12ª Edição da Revista Informe Letras

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REVISTA

Informe

Letras ARTExistindo, a resistência nas artes Outubro de 2020 / ISSN 2447 - 1895

ARTE E RESISTÊNCIA

AUTORIA PRÓPRIA PET-LETRAS

ENTREVISTA COM MAR BECKER

12 textos inéditos que abordam

Produção exclusiva dos bolsistas

A poeta concedeu uma

a arte como resistência

entrevista inédita para a edição!


Designers: Guilherme Henrique Paro, Larissa do Prado Martins e Marcos Henrique Lopes Rodrigues Arte da capa: Larissa do Prado Martins Editor(a)-Geral: Carolina Fernandes Redatores: Arthur Teixeira Ernesto, Ana Gabriely dos Santos Dias, Anthony Moreira Marques Colares, Daniela Conde Peres, Daniele Pio Falcão, Guilherme Henrique Paro, Gilberto Stanchack Andrade de Lima, Larissa do Prado Martins, Luciana Ribeiro Teixeira, Marcos Henrique Lopes Rodrigues, Maria Carolina Silva de Oliveira, Maria Clara Ramos Petrarca, Taiza da Hora Fonseca e Taize Gonçalves Goulart Revisora-Geral: Carolina Fernandes Revisores: Maria Carolina Silva de Oliveira e Taiza da Hora Fonseca Contato: pet.letrasbage@gmail.com

Todos os direitos reservados. Estritamente proibida a reprodução do material que compõe este volume sem a liberação prévia da equipe PET-Letras.

REVISTA INFORME LETRAS - 12° EDIÇÃO - 2447 - 1895


SOBRE O GRUPO PET-LETRAS O PET-LETRAS faz parte do programa do governo federal chamado Programa de Educação Tutorial. Na Unipampa, está vinculado às Pró-reitorias de Graduação, de Pesquisa e de Extensão. Na intersecção desses três eixos: o ensino, a pesquisa e a extensão, o programa objetiva atuar sobre a graduação, a partir do desenvolvimento de ações coletivas e de caráter interdisciplinar, para formação ampla do profissional em Letras, assim como auxiliar na redução da retenção e evasão. O programa, ainda, busca promover a formação ampla de qualidade acadêmica dos alunos de graduação envolvidos direta e indiretamente com o programa, estimulando ações internas e externas que reforcem a cidadania e a responsabilidade social de todos os participantes e a melhoria dos cursos de graduação. O grupo PET do curso de Letras - Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa do Campus Bagé existe desde 2010, tendo como eixos a leitura, a oralidade e a escrita nas diversas mídias. Para levar os acadêmicos a desenvolver tais habilidades, promove-se oficinas, minicursos e produções acadêmicas coletivas. O trabalho é desenvolvido de maneira integrada através de atividades variadas, entre elas, a confecção de nossa revista digital chamada Informe Letras.

Últimas edições da revista Informe Letras:


EDITORIAL Prezado leitor, Nesta edição da Revista Informe Letras, desenvolvida por alunos do curso de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pampa - campus Bagé, vinculados ao Programa de Educação Tutorial, o PET-Letras, você encontrará textos que buscam compreender, através da Análise de Discurso (AD), de que forma a ideologia se materializa na linguagem, assim como, os possíveis sentidos que se manifestam através do potencial revolucionário da arte. A partir disso, procuramos promover discussões sobre temas como a violência racial, o lugar social das mulheres diante da ideologia patriarcal, a desigualdade social e, por fim, sobre a violência que ocorre com frequência contra os indígenas e as pessoas LGBTQIA+. Dessa forma, através desses artigos, será possível entender como ocorrem os deslocamentos que expõem o sujeito aos efeitos de denúncia da arte, bem como, as condições de produção de cada discurso que rompem com o dizer “para que novos sentidos se façam ouvir” (INDURSKY, 2003, p. 119). Com isso, desejamos a todos uma excelente leitura. Larissa do Prado Martins

