre senhores e escravos, que eram pautadas no amor e ódio, nas condições de trabalho desenvolvidas no acordo pessoal, no entendimento, na colaboração, exploração, bem como por meio da convivência diária, que obscurecia a separação entre atribuições e gentilezas, direitos e deveres e, principalmente, empregados e patrões (FREYRE, 2003, apud DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 415).

Portanto, por meio do autoritarismo dos patrões, as mulheres negras eram repudiadas, humilhadas pelos seus empregadores, também, eram vítimas de assédios morais e sexuais pelos seus patrões, muitas eram submetidas ao sexo forçado com os seus

empregadores, porque os seus corpos eram vistos como propriedades dos patrões. Anos depois, com o fim do Brasil Colônia, iniciou-se o Brasil Império (1822 a 1889) dando continuidade àquelas práticas de segregação cometidas no período do Brasil Colônia entre sujeitos brancos/burgueses e negros/escravos, pois ainda havia escravidão e, o Brasil ainda continuava com as exportações de negros/as trazidos/as de forma cruel em porões de navios, em más condições de higiene e saúde, em longuíssimas viagens. No entanto, os sujeitos que vinham nas embarcações de forma ilegal e desumana acabavam se alimentando de fezes e urinas. E, só no meio do século XIX, que começaram a surgir os movimentos abolicionistas, um desses reflexos foi a extinção do tráfico de escravos no país (1850). Logo, decretada a Lei do Ventre-Livre (1871), que beneficiava os recém nascidos de escravos a serem livres após essa lei. Posteriormente, foi promulgada a Lei Saraiva/Cotegipe/Sexagenários (1885), que libertava os sujeitos negros com mais de 65 anos de idade. Em virtude dos fatos mencionados, percebe-se que, através desses discursos, o Brasil já estava na tentativa de libertar os/as escravos/as e, mesmo com a extinção do tráfico de negros/as ainda havia uma concentração de trabalho escravo nos estados da Bahia, Recife e Rio de Janeiro (cidade que sempre obteve maior número de sujeitos escravizados). Ainda convém lembrar


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que, mesmo com o tráfico clandestino de escravos, os negros/as que eram apreendidos nas embarcações pela polícia ou pelos órgãos de fiscalização ficavam sob custódia do governo e eram obrigados a trabalhar nas propriedades das autoridades ou servir às repartições do governo, até voltarem para os seus países de origem. Além disso, com a criação da Lei do Ventre Livre (1871), ainda houve casos de filhos de escravos que foram abandonados e ficaram vivendo como mendigos ou foram vendidos para os burgueses, em que as mulheres brancas não conseguiam gerar filhos. Por conseguinte, esses sujeitos adotados eram maltratados pelos seus próprios pais ou pela sociedade que recriminava a adoção de crianças negras. Então, houve uma ruptura entre laços familiares dos povos africanos. E sem falar que a Lei dos Sexagenários (1885) beneficiou uma pequena parte dos sujeitos negros que tinham mais de sessenta anos, pois na época, a estimativa de vida de um sujeito negro era em média de 27 anos, ou seja, os/as negros/as não tinham muitas expectativas de vida nesse período do nosso país. E, percebe-se que a Lei dos Sexagenários junto à Lei do Ventre Livre possibilitou gradativamente a criação da Lei Áurea, assinada no dia 13 de maio de 1888, pela filha de Dom Pedro II, a princesa Isabel, Lei que aboliu a escravidão no país. Bom, se o/a seu/sua professor/a de história te contou que a princesa Isabel assinou

de bom grado a Lei da Abolição, eles (os/as professores/as) estão lhe mentindo ou estão mascarando o apagamento do discurso de resistência dos negros, portanto, esses sujeitos estão

admitindo que elas não correspondem à realidade, portanto que constituem uma ilusão, admite-se que fazem alusão à realidade, e que basta «interpretá-las» para reencontrar, sob a sua representação imaginária do mundo, a própria realidade desse mundo (ideologia = ilusão/alusão) (ALTHUSSER, 1970, p. 78).

Ou seja, há personificação da realidade feita por esses sujeitos, que levianamente maquiam uma triste realidade ao pensar que a Princesa Isabel assinou o documento por bondade. Outro fator existente é que a

própria reprodução das relações de produção, «escudados» no aparelho repressivo de Estado. É aqui que joga massivamente o papel da ideologia dominante, a da classe dominante que detém o poder de Estado (ALTHUSSER, 1970, p. 78).

Dessa forma, é notório perceber-mos que a “tal bondade” da Princesa Isabel se perpetua até os dias atuais como um discurso dissimulado do Estado. E, talvez, isso se justifique pelo fato de que os/as professores/as reproduzem a ideologia dominante por meio da escola como um manipulados

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Aparelho de Estado Ideológico (ALTHUSSER, 1970).Vale lembrar que, o Brasil foi o último país das américas a abolir a escravidão e, além da princesa sofrer por pressões governamentais para assinar a Lei, o próprio governo não se preparou em oferecer alguma assistência aos sujeitos alforriados. Tendo em vista aspectos observados, a preocupação do Estado era atender os interesses da burguesia, em contrapartida, na época, haviam políticos abolicionistas como André Rebouças, José do Patrocínio e Luís Gama que pensavam em uma equidade por reforma agrária para a sociedade burguesa. Mas, infelizmente, não houve uma reparação aos povos escravizados. Por questões de sobrevivência alguns negros/as acabaram ficando nas casas dos seus patrões, mas ainda nas condições análogas à escravidão (talvez, sem os castigos físicos, mas sem direitos nem salários), pois tudo funcionava na base troca, por exemplo, “eu lhe ofereço casa, comida e cama e, em troca você trabalha para mim”. Em contrapartida do que foi exposto, milhares de negros e negras foram tentar a vida nos grandes centros, o que os levou à condição de mendicância. Assim, se não bastasse a falta de assistência do Estado, os governos resolveram perseguir os/as negros/as que estavam à mercê das ruas e já sem nenhuma expectativa de vida, pois aos olhos da sociedade, ver aqueles negros/as aglomerados/as

nos centros era deturpante para a imagem da cidade, fazendo com que dificultasse a vida dos sujeitos-negros que foram afastados dos centros urbanos e, resultou em empecilhos às empregadas domésticas de irem ao trabalho, as obrigando a morar na casa dos patrões ou então a se submeterem a fatigantes trajetos diários de ônibus e/ou metrô. E, de forma exclusiva, os sujeitos que já não tinham nada e que eram ex-escravos/as ou que eram descendentes de escravos/as não poderiam frequentar as escolas, restando-lhes o trabalho informal e braçal. Portanto, mais uma vez, a máquina de repressão que é o Estado brasileiro continuou aniquilando com os sujeitos que, desde que iniciou-se o país, estiveram na parte mais baixa da pirâmide da sociedade. A desigualdade salarial de gênero sempre foi característica em nossa país, no Brasil República, que iniciou em 15 de novembro de 1889, tem-se que

a ênfase foi de como a empregada doméstica começou a sair da invisibilidade e passou a ter direito por meio da fundação do primeiro Sindicato das Empregadas Domésticas, em Santos, criado por Laudelina de Campos Melo; dos direitos previstos na Consolidação das Leis Trabalhistas; da promulgação da Constituição de 1988 e vigente até os dias atuais (DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 413 - 414).

Antes disso, com muita resistência, é a partir do ano de 1936 que começam a


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surgir os primeiros AIE sindicais (Aparelho Ideológico de Estado sindical), já que a prática de escravidão não era mais possível. Portanto, os surgimentos dos sindicatos se concretizam a partir da “reprodução da força de trabalho” que se passa essencialmente fora da empresa (ALTHUSSER, 1970, p. 17). Mais para o final da Primeira Guerra Mundial (1918), foi possível as mulheres brancas se inserirem no mercado de trabalho, muito por causa das mulheres negras que cumpriam as tarefas domésticas deixadas pelas mulheres brancas para poderem exercer suas profissões. Aos poucos essas mulheres que estavam começando a trabalhar fora de casa foram conquistando direitos. E, então, é a partir daí:

que surgiram os movimentos feministas, questionando os estereótipos sobre o papel feminino e abrindo novas oportunidades para as mesmas frente ao mercado de trabalho, educação e outros setores da sociedade (DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 424).

Dentre elas, estão as empregadas domésticas sindicalistas reivindicando por reconhecimento da classe, contra as políticas dos coronéis, muitos os quais ocupavam cargos de chefia, com gestões políticas marcadas pela camaradagem/apadrinhamento ou pela compra dos votos da população (vale ressaltar que nesse

período as mulheres não tinham direito ao voto), garantindo assim, os seus interesses particulares, como por exemplo, a área rural. Mas, já era previsto que a luta das mulheres não seria nada fácil, pois mesmo com a libertação das mulheres, por consequência da Revolução Industrial e do capitalismo, que permitiu com que as mulheres negras e brancas pudessem trabalhar, mas em alguns casos, as mulheres só poderiam trabalhar com a autorização dos seus maridos. Então, paulatinamente, houve um avanço na vida das mulheres e, aos poucos as imagens da mulher branca e da mulher negra projetadas pela ideologia patriarcal foi se preservando. Sendo assim, somente as mulheres que eram empoderadas por terem seus discursos a frente do seu tempo e as que eram autorizadas pelos seus companheiros puderam trabalhar nas indústrias. Porém, a partir daí se instaura uma disputa entre os gêneros; de um lado os homens que detinham poderes e privilégios como horário de trabalho reduzido e, por outro lado, havia as mulheres que

possuía mão de obra mais barata que o homem; porém, produzia menos em virtude de suas ocupações domésticas. As mulheres sujeitavam-se a jornadas de 14 a 16 horas por dia, a condições prejudiciais à saúde e a muitos outros abusos, para não perderem o emprego (DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 423).

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Então, percebe-se que é a partir das desigualdades salariais de gênero que se tornaram visíveis, no período industrial, houve uma divisão do trabalho doméstico com os homens. Não houve uma divisão do trabalho doméstico com os homens. condições desiguais de trabalho me que em que os homens tinham uma carga horária menor enquanto as mulheres tinham que se submeter a excessivas horas de trabalho ou horas extras para ajudar na renda familiar. Enquanto isso, o afeto maternal acabava ficando em segundo ou terceiro plano, pois elas tinham que cuidar dos seus filhos e seu cônjuge, que por consequência, acarretava num distanciamento familiar; Tinham que cuidar dos serviços domésticos do seu próprio lar e, tinham que enfrentar o serviço exaustivo das indústrias, isso resulta na consequência da ”substituição do trabalho artesanal pelo assalariado e uso de máquinas” (DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 418). Assim, as mulheres brancas se sobrecarregaram com a dupla jornada de trabalho e começaram a depender cada vez mais do trabalho de mulheres negras para cuidarem de suas casas e de seus filhos. Deixar claro que não houve uma divisão do trabalho doméstico com os homens, mas foram as mulheres negras que substituíram as mulheres brancas em suas casas para que estas tivessem avanço em suas carreiras e pleiteassem melhores salários e melhores condições de trabalho pra si.

Dessa forma, devido às constantes lutas das mulheres negras, a emergência do feminismo, como movimento social, reivindicou-se condições necessárias para a legitimação da condição feminina (DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017 apud BRUSCHINI, 2006, p. 2). Porém, através da historicidade, estatisticamente as mulheres negras ainda são a maioria na classe das trabalhadoras domésticas, pois, muitas delas não tiveram e não têm as mesmas chances das mulheres brancas que vivem nos grandes centros ou metrópole. Com isso, a manutenção das condições sóciohistóricas do trabalho das domésticas implica na reprodução parafrástica faz com que seja uma tradição nas famílias, em que a mulher que é empregada doméstica geralmente passará à filha sua profissão que também ensinará às suas descendentes a ocupar a mesma posição-sujeito. Então,

com relação ao trabalho doméstico, foi justamente na década de 1930 que as primeiras organizações profissionais colocaram pressão no Estado, frente à necessidade de regulamentar essa atividade, marcada desde o pós-abolição sem direitos trabalhistas ou qualquer tipo de regulamentação (DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 427).

Lamentavelmente, observa-se que, entre o período pós-abolição e Era Vargas, se passaram 42 anos para


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então se pensar na situação da categoria das empregadas domésticas que, até então, não tinham direitos garantidos. Assim, Getúlio instituiu o novo Código Eleitoral (1932), que concebeu o voto secreto e o feminino e, o anteprojeto da Constituição, como também o voto classista (DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 427). Como se percebe, esta Lei feita por homens brancos e burgueses que anulavam a participação das mulheres negras nas reivindicações, assim poderia unir as mulheres, se não fosse oferecida só para aqueles sujeitos que já detinham “privilégios”, como as mulheres brancas que eram casadas (mas com autorizações dos seus companheiros), ou herdeiras e viúvas que tinham renda própria. Sendo assim, não pensaram nas mulheres pretas dos subúrbios que sempre foram esquecidas pelo Estado.

(xx - fonte: Fonte: Facebook.com/PretaAcademica)

A aparição dos direitos das domésticas por meio de dona Laudelina (1904 1991) Devido a constantes lutas das mulheres nos sindicatos trabalhistas/industriais, vale destacar a importância de dona Laudelina que

após a criação da primeira associação de trabalhadores domésticos, liderada por D. Laudelina, surgiram vários sindicatos em todo o país, culminando na criação da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – FENATRAD, em 1997. Porém, foi, em 1980, com a ascensão do movimento negro no Brasil, que entrou na agenda política a questão racial, sendo que foi o movimento de mulheres negras que destacou a importância do trabalho doméstico (DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 430).

Então, percebe-se que mais uma vez temos o sujeito-mulher negra que reivindica pela sua categoria. Estamos falando de Dona Laudelina de Campos Melo (como era conhecida). Uma mineira do município de Poços de Caldas, que começou a trabalhar como empregada doméstica dos 7 anos até os seus 16 anos e, que aos 20 anos de idade integrou os movimentos de negritude e, em 1936, aos 32 anos criou a primeira Associação das Empregadas. Logo, por conta da censura que essas mulheres sofriam ao tentar se manifestar contra a opressão do governo Vargas, passaram-se sete anos e associação é fechada pelo governo repressor da Era Vargas. Dezenove anos se passaram e, em 1961, dona Laudelina

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criou a Associação Profissional Beneficente das Empregadas Domésticas, que serviu de inspiração para que as cidades de RJ e SP também aparelharem-se em sindicatos. Laudelina também atuou junto a Universidades Brasileiras durante 30 anos. Segundo a Agência Senado, perto de sua morte, foi eleita chefe do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Então, graças aos esforços e as lutas de dona Laudelina, a classe da empregada doméstica foi sendo reconhecida no país. Apenas em 1972, no governo de Emílio Garrastazu Médici, que as empregadas tiveram alguns direitos reconhecidos:

a partir da aprovação da Lei 5.859, os empregados domésticos passaram a ter alguns tipos de prerrogativas, deixando de ser totalmente desprotegidos e adquirindo, assim, um pouco de cidadania, principalmente, o acesso aos seguintes direitos: benefícios e serviços da Previdência Social, férias anuais com o adicional de 1/3 a mais que o salário normal e carteira de trabalho (DA SILVA; DE LORETO; BIFANO, 2017, p. 128).

Passaram-se 36 anos de luta, em relação à aprovação dessa Lei e a luta de dona Laudelina, Lei que ainda resiste e ampara as/os empregadas/os domésticas/os até os dias atuais. Em 1988 foi promulgada a Constituição Cidadã de 1988 (governo Sarney), que

está em vigor até os dias atuais, no qual garante os direitos sociais, econômicos, políticos e culturais, incluindo direitos aos empregados domésticos, como salário mínimo, Previdência Social e dentre outros direitos. Nota-se que finalmente a classe das/os domésticas/os tiveram uma “equidade” em relação aos direitos das demais classes, porém, não era pautado jornada de trabalho, recebimento de bônus por trabalho insalubre, entre outros. Durante as pesquisas, me deparei com o artigo “O desenvolvimento do trabalho doméstico a partir da legislação trabalhista do Estado Novo”, de Paula Pereira de Bergman, onde divulga a entrevista com Laudelina de Campos Melo, em que relata a dificuldade de negociar com o governo Getúlio Vargas. Ela conclui: “não adiantou nada porque não havia possibilidade de enquadramento da classe das empregadas domésticas”. Dona Laudelina foi a primeira mulher a reivindicar pelos direitos das trabalhadoras domésticas. Percebe-se que a entrevista materializa discursos, a um sujeito-mulher-negra que foi ludibriada pela “máquina” de repressão que é o Estado, ou seja, o governo da época por meio das leis que formulam o Aparelho Repressivo de Estado recua com as promessas oferecidas para o AIE sindical, o qual a dona Laudelina representa, pois através da historicidade, sabemos que o governo da época se alinhava com uma ideologia autoritária que assegura a sua dominação sobre a classe


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operária para a submeter ao processo de extorsão da mais-valia (quer dizer, à exploração capitalista) (ALTHUSSER, 1970, p. 31).