Neste número:

Larissa do Prado Martins

Marcos Henrique Lopes Rodrigues

Guilherme Henrique Paro

Maria Carolina Oliveira

Daniela Peres

Taize Goncalves Goulart

Ana Gabriely dos Santos Dias

Daniele Pio Falcão

Taiza da Hora Fonseca

Gilberto Stanchack Andrade de Lima

Anthony Moreira Marques Colares

Luciana Ribeiro Teixeira

Arthur Teixeira Ernesto


SUMÁRIO O "SUJEITO-MULHER IDEAL" NA ARISTOCRACIA FRANCESA ATRAVÉS DA PERSONAGEM MARIA ANTONIETA Larissa do Prado Martins

07 - 14

CIDADE DE DEUS: A VIOLÊNCIA COMO CIRCO DA BURGUESIA 15 - 20

Marcos Henrique Lopes Rodrigues

A RESISTÊNCIA ECOLÓGICA ATRAVÉS DA ARTE Guilherme Henrique Paro

21 - 27

ADORADA DORA 28 - 31

Maria Carolina Silva de Oliveira

A VOZ SUPREMA DO BLUES E O RACISMO NA SOCIEDADE DO SÉCULO XX Daniela Conde Peres e Taize Gonçalves Goulart

32 - 36

"EXISTEM TRÊS CLASSES DE PESSOAS: AS DE CIMA, AS DE BAIXO E AS QUE CAEM". OS EFEITOS DE SENTIDO PROFERIDOS NESSE (E EM OUTROS) DISCURSO (S) EM "O POÇO" 37 - 42

Arthur Teixeira Ernesto

A VIOLÊNCIA RACIAL E POLICIAL RETRATADA NO CURTA METRAGEM "DOIS ESTRANHOS" Ana Gabriely dos Santos Dias

43 - 49


SUMÁRIO A RELAÇÃO DO PRECONCEITO RACIAL ABORDADO NA LITERATURA DO SÉCULO XIX E NA TELENOVELA DO SÉCULO XXI Luciana Ribeiro Teixeira

50 - 52

"QUEM NÃO LUTA TÁ MORTO": A ARTE COMO FORMA DE RESISTÊNCIA DO POVO NORDESTINO NA LUTA CONTRA A DESIQUALDADE SOCIAL Daniele Pio Falcão

53 - 60

UM CORPO NÃO RECOMENDADO. POR QUEM? PARA QUEM? AS MARCAS DA RESISTÊNCIA E DENÚNCIA À VEIOLÊNCIA CONTRA PESSOAS LGBTQIA+ EM CANÇÃO DE CAIO PRADO Taiza da Hora Fonseca

61 - 66

MUTANTE COM ORGULHO: DE MÍSTICA ATÉ NÓS Gilberto Stanchack Andrade de Lima

67 - 70

DE ONDE VEM O QUE SOMOS? AINDA NOS SERVEM ESSES ASPECTOS? 71 - 83

Anthony Moreira Marques Colares

ENTREVISTA COM A ESCRITORA MAR BECKER Maria Clara Ramos Petrarca

84 - 86


O "SUJEITO-MULHER IDEAL" NA ARISTOCRACIA FRANCESA ATRAVÉS DA PERSONAGEM MARIA ANTONIETA

Larissa do Prado Martins

Quando pensamos na Revolução Francesa nos deparamos com figuras femininas que marcaram a história, como por exemplo a Maria Antonieta, sendo uma arquiduquesa da Áustria que se casou, aos quatorze anos, com o herdeiro da coroa Luiz Augusto Delfim, após longas negociações para que pudesse ser realizado um tratado de paz entre os reinos, arquitetado pela imperatriz Maria Teresa, mãe de Maria Antonieta para combater a Prússia e a Inglaterra na Guerra dos sete anos. Assim, logo após a morte do rei Luiz XV, que aconteceu em 1774, tornou-se rainha da França. Por ter assumido a função de rainha, Maria Antonieta ficou conhecida popularmente, sendo assunto de livros,