Análise do discurso sobre as domésticas no contexto da pandemia do novo coronavírus Os AIEs sindicais domésticos continuam com as suas lutas por melhorias para a classe, passaram-se os governos F. Collor, I. Franco, FHC e o governo Lula, e então, só no final de 2012 e início de 2013, que o governo Dilma Rousseff pensou em, de fato, beneficiar a categoria, garantindo e assegurando o direito do trabalhador doméstico. Mas, vale ressaltar que isso só foi possível depois de 10 anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT), com a tentativa de se fazer algo benéfico para a classe das domésticas. Então, em meio a protestos e brigas políticas, de um lado o AIE político, o AIE religioso e o AIE jurídico (todos da base da direita, pautada na ideologia burguesa) e, em contrapartida, havia a luta do AIE político comandada por partido de esquerda que buscava atender às reivindicações do AIE sindical, nesse caso mais especificamente o das domésticas. Foram garantidos 16 direitos trabalhistas, dentre eles estão: hora extra remunerada; jornada de oito horas de trabalho por dia, que totalizam 44 horas semanais; proteção ao trabalho; proibição de trabalho insalubre para menores de 16 anos; garantia de salário mínimo etc.

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Após dois anos de negociações, no dia 6 de maio de 2015 foi aprovada no senado a regulamentação dos direitos das domésticas e, no dia 01 de junho de 2015, foi decretada e ampliada a Lei complementar de número 150 que regulamenta a PEC das Domésticas, trazendo um alívio para as trabalhadoras domésticas e demais trabalhadores; Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS); segurodesemprego; seguro contra acidentes de trabalho e, dentre outros. Enquanto a PEC ainda tramitava, o Aparelho Ideológico de Estado da informação, que é o caso da imprensa, já estava menosprezando a causa de resistência das domésticas, como mostra a figura abaixo: SD 1:


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Publicada no dia 13 de abril de 2013, a revista Veja lançou essa reportagem para então sugerir alternativas para baratear os serviços domésticos. Portanto, ao analisar essa imagem, percebemos que a revista traz um discurso de que um profissional pode ser substituído por uma máquina. Porém, não pensaram no desemprego, não pensaram naquele sujeito-mãe que, por muitas vezes, é a provedora da casa, não pensaram na fome que poderia ter causado na família daquele sujeito-doméstico. Pois ao afirmar “sai a empregada, entra a lava-louça”, reforça que a consequência seria a demissão dessas profissionais, tendo em vista o aumento nos custos com os direitos trabalhistas. Esse discurso enaltece o mercado capitalista alinhado com a ideologia de direita. Não levaram em conta que o trabalhador doméstico também movimenta a economia, como supermercado, educação para os filhos, contribuição do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), dentre outras movimentações econômicas. De acordo com a memória histórica, em 2016, em meio às turbulências e crises no governo Dilma, aconteciam diversas manifestações no Brasil contra a gestão da ex-presidenta, pois havia um descontentamento por parte da sociedade desacreditada com a economia do país. Na época, durante os protestos, uma das imagens que repercutiu foi a de dois sujeitosbrancos, aparentemente de classe

média, acompanhados de seu cachorro da raça chihuahua, enquanto seus filhos eram carregados pela cuidadora em pleno domingo, como indica a imagem abaixo: SD 2:

(Fonte: Jornal EXTRA)

Essa fotografia produziu diferentes interpretações, já que para uns a empregada estava sendo coagida por conta à submissão ao seu emprego a protestar contra o governo que teria lhe dado direitos trabalhistas, em contrapartida especulou-se a possibilidade de a doméstica estar livremente protestando contra as políticas do governo Dilma. A inquietação dos sujeitos que julgaram que a trabalhadora doméstica não estava definitivamente exercendo o livre arbítrio de estar no ato levou à comparação do acontecimento com a tela pintada por Jean-Baptiste Debret: SD 3:


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(Fonte: Jornal EXTRA)

A obra é lida como uma paráfrase visual do acontecimento atual, associando as posições-sujeito de escravos e senhores de escravos aos patrões e empregadas domésticas. Esse efeito de sentido representa as condições de opressão historicamente enfrentadas por esses sujeitos, o que já foi mencionado nesse artigo, mostrando que a relação entre patrões e empregados não pode ser confundida com a relação horizontal entre membros de uma mesma família. Sobre isso, destaco o seguinte comentário de um leitor da reportagem do Jornal EXTRA: SD 4:

“O interessante é observar aquele velho limite que permeia o trabalho da doméstica, que é, mas não é da família, pertence, mas não pertence. Ela até vai, mas não pode ir uniformizada como os manifestantes. Nem se quiser, suposição minha.”

Em face aos dados apresentados, é nítido que o discurso de que “ela é como se fosse da família”, serve simplesmente para aproximar/ amenizar a relação desigual que há entre empregador e empregado doméstico, como também, suavizar/ romantizar o serviço doméstico. Ou seja, como se a empregada doméstica fosse uma avó ou uma tia que “ajuda” a cuidar das crianças. Porém, sabemos que jamais essas empregadas domésticas irão fazer parte das relações familiares, pois os contratos empregatícios envolvem direitos e deveres, não sendo apenas um favor. Além disso, grande parte dos sujeitos que protestaram contra o governo Dilma se identificam com ideologias conservadoras que rejeitaram a proposta da PEC das domésticas por lhes tirar o privilégio de ter esse serviço por baixo custo. Já no contexto atual, a partir de dezembro de 2019, o mundo convive com a pandemia do novo Coronavírus. O que até então se pensava ser um “pequeno” vírus em Wuhan (China) se alastrou gradativamente por mais de 75 países. Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) sinalizou que o surto do vírus era uma pandemia. Em fevereiro de 2020 foi confirmado o primeiro caso no Brasil, um senhor aposentado de 62 anos teria contraído o vírus em uma viagem à Itália. Porém a primeira morte causada pela pandemia não foi a deste senhor, mas de sua empregada doméstica, a dona Cleonice, de 63

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anos, que há duas décadas morava e trabalhava em uma casa de família no bairro nobre do Leblon, no Rio de Janeiro. Segundo a mídia, a vítima que tinha diabetes e hipertensão e ao sentir o mal-estar da doença, resolveu voltar para a sua casa em Miguel Pereira, que fica a 125km da capital. Dois dias depois, ela faleceu no hospital do município. Após ser divulgada a morte de Cleonice, surgiram vários depoimentos de solidariedade à família e, em memória da vítima nas redes sociais, enquanto a patroa estava de quarentena na sua residência, surgiram várias manifestações de revolta e cobrança por justiça social, como mostra a figura abaixo:

(Fonte: @rabiscosinfames)

Lamentavelmente, essa charge remete-se ao sujeito-vítima que é a cozinheira morta por conta das condições de seu trabalho, não sendo assistida pelos patrões e ficando à “própria sorte”, dependendo o serviço público de saúde, que todos sabemos ser precário.

Mas, você leitor deve estar pensando como alguns que dizem que o vírus é democrático por contaminar a todos independente da “cor, raça, etnia e classe social”. Porém, nota-se que a população mais pobre é quem está mais vulnerável à contaminação por conta de usar transporte público, não ter a possibilidade do trabalho remoto, não contar com os devidos cuidados de higienização e até de saneamento básico adequado, não ter disponíveis médicos e medicação nos postos de saúde, dentre outros problemas. A pandemia escancarou as desigualdades sociais em nosso país, sendo que boa parte da população não pode ficar sem trabalhar, pois sua família depende do sustento diário, o que traz riscos a vida desses sujeitos-trabalhadores e seus familiares. Para esses sujeitos, o governo Bolsonaro dá o Auxílio Emergencial, que visa assistir, principalmente aqueles trabalhadores (não só os domésticos) informais a receber uma contribuição que varia de R$ 600, 00 a R$ 1.200,00. Para receber esse auxílio, as pessoas se aglomeram por horas em filas em frente ao banco, sendo que às vezes, nem conseguem recebê-lo. Isso é mais uma violência do aparelho administrativo do Estado cometido a esses sujeitos já tão penalizados pela desigualdade social. Mesmo com a ajuda do governo, muitas empregadas domésticas estão sofrendo por não poderem se sustentar apenas com o auxílio emergencial, como é o caso da diarista Rosa que contou em entrevista ao


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Profissão Repórter, que desde que começou a pandemia está sem renda. E conta Rosa que, ao perguntar aos seus empregadores por serviço eles dizem que estão isolados e só mandam mensagem falando “se cuida, porque a gente está se cuidando”, “mas eles não perguntam se a gente tem comida na panela”, completa ela, reforçando que a situação está “muito difícil”. Através desse relato, percebemos o discurso de falta de empatia dos patrões com o sujeito que está passando por necessidade, pois dá a entender que na hora do serviço braçal a Rose é boa serviçal, mas na hora em que Rose e sua família necessita de ajuda os patrões apenas mandam mensagem como forma de “solidariedade”. Se Rose fosse de sua família, eles a deixariam em necessidade? Eles diriam apenas: “se cuide”? Em síntese de tudo que foi observado e analisado nesse texto, tenho que salientar que as lutas e as conquistas foram primordiais para mais de 6 milhões de trabalhadores/as domésticos/as, porém, em toda e qualquer lei há falhas. Sim, há falhas na PEC, pois o que mais se questiona é o fato do empregador determinar o que é lei na sua casa, por exemplo, com relação à carga horária e os desvios de ocupação, fazendo com que a classe doméstica seja ainda mais invisibilizada. Destacamos a importância do papel das empregadas domésticas, sobretudo, as mulheres negras, que favoreceram as conquistas e o

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empoderamento das mulheres brancas ao substituí-las nas tarefas domésticas. Infelizmente, para as mulheres negras não havia outras oportunidades, senão o trabalho doméstico como remanescente do trabalho escravo. Por outro lado, esse texto também salienta a luta dessas mulheres por condições mais dignas de trabalho como fez a Dona Laudelina. Pela observação dos aspectos, fica a minha homenagem às trabalhadoras domésticas, sobretudo a mulher negra, que com seus esforços buscam por reconhecimento para sua profissão, porque sei bem o quão difícil é estar na posição sujeito-doméstico, porque me coloco aqui como sujeito que também foi um doméstico por cerca de 2 anos. Assim, entendo que ainda é mais difícil para uma mulher negra, pois vivemos em uma Pirâmide Social (Djamila Ribeiro), na qual temos os homens brancos no topo; abaixo do cume estão as mulheres brancas; em seguida estão as os homens negros e, na base estão as mulheres negras, que ainda precisam resistir, porque além de sofrer com racismo, as mulheres negras sofrem com as desigualdades de gênero e, ainda sofrem por terem os seus corpos hipersexualizados até os dias atuais. Enfim, as profissionais domésticas querem reconhecimento como qualquer outra profissão, pois não é porque existe este falso sentimento de que são "como se fossem da família", que esses sujeitosdomésticos não tenham direitos e deveres, pois vimos que agora os


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trabalhadores dessa categoria têm direitos garantidos pela PEC das Domésticas e, que esses profissionais

não fazem e nunca fizeram parte da família dos seus patrões.

Referências ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Santa Catarina: Editorial Presença, 1980. BIFANO, Amélia; DA SILVA, Deide; DE LORETO, Maria. Ensaio da história do trabalho doméstico no Brasil: um trabalho invisível. Cadernos de Direito. v. 17(32). P. 409 - 438. 2017. DA REDAÇÃO. Fundadora do primeiro sindicato de trabalhadoras domésticas do Brasil, Laudelina de Campos Mello lutou por sua categoria durante 70 anos. Senado Notícias. 27 abr. 2010. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2010/04/27/fundadora-doprimeiro-sindicato-de-trabalhadoras-domesticas-do-brasil-laudelina-decampos-mello-lutou-por-sua-categoria-durante-70-anos>. Acesso em: 28 jun. 2020. ORLANDI, ENI. Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos. 10° edição. Campinas-SP: Pontes, 2012. WILLMERSDORF, Pedro. Foto de casal acompanhado de babá em manifestação divide opiniões nas redes. EXTRA. 13 mar. 2016. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/brasil/foto-de-casal-acompanhado-de-babaem-manifestacao-divide-opinioes-nas-redes-18866609.html>. Acesso em: 27 jun. 2020


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O CARÁTER REACIONÁRIO DO DISCURSO BOLSONARISTA Gabriel da Silva Martins

No ano de 2018, o país vivenciou uma reviravolta política. No período de campanha eleitoral, o candidato à presidência Jair Bolsonaro ganhou fama através de comunidades, fóruns e redes sociais na internet; ambientes até então considerados pouco ortodoxos no que se refere a corridas eleitorais, que, nos anos anteriores tiveram seu espaço predominante nos programas televisivos e de rádio, que cada vez mais caminham em direção ao obsoletismo. Bolsonaro encontrou na ambiguidade produzida na chacota e no escárnio a maneira ideal de seus discursos inflamados e carregados de ódio contra o campo progressista ganharem espaço entre os sujeitos identificados com a mesma Formação Discursiva que a sua. Pois é justamente nesse contexto que os

sujeitos-enunciadores se aproveitam da pluralidade de efeitos de sentido que um determinado discurso produz através da ambiguidade (ORLANDI, 2012. p 56). Toma-se, por exemplo, o vídeo viral em que o deputado aparece dizendo à deputada Maria do Rosário que não a estupraria, uma vez que esta não mereceria por ser, de acordo com ele, muito feia. O caso gerou o furor e repúdio da oposição, enquanto ao mesmo tempo fez com que seus apoiadores se regozijam em risadas abastecidas com os impropérios proferidos e o famigerado jargão “dá um que eu te dou outro”, que por sua vez, acabou se tornando um slogan bolsonarista. A relativização do absurdo, e, neste caso, pode-se dizer do efeito de absurdo, porque fora determinado pela justiça que Jair


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Bolsonaro se retratasse publicamente através de um pedido de desculpas (MAIA; SOARES, 2019) se faz comum entre seus apoiadores. Em um excerto de um texto redigido no mesmo ano das eleições por Félix Soilbeman, um ativista bolsonarista e usuário da rede social Facebook, encontramos a seguinte argumentação:

Bolsonaro defendia penas severas para estupradores como este psicopata enquanto Maria do Rosário defendia os "direitos humanos" do sujeito. Em reação, esta última xingou Bolsonaro de estuprador e o deputado, rebatendo, afirmou que ela "não merecia ser estuprada. Qualquer um com dois neurônios entende muito bem que Bolsonaro quis dizer que ela era tão feia que ninguém a desejaria sexualmente, numa retorsão à injúria contra ele proferida. (SOILBEMAN, 2018, p.1)

É interessante analisarmos alguns aspectos aqui contidos, sendo o primeiro e mais notório o fato de que o sujeito-enunciador identifica o estupro como prática que demanda o desejo de natureza sexual, o que por sua vez, apaga o caráter hediondo da violência dominadora na qual o estupro é caracterizado. Outra característica é a inversão dos papéis na cena, o que se materializa através da ironia que o autor do excerto produz ao se referir à Maria do Rosário como defensora dos “direitos humanos”. Neste caso, as aspas

produzem um efeito de sentido vexatório, pois, de acordo com o ativista, Bolsonaro defende a punição severa contra estupradores, enquanto a deputada os defende se utilizando de tais políticas progressistas. É, portanto, nestas inversões de lugar e na polissemia da linguagem que o bolsonarismo encontra espaço para resistir em um cenário onde a Formação Discursiva predominante é conveniente (INDURSKY, 1997) com os padrões éticos do politicamente correto. Tendo em vista o caso supracitado, vale considerarmos que a formação discursiva patriarcal determina sua influência em tais discursos, e esta, não é de exclusividade dos sujeitos do sexo masculino. Jair Bolsonaro assume o poder como chefe de estado da república em 2019, poucos anos depois do golpe que levou a ex-chefe de estado Dilma Rousseff ao impeachment, e, desde então, os papéis exercidos por mulheres no governo diminuíram drasticamente, permanecendo apenas aquelas que estão em concordância com seu discurso. Uma das figuras mais emblemáticas é a ministra Damares Alves, que fica encarregada do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, órgão público oriundo de uma condensação, a fim de restringir a quantidade de ministérios. A ministra proferiu algumas frases que causaram polêmica, e, analisando uma delas juntamente com sua devida


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repercussão, pode-se enxergar com clareza o estratagema discursivo destes sujeitos que se identificam com a ideologia conservadora. Por exemplo, ao dizer que “menino veste azul e menina veste rosa”, a ministra, em um primeiro momento, parece estar se referindo apenas aos estigmas de gênero que são reforçados por uma ideologia que se materializa nas indumentárias utilizadas pelas crianças em comemorações de aniversário e até nos contemporâneos chás de revelação, onde o casal descobre o sexo do bebê através das cores que aparecem em algum lugar inusitado, como em balões estourados, por exemplo.

(Fonte: Decoração Chá Revelação no Elo7 | Ludimila Elias)

Entretanto, esse discurso poderá ser problematizado se tivermos em vista que existe um outro discurso que se contrapõe a este, que justamente se encontra na Formação Discursiva do politicamente correto, criando assim um embate dicotômico - uma tese e uma antítese hegeliana - que se materializa no enunciado completo:

— É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa — exclama a nova ministra, com um largo sorriso e dando pulos. (PAINS, 2019, p.1)

É importante apontar que tais discursos reacionários, ao serem proferidos por uma mulher, causam um efeito de sentido contraditoriamente significativo, pois torna-se um caso onde o indivíduo é assujeitado por uma ideologia que não lhe seria conveniente, devido ao fato de que o movimento conservador tem como um de seus vieses a predominância do patriarcado em locais de prestígio, poder e dominância. Entrementes, associa-se a figura feminina aos trejeitos delicados e submissos, e qualquer atitude que venha a contradizer esses ideais é tida como transgressora. Tendo isso em vista, pode-se dizer que a cor rosa produz um efeito de sentido significativo político e social, e vai muito além de uma inocente cor.

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Se aproveitando da aparente inocuidade do discurso proferido, os militantes bolsonaristas acusam seus opositores de histeria ou “problematização desnecessária”, interpelando-os de modo vexatório ao utilizarem adjetivos como “militontos”, “feminazis” (...), enquanto os sujeitos-enunciadores do discurso que provoca este efeito de sentido absurdista se colocam na

posição de vítimas das belicosas discussões que surgem sempre que um nova declaração polêmica é anunciada. Através de seus incansáveis e fiéis arautos que se fazem presentes nas redes, o discurso bolsonarista continua se opondo à resistência progressista ao fazer uso da multiplicidade de sentidos que podemos extrair dos discursos.

Referências INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Unicamp, 1997. MAIA, Gustavo; SOARES, Jussara. Cumprindo decisão judicial, Bolsonaro pede desculpas a Maria do Rosário em rede social. 13 de Junho de 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/cumprindo-decisao-judicial-bolsonaropede-desculpas-maria-do-rosario-em-rede-social-23737390. Acesso em: 29 Jun. 2020. ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos ; 10 Edição, Campinas, SP - Pontes Editores, 2012. PAINS, Clarissa, Menino veste azul e menina veste rosa, diz Damares em vídeo. 3 de Janeiro de 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-dizdamares-alves-em-video-23343024. Acesso em: 29 Jun. 2020. SOIBELMAN, Félix (Félix Soibelman). BOLSONARO E A COMÉDIA PROCESSUAL COMANDADA PELO STF. 25 ago. 2018. Facebook: FélixSoibelman-809266029258600. Disponível em: https://www.facebook.com/permalink.php? story_fbid=963945653790636&id=809266029258600. Acesso em: 29 Jun. 2020


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COMO BANHEIROS PODEM REPRESENTAR A RESISTÊNCIA DAS MULHERES?

Maria Carolina Silva de Olibeira

As reflexões sobre os papéis de gênero mostram a desigualdade que as mulheres sofrem em diferentes lugares sociais, porém, de que modo funciona a segregação do que é para a mulher e do que é para o homem? A escolha do objeto de análise surgiu a partir da leitura do artigo de duas mestrandas em direito chamado “Os banheiros e o culto de gênero” e a teoria que dá suporte às análises é a Análise Materialista do Discurso. As autoras me mostraram que até o fato de haver um banheiro exclusivo ao sexo feminino foi questionado na história, ao passo que um homem nunca pensaria sobre isso. O texto CURVO & VALENTE (2014, p. 5) sugere uma linha do tempo sobre a história da civilização e dos banheiros públicos demonstrando que a maioria

deles era exclusivamente para homens, revelando uma concepção de que ou as mulheres não deveriam sair de suas casas, ou elas não iriam ao banheiro”, por isso que o problema trata-se de banheiros de uso coletivo. As autoras definiram o que por muito tempo foi a realidade do senado brasileiro. Sem um banheiro público para as mulheres que trabalhavam e visitavam o local, o que segundo o artigo citado demonstra que a presença de mulheres é sancionada quando há banheiros públicos para elas. O que é a ideologia? “A ideologia passa então a ser o sistema das ideias, das representações, que domina espírito de Um homem ou de um grupo social” Explica o autor Louis Althusser (ALTHUSSER,1970, pág. 69). Neste caso a ideologia que

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mulher só cabe o âmbito doméstico, quando colocado, um banheiro feminino confirma a presença de mulheres nesse lugar. O banheiro tornou-se uma forma de delimitar os papéis de gênero a partir dos banheiros especificados por sexo dentro da ideologia patriarcal, porém, a falta de banheiros femininos também materializam um discurso que é sobre o acesso e a circulação dos gêneros na sociedade. E o fato de não ter um espaço exclusivo para as mulheres em um lugar, e neste caso parte da observação da autora Eni Orlandi que espaço geográfico ou lugar é (ORLANDI, 1999, p 52), “espaço simbólico particular, que tem sua materialidade e suas formas específicas de significar”, reforçando que tomar decisões políticas, como é feito no lugar senado, discursiva a ideologia dominante em nossa sociedade. O autor Engels, afirma que “O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em um simples instrumento de reprodução.” (ENGELS,1891, p. 61) Essa reflexão nos mostra que a casa, por mais que seja diretamente um lugar que é relacionado ao imaginário da mulher é de dominação masculina e se relacionamos a mulher a casa e não em lugares públicos é porque o homem escolheu assim. Esse é o discurso que percorre o Senado brasileiro, que ali não é lugar de mulher.

(Foto retirada do Facebook)

O senado é uma forma de organização democrática para representar a população. Contudo, o site Senado Notícias afirmou que: “A bancada feminina a partir de 2019 foi reduzida de 13 para 12 senadoras”. Dos 353 candidatos ao Senado nas eleições de 2018, 62 eram mulheres e, destas, sete se elegeram. Em 20 estados, nenhuma mulher foi eleita e em três deles nem houve candidatas. O que não me parece uma representação justa comparada à população de mulheres brasileiras de 51,7% segundo o IBGE de 2018. Entretanto, essa pequena parcela já conta com uma vantagem ao exercer seus cargos com relação a suas antecessoras. Em 2016, o senado federal anunciou, no seu site oficial, que a bancada feminina do senado, finalmente, conquistou o direito de ir ao banheiro no plenário, pois, até então o banheiro usado por elas era o do restaurante anexo ao local. Em entrevista ao Site do Senado Vanessa Grazziotin, procuradora da Bancada Feminina do Senado, afirma: “Não é um banheiro que vai mudar toda a situação, mas, o fato de não ter um banheiro no plenário é um


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indicativo que a Casa não foi preparada para as mulheres” (GRAZZIOTIN, 2016) Dessa forma, qual o lugar da mulher? Se partimos da formação discursiva machista, é em em funções domésticas, cuidando dos filhos, ou na cozinha, nota-se que no restaurante há banheiros femininos. Porém, estamos lidando com o discurso de que o lugar da mulher é onde ela quiser, além disso, é seu direito como cidadã e isso é resistência. E segundo Orlandi (2012, pág. 40): “A relação discursiva, são as imagens que constituem as diferentes posições”. A imagem discursiva que se constrói quando não há um banheiro femino no Senado é que a posição tomada pela instituição é a de que não é um lugar para mulheres.

VOCÊ SABIA? O senador nova-iorquino Brad Hoylman elaborou uma lei para o estado que exige que todos os locais públicos também tenham trocadores no banheiro masculino. A mudança foi anunciada pelo governador de Nova York, Andrew Cuomo, em meados de abril de 2018 e entrou em vigor no primeiro dia do ano de 2019.

Observa-se que a procuradora afirma que o banheiro não será uma solução, não mudará o discurso machista o fato de ela ter um lugar próprio para

suas necessidades fisiológicas em seu trabalho. Essas situações, que foram ilustradas na fala da procuradora como “Ele não mudará a situação toda” é sobre a falta de um banheiro e a desigualdade entre os gêneros, e ela reafirma isso quando define a situação como toda. Ela também demonstra a partir da conjunção adversativa que há indícios da desigualdade que sofre por ser mulher ao ela afirmar que “mas, o fato de não ter um banheiro no plenário é um indicativo”. E é nessa ausência de um banheiro feminino que é materializa o discurso machista evidenciado, na fala da procuradora ao comemorar a vitória no Senado. Nota-se que, ao se referir ao senado, ela escolheu a palavra Casa com a primeira letra em maiúsculo, marcando a produção de sentido no discurso da procuradora, portanto, a Casa se difere de moradia. Casa gradativamente entende-se por Senado; estabelecimento público que não possui um banheiro feminino; ugar geográfico construído para reunir os representantes da sociedade, há uma discursivização desse lugar geográfico, um lugar de poder de representatividade, não é apenas um lugar físico, como Orlandi afirma a cima. Segundo BOURDIEU (1979, pág. 70) “A dominação masculina, adequase à ordem simbólica do mundo social, seus mecanismos efetivos de atuação”, e a falta de um banheiro feminino demonstra isso. A escolha deste tema é a demonstração do que o autor também define como violência simbólica que diz respeito à violência

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suave, insensível muitas vezes às suas próprias vítimas e exercida pelas vias mais sutis de dominação, nesse caso banheiros, mas também pode ser vista no casamento, em salários desiguais, entre outras violências cotidianas.

(Foto retirada do Facebook)

O seu lugar de trabalho reproduz o discurso que produz a desigualdade de gênero delimitado pela falta de banheiro feminino. Segundo PÊCHEUX, ( 1988, p 67) “Não há dominação sem resistência”, neste caso a dominação é a ideologia patriarcal na sociedade e a resistência e o discurso feminista. Há dois sujeitos nesta relação de poder homens no senado e mulheres, ORLANDI (2012 ,p, 51) afirma que "Submetendo o sujeito mas ao mesmo tempo apresentando-o como livre e responsável o assujeitamento se faz de modo a que o discurso apareça como um instrumento (...) do pensamento um reflexo (justo) da realidade”. O sujeito-homem, usa disso como forma de manter sua cadeira no Senado, usando do discurso de que aquele

lugar não é para mulher ao seu favor, a mulher se identifica com o discurso de que o seu lugar é onde ela quiser para reivindicar seus direitos básicos como o de ter direito a um banheiro. O acontecimento da conquista desse direito é efeito da resistência da mulher. O que me motiva a escrever sobre resistência é partir do contraste com o sexo oposto. No momento que eu tenho que me preocupar se posso andar na rua à noite, como devo vestir-me, entre outros privilégios masculinos, é porque esses problemas não fazem parte da realidade do homem. O banheiro público para nós hoje em dia é um lugar tão comum, e muitas vezes a salvação em dias corridos, principalmente para mulheres com filhos, em situações inesperadas como a sua menstruação, entre outros momentos que a mulher passa dentro desse local. Para finalizar, a importância dessa análise é para saber que opressão e a resistência estão nos mais pequenos detalhes.

VOCÊ SABIA? Desde 2015 está parada a votação no STF sobre o direito de pessoas transsexuais terem o direito de usarem o banheiro do gênero do qual elas se identificam.


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Referências ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos do Estado: nota sobre aparelhos ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand. Brasil, 2003. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva,. 2003. CURVO, Isabelle. VALENTE, Júlia. OS BANHEIROS E O CULTO DE GÊNERO. 2014. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Alfa-Omega, 1943. ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas,. SP: Pontes, 2005. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni P. Orlandi. Campinas: Ed. da Unicamp, 1997b. p.293-304

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MULHERES-POLITÍCAS: A RESISTÊNCIA NA VIDA PÚBLICA Gilberto Stanchack Andrade de Lima

Após anos de luta feminina para se libertar do espaço privado, as mulheres conquistam o direito ao voto no governo de Getúlio Vargas, 1934, junto da possibilidade de serem votadas. Mesmo assim, a participação feminina na câmara de deputados ainda é bem baixa, como mostra o gráfico a seguir:

(...) o mundo moderno atribuiu à mulher funções próprias do domínio privado, como os cuidados da casa e dos filhos, na manutenção de uma estrutura que permitiu aos homens o envolvimento com assuntos políticos e econômicos, próprios do domínio público. Mulheres e crianças passaram, ainda, a serem consideradas como frágeis e necessitadas da proteção masculina.

Com as crianças e mulheres limitadas ao espaço privado, homens adultos podiam criar um sistema social inteiro que permitisse a manutenção do poder deles. Com a constituição de Vargas, mulheres obtiveram a possibilidade de participação política na comunidade, mas, a única mulher eleita naquele ano, vide o gráfico, era uma prova de que entrar pelas portas da Câmara para legislar não era tão simples assim. O


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discurso sobre as responsabilidades domĂŠsticas serem imputadas Ă s mulheres era um dos desafios a serem superados quando uma delas decidia seguir carreira polĂ­tica, jĂĄ que ocorreu alteração na lei, mas nĂŁo nessa ideologia. Como resultado disso, mesmo trabalhando fora de casa, assim como o marido, a imagem de um ser domĂŠstico ainda se fazia presente. Isso levou as mulheres a ganharem o direito Ă vida pĂşblica para continuar elegendo homens que continuam a gerir a vida da coletividade. Com movimentos sociais fazendo-se necessĂĄrios para o fim da ditadura militar, a participação da mulher foi muito importante para isso, mas limitada por nĂŁo ter representação efetiva em cargos pĂşblicos. Com a nova constituição de 1988, 26 deputadas, 5,7% do total, constituĂ­am a chamada ¨bancada do batom¨. EstereĂłtipos de gĂŞnero Ă parte, essa bancada feminina listou 30 emendas dentre reivindicaçþes feministas e populares, como a criação do SUS (Sistema Ăšnico de SaĂşde). E, a partir disso, gerou-se a atual constituição equiparando em direitos e deveres

VOCĂŠ SABIA? A primeira mulher a exercer o direito de ser eleita foi a mĂŠdica paulista Carlota Pereira de QueirĂłs, tambĂŠm ĂŠ pioneira como deputada federal na AmĂŠrica Latina.

homens e mulheres. No cenårio atual, existem cotas de 30% de vagas em cada partido para as mulheres, mas continuamos longe desse número de representatividade feminina na câmara. Dentre as que resistem ocupando uma dessas cadeiras encontra-se Manuela D'à vila, deputada estadual pelo Rio Grande do Sul de 2007 atÊ 2011 e deputada federal entre 2011 e 2015, se tornando prÊ-candidata à presidência em 2018, porÊm se efetivou candidata em uma chapa onde ela era a vice e um homem, Fernando Haddad, era o candidato titular. Em novembro de 2008, foi publicado um vídeo na pågina Quebrando o Tabu, o conteúdo era Manuela D'à vila comentando fake news sobre ela, separei duas, ambas são correntes de aplicativos de mensagens instantâneas:

SD1: "Vice de Haddad admite ser anti-cristĂŁ e quer acabar com todos os feriados cristĂŁos đ&#x;˜ ."

âš

Retomamos ao apagamento feminino mesmo quando se Ê para mentir sobre ela. O verbo Ê "garantir", dando certeza sobre o que acontecerå caso essa chapa chegue à presidência. Colocar a bandeira da nação, com todo o discurso existente no objeto como símbolo do país, em que brasileiros se vêem representados por ele, junto da bandeira LGBT produz o sentido de uma minoria estando lado a lado na importância do país, algo aplaudível para um país com os


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índices de LGBTfobia tão altos como os do Brasil, mas a ideologia materializada na pseudo notícia é o controle da sociedade por parte desse grupo. No fim, há a "informação" sobre o que precisa ser feito para isso acontecer, o Partido dos Trabalhadores ganhar a eleição, junto com o emoji de susto e de alerta, seria um perigo iminente? O alvo da fake news era a Manuela mas no final do texto diz que é com a volta de um partido que ela nem faz parte, apenas Fernando Haddad. Mulheres lutaram muito para poderem fazer parte ativa da nossa sociedade, porém o imaginário popular nem sempre acompanha o sistema jurídico de uma população, a imagem da mulher como ser político enfrenta dificuldades de assimilação nesse imaginário coletivo, resultando essa representatividade precária das brasileiras no Congresso. As Fake news em aplicativos de mensagens e redes sociais são formas novas de reproduzir um discurso antigo que afastava as mulheres da vida pública. A clara tentativa de deslegitimar a vida política de Manuela, mesmo quando ela não era protagonista da chapa, mostra a estratégia de usá-la como alvo na hora de mentir sobre a posição política com a qual o enunciador da fake news não se identifica. Ter as cotas de 30% das candidaturas femininas é um bom passo para plena representatividade feminina, mas isso

VOCÊ SABIA? Desde a constituição de 1890 o voto feminino era debatido, mas negado com a justificativa de ser contra a moralidade.

não é o bastante enquanto discursos como estes se fizerem presentes no jogo democrático, porque mesmo com as candidaturas feitas, elas perderão votos para homens, vide a única mulher eleita em 1933. Sabendo que a admissão da mulher como ser com vida pública é tão recente na nossa história jurídica, mas ainda em processo de assimilação na polissemia da palavra “Mulher”, a educação de crianças deve ser repensada, tanto de meninas quanto de meninos, para dar conta de explorar a pluralidades de sentidos e jeitos de ser mulher. Chimamanda Ngozi Adichie é autora da obra “Como Educar Crianças Feministas?”. No livro ela fala da importância de educar meninas para não precisarem se colocar para trás por receio de ofuscar homens, como se eles necessitassem estar na frente sempre, seja em competições e brincadeiras na escola ou na hora de eleger mulheres para conduzir as decisões da vida coletiva.