filmes, entre outras mídias. A partir dessas informações, traremos aqui o filme Maria Antonieta (2006), protagonizado pela atriz Kirsten Dunst e dirigido por Sofia Coppola e que foi inspirado no livro “Maria Antonieta: A jornada”. Com isso, através dos discursos materializados no filme, compreenderemos a posição ocupada pelo sujeito-mulher na aristocracia que é ilustrada pela personagem. A versão contemporânea sobre a história de vida da rainha francesa nos traz um novo olhar sobre as condições em que ela se encontrava em meio à alta burguesia, assim como as suas motivações ao tomar decisões que trouxeram consequências ao povo, ainda que essas questões não justifi-

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quem as suas ações. Nesse contexto, logo no início da trama é possível perceber que após ser afastada da família e amigos para se casar com Luís Augusto, Maria Antonieta se depara com um território hostil, e a partir disso, é obrigada lidar com as fofocas e intrigas da nobreza, além da indiferença de seu novo marido que, aliás, para ela era um desconhecido. Assim, ela acaba tendo que se adaptar à cultura francesa para fazer jus ao trato estabelecido entre os dois países e também conter as suspeitas dos franceses que acreditavam na ideia de que ela seria uma “espiã austriaca”. Assim que Maria Antonieta se estabelece em Versalhes, sua mãe passa a enviar cartas na preocupação de que a filha não consiga gerar um herdeiro e que, com isso, a aliança seja desfeita, pois resultaria em uma revolta dos franceses contra a Áustria, como é mostrado na sequência discursiva a seguir retirada de uma cena em que a voz da mãe surge para anunciar o conteúdo da carta, enquanto a personagem faz a leitura:

SD 1:

Os problemas do seu novo lar está na sua incapacidade de despertar o desejo sexual do seu marido. Não tem cabimento que uma moça com tantos encantos como você esteja nessa situação. Lembre-se, você representa o futuro e não há garantias de sua presença aí, a menos que o ato físico que pode coroar a aliança Franco-austríaca seja consumado. Nessa SD, é possível reconhecer um discurso de culpabilização sobre a mu-

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a mulher que, nesse caso, não consegue gerar um filho. Esses discursos se dão por conta de uma ideologia dominante que determina os papéis sociais entre homens e mulheres, em que as mulheres são tidas como inferiores aos homens por não serem consideradas aptas a desenvolver as mesmas atividades, além de não agir com racionalidade ou apresentar o mesmo condicionamento físico que eles, o que os leva a crer que por esse motivo, elas não estariam à altura de tomar grandes decisões. Nesse caso, a autora francesa Simone de Beauvoir dirá que “necessidade biológica — desejo sexual e desejo de posteridade — que coloca o macho sob a dependência da fêmea não libertou socialmente a mulher” (BEAUVOIR, 1970, p. 14). Isso porque ao se deparar com um semelhante que não compartilha das mesmas ideias, o homem inferioriza a mulher como um ritual de defesa e posse. E, é possível reconhecer isso a partir do momento em que a consumação do casamento se torna responsabilidade da mulher, ainda que esse ato dependa de ambas as partes. Por isso, a direção do filme se preocupou em revelar que, na verdade, eles só não conseguiram gerar um filho em seguida porque Luís Augusto sofria de fimose. No entanto, essas crenças acabam produzindo sentidos que se solidificam através das reproduções de discursos que produzem um efeito de verdade. Consequentemente, grande parte desses discursos são enunciados por mulheres, que também foram oprimidas diante de tais situações, co-

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mo é mostrado na relação entre a personagem e sua mãe:

SD 2:

Caríssima Antonieta, tenho o prazer de lhe dizer que seus irmãos e suas irmãs estão indo maravilhosamente bem em seus casamentos. Maria Carolina está grávida, espera o primeiro filho para junho, e Ferdinando está encantado com Beatriz, eles se casaram imediatamente. Todas essas notícias que deveriam me encher de felicidade se apagam diante de sua perigosa situação. Tudo depende da esposa, se ela é receptiva e carinhosa. Nunca é demais enfatizar a importância de usar o seu charme e paciência,e jamais o mau humor para remediar esta infeliz situação. Lembre-se que a sua posição não será sólida a menos que produza um herdeiro. Nessa SD, temos mais uma carta de Maria Tereza atualizando a filha sobre o progresso de seus irmãos na Áustria. No entanto, ela retoma o assunto anterior de que Maria Antonieta deveria seduzir o marido, e gerar um filho para que seja consolidada a aliança franco-austríaca. Portanto, a direção nos põe sobre uma reflexão através da personagem que assim como muitas mulheres, também sofre com a opressão de uma sociedade que é definida através de padrões advindos de um sistema patriarcal que entende que a mulher deve servir ao marido, independente da sua posição. Nesse caso, a ideologia será a “relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência” (ALTHUSSER, 1970, p. 77), pois ela estará vinculada aos processos de cons-

tituição de um sujeito. Com isso, para fugir das responsabilidades adquiridas em sua nova posição, a rainha promovia bailes extravagantes e jogatinas em Versalhes para a nobreza, sendo gastos custeados pelo dinheiro que sai diretamente do cofre real. Nesse contexto, enquanto ela se entretia, o marido tentava cumprir com os deveres da monarquia sem muito sucesso e o povo sofria com a fome e a extrema pobreza. Por isso, através do filme encontraremos cenas que exibem o excesso de comida nas festas e o luxo exorbitante da rainha, como vemos na ilustração a seguir.

Fonte: Netflix (2021)

Assim, a personagem passa a fantasiar uma vida para si, ignorando os problemas financeiros do país, e vivendo novas relações como uma adolescente, pois sendo tão jovem o seu único objetivo era desfrutar ao máximo dos poucos prazeres que por meio do poder ela poderia ter. Por isso, a direção do filme utiliza músicas atuais permitindo a criação de uma atmosfera moderna durante as cenas, o que resulta em um paralelo entre a época e os dias atuais, além de uma identificação do público com a personagem através de experiências

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inusitadas da personagem que refletem a sua jovialidade. Nesse contexto, através do filme conseguimos observar que há um imaginário construído sobre as mulheres da aristocracia que por pertencerem à classe privilegiada, e usufruir de grandes riquezas, eram tidas como virtuosas pelos camponeses que, naquele tempo, passavam por grandes dificuldades. A rainha consegue até mesmo realizar o seu desejo de ser atriz, mesmo sendo uma carreira que na época era confundida com a de prostituta, devido à exposição do corpo das mulheres durante as performances.

VOCÊ SABIA? Maria Antônia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena foi o verdadeiro nome da arquiduquesa austríaca, mundialmente conhecida como Maria Antonieta, a rainha da França e de Navarra.

No entanto, ainda que Maria Antonieta desfrutasse de um padrão de vida extraordinário, ela sofria de solidão e angústia existencial, pois passou a infância em isolamento até finalmente virar rainha e assumir certas responsabilidades. Ainda assim, as ações da rainha acabam contribuindo para a insatisfação do povo Francês que nessa época vivia em condições insalubres. A partir disso, devemos lembrar que o primeiro regi-

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me da França foi marcado por ser um sistema político social que se caracterizou pelo absolutismo, ao qual centralizava a autoridade política sobre as mãos do rei. Nesses termos, a sociedade francesa se dividia em três Estados, entre eles o clero sendo representado pela igreja, a nobreza que consiste nos donos de terras, e as classes menos privilegiadas que dividia-se entre camponeses, artesãos e burguesia, sendo estes grande parte da população. No entanto, por meio de algumas alianças entre a monarquia e o clero, houve um forte estímulo às práticas capitalistas, em que se estabeleceu um monopólio onde o estado intervinha cobrando tributos pesados da população. Mediante a isso, a maioria da renda vinha da agricultura e de grande parte dos camponeses que ainda estavam em um regime de servidão. Além disso, houve um período de inundações e secas, fazendo com que houvesse um aumento de preços dos produtos em alguns momentos, não dando condições para que os pobres comprassem, e em outros a redução de preços, gerando a falência de pequenos empresários. Por isso, haverá uma cena em que, ao ser questionada sobre a fome dos pobres, a personagem choca a população francesa respondendo que “se não têm pão, comam brioches”, o que demonstra uma certa futilidade da nobreza diante da miséria do povo. Um aspecto da cena é aquele em que, assim que ela enuncia a resposta, é possível ouvir o barulho de uma multi-