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Referências Adichie, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto— 1ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2017 .ANTUNES, Leda. 5 FATOS SOBRE A CONQUISTA DO VOTO FEMININO NO BRASIL. Agência Patrícia Galvão, 2020. Disponível em: <https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/politica/5-fatos-sobre-aconquista-do-voto-feminino-no-brasil/>. Acesso em 17/07/2020. COELHO, Leila Machado; BAPTISTA, Marisa. A história da inserção política da mulher no Brasil: uma trajetória do espaço privado ao público. Rev. psicol. polít., São Paulo , v. 9, n. 17, p. 85-99, jun. 2009 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519549X2009000100006&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 17 jul. 2020. HAJE, Lara. Bancada feminina na Câmara sobe de 51 para 77 deputadas. Agência Câmara de Notícias, 2018. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/545897-bancada-feminina-na-camara-sobede-51-para-77-deputadas/>. Acesso em 17/07/2020.

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ECOS DE UMA VOZ SUPRIMIDA: A RESISTÊNCIA DA MULHER NA EDUCAÇÃO, DO APRENDIZADO À DOCÊNCIA Anthony Moreira Marques Colares

A história da mulher e suas conquistas tanto no Brasil como no mundo é presente desde os tempos mais remotos e nas culturas mais diversas. Hoje em dia, essas conquistas se tornaram um pouco mais comuns aos olhos da comunidade, vivemos em nossos ambientes acadêmicos e escolares onde chegamos a ter contato com dezenas de mulheres atuando na docência, desde as creches até o ensino superior. Com o passar do tempo podemos notar que houve um aumento significativo em ocupações docentes no ensino superior, segundo o Censo da Educação Superior de 2016, que estimou que as mulheres representam cerca de 45% do corpo docente universitário.

Essa expressiva participação de docentes femininas nos diferentes níveis de ensino começou de forma tímida na sociedade, perto do fim do século XIX, em uma época em que a educação era um privilégio para poucos, ou seja, a grupos muito seletos de homens brancos e de classe social alta da sociedade. Neste artigo, será apresentado o desenvolvimento das conquistas de estudos até finalmente contemplar a entrada das mulheres no setor da educação, lugar que atualmente mantém um número significativamente maior do que de homens. Para compreendermos essa situação, analisaremos discursos de professoras em diferentes níveis de ensino,


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buscando expor suas aspirações e analisar os discursos produzidos por mulheres no trabalho docente, considerando as dificuldades que encontram no exercício de sua profissão.

A história da educação e docência feminina no Brasil colonial e póscolônia Como um país colonizado, o Brasil passou por diversas transformações sociais até sua independência. Tendo como modelo de cultura países europeus, sobretudo a elite que se formou tanto com os primeiros ocupantes do território, portugueses e espanhóis, quanto com os colonos (alemães, italianos, franceses etc) que começaram a migrar a partir dos séculos seguintes à colonização. Dito isso, analisaremos um importante aspecto de desenvolvimento de uma nação independente, aspecto este bem relevante que teve um papel significante no auxílio de formação cultural de toda a nação. Estamos falando da Educação, aspecto que se tornou ainda mais importante com o passar dos séculos. O enfoque deste artigo será discutir e analisará o trajeto da mulher na educação, começando com sua formação informal até chegar aos níveis de ensino superior e, por fim, exercer o cargo de docência. Atualmente, no Brasil, a mulher tem uma presença relativamente destacada na área da educação, e essa

posição foi conquistada através de alguns séculos de mudez social e submissão. A história da educação da mulher brasileira começou refletida na sua sociedade colonizada, logo que as primeiras famílias se instalaram para viver na colônia, em torno do século XVI e XVII. Essa educação principiou-se no lar e para o lar, ou seja, as mulheres eram ensinadas em casa sobre assuntos que diziam respeito a tarefas domésticas, cuidar da casa, do marido, dos filhos. Sua ocupação principal era ser esposa e mãe, papel relegado a ela socialmente. Por consequência, a primeira posição de “educadora” era da mãe, que tinha o dever de ensinar a prole exclusivamente do sexo feminino, pois os indivíduos do sexo masculino eram contemplados com educação e instrução escolar. Vale ressaltar que, dentro da educação do lar, a maior parte das mulheres se conservavam analfabetas, pois esse direito ainda era reservado apenas aos homens, com exceção de filhas de famílias abastadas que instruíam minimamente para demonstrar a classe social pertencente. Após alguns anos de educação reclusa, a criação dos primeiros conventos em 1678 proporcionou às mulheres uma educação mais apropriada, porém, isso acabava por ser feito de forma arbitrária, pois muitas mulheres eram enviadas aos conventos sem terem interesse ou vocação

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religiosa. Ainda sim, podemos considerar que este foi o primeiro contato com a educação de forma mais formalizada que as mulheres brasileiras puderam ter. Com a efervescência de novos colonos chegando da Europa, no século XIX, a educação começou a se tornar uma necessidade para as meninas e para os meninos. Por conta disso, muitas mulheres colocavam anúncios nos jornais coloniais, se dispondo a ensinar particularmente os jovens da sociedade, ainda que sendo estes de origem mais abastada. Essas aulas, eram basicamente de etiqueta e educação de porte social, ou seja, plenamente de caráter comportamental, e eram administradas por mulheres de preferência inglesas, irlandesas e escocesas, que exerciam a fé católica romana (TOMÉ, 2012). Este também se tornou um dos primeiros contatos ainda que informais das mulheres com a educação. Assim fora até 1759, entretanto, houve um evento que auxiliou parcialmente na flexibilidade quanto à possibilidade de frequentação das mulheres na escola, sendo esse evento conhecido como Reforma Pombalina, que fez com que as instituições jesuíticas fossem destituídas como ambiente de educação, e abriu o acesso sobre o ensino para meninos e meninas, em teoria, ainda que fosse designado apenas para as crianças da elite, e as

implementação do magistério que VOCÊ SABIA? formaria mulheres para a atuação primeiro pedido de educação formal naOdocência de ensino fundamental. para mulheres, no Brasil, foi de uma indígena de uma tribo jesuíta ocupada por padres portugueses, movida pela curiosidade e senso de justiça, pois não entendia o motivo de na sociedade europeia, as mulheres terem tão poucos direitos, ao contrário dos homens, hábito incomum para as comunidades indígenas, uma vez que na cultura desses a mulher detinha dos mesmos direitos que o homem, e era tida como sua companheira. Um padre se encarregou de mandar a carta e passar a mensagem à rainha de Portugal, que negou o pedido. De forma oculta e proibida, algumas mulheres da tribo conseguiram driblar essa restrição e concluíram sua educação, sendo uma delas conhecida como Madalena Caramuru, que tomou por atestado disso, uma carta escrita por ela mesma para o padre que anteriormente se encarregara de entregar a mensagem para rainha.

turmas sendo separadas por sexo. Na companhia disso, veio a implementação do magistério que formaria mulheres para a atuação na docência de ensino fundamental. Logo após declarada a independência do Brasil, a criação da primeira constituição brasileira mudaria um pouco as diretrizes e bases da educação brasileira, contudo, em 1827, foi que a implementação da chamada Lei Geral que guiou a criação de instituições públicas de ensino básico e fundamental, vetando alguns componentes curriculares às mulheres, sendo estes considerados mais “racionais” e portanto


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masculinos. Já no final do império brasileiro, em 1870, a quebra do monopólio das escolas católicas com a chegada de escolas protestantes tornou-se um fato relevante e influenciador na sociedade, sendo as primeiras instituições a colocarem meninas e meninos numa mesma sala de aula. Não obstante, as mulheres eram desencorajadas a ingressar no segundo grau, que conhecemos hoje p or ensino médio, uma vez que este era tido como preparatório para o ensino superior, o que na época, era quase de exclusividade dos homens. Cerca de uma década depois, em 1881, foram abertos os primeiros cursos profissionalizantes para mulheres, ainda que estes fossem relacionados a atividades geralmente desempenhadas por elas mesmas. Já sua atuação no ensino superior começou rasa e escassa, pois havia muitos obstáculos discriminatórios que impediam ou dificultavam a frequentação de mulheres em cursos preparatórios, por conseguinte, sua presença era pequena, e ainda, para frequentar um curso de ensino superior, necessitava de permissão do marido, caso fosse casada, ou dos pais, caso fosse solteira. Finalizando esse percurso histórico, o desempenho das mulheres no século XX foi mais rápido e crescente, os números de ingressantes nas escolas foram crescendo consideravelmente no decorrer do século, vindo a se

tornar maior do que o de homens. Não obstante, o tempo médio de formação das mulheres era menor do que o dos homens, o que implicava numa formação e conclusão mais rápida de seus estudos. Podemos considerar que a atuação das mulheres no mercado de trabalho serviu como inspiração para as estudantes da época, que tomaram professoras e demais trabalhadoras do gênero feminino como exemplo, o que as impulsionou na formação profissionalizante. Um dos fatores desestimulantes destes processos, era a inferiorização que todas elas sofriam, pelo fato de comumente ganharem menos que os homens, apesar de desempenharem as mesmas funções. Sob o efeito de indignação, justiça, seja qual for, fez com que elas se tornassem mais obstinadas, buscando conquistar mais liberdade para habitar os ambientes de profissionalização e ensino especializado, seja em cursos técnicos ou profissionalizantes, até os cursos de ensino superior, para concluí-los e especializar sua formação profissional. Também não podemos deixar de considerar a possibilidade de famílias de classes sociais desfavorecidas necessitarem da força de trabalho da mulher, uma vez que não contariam com um homem em condições de trabalhar para obter o sustento da família, ou que o trabalho do

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homem não gerasse lucro suficiente para sustentá-la. Atualmente, as mulheres são maioria em quase todos os setores educacionais, na perspectiva discente elas ocupam a marca de ingresso no ensino superior de 56,4% (Portal do MEC, 2006), e esses números se tornam ainda maiores no que se referem a formandas, que tornaram-se 63,4% de mulheres (Portal do MEC, 2006). Por outro lado, na docência do ensino superior, ocupam a marca de 45,5% (Censo da Educação Superior, 2016), em contraste, estima-se que alcancem o maior percentual de atuação na docência de ensino superior dentro dos próximos anos, tendo em vista que sua presença no âmbito acadêmico é crescente. Na docência de ensino fundamental e médio, são a maioria, com dados acentuando cerca de 80% (Censo Escolar, 2018). O que nos leva ao próximo assunto que será abordado neste artigo: A docência feminina.

O começo da vida docente Após as batalhas pelo direito de educação pública, a cena se tornou mais branda. A partir das conquistas pelo direito de estudar e ter uma educação formal, o próximo objetivo foi o seguinte: Tendo usufruído de sua formação, poder utilizá-la para empenhar trabalho onde fosse possível, sendo a educação o mais próximo.

Podemos considerar que, com o acesso à alfabetização, o contato com a cultura passou a ser mais comum para as mulheres, uma vez que uma parcela significativa da sociedade passou a ler e escrever, o que propiciou o contato com a literatura, por exemplo, que ajuda a questionar e refletir sobre a sociedade. Assumimos daí, que o papel de literatura, que tem potencial de mover e atuar no sentimental e mental humano, começou a agir de forma positiva para as mulheres tornaram-se mais convictas à sua luta por adquirir outros direitos, como o de lecionar. Essa inserção na cultura letrada contribuiu para o processo de emancipação e empoderamento feminino da época. Começou-se, então, em meados do século XIX, uma série de direitos conquistados pelas mulheres, sendo um destes o de ministrar aulas para ensino básico e fundamental, e de fato esta atuação fora tão bem-aceita pela sociedade que grande parte da mesma passou a considerar a profissão do ensino básico como uma área de atuação perfeita para as mulheres, afirmando que o propósito do ensino lhes cabia bem e era como uma vocação natural para a mulher (FERNANDES, 2019). Como já dito, as mulheres partiram da educação domiciliar para a profissionalizante, com o magistério, isso permitiu a elas formar carreira, sobretudo, nas


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escolas públicas que foram criadas com a expansão da educação na era industrial, ainda que obstáculos como: as condições de empenhar sua profissão e o salário menor em relação ao do homem, se mantiveram por um bom tempo. Em contrapartida a tudo isto, novas batalhas tiveram de ser travadas, por exemplo: poder exercer cargos de administração nas instituições de ensino e até mesmo no setor geral da educação. No início do século XX, parte da comunidade já fazia pressão para que essa discriminação desaparecesse dos meios institucionais de educação, o que aconteceu, mas de forma severa e igualmente discriminatória, pois o Estatuto da Instrução Pública decretara que esses cargos administrativos poderiam ser ocupados por mulheres, caso fossem viúvas ou solteiras, e se casassem após a ocupação do cargo, o perderiam. Após a segunda metade do século XX, o número de mulheres na docência e discência foi aumentando gradualmente, e da mesma forma que começou, rapidamente, esqueceu-se que um dia a mulher fora proibida de habitar estes ambientes. Já no início do século XXI sua presença na sala de aula era tão majoritária, que novos problemas sociais relacionados a sua questão de gênero começaram a aparecer,

aspecto que será analisado no próximo tópico. Atualmente, o número de mulheres professoras nos mais diversos níveis de educação é muito significante, entretanto no Brasil, a profissão da docência é uma das menos valorizadas, tornando o país um dos piores para se exercer o ofício. Fica como um dos maiores questionamentos sobre isto, será que esta profissão é tão desvalorizada, no que se refere à educação obrigatória pelo fato de o número de docentes ser majoritariamente composto por mulheres? Essa reflexão ficaria ainda mais evidente ao saber que o único ambiente que melhor remunera seus professores, é o ensino superior, onde as mulheres compõem a minoria do corpo docente, segundo Censo da Educação Superior de 2016, cerca de 45,5%? São questões bem pertinentes, e para melhor podermos dissertar sobre elas, foram feitas entrevistas com diversas professoras de todos os níveis de educação para poder entender estas questões e analisar o discurso da posição social de uma mulher professora. Foram feitas, então, as questões a seguir:

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1) Conte um pouco como foi sua trajetória de formação como professora. Atualmente, se considera satisfeita com essa profissão? 2) O que a levou a escolher essa profissão? Teria escolhido outra se pudesse? 3) Quais foram os maiores obstáculos na sua formação? E atualmente, no exercício da sua profissão, quais são os maiores desafios que você enfrenta? 4) Você acredita que ser mulher a faz enfrentar situações que normalmente não seriam enfrentadas por um homem na mesma carreira? Se sim, quais situações poderiam ser? (Ex.: Ocupar cargos administrativos, de coordenação ou organização escolar/ensino etc.)

Análise das respostas realizadas pelas professoras Após as batalhas pelo direito de educação pública, a cena se tornou mais branda. A partir das conquistas pelo direito de estudar e ter uma educação formal, o próximo objetivo foi o seguinte: Tendo usufruído de sua formação, poder utilizá-la para empenhar trabalho onde fosse possível, sendo a educação o mais próximo. Podemos considerar que, com o acesso à alfabetização, o contato com a cultura passou a ser mais comum para as mulheres, uma vez que uma Em relação à primeira questão, pode-se observar uma diferença temporal de exercício da profissão entre as entrevistadas, sendo metade destas com menos de dez anos de atuação, e a outra metade com mais

de dez anos. A maioria destas declarou que, ao ingressar no curso de sua formação, não tinham exatamente claro como desejavam atuar na profissão de professora e que acabaram por escolher esta profissão por uma questão de afinidade, embora também houvesse o fator de ser uma profissão representada majoritariamente por mulheres no que se refere ao ensino fundamental e médio. Durante sua formação e primeiros contatos com a profissão, foram declaradas diferentes experiências e pontos de vistas bem diversificados, como os seguintes:

“Costumo pensar que o chegar na sala de aula é o mergulho. Explico-me, uso essa metáfora do mergulho para ilustrar que durante a graduação tive todas as teorias e técnicas baseadas em um aluno ideal, em uma sala de aula ideal [...]” (Declara P. A., Mestra em Letras, graduada em Letras português e espanhol, pela Universidade federal do Rio Grande FURG, atualmente atuando como professora de ensino fundamental numa escola do município de Rio Grande).

P. A. não declarou nesta resposta sua satisfação ou insatisfação com a profissão, embora declare que inicialmente tenha entrado no curso de licenciatura com o intuito de trabalhar como tradutora ou/e revisora. Ainda assim, relatou que foi a sua pós-graduação (especialização, e não o mestrado) que serviu de “lastro” para o trabalho que viria a realizar mais


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tarde. Em contraponto, tivemos uma declaração da professora S. M., que é pós-graduada em Letras pela Universidade da região da campanha URCAMP, atualmente professora pelo estado do Rio Grande do Sul e também pelo município de Candiota, atuando como professora de ensino médio e de ensino fundamental (na educação para jovens e adultos). Esta afirma o seguinte: “[...] eu tenho mais de vinte anos de atuação em sala de aula e atualmente me considero muito satisfeita com a minha profissão, e acredito que meu trabalho de alguma forma faça a diferença na vida das pessoas[...]”

Outra declaração positiva foi da professora doutora V. M., professora da Universidade Federal do Pampa Campus Bagé. Esta também se mantém bem satisfeita com a escolha da sua profissão e declara que desde o início de sua juventude já alimentava apreço pela área de sua atuação (Letras, embora tenda mais para área de sua especialização – Literatura). Ainda assim, ela afirma que dentro da profissão há várias frustrações, em relação à profissão ser extremamente desvalorizada socialmente e até moralmente, já que muitas pessoas não enxergam o potencial de desenvolvimento social coletivo e individual que a educação pode conceder a cada indivíduo, mesmo que parte desse desenvolvimento

exista e esteja em contínuo contato com os sujeitos-alunos. Não obstante, também cita a falta de políticas duradouras que enfatizem a importância da profissão, o que vem a ser pertinente, pois o salário de uma professora no estado do Rio Grande do Sul tende a não ultrapassar o que já é (em torno de dois mil reais brutos), e, ainda que haja alguns benefícios como plano de saúde e outros aspectos, acabam não compensando a carga horária que estas professoras exercem dentro e fora da escola. Mantém-se difícil precisar se há um padrão para o contentamento das profissionais, ainda sim, pode ser contrário à ideologia e ao discurso dominante, professoras com mais tempo de exercício, após passar por diversos governos estaduais, municipais e federais, estarem mais satisfeitas com suas profissões, pois podemos analisar que sucederam diversas mudanças na educação estadual, municipal e federal, o que acarretou em muitas transformações, que culminaram na educação com sua desvalorização política e social. ]Mesmo assim, não podemos descartar as motivações pessoais de cada professora, que podem influenciar tanto positivamente quanto negativamente na escolha da profissão. O que nos leva a considerar a ideologia do sujeito um fator inseparável, uma vez que esta é

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constitutiva da subjetividade, presente dentro de discursos machistas que circulam na sociedade, como por exemplo:

Fonte:

Mulher não pode receber um salário mais alto do que o do marido, ou exercer uma profissão social que sobrepunha o mesmo em cargos de hierarquia, como administrativos e de coordenação. Ideologicamente, discursos como esses tendem a prevalecer, tendo em vista que ainda prevalece uma sociedade ideológica extremamente patriarcal, ainda que o empenho de mulheres em cargos de melhor remuneração e administração acabem por se definir como movimento de resistência a essas ideologias machistas. Com relação à segunda questão, foram abordadas temáticas infelizes, porém presentes na vida de muitas professoras. Muitas profissionais da educação, as mais antigas especialmente, acabaram por escolher a profissão do ensino por se adequar de forma mais prática a sua posição social, ou até mesmo porque

era uma das únicas alternativas de empenhar estudos de ensino superior e garantir um trabalho público, mesmo que com pouca renda. A questão de ser um cargo mais acessível também é relevante, pois muitas universidades federais contam com cursos de licenciatura. Segue o relato da professora P. A., que apresentou a realidade vivida por ela, anos atrás, quando escolheu cursar licenciatura:

“Penso que não foi uma escolha direta, mas a profissão foi se apresentando na medida em que continuei morando em Rio Grande por questões familiares e era esta a opção mais viável de trabalho, pensando em minha formação.“

Em contraste, o relato da professora M. M., formada em pedagogia pela universidade Cezuca de Cachoeirinha do Sul, professora de ensino básico do município de Glorinha, Rio Grande do Sul, traz uma realidade não muito distante, também demonstrou que seu trabalho no ambiente educacional foi fruto de seu desejo por trabalhar com crianças, usufruindo assim de uma escolha com base nas afinidades e desejos da mesma, como segue sua resposta:


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“Não me vejo noutro campo de atuação, é desafiador, mas algo realmente único. Não posso afirmar que estarei em sala de aula para sempre, mas com certeza estarei no ramo educacional, seja contando histórias, escrevendo ou como supervisora, quem sabe? Escolhi a pedagogia já adulta por acreditar no potencial transformador da escrita.”

Com a professora S. M. foi como um dos casos citados acima, a profissão lhe foi sugerida pelo pai, também professor, com o argumento pragmático e de tendência ideológica/social de que era uma profissão que combinava muito bem com as mulheres. Assim como M. M., S. M. não se imagina exercendo outra profissão que não fosse lecionar, já que sempre gostou do componente curricular de português, o qual leciona. De todas as respostas, foi a da professora doutora V. M. que pareceu de maior contentamento com sua escolha, como fala ela:

“[...] o meu interesse pelas aulas de língua portuguesa, meu gosto pela comunicação, de modo geral, foram fatores decisivos para que eu escolhesse essa profissão. [...] Creio que, se eu tivesse tido outras referências, talvez pudesse ter escolhido outra profissão. Mas a carreira de professora de Letras está tão entranhada em mim, que tenho dificuldade em pensar que outra profissão eu poderia seguir.”

Já na terceira questão, as respostas foram ainda mais diversas, e dificuldades diferentes foram apontadas por cada professora. O fator salarial é um destes, para a professora P. A., que afirma ser muito baixo e bem pouco satisfatório. Também aponta que os planos educacionais, muitas vezes, tornam ainda mais árdua a formação das professoras, no que se refere a sua profissionalização, pois tirar licença para mestrado ou doutorado é bem complicado atualmente. Ela ressalta que os desígnios de tratamento e auxílio aos professores em situação de vulnerabilidade, aqueles com problemas de saúde e transtorno psicológicos, é pouco eficiente. Podemos analisar, que esses traços de desmérito do Estado ressaltam o predomínio do discurso machista que desconsidera a qualificação das docentes que exercem ali suas funções. Além disso, temos o relato da professora S. M., que declara ter vindo de origem humilde e que teve de se esforçar muito, trabalhando simultaneamente com as atividades acadêmicas, como declara semelhantemente à professora V. M., para que pudesse custear sua educação de ensino superior. Outro ponto que ela toca, é sobre a jornada exaustiva que muitas professoras exercem, tendo que desempenhar até sessenta horas semanais para se sustentar financeiramente. Declara o seguinte:

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“[...] os maiores desafios para formação é realmente a gente conseguir encaixar um tempo dentro da rotina de trabalho de professora, que já é estressante[...]”

S. M. aponta também a adaptação que faz de suas aulas para o uso das mídias digitais, no intuito de deixar suas aulas mais perto da realidade do aluno. Esse tratamento das mídias digitais vem sendo abordado nas diretrizes da BNCC, o que pode desencadear muitas dificuldades e desafios para professoras mais velhas, cujo contato com a tecnologia é mínimo e apresentam ter ainda mais dificuldade em se adaptar às mudanças e aparelhos tecnológicos, já que muitos governos oferecem pouca, ou nenhuma formação para aplicar novos métodos de ensinos. Representando a posição-sujeito de docente do Ensino Superior, neste artigo, a professora V. M. também cita as diversas demandas que recaem sobre os docentes, que também precisam se adaptar constantemente e ainda desempenhar atividades administrativas e burocráticas. Por sua vez, M. M. afirma ter enfrentado em sua graduação, como desafio a incerteza de qual ramo da pedagogia seguir, vendo que muitas vezes as universidades permitem seguir trabalhando e desenvolvendo projetos de vida em uma das várias opções que essas possam sugerir.

Atualmente, já lecionando, aponta os seguintes desafios: “Hoje, em sala de aula, os desafios são: indisciplina, dificuldades de aprendizagem dos alunos, como implementar e lidar com educação inclusiva e indivíduos em situação de vulnerabilidade social, que tem parentes ausentes, por exemplo.”

Por fim, a última questão foi o maior divisor de águas nas entrevistas desenvolvidas. As professoras de ensino fundamental declararam justamente o oposto a questão proposta, na verdade afirmaram haver um certo preconceito da parte da maioria da população em relação a homens lecionando nos ensinos fundamental e médio. “Não vejo isso na área educacional, professores (homens) na pedagogia até sofrem certo preconceito, já vivenciei isso em uma escola de Ed. Infantil, um bom professor foi demitido porque as famílias pressionaram a diretora.” Declara a entrevistada, professora de ensino básico, M. M..

S. M., professora de ensino médio e fundamental fez uma colocação semelhante, expondo a raridade de ver homens nestes ambientes. Por outro lado, a professora P. A., de ensino fundamental de sexto ano até nono, fez uma declaração inversamente proporcional, declarando haver certos preconceitos tanto da parte dos


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colegas de trabalho, quanto da parte discente, e ela atribui essa falta de conduto com o seu gênero e sua idade, por ser jovem e ter pouco tempo de carreira, como relata a seguir:

“Minha grande dificuldade se deu e dá na sala de aula com alunos do ensino médio. Logo que cheguei na escola minha idade e o ser mulher formaram um obstáculo, uma barreira para conseguir respeito e participação dos alunos. É como se estes dois elementos (pouca idade e ser mulher) desautorizassem minha prática e minha palavra.”

Outro ponto semelhante a este foi o da professora V. M., que não soube atribuir com muita certeza, porém fez a seguinte fala: “Como mulher, muitas vezes, precisei ser mais firme em minhas posições; ou precisei demonstrar muito conhecimento; ou precisei acumular tarefas.”

Esta colocação entra em consonância com a fala de P. A.. Mesmo assim, não conseguiu destacar alguma situação explicitamente misógina, ainda que acreditasse que muito de seus conflitos com estudantes tanto no ensino básico como superior estejam atrelados ao fato dela ser mulher. Ela também fala que em seus 30 anos de exercício de profissão ficou comum ver alunos adolescentes que desrespeitavam uma professora, calarem-se diante

de um professor.Podemos ponderar a respeito disso, por exemplo, o fato de as professoras de ensino fundamental observarem certo preconceito contra os homens na sua área imediatamente remetem ao fato de que este ambiente educacional tornou-se predominante feminino por “afinidade”, o que pode parecer um fato, porém esse discurso não se sustenta, pois partimos de uma perspectiva imparcial em que os sujeitos desempenham afinidades independente do gênero e atribuir um bom trabalho a um gênero só reforça o estereótipo machista que nele está impregnado há décadas. Portanto, em relação ao ensino fundamental, analisamos que um discurso estrutural é implementado à respeito da predominância feminina, que é um fator subjetivo que oculta uma ideologia patriarcal dominante em nossa sociedade. Já as professoras de ensino médio e superior declararam precisar se impor mais na relação com seus alunos, o que inicialmente pode acabar por remeter a uma questão de idade, onde os adolescentes são vistos como mais petulantes que as crianças. Contudo, assim como o anterior, esse discurso não se sustenta, uma vez que pode ser usado facilmente para mascarar mais um machismo estrutural, pois a partir de uma perspectiva conservadora, podemos adotar como figura masculina, a do pai, que bate nas crianças para obter “educação” e

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obediência. Por outro lado, a mulher raramente remete a este fator da violência, o que leva muitos alunos a não “respeitá-la”, então podemos afirmar que este tipo de discurso também esconde em sua subjetividade, uma ideologia machista. Ainda que estas duas análises possam não ser suficientes, vale ressaltar que para uma verificação mais profunda deveria-se observar à fundo, o comportamento de alunos e professores com cada uma das professoras, o que seria impossível executar, pois uma vez que se faça presente, para executar tais observações, nos ambientes de convivência torna-se difícil constatar a genuinidade das ações e formas de interações destes para com ela. Fala-se isso por parte do corpo entrevistado que não citou de forma contrastante sua convivência com os alunos, o que pode nos remeter a muitas possibilidades: ter uma relação saudável com seus alunos; ter uma relação com alguns problemas, porém não os considerar como “empecilho”; ter diversos problemas que dificultem sua prática de ensino, porém considerar obstáculos comuns à profissão.

Como essas vozes podem ser escutadas? A educação no Brasil se encontra em contínua transição, pois vemos o

ensino sendo articulado das formas mais diversas possíveis, com os documentos que organizam a educação, a formação em universidades públicas, abrindo portas para mulheres de todas as classes sociais, raças, orientações sexuais etc, poderem empenhar seus estudos, sejam nas licenciaturas ou em outros cursos, ou seja, há ascensão contínua das mulheres nos mais variados contextos sociais. Todos esses são fatores que podem alterar as respostas nas pesquisas que abordam o assunto, sem contar o contexto de trabalho de cada uma, que detém de suas particularidades, cidades mais rurais ou urbanas, população mais conservadoras, também afetam na resposta, porém, o fato de todos esses fatores interferirem não quer dizer que o machismo estrutural não esteja impregnado em nossa sociedade. O discurso machista é o principal antagonista à contínua progressão das mulheres e sua contribuição para a comunidade acadêmica/escolar. Tomando por conta que a educação é um serviço público cujo valor é subestimado, talvez seja justamente por conta da educação sempre remeter a sujeitos-mulheres que empenham suas atividades e funções num contexto completamente inóspito e desfavorável, que a comunidade que vigia as instituições de ensino e rege o seu desenvolvimento acaba por desprezar a importância dessa


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profissão. Por conseguinte, esses sujeitos que organizam as instituições de ensino, de valor cultural e social inestimável, fazem com que suas discriminações e preconceitos recaiam sobre toda uma sociedade, uma nação, criando um estereótipo retrógrado e extremamente machista, que além de desvalorizar a mulher, diminui a importância de todo um setor de uma sociedade, o que implica em um prejuízo moral, ético, social e econômico de grau nacional. Tornou-se digno de atenção, na última década, as transgressões que a educação sofreu, já que em contraponto a isto, na primeira década do século XXI houve avanços significativos no que se refere à criação de universidades e institutos federais que oferecessem possibilidades de uma profissionalização e educação de maior qualidade. Agora, com o início da terceira década, cabe a toda uma comunidade manter-se resiliente a todos os golpes que este setor desafortunado vem sofrendo. A grande esperança que surge neste horizonte perturbador é participação mais comum das mulheres nos setores profissionais, em especial na educação superior, pois, como já citamos anteriormente, os números de mulheres em cursos de graduação é relativamente maior que o de homens, o que nos dá uma perspectiva de participação profissional mais ativa da parte das

das mulheres. É claro que só este fator não basta, precisamos de representações sociais mais frequentes, mulheres que se disponham a ocupar cargos administrativos e políticos, também precisamos de uma população mais consciente que entenda que a competência das mulheres é tão pertinente e eficiente quanto a de um homem. A sociedade brasileira precisa acreditar mais no potencial das mulheres. Se formos crer através dos dados que obtemos, esta mudança não deveria demorar muito para acontecer, talvez duas décadas seriam o suficiente para concretizar uma sociedade mais consciente e igualitária, entretanto, com retrocesso ideológico fica difícil para os especialistas estimar em quanto tempo esses avanços ocorreriam, ainda mais em um contexto tão desfavorável, com uma representatividade política tão pequena.

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REFLEXÕES E ASPECTOS IDEOLÓGICOS: DEBATENDO AS RELAÇÕES ENTRE MATERNIDADE E A INSERÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO Luciana Ribeiro Teixeira

A desigualdade de gênero é um aspecto que ainda faz-se presente em várias esferas da nossa sociedade. Isso se apresenta devido formações ideológicas determinadas historicamente. Há um imaginário baseado em discursos machistas no qual se acredita que o sexo feminino não apresenta as mesmas condições que o sexo masculino para a inserção no mercado de trabalho, porque as mulheres ainda são vistas como aquelas que têm o dever e a obrigação com as tarefas do lar e aos cuidados dos filhos. As mulheres, desde quando decidiram se inserir no mercado de trabalho, vêm enfrentando a

desigualdade de gênero que se torna ainda mais perceptível quando elas tornam-se mães. Em qual século a participação das mulheres no mercado de trabalho tornou-se objeto de estudo? Quando que o público feminino tornou-se economicamente ativo? Na segunda metade do século XX, a relação entre a participação feminina no mercado de trabalho e a maternidade fez-se objeto de investigação nas ciências sociais. É a partir desse momento que se torna evidente a relação entre o aumento da participação da mulher no mercado de trabalho e o declínio da


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fecundidade nos países ocidentais. Porém, com o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, as mesmas acabam não tendo o devido tempo para as atividades domésticas, e nesses casos, muitas vezes, as atividades do lar tornam-se terceirizadas assim como os cuidados com os filhos. Já aquelas que decidem não terceirizar as atividades domésticas acabam se sobrecarregando, pois após cumprirem com o horário de trabalho diário precisam cumprir com as atividades do lar, porque muitas das mulheres não possuem ajuda de um companheiro para dividirem as tarefas domésticas, assim como o cuidado dos filhos, que acabam sendo de total responsabilidade das mães. Isso se deve a uma ideologia machista que acredita que essas tarefas devem ser apenas de responsabilidade das mulheres e quando elas possuem filhos delegam os cuidados apenas para as mães. As análises desse fenômeno produziram e ainda produzem um intenso debate sobre as suas causas e consequências. Nesse sentido, tanto a sociologia quanto a economia vêm construindo um arcabouço teóricometodológico para a compreensão dos impactos que essa relação produz na dinâmica populacional, colaborando diretamente para os avanços dos estudos sociológicos e demográficos nessa área. Nos estudos da linguagem, podemos tratar desse assunto por meio da Análise do Discurso, teoria

que considera a linguagem como sendo o discurso que é constituído pela ideologia, historicidade e inconsciente, com isso, quando relacionamos a maternidade e o mercado de trabalho, a sociedade é afetada pela ideologia machista que insiste no discurso de que a mulher quando se torna mãe é um sujeito que será incapaz de cumprir com as exigências do mercado de trabalho. Ao observar o aumento da participação feminina no mercado de trabalho, conclui-se que, até os anos 70, era observado um leve aumento da população economicamente ativa feminina no Brasil. De acordo com os dados do IBGE, citados por RIOSNETO (1995), em 1950, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho era de 13,6%; em 1960, 16,6%; e em 1970, 18,4%. No Brasil, somente a partir dos anos 70, é que se intensifica a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Como destacam Bruschini & Lombardi (2003, 1996) e Bruschini (1995), as mudanças culturais, demográficas, econômicas, assim como os avanços discursivos promovidos por novas formações discursivas como a feminista, possibilitaram às mulheres brasileiras uma maior inserção no mercado de trabalho, principalmente devido ao aumento da escolaridade e ao declínio da fecundidade que teve como um dos principais métodos preventivos a pílula anticoncepcional que surgiu na década de 60, corroborando de maneira eficiente com o declíneo da