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dão que não aparece na cena filmada, pois não há nenhum grupo de pessoas no local. Com isso, entendemos que aquele barulho, na verdade, não está sendo ouvido em Versalhes, mas sim pelas ruas de Paris. Nesse contexto, enquanto o povo passava fome fora dos muros de Versalhes, a rainha escolhia tecidos para a confecção de novos vestidos.

SD 3:

Servo: A madame leu o resumo sobre a nossa atual situação? Maria Antonieta: não, eu ainda não li. Pode adiantar para mim? Servo: Bom, as reformas do rei Poliatovic na Polônia levaram à guerra civil. Os russos e austríacos ocuparam um terço da Polônia, o que é preocupante já que a Polônia é amiga e aliada da França. Maria Antonieta: prefere qual manga a com franzido ou sem? Servo: Estava prestando atenção? Sua mãe espera que vossa alteza atenue essa crise Maria Antonieta: E como eu vou ficar se houver uma ruptura entre as duas famílias? Serei austríaca ou a Delfine da França? Servo: Terá que ser as duas. Nessa SD, temos um diálogo entre o servo e a rainha em que ele tenta informar a ela sobre a situação do reino e as alianças estabelecidas entre a França e os países vizinhos. No entanto, durante a conversa, Maria Antonieta pede a opinião dele sobre o modelo do vestido que ela experimenta, mostrando-se displicente, olhando para os tecidos e pouco se importando com os relatos

do servo. Incomodado com a postura da rainha, ele questiona a atenção dela usando como um trunfo a pressão que é colocada nela através de Maria Tereza. E, só então, quando ela percebe que poderá haver uma possível ruptura entre os reinos, a rainha questiona o modo que irão tratá-la caso o pior aconteça, tornando visível o seu individualismo e o não comprometimento com a política e o destino do reino. Com o passar do tempo, os gastos de Maria Antonieta passam a ficar cada vez mais incontroláveis e, por outro lado, a indústria francesa passa a ter algumas dificuldades porque, na época, parte dela ainda estava sob a dependência do sistema rural, e por isso, não havia um grande desenvolvimento de novas técnicas, o que também diminui a produção, e consequentemente os lucros. Ainda assim, o governo francês assinou um tratado com o governo inglês, para a comercialização de alguns produtos entre os países, sob a condição de que os ingleses não pagassem os impostos, o que levou as manufaturas francesas a entrar em colapso. Consequentemente, a política do país passou a evidenciar a decadência acumulada de outros reis absolutistas, e toda essa agitação teve um impacto duradouro na história do país, porque foi a partir desses acontecimentos que surge a Revolução na França (1789-1799).

SD 4:

Servo: Vossa majestade, deve retornar imediatamente, há centenas de pessoas a caminho para exigir farinha dos soberanos.