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fecundidade. No Brasil o principal responsável pelo aumento da participação feminina no mercado de trabalho foi o setor informal que, em muitos casos, é também o reduto das jornadas em tempo parcial. Nos últimos tempos, o mercado informal tem se intensificado de maneira significativa, tendo em vista o empreendedorismo que vem crescendo e contribuindo para o sustento das famílias e a independência financeira das mulheres. Com o grande salto dado pelo elevado crescimento econômico do início da década de 70, reflexo direto do milagre econômico brasileiro, o setor produtivo cresceu rapidamente, ampliando a demanda por mão-de-obra. Esse aumento da demanda foi extremamente favorável à inserção da mulher no mercado de trabalho, como é observado por Wajnman, Queiroz & Liberato (1998) e Bruschini & Lombardi (1996). Contudo, quando se relaciona a maternidade ao mercado de trabalho feminino a partir da perspectiva sociológica e também discursiva, essa relação se refere ao fundamentado da hipótese da incompatibilidade de papéis como lugar social obtidos nos imaginários construídos para homens e mulheres na sociedade, conferindo diferentes funções sociais e relacionando determinada importância na construção social de estabelecidas atribuições. Essa incompatibilidade se refere à dificuldade em administrar a

maternidade e a vida profissional. Ao escolher ser mãe, por exemplo, a mulher considera a perda (ou o não recebimento) de potenciais ganhos advindos da participação no mercado do trabalho. De acordo com uma das correntes teóricas da análise do discurso, que coloca como base a noção de materialidade, seja linguística seja histórica, fazendo aparecer uma outra noção de ideologia concepção de língua como materialidade histórica e ideológica, atualmente, ainda é presente em nossa sociedade o conflito vivido pelas mulheres que trabalham ou desejam trabalhar fora e que têm crianças ou desejam tê-las, e isso tem sido a base para se entender como a inserção da mulher no mercado de trabalho pode afetar a maternidade. Como bem destacam Bonner (2015), Fangetal (2013), Matysiak & Vignoli (2013) e Brewster & Rindfuss (2000), a participação da mulher no mercado de trabalho continua sendo um dos principais vetores explicativos do declínio da fecundidade em muitos países. Uma das causas, muitas vezes, deve-se à falta de apoio que muitas mães enfrentam na criação dos filhos, e assim para manter sua carreira profissional muitas mulheres optam por não ter filhos ou escolhem ter apenas um. Diversos estudos empíricos têm demonstrado que em sociedades onde existem a incompatibilidade de papéis e alto custo de oportunidade de ter filhos, as mulheres que trabalham têm em

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média menos filhos quando comparadas com as mulheres que não trabalham (FANG ET AL, 2013).

VOCÊ SABIA? Estima-se, que no período de 1976 a 2010, a população economicamente ativa feminina passou de 11,4 milhões para 22,4 milhões, a taxa de atividade aumentou de 28,8% para 49,0 e a porcentagem de mulheres no conjunto de trabalhadores foi de 30,3% para 45,3%. Isto significa que mais da metade da população feminina em idade ativa trabalhava em 2010 e que mais de quarenta e cinco em cada cem trabalhadores era do sexo feminino na mesma data.

Porém, ainda circula em nossa sociedade, o discurso machista no ambiente de trabalho em relação ao exercício da maternidade, decorrente dos meses de afastamento proporcionados pela licença maternidade ou pelas dificuldades enfrentadas pelas mulheres que possuem filhos pequenos. Assim, os processos de seleção priorizam as candidatas que possuem maior disponibilidade de locomoção e de tempo para se dedicar ao trabalho, de forma que as mulheres que estão vivenciando a gravidez ou a maternidade apresentam menores chances de serem selecionadas quando comparadas aos demais candidatos (BRUSCHINI & PUPPIN, 2004). Nesse sentido, as mulheres que não conseguem conciliar estudo e trabalho com a maternidade experimentam sentimentos de culpa e cobram a si

mesmas pela escolha de uma opção entre duas áreas da vida que não deveriam ser excludentes, mas sim conciliadas (ALMEIDA, 2007). Considerando esses contextos sócio históricos, entre alguns casos de mulheres que são mães ainda sofrem preconceitos que foram construídos historicamente devido a formação ideológica que considera a maternidade um empecilho para exercer o mercado de trabalho, como exemplo, destaco a fala de uma empreendedora que diz ter sofrido esse preconceito:

“Eu trabalhava em uma agência de publicidade, eu era muito produtiva, achava que não precisava do feminismo, que o preconceito não me atingia, mas o dia que descobri que estava grávida, ouvi do meu chefe: “Agora, você não vai mais prestar”. [...] Ao retornar da licença maternidade, fui substituída por uma jovem mulher sem filhos.

Essa situação vivida por essa empreendedora mostra o quanto o preconceito e o discurso machista ainda é determina as relações produtivas de nossa sociedade que considera que a mulher ao tornar-se mãe perde sua capacidade de exercer o mercado de trabalho. Outra demonstração bastante comum do preconceito e da desigualdade de gênero em nossa sociedade é a diferença salarial que as mulheres, principalmente, aquelas que possuem filhos, tem em relação aos homens. Com isso, essas mulheres também têm bem menos chances de contratação no mercado de trabalho.


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Em uma outra situação, destaco uma fala de uma mulher que participava de uma seleção de trabalho: “Eu me lembro da primeira vez em que me perguntaram sobre filhos em uma entrevista de emprego e eu sentia o peso dessa pergunta. A entrevista foi ótima e eu havia sido indicada pela própria diretora da área para participar do processo, mas pela primeira vez em toda a minha carreira saí da entrevista com um gosto amargo. Não passei da primeira fase e fiquei com a nítida impressão de que teve tudo a ver com ter sido franca sobre os planos de engravidar. Isso foi em 2014 (detalhe: eu só fui mãe em 2016 e saí da empresa em que trabalhava muito antes por outra razões absolutamente desconexas da maternidade!) e na ocasião quase todo mundo com quem conversei achava ok não se contratar uma mulher que diga que quer engravidar em breve e que o entrevistador a inquira sobre isso”.

Com isso, levando em consideração a fala dessa mulher é nítido que atualmente ainda está impregnado na formação ideológica e discursiva predominante na nossa sociedade o discurso de que não há condições de uma mãe conciliar a maternidade e o

Fonte: Depositphotos

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mercado de trabalho. Muitas dessas mães que resolvem abrir mão de estar junto e cuidar dos filhos integralmente são mães que necessitam trabalhar para manter o sustento da família, porque nem todas possuem a responsabilidade financeira e suficiente do pai da criança. Portanto, descrevemos os processos discursivos que representam imaginariamente os lugares sociais. Somos sujeitos determinados ideologicamente por formações discursivas das quais se constituem posições-sujeito que permitem o seu dizer. Essa determinação ideológica é o que produz o sentido para a inserção e permanência da mulher no mercado de trabalho .Esses sentidos determinam posições-sujeito em nossa sociedade que ainda, infelizmente, é carregado de condutas preconceituosas no qual se considera que as mulheres não irão contribuir de maneira igualitária aos homens devido dizeres que permanecem afetados pela historicidade e ideologia em que as mulheres ainda são vistas como aquelas que são direcionadas apenas aos afazeres do lar e aos cuidados unicamente dos filhos.


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Referências CESTARI, Mariana. ESTUDOS LINGUÍSTICOS, São Paulo, 42 (3): p. 1127 – 1140, set-dez 2013. FIORIN; PASCUALE CHECHI; OLIVEIRA; TOCHETT DIAS; GARCIA, Clarisse, Ana Cristina. Percepções de mulheres sobre a relação entre trabalho e maternidade. Rev. bras. orientac. prof vol.15 no.1 São Paulo jun. 2014. ORLANDI; Eni P. Interpretação, autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico – 5ª edição, Campinas, SP. Pontes Editores, 2007. SANTIAGO DIAS JR; Cláudio; Ana Paula. Maternidade e trabalho: algumas reflexões sobre mulheres em ocupações de nível superior. Sbsociologia.com.br. Disponível em: http://dx.doi.org/10.20336/rbs.152. Acesso em: 18/04/2020.


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RESISTÊNCIA FEMINISTA E O DISCURSO POLÍTICO-RELIGIOSO: O QUE É SER MULHER? Gilmar Junior Ferraz Bolsan

Em nossa conjuntura política, religiosa e social, muito se fala sobre o que é ser mulher e ser homem, pois parte-se do pressuposto de que as identidades – com todas as suas subjetividades e particularidades– devem ser, obrigatoriamente, pautadas a partir de um conhecimento biológico e binário: homens nascem homens porque possuem os cromossomos XY e mulheres nascem mulheres porque possuem o par de cromossomos XX. Todavia, como pesquisador que trabalha com questões relacionadas à linguagem e ao discurso, torna-se imprescindível considerar o extralinguístico, isto é, não levar em consideração apenas as relações internas, mas também as relações externas. Para Orlandi (2017) com base em Pêcheux (1969), discurso é “efeito

de sentidos entre locutores” e não apenas transmissão de uma informação e de uma mensagem de um emissor a um receptor. Entendendo, portanto, que discurso é efeito, compreende-se que ele sempre pode ser outro, pois é determinado pela interpretação. Do mesmo modo, cada sujeito no discurso pode ser interpelado por diferentes Formações Ideológicas (FIs), que irão ser representadas nas Formações Discursivas (FDs). Toda essa introdução, então, é para situá-lo, enquanto leitor, a respeito do que pretendo discutir aqui: como discursos políticos e religiosos sobre as mulheres podem ser vetores de relações de poder vigentes na sociedade? Para essa discussão, analisarei discursos endereçados às


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identidades femininas[2] nos contextos religioso e político, sempre considerando o texto como uma unidade de análise (ORLANDI; LAGAZZI-RODRIGUES, 2017). É importante salientar que texto, para os estudos discursivos, pode ser, também, imagem. Dessa maneira, no decorrer desse artigo, analiso três imagens retiradas de perfis da rede social Twitter, tendo como aporte teórico, para isso, as postulações de Michel Pêcheux (1995) sobre discurso, ao considerá-lo como acontecimento. No cenário político e religioso atual, presenciamos um movimento que chamarei de “resistência à resistência” com base em Fernandes (2017), uma vez que sujeitos-evangélicos que assumem a posição-sujeito política não hesitam em questionar as pautas que são levantadas pelos movimentos sociais feministas, tais como maior participação feminina nos poderes executivo, legislativo e judiciário; direito ao aborto legal e seguro; criminalização mais efetiva no que toca à importunação sexual, entre outras. No entanto, para algumas vertentes do feminismo, como a interseccional, o pressuposto é que existem outros fatores responsáveis pela opressão de grupos de mulheres, como raça, questões de gênero e de classe. Considerando isso, é possível afirmar que mulheres são oprimidas não apenas por sua condição de gênero, mas, também, por sua posição social, sua etnia e sua identidade (ex: se travesti ou transexual). Mulheres

travestis, a título de exemplo, sofrem duplamente, uma vez que socialmente não são consideradas mulheres devido ao domínio do discurso religioso, estruturalmente impregnado nas relações pessoais e sociais, e ao discurso político, que insiste em jogálas ainda mais para a margem da sociedade. Ao analisar as imagens postadas nas redes sociais, irei referilas como Sequências Discursivas (SDs).

SD1:

Fonte: Rede Social Twitter

Nesta SD 1, deparamo-nos com o discurso “No dia das mulheres diga não à pirataria”. Pirataria, de acordo com o saber popular, é algo que condiz com a falsidade, com inverdades, gerando efeito de sentido de um produto de qualidade ruim. Nesse sentido, o


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sujeito-autor responsável pela montagem inscreve-se em uma FD contrária aos estudos de gênero, pois seu discurso não considera a distinção entre orientação sexual, identidade de gênero e performance artística. Pabllo Vittar, drag queen e cantora LGBT, não se considera mulher, mas sim um homem gay que se traveste artisticamente, como afirma em entrevista concedida a uma revista[3]. Mais acima, o autor do post diz: “Hoje é comemorado o dia só das mulheres verdadeiras!!!”. Ao dizer isso, no jogo discursivo, compreendendo que há confusão de conceitos na postagem, de que as mulheres transexuais ou travestis até podem ser mulheres, porém falsas, produtos da pirataria e, consequentemente, pessoas que estão cometendo crimes, uma vez que a pirataria não é permitida pela lei. “Mala”, segundo o saber popular, é uma expressão utilizada para fazer referência à genital masculina. Desse modo, segundo o discurso religioso, mulheres com pênis não poderiam existir, contrariando os estudos de gênero dentro das mais diversas epistemes.

VOCÊ SABIA? Em 2019, foram pelo menos 124 casos de mortes e violência contra travestis e transexuais no Brasil. O dado mantém o País em 1º lugar no ranking mundial. A maioria das vítimas era negra (82%) e do gênero feminino (97%). Porém, em 2020, nos dois primeiros meses dos ano, entre 1/01 e 28/02/2020, o Brasil apresentou aumento de 90% no número de casos de assassinatos em relação ao mesmo período de 2019.

SD2:

Fonte: Rede Social Twitter

Nesta imagem, há uma menina vestida de rosa e um menino vestido de azul. Essa escolha de imagens e cores, por si só, dá conta de evidenciar em qual formação discursiva o autor se inscreve, isto é, a FD religiosa, que considera que meninos só podem vestir azul e meninas, rosa, em um movimento de sentido que atribui sentidos a alguns símbolos: rosa é de menina, azul é de menino, em uma tentativa de padronização de corpos e manutenção de discursos de poder vigentes. A sentença “A verdade é que meninos são meninos e meninas são meninas” implica diferentes gestos de interpretação. Como analista de discurso, não cabe aqui o juízo de valor, nem tento, em minha análise, dizer qual sentido é o certo e qual é o errado. Dizer “A verdade é” trata-se de uma tentativa de produzir o efeito de verdade e naturalizar imaginários


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construídos por certa Formação Discursiva, demonstrando que o sentido só poderia ser aquele e, como sabemos com Pêcheux (1995), ele sempre pode ser outro, pois a língua é opaca, não transparente, de modo que não há literalidade, mas há a produção de efeitos de evidência do sentido.

SD3:

A SD3 foi retirada de uma cartilha para crianças filhas de pais evangélicos. Nela, notamos o texto “E criou DEUS o homem à sua imagem; à imagem de DEUS o criou; macho e fêmea os criou. (Gn 1.27).” O vocábulo “DEUS” em caixa alta promove ênfase no discurso religioso, produzindo o sentido de que o saber vindo de um ser superior e celestial seria inquestionável para a sociedade, até mesmo mais relevante que os saberes científico, antropológico, social, cultural e artístico. Os sexos “macho e fêmea” corroboram o discurso de que só existem dois gêneros possíveis: masculino e feminino, excluindo

todas as demais identidades e expressões de gênero já reconhecidas em outros âmbitos que não o religioso. Dessa forma, não há abertura de espaço para a polissemia e outras formas de ver os sujeitos senão pelo binarismo de normatividade de gênero. Portanto, ao nos depararmos com os discursos religiosos, percebemos que existe desconhecimento a respeito dos estudos de gênero e sexualidade. Desse modo, a FD religiosa entra como meio de informação, cooptando sujeitos à sua filiação ideológica. O amplo ataque compartilhado acerca da ideologia de gênero, por exemplo, não acontece por acaso. Há interesses – ideológicos, políticos, sociais e econômicos – que perpassam pelo discurso e que são interpelados pela ideologia.

Referências FERNANDES, Carolina. RESISTIR À RESISTÊNCIA É PRECISO. UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO PROCESSO DE DESLIZAMENTO DOS SENTIDOS DE “OPRESSÃO” E DE “LUTA”. VIII SEAD. Recife, 2017. ORLANDI, E. P. LAGAZZIRODRIGUES, Suzy (Orgs.) Introdução às ciências da linguagem – Discurso e textualidade. Pontes Editores, 2017. Campinas, SP. 3ª ed. PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, Pontes Editores, 1995.