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Nesse trecho, o servo faz um anúncio ao rei sobre a revolta do povo diante do desamparo e extrema pobreza sofrida pelos camponeses. Com isso, a nobreza acaba convocando os estados gerais, dado que, a situação estava alarmante. Isso porque já haviam sido propostas outras reformas, mas estas não avançaram, pois a aristocracia francesa sempre se mostrou resistente às possibilidades, visto que, isso poderia retirar parte de seus privilégios. Para a alteração do funcionamento dos Estados Gerais foi proposto que houvesse uma votação incluindo todos os membros dos Estados. No entanto, o rei não aceitou a proposta, e isso fez com que o terceiro Estado rompesse com os Estados Gerais, dando origem à Assembléia Nacional Constituinte, com o intuito de desenvolver uma nova constituição propondo mudanças que atendessem as necessidades do povo francês. Diante disso, a sociedade francesa se organizou com o objetivo de acabar com os privilégios feudais, religiosos e aristocráticos através de grupos políticos radicais impulsionados pela burguesia e camponeses, em busca de transformações no sistema político da época. Assim, no dia 26 de agosto de 1789 a assembleia aconteceu, formada pelos três Estados, e só então foi aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que garantia os princípios de Liberté, Egalité, Fraternité, sendo o lema da revolução. Nesse contexto, após a Queda da Bastilha, antiga fortaleza que era usada

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do servo. Incomodado com a postura da rainha, ele questiona a atenção dela usando como um trunfo a pressão que é colocada nela através de Maria Tereza. E, só então, quando ela percebe que poderá haver uma possível ruptura entre os reinos, a rainha questiona o modo que irão tratá-la caso o pior aconteça, tornando visível o seu individualismo e o não comprometimento com a política e o destino do reino. Com o passar do tempo, os gastos de Maria Antonieta passam a ficar cada vez mais incontroláveis e, por outro lado, a indústria francesa passa a ter algumas dificuldades porque, na época, parte dela ainda estava sob a dependência do sistema rural, e por isso, não havia um grande desenvolvimento de novas técnicas, o que também diminui a produção, e consequentemente os lucros. Ainda assim, o governo francês assinou um tratado com o governo inglês, para a comercialização de alguns produtos entre os países, sob a condição de que os ingleses não pagassem os impostos, o que levou as manufaturas francesas a entrar em colapso. Consequentemente, a política do país passou a evidenciar a decadência acumulada de outros reis absolutistas, e toda essa agitação teve um impacto duradouro na história do país, porque foi a partir desses acontecimentos que surge a Revolução na França (1789-1799). Nesse caso, através da personagem temos o sujeito-mulher aristocrata que assume um papel social atribuído pela sociedade francesa da época.

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Isso porque as mulheres que frequentavam a alta sociedade estavam sempre em contato com políticos, negociantes, pessoas importantes que carregavam também um certo status, fazendo com que houvesse um vínculo estreito entre os homens e as mulheres, e isso trazia a possibilidade da participação delas na vida pública, ainda que muitas não pudessem tomar grandes decisões sem a palavra final do marido. E esses aspectos construídos sobre a imagem de Maria Antonieta se dão a partir desse imaginário construído pelo social que entendia que as mulheres da aristocracia francesa deveriam estar sempre informadas sobre os assuntos do reino, participando das discussões, falando e se vestindo de acordo com os padrões aceitos pela alta sociedade, além de ter que assumir a função como esposa. Nesse caso, as mulheres deveriam ser capazes de persuadir e impressionar as pessoas enfrentando as exigências da vida social, caso contrário elas poderiam ser excluídas da corte.

VOCÊ SABIA? A Guerra dos sete anos foi o maior conforto entre as nações europeias do século XVIII, sendo motivada pela disputa de territórios situados nos continentes asiáticos, africanos e América do Norte.

A partir disso, o filme nos mostra que

até mesmo as mulheres da aristocracia sofriam opressões diante de um machismo estrutural que as obrigava a se dedicar mais, a entender sobre assuntos diversos, a fim de comprovar que elas eram tão qualificadas quanto os homens. Com isso, é possível reconhecer que tais discursos eram passados de geração em geração por meio do processo de produção e reprodução das condições ideológicas, fazendo com que houvesse a cristalização de determinados valores que confirmavam o entendimento de que havia um sujeito mulher ideal dentro da aristocracia francesa que deveria seguir padrões para que, assim, pudesse ser reconhecido pela sociedade.

[...] o fato é de que as relações de produção