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O SANGUE HOMOSSEXUAL COMO FATOR DE RISCO Marcos Henrique Lopes Rodrigues

A doação de sangue sempre foi um problema no Brasil, já que essa situação é facilmente percebida pelas propagandas governamentais em massa que expõem os estoques críticos dos hemocentros brasileiros e visam incentivar a população sobre a importância de ser um doador. Apesar do país se encontrar dentro dos parâmetros da Organização Mundial da Saúde (OMS), que preconiza que entre 1% e 3% dos habitantes de um país sejam doadores (no Brasil, 16 a cada 1000 pessoas doam sangue, cerca de 1,6%), ainda não é o suficiente para manter os estoques do país cheios. Doar sangue é essencial, mas não é tão simples assim. O Ministério da Saúde dispõe de parâmetros classificatórios que indicam se o sujeito faz parte do considerado “grupo de risco”, os

excluídos por definitivo ou temporariamente do ato de doar. Partindo das premissas acima, é importante que seja analisada a portaria n° 158, de 4 de fevereiro de 2016, do Ministério da Saúde, que redefine os procedimentos técnicos hemoterápicos, dispondo em seu Art. 64°, inciso IV, que restringe temporariamente a doação de sangue, por um período de doze meses, homens homossexuais e bissexuais, como disposto abaixo:

Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo: [...]IV - homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”. [...]


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Segundo o inciso IV, “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes (Brasil, 2016)”, fica evidente uma abordagem ideológica no assunto, pois o inciso retrata os indivíduos, de forma generalizada, como pessoas adeptas à promiscuidade, excluindo a possibilidade de o sujeito estar em uma relação estável com outro parceiro. Dessa forma, fica claro que há uma parcialidade por parte do Ministério da Saúde, expondo sua repulsa aos homens gays. O dispositivo teórico-analítico dessa pesquisa se constitui através da Análise de Discurso, que busca mostrar que a relação linguagem/pensamento/mundo não é unívoca, como mostra o trecho retirado do livro Análise de Discurso: princípios & procedimentos de Eni Orlandi:

(...) A Análise de Discurso, que procura mostrar que a relação linguagem/pensamento/mundo não é unívoca, não é uma relação direta que se faz termo-a-termo. Isto é, não se passa diretamente de um a outro. Cada um tem sua especificidade. (Orlandi, 2012, p.19)

Desse modo, a Análise de Discurso é uma disciplina que propõe uma maneira inovadora para se considerar o sentido na linguagem, ou seja, em todas as situações em que há pessoas dialogando, conversando, debatendo, expondo ideias

ou em quaisquer outras formas de linguagem, há uma forma de discurso. Segundo Orlandi, a Análise de Discurso parte de três premissas: I.” (...) A língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente autônoma (distinguindo-se da Linguística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da linguagem)”; II. “ A história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos)”; III. “O sujeito da linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia. (Orlandi, 2012, p. 19-20)”.

Dessa forma, a Análise de Discurso procura compreender os sentidos produzidos pelos objetos simbólicos, analisando seus gestos de interpretação considerados como atos do domínio simbólico, “pois eles intervêm no real do sentido.” (ORLANDI, 2012). Contudo, o discurso não é caracterizado por suas tipologias, e sim, pelo seu modo de funcionamento, sendo assim, a palavra discurso expõe a ideia de curso, percurso etc. Através do estudo do discurso “observa-se o homem falando”. (ORLANDI, 2012, p.15):

(...) Os tipos resultam eles mesmos de funcionamentos cristalizados que adquiriram uma visibilidade sob uma rubrica, uma etiqueta que resulta de fatores extradiscursivos, lógicos, psicológicos, sociológicos etc. (ORLANDI (2012), p. 86).


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É através da Análise de Discurso que se conhece a capacidade do homem de significar e significar-se, concebendo a linguagem como a mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social, tornando o discurso como base da existência humana. Segundo Orlandi, o discurso se distingue de diferentes modos de funcionamento, tomando como referência elementos constitutivos de suas condições de produção e sua relação com o modo de produção de sentidos, sendo assim: a. (...) Discurso polêmico: aquele em que a polissemia é controlada, o referente é disputado pelos interlocutores, e estes se mantêm em presença, numa relação tensa de disputa pelos sentidos;b. Discurso lúdico: aquele em que a polissemia está aberta, o referente está presente como tal, sendo que os interlocutores se expõem aos efeitos dessa presença inteiramente não regulando sua relação com os sentidos. (ORLANDI, 2012, p.86).

Nesse sentido, o princípio discursivo não se produz a partir de categorizações apriorísticas e externas, mas sim, internas ao funcionamento do próprio discurso, mantendo a relação entre os sujeitos, os sentidos e a relação com o referente discursivo. Todo discurso remete a outro discurso de tal forma que os sentidos estão sempre se referindo a outros sentidos, gerando sua própria identidade. “É a ideologia que produz o efeito de evidência e da unidade” (ORLANDI,

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2007), que é sustentado sobre os sentidos institucionalizados, conhecidos como sentidos “naturais”. Segue abaixo um trecho escrito por Orlandi a respeito de ideologia:

(...) Pela ideologia, se naturaliza assim o que é produzido pela história: há transposição de certas formas materiais em outras, isto é, há simulação (e não ocultação de “conteúdos”) em que são construídas transparências (como se a linguagem não tivesse sua materialidade, sua opacidade) para serem interpretadas por determinações históricas que aparecem como evidências empíricas. (ORLANDI, 2007, p.31).

Dessa forma, Orlandi explica que a ideologia não é ocultação, mas sim, função da relação necessária entre a linguagem e o mundo, já que a linguagem e o mundo se refletem do efeito necessário de um sobre o outro, facilmente identificado nessa tentativa do Ministério da Saúde de impor no meio social sua visão ideologica dos fatos a respeito dos homens gays. A noção de imaginário também possui sua especificidade na Análise de Discurso, pois, como disse Orlandi, “não há relação direta entre mundo e linguagem, entre palavra e coisa. A relação não é direta, mas funciona como se fosse, por causa do imaginário”. Dessa maneira, a dimensão imaginária de um discurso está em função de sua capacidade de remeter, de forma direta, à realidade:


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A relação com a história mostra a eficácia do imaginário, capaz de determinar transformações nas relações sociais e de constituir práticas. No entanto, em seu funcionamento ideológico, as palavras se apresentam com sua transparência que poderíamos atravessar para atingir os “conteúdos”. (ORLANDI, 2007, p.32)

Sendo assim, o discurso é regido pela força do imaginário, estabelecendo uma relação de dominância entre as formações discursivas, e assim, dando uma direção ideológica e uma ancoragem política do sujeito. Essa especificação é onde mais se enxerga nos discursos religiosos a respeito do sujeito homossexual, que através da ideologia cristã e pela força do imaginário, acaba por retratar o indivíduo gay como um ser impuro aos olhos de Deus, e com isso, os marginalizando.

O “câncer gay”: o imaginário religioso a respeito da AIDS A AIDS é uma doença incurável e fatal, causada pelo vírus da Imunodeficiência Humana (conhecido como HIV em inglês) que ataca o sistema imunológico do indivíduo infectado. A doença teve início nos anos 80, nos EUA, onde o maior índice de pessoas infectadas era de homens homossexuais, já que o sexo anal receptivo possui chances maiores de infecção. O vírus pode ser contraído através do sangue, do sexo desprotegido (anal, vaginal e oral), de compartilhamentos de seringas,

objetos cirúrgicos mal esterilizados, de mãe infectada para o seu filho (durante a gravidez) e através de transfusões de sangue contaminado. A partir daí, a AIDS passou a ser vista como uma “doença gay” ou “câncer gay”, devido ao imaginário social alimentado pela ideologia cristã a respeito dos homossexuais, que são vistos como pessoas adeptas a um estilo de vida impróprio ou “pecaminoso”, geralmente julgado por pessoas com pontos de vista mais conservadores. Em pesquisas recentes, nota-se que, nos últimos cinco anos, o número de óbitos pela doença vem diminuindo, uma queda de 22,8%, de 12,5 mil em 2014 para 10,9 mil em 2018. Segundo o registro dos últimos anos, a taxa de infecção é maior entre jovens, de 20 a 34 anos, segundo o Ministério da Saúde:

(...) Assim como registrado nos últimos anos, a infecção por HIV cresce mais entre os jovens. A maioria dos casos de infecção no país é registrada na faixa etária de 20 a 34 anos, com 18,2 mil notificações (57,5%).

O número que antes era alarmante entre homens homossexuais, hoje se mostra contrário a isso. Segundo pesquisas, nota-se que o número de casos de HIV aumentou entre homens heterossexuais, fato provavelmente alimentado pelo imaginário religioso de que apenas homens homossexuais contraem a doença,


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devido ao fato dos mesmos realizarem o ato do sexo anal. Segue o trecho abaixo retirado do site UOL: A quantidade de homo e bissexuais infectados pelo vírus apresentou uma queda na comparação entre os anos 2012 e 2017. A taxa apresentou uma diminuição em 24% dos gays e 23% dos bis. Mas já entre os héteros o número foi consideravelmente maior atingindo a marca de 30%.

Fatos recentes comprovam abertamente que homens heterossexuais também não estão imunes ao contágio do HIV, e assim, de terem relações sexuais sem proteção. Isso mostra que os argumentos que mantêm esse imaginário de que o homossexual é um transmissor da doença em potencial já não se aplicaria atualmente. Porém, o discurso religioso ainda conserva o discurso sobre a AIDS ser um “câncer gay” e, em função disso, criando um imaginário preconceituoso a respeito do homem gay, os retratando como seres impuros ou até mesmo alegorizando-os como “obras do Diabo”. Mesmo no século XXI, a ideologia cristã ainda exerce grande influência na sociedade, mesmo na política, já que o Congresso Nacional brasileiro é constituído por uma denominada “bancada evangélica”. Tal bancada é conhecida pelo Brasil inteiro pelas suas inúmeras polêmicas, já que a grande maioria de suas falácias é

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direcionada à comunidade LGBTQ. O pastor e deputado Marco Feliciano, líder desta bancada, é conhecido pela mídia como um “perseguidor” dos homossexuais, já que diversas vezes direcionou seus discursos preconceituosos contra a comunidade LGBTQ. Em uma de suas falas, Marco Feliciano agrega a história da AIDS como sendo “responsabilidade dos homossexuais”, expondo em sua conta do Twitter, dia 21 de Set. 2012, que “A história da AIDS começou sim com homossexuais, isto é fato e ninguém pode negar é história e ponto final”, como mostra a imagem abaixo:

Segundo a Sequência Discursiva n° 1, fica evidente que este tipo de fala está enraizada em discursos retrógrados, já que o pastor apresenta em seu dito uma interpretação ideológica dos fatos, deixando de lado toda a informação sobre o assunto que seja controversa ao seu imaginário. Segundo um estudo publicado na revista Nature, a teoria que é mais aceitável sobre a aparição ,


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do vírus da AIDS é em função do vírus SIV (Vírus da Imunodeficiência Símia), que migrou de dois grupos de chimpanzés, devido ao hábito africano de caça e consumo da carne de macacos, para os seres humanos, sofrendo mutação. Em outra fala de Feliciano, do dia 21 de Set. 2012, também retirada de sua conta do Twitter, declara que “A doença apareceu desde 1977 em homossexuais por transmissão sexual, depois através de usuários de drogas e se espalhou pelo mundo”, como mostra a imagem abaixo:

Segundo a Sequência Discursiva n°2, nota-se novamente um equívoco do pastor sobre a doença. No trecho em que o pastor fala “a doença apareceu desde 1977 em homossexuais”, é possível perceber uma informação equivocada, pois o caso mais antigo de HIV conhecido pela ciência é de 1959, segundo dados retirados do site A Capa, registrado na cidade de Kinshasa, capital da República Democrática do

Congo. Mesmo imerso em um mundo totalmente tecnológico, o sujeitoenunciador mostra-se pouco interessado com a realidade, já que o mesmo opta pela propagação de Fake News embasada em seu imaginário inscrito na formação discursiva religiosa, contribuindo para o imaginário social a respeito da disseminação do vírus da AIDS e alimentando o preconceito sobre a homossexualidade. Recentemente, em meio a uma pandemia em que se encontra o mundo, devido ao surto do vírus Covid-19 (nome científico dado ao vírus Corona, descoberto em 2019), um jovem fotógrafo, que sobreviveu à doença, se voluntariou para que seu plasma fosse utilizado como objeto de estudo para as pesquisas em andamento em busca de uma vacina. Mas, após relatar no ato da entrevista estar casado com um homem há três anos, acabou sendo recusado. Segue abaixo o trecho da reportagem, disposta no site Pragmatismo Político:

Aparentemente, trata-se da questão que mais pesa em toda investigação. Graças a ela, não realizaram nem o teste sorológico em Ligeiro. Banido da lista de doadores, ele recebeu a informação de que faz parte da população em que se verifica a maior incidência do vírus HIV, causador da Aids. O fato de ser um homem que faz sexo com homem (HSH) aumentaria o risco de transmissão do vírus ao receptor. (...)


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Segundo a Sequência Discursiva n°3, no trecho que diz “graças a ela, não realizaram nem o teste sorológico em ligeiro”, é perceptível a perseguição contra o indivíduo gay. A sorologia é um teste de sangue específico para a identificação de anticorpos no sangue, como por exemplo, o vírus da AIDS. No momento em que a médica nem cogita a realização deste teste, ela já predetermina que o indivíduo possua alguma doença, mesmo relatando estar em um relacionamento estável com outro homem. Uma consequência herdada do imaginário social a respeito dos gays marginalizados pela falácia religiosa que desfruta da fé humana para a imposição de sua ideologia dominante, denominada como “a palavra de Deus”.

Vitória da resistência: o sangue gay como esperança O que antes parecia ser improvável, hoje é possível. Homens gays doando sangue se tornou realidade no Brasil. Desde 2016 já tramitava no Congresso Nacional uma ação direta de inconstitucionalidade, apresentado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que pedia a suspensão imediata das regras impostas pelo Ministério da Saúde que inseria homens homossexuais no considerado “grupo de risco”. A ação começou a ser julgada em Outubro de 2017, mas teve seu embargamento decretado pelo

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ministro Gilmar Mendes. Entretanto, com a pandemia vigente e com as campanhas dos hemocentros reforçando a doação de sangue neste período de crise, o assunto retornou à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). A votação teve início no dia 01 de Maio de 2020 e sua conclusão no dia 08 com sete votos a quatro, aprovando a inconstitucionalidade sobre o impedimento da doação de sangue por homens gays. Desde a criminalização da homofobia e a aprovação do casamento gay, a derrubada desse decreto inconstitucional do Ministério da Saúde mostra mais uma grande vitória da resistência LGBTQ, que ao longo dos tempos vem mostrando a força de sua resistência, encorajando aos demais a lutarem pelos seus lugares por direito na sociedade. Mesmo após a decisão do STF, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) manteve a proibição contra os homossexuais, publicando o seguinte ofício, disponibilizado em seu site:

A Anvisa aguarda a publicação do acórdão do STF sobre o julgamento para analisar as medidas administrativas e judiciais cabíveis, inclusive eventual apresentação de recurso sobre o tema. Assim sendo, enquanto não houver o julgamento final da ADI 5543, estão mantidas as normas vigentes.

Mesmo com o fim da audiência, a ANVISA contraria a decisão do STF,


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mostrando uma perseguição ideológica por parte dos órgãos governamentais contra esses sujeitos, explicitando um ato homofóbico e ignorando o fato de o país estar em uma crise e que é essencial o aumento de doadores de sangue nesse momento delicado em que o Brasil está vivenciando.

VOCÊ SABIA? Alan Turing, cientista considerado pai da computação, foi condenado na Grã-Bretanha por ser homossexual após ser flagrado tendo relações sexuais com outro homem. Após ser humilhado publicamente, o jovem passou por uma castração química e acabou recebendo hormônios femininos também como forma de punição. Em virtude desses acontecimentos, o jovem veio a cometer suicídio aos 41 anos.

Segundo Althusser, os aparelhos ideológicos de estado são designados como realidades que se apresentam ao observador imediato “sob a forma de instituições distintas e especializadas” (ALTHUSSER, 1970), sendo eles: o aparelho ideológico religioso, escolar, familiar, jurídico, político etc. Dentre estes AIE, o aparelho religioso é um dos que mais se destacam na tentativa de imposição de seus discursos dominantes na sociedade. Como exemplo disso, são os discursos analisados acima do pastor Feliciano, que de diversas formas tenta tornar predominante seus ideais formados na ideologia cristã, por meio do estado ou da mídia, a respeito dos homossexuais. E é contra essa ideologia dominante

que a comunidade gay vem lutando ao longo dos tempos em busca de seus direitos omitidos pelo estado como forma de repressão contra esses indivíduos. É nessa tragetória que a resistência se torna uma arma essencial contra os meios de repressão do estado, pois os efeitos de sentidos derivado da ideologia cristã é um estigma que deve ser cicatrizado pelo poder da resistência, já que a resistência também pode ser vista como um ensinamento sobre como a vida pode ser muito mais do que aquilo imposto pelo poder ideológico do estado: “Não será preferível corrigir, recuperar e educar um ser humano do que cortar-lhe a cabeça?“ (DOSTOIÉVSKI, 1826).


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Referências “AIDS é câncer gay” diz deputado-pastor Marcos Feliciano. Acapa, 2012. Disponível em: https://acapa.disponivel.uol.com.br/aids-e-cancer-gay-dizdeputado-pastor-marcos-feliciano/. Acesso em: 13 Maio. 2020. Anvisa proíbe homossexuais de doarem sangue mesmo com decisão do STF. Congresso em Foco, 2020. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/saude/anvisa-proibe-homossexuais-dedoarem-sangue-mesmo-com-decisao-do-stf/? fbclid=IwAR14YArGPhuL_1Kvh6svJDJ_0D83kV7ARyC9mCURVK7mgCUGJoN2Ryjpxs. Acesso em: 10 Jun. 2020. Fotógrafo gay tenta ajudar vítimas de Covid-19, mas tem seu plasma recusado. Pragmatismo Político, 2020. Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2020/04/fotografo-gay-doar-sangueplasma-coronavirus.html. Acesso em: 19 Abr. 2020. ORLANDI, Eni. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5° edição. Campinas-SP: Pontes, 2007. ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos. 10° edição. Campinas-SP: Pontes, 2012. QUERINO, Rangel. Número de gays e bissexuais infectados com HIV/AIDS supera heterossexuais. Observatório G, 2018. Disponível em: https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/2018/11/numero-de-gays-ebissexuais-infectados-com-hiv-aids-supera-heterossexuais. Acesso em: 13 Abr. 2020..

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OS ESTIGMAS DO FEMINISMO ENTRE AS CRIANÇAS Guilherme Henrique Paro

FEMININO? COMO ASSIM? Para iniciar a análise sobre os estigmas femininos depositados sobre as crianças, partiremos da construção de sentidos para o “feminino”. Há várias possibilidades de definição do que é, ou deveria ser, o feminino, isso depende da posição ideológica que assume o sujeito enunciador. Portanto, partiremos de uma problemática sobre o entendimento desassociado entre “gênero” e “sexo”. É muito comum encontrarmos discursos que equivalem essas relações. Podemos entender que “sexo”, a diferença anatômica entre macho e fêmea, tem uma relação direta com os aspectos biológicos da existência humana atribuída às “classes naturais”. Porém, ao associarmos as

questões de gênero às “relações sociais”, acabamos, involuntariamente, enquadrando a biologia como algo não-social, e consequentemente, desnaturalizamos o gênero possibilitando assim o crescimento de uma barreira em nossas compreensões sobre o tema. Essa associação dos conceitos biológicos e naturais são alinhadas às práticas sociais e aos discursos que atualmente circulam na sociedade que, por sua vez, refratam a real estrutura da própria realidade. Assim, é preciso desenvolver um processo de desconstrução dos significados que damos ao “natural” e também compreender o processo de naturalização no presente contexto sócio-cultural. Afinal, dentre o que é considerado biológico e o que é


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cultural, há diversas camadas ideológicas, construídas historicamente, do que é ser homem e do que é ser mulher. Ao longo do tempo, a humanidade atribuiu construções discursivas para definir e classificar homens e mulheres a partir da ideologia patriarcal. Basta procurarmos nos dicionários quais as definições relacionadas a homem e a mulher para entendermos que há uma intenção em diferenciar a espécie humana por meio de projeções imaginárias comparadas às semelhanças entre os gêneros. Construímos, através da ideologia dominante, estereótipos que valorizam o posicionamento do homem em uma hierarquia de gêneros e buscamos, por muito tempo, justificá-las pelo viés biológico, que por mais que haja diferenças concretas entre os sexos, não há nada na ciência que comprove a superioridade masculina sobre a feminina. Historicamente, reivindicamos os valores atribuídos a essas construções discursivas, e descobrimos o preço que pagamos a essa lógica que rege nossa sociedade patriarcal no momento em que percebemos que essas características classificatórias que produzem o efeito de naturais são universais a todos os seres humanos. Ao atribuirmos a cor azul para os meninos e a cor rosa para as meninas, além de estabelecer um papel social que essas cores

‘’Talvez a realidade possa ter “uma” só estrutura a partir da perspectiva falsamente universalizante do grupo dominante. Ou seja, somente na medida em que uma pessoa ou grupo possa dominar a totalidade, a realidade parecerá governada por um conjunto de regras ou ser constituída por um conjunto privilegiado de relações sociais.’’ (FLAX, 1991).

denunciam, nós limitamos a possibilidade de autonomia desses sujeitos. Então, ao caracterizarmos, por exemplo a maternidade, delicadeza, acolhimento, instabilidade e intuição ao definir o feminino e força, individualismo, lógica e persistência ao masculino, automaticamente desvalidamos a possibilidade de que toda subjetividade está sujeita a ser plural em seus sentidos. Muitos discursos alinharam-se fortalecendo o sistema patriarcal que até hoje prevalece em nosso planeta. A formação discursiva religiosa, por exemplo, contribui para designar uma posição na qual a mulher é mantida submissa ao homem de acordo com as interpretações das escrituras sagradas religiosas. A Igreja, como um aparelho de Estado, consegue incutir a ideologia dominante em seus fiéis, que por sua vez, materializam em suas ações misóginas se validando do ideal de que essa posição é algo natural em nossa sociedade, pois a Igreja carrega

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um forte apelo ideológico. Muitas mulheres, para serem aceitas no mercado de trabalho, validam-se das características masculinas enfatizando a posição social privilegiada a qual o homem está posicionado. Porém, a situação contrária não acontece. Homens quando apresentam traços femininos são repreendidos e muitas vezes desqualificados, em diferentes contextos sociais. Essa imposição de imaginário transpassa em todas as fases da vida humana, na infância não seria diferente. A reprodução de aspectos machistas entre crianças revela a posição dos adultos à sua volta, já que os discursos se formam a partir do desenvolvimento social do sujeito. Assim, a tomada de consciência e a resistência historicamente constituída revelam formações discursivas antes não identificadas sobre os próprios sujeitos.

(cena do documentário Repense o Elogio, 2018)

ESTIGMAS DEPOSITADOS NAS CRIANÇAS Quando nascemos, caímos em um mundo pré-estabelecido formado

por uma herança cultural que nos condiciona a agir de forma depreciativa em relação aos comportamentos que fogem aos padrões desenvolvidos através das gerações de uma determinada cultura. Levando em consideração o pensamento saussuriano sobre o signo linguístico, em que há uma relação entre significante e significado, Lacan identifica a possibilidade de formação de uma barreira de significação sobre essa relação do signo linguístico. Para a psicanálise, essa barreira pode gerar o próprio recalque que resultará na cadeia significante que constrói a subjetividade de um sujeito. Assim, ao pensarmos na construção de sentido que desenvolvemos na primeira infância, os primeiros cinco anos de vida de um ser humano, podemos identificar o possível rompimento do senso comum com o real da língua, abrindo brecha para o equívoco. Portanto, é muito comum crianças atribuírem ao seu discurso diferentes efeitos de sentidos ao identificarem outras características para além do que é considerado ser homem e ser mulher. Porém, a identificação desse equívoco parte do sujeito adulto sobre a criança quando ela expressa comportamentos contrários ao que é esperado dela, por isso ocorre a repreensão através do assujeitamento deles. Surgem assim, discursos que condicionam as


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crianças a agirem de forma préestabelecida para além de “meninas usam rosa e meninos usam azul”, esses discursos estabelecem as posições que essas crianças ocuparam no futuro. No documentário Repense o Elogio de 2018, dirigido por Estela Renner e apresentado pela AVON, é abordada a maneira como as crianças são elogiadas por seus feitos e os reflexos que o poder dessas palavras produz desequilíbrio social entre meninos e meninas. O que se diz para uma criança hoje, influencia no que elas serão amanhã. Talvez, “o fato de chamarem uma menina de princesa, não seja um problema, mas se limitar a esse elogio é muito vazio”, diz uma mãe em depoimento no filme, pois a palavra tem o poder de constituir uma pessoa. Ao perguntar para alguns participantes no documentário, sobre o que as meninas, no geral, são elogiadas, as respostas foram: “princesa”, “delicada”, “vaidosa”, “linda”, e ao atribuírem elogios aos meninos as respostas foram: “corajoso”, “esperto”, “forte” e “inteligente”. Essa dificuldade de atribuir palavras equivalentes para meninos e meninas é um sintoma de uma sociedade que tem como formação discursiva a manifestação do discurso machista. Ao pensarmos que a expressão da palavra nos forma, compreendemos o poder que temos ao atribuirmos

características para os sujeitos. Essa formação ideológica, atrelada à linguagem pelo discurso, são desenvolvidas desde muito cedo, desde muito antes do sujeito nascer, referente às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. A formação imaginária, expressa nas expectativas depositadas na criança que irá nascer; os apelidos, elogios e formas de nos direcionarmos a esse sujeito condicionam a posição-sujeito que ocuparão em seus discursos. Portanto, a formação ideológica em que se insere o sujeito é a reprodução de um padrão já estabelecido, reforçando os estereótipos esperados pela sociedade. Esse padrão só é rompido no momento em que há a tentativa de subverter esses papéis ideológicos por meio do que designamos como resistência. A interpelação ideológica acontece na medida em há uma identificação desse equívoco.

(cena do documentário Repense o Elogio, 2018)

Trago um trecho de um podcast chamado POC de Cultura, em que há quatro homossexuais

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compartilhando suas vivências e experiências a partir do ponto de vista de homens gays brasileiros. O trecho foi retirado do episódio intitulado “Criança Viada” em que ouvimos os relatos desses rapazes sobre as lembranças de suas infâncias. O que me chama a atenção entre as falas, muitas vezes, engraçadas e debochadas sobre ser uma “criança viada” nos anos 1990 e 2000, é a identificação hoje, de como os comportamentos dessas crianças eram associados aos comportamentos estereotipados do feminino, tido como negativos pela sociedade, tanto na época em que eram crianças quanto hoje.

“Quanto mais eu tivesse distante do que expressava feminino pra mim melhor. Porque eu tentava fazer isso de uma outra forma, só que era engraçado que mesmo assim eu era muito sensível perto dos outros meninos.” (Spotify, 2018)

A identificação do comportamento misógino só é identificada, pelo próprio sujeito sobre si mesmo, a partir do momento em que há um afastamento temporal e uma reflexão acerca disso, em outras condições de produção, passando assim a ocorrer uma contraidentificação com a formação ideológica a qual ele se encontrava anteriormente. Porém, ao pensarmos na infância, quando não

há um estímulo na criança para que haja essa ruptura do ideal do sujeito, ocorre a potencialização da posiçãosujeito alinhada à formação ideológica dominante, nesse caso, o sistema patriarcal em que o comportamento machista é tido como natural.

QUEM SE IDENTIFICA COM O FEMININO? A formação ideológica analisada nos mostra um reflexo de como a sociedade se formou a partir de uma estrutura desigual, e de que a tentativa de igualar essas relações sofre um processo discursivo e social complexo. Ambos os gêneros sofrem com o sistema patriarcal, alguns sujeitos se identificam com essa formação discursiva dominante, outros passam pela contraidentificação e outros se desidentificam com ela, pois passa a se identificar com outra formação, não necessariamente oposta a anterior (PÊCHEUX, 1995). Todas essas formações discursivas citadas se alteram de acordo com o período em que nos encontramos na história, porém, a relação desassociada entre os gêneros segue predominante, então independente dos discursos que se produzem na sociedade, o feminino sempre será identificado como algo pejorativo de um sujeito? Talvez seja necessário encontrar um caminho do meio, pois em uma


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sociedade em que as características ditas “masculinas” já são predominantemente incentivadas pelos sujeitos, apostar em uma nova

consciência do feminino e incentivar o acesso à ela me parece congruente para o desenvolvimento da subjetividade humana.

VOCÊ SABIA? “Criança Viada” também é o nome de um perfil no Tumblr do jornalista e ativista Iran Giusti, que apresenta fotos de crianças em poses consideradas “viadas” e “pintosas”, representando, em um tom de celebração, a expressão do gênero entre as crianças. A partir desse trabalho do Iran, a artista plástica Bia Leite, fez uma série de pinturas que levam o mesmo nome, e que foi exposta no “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, do Santander Cultural de Porto Alegre, que no ano de 2017 sofreu censura e cancelamento da exposição. O intuito de Bia com sua obra era de dar visibilidade a crianças cuja vivência foge aos padrões heteronormativos.

Referências FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloisa (org.) Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: ROCCO, 1991 p. 217 - 250. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica e afirmação do óbvio. 2 ed. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1995. POC DE CULTURA: criança viada. Entrevistadores: Caio Baptista, Filipe Bortoloto, José Bortoloto, José Melo e Hilário Junior. São Paulo, out. de 2018. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/1e4gksrSIJVW6pDmEecHgF Acesso em: 14 jul. 2020. REPENSE o elogio. Direção de Estela Renner. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2018. 1 vídeo (48 min.) Disponível em: http://www.repenseoelogio.com.br/ Acesso em: 14 jul. 2020.

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ENTREVISTA COM A ESCRITORA LUIZA GEISLER por Maria Carolina de Oliveira e Gilberto Andrade

1 Pergunta: Luisa, Sabendo das dificuldades de ser escritora no Brasil, quais foram os principais desafios na sua trajetória e qual foi a rede de apoio com a qual você pode contar para hoje exercer essa profissão tão elitista? Resposta: Dinheiro e minha mãe, respectivamente. Hoje consigo pagar o aluguel e a ração dos gatos com literatura, mas entendo que a rede de apoio muitas vezes veio do privilégio de não precisar contribuir com o aluguel até terminar a faculdade.

2 Pergunta: Como você lidou com o machismo no meio literário e editorial para se tornar a escritora que você é hoje? Resposta: Quando eu comecei, não via o machismo, porque eu nem tinha noção que era algo que teria que enfrentar. Eu tinha 19 anos e queria escrever e fim de conversa. Então foi um processo de ver que meus colegas homens eram tratados de outra maneira (eu era mais assediada, objetificada, meus textos recebiam olhares mais condescendentes). Depois de identificar, comecei a implicar, apontar e responder sempre que via isso acontecendo. Tenho a sensação que os prêmios ajudaram a passar por cima disso tudo, mas sei que estou

Biografia Luisa Geisler, Canoense, 29 anos de idade, uma escritora, que foi duas vezes finalista do Jabuti, vencedora do Prêmio Açorianos de Narrativa Longa e do APCA de Narrativa Infanto-Juvenil, além de duas vezes vencedora do Prêmio SESC de Literatura.

numa posição de privilégio relação a muitas outras autoras.

em

3 Pergunta: O livro “Enfim, Capivaras” de 2019 sua primeira obra voltada para o público infantojuvenil sofreu censura na 15ª Edição da Feira do Livro de Nova Hartz, considerando esse fato, de que


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forma você notou a mudança da sua escrita para escrever para um público infanto juvenil e como avalia a recepção da obra pela da comunidade?

por exemplo, Iracema ou o suicídio de Bertoleza em Cortiço, como é recebido pela atual sociedade brasileira uma autora mulher dar vida a personagens homens?

Resposta: Eu não havia mudado nada, no sentido de confiar no leitor jovem. É um livro em que confio tanto que pus meu nome nele. Já tinha trabalhado como colunista da Revista Capricho, então tinha um pouco de familiaridade. Foi um livro até bastante premiado (recebeu o APCA de literatura, além de ter recebido um selo 10 de recomendação, da Cátedra Unesco de literatura). O problema com a feira do livro de Nova Hartz nunca foi com os leitores: foi com um desejo antidemocrático de uma pessoa que era amiga do prefeito.

Resposta: Depende da autora e da personagem. Ainda temos que lidar com preconceitos que estão entranhados em nós. Se escrevo uma sinopse que é “Esta é a história de Maria, que depois de um divórcio vai para a Europa repensar suas questões de vida”, Maria é uma histérica, perguntamos onde estão os filhos de Maria. Se digo “Esta é a história de João, que depois de um divórcio vai para a Europa repensar suas questões de vida”, João é uma pessoa com dores existenciais profundas, que não é compreendido no seu meio. Muito da luta do machismo em relação a personagens femininos é uma luta contra o machismo em relação a como vemos mulheres. Isso fica claro na pesquisa da professora Regina del CAstagnè, no Literatura Brasileira Contemporânea Um Território Contestado.

4 Pergunta: Escrever é algo que fazemos sozinhos, e construir histórias do zero requer muita reflexão e questionamento, quando você sente que deve finalizar uma história e como você lida com esse processo? Resposta: Eu planejo antes de começar a escrever. Não crio o arquivo do Word se não sei o final e não conheço os personagens.Eu edito e mexo muito, mas chega um ponto em que não me lembro mais o que pus, o que pretendia pôr ou excluir ou o que de fato exclui.

5 Pergunta: Sabendo que, na literatura brasileira muitos autores escreveram grandes histórias através de personagens mulheres,

6 Pergunta: Luisa, para finalizar, poderia deixar uma mensagem para as mulheres que desejam investir na carreira de escritora? Resposta: Escrevam. Publiquem. Mandem pras coisas que vocês querem mandar. Não precisa estar perfeito, de forma alguma. Todo mundo merece ler o material de vocês. A quantidade de homens que me abordam em redes sociais com calhamaços sem sequer conhecer meu trabalho é imensa. Meu sonho é que uma mulher faça isso!


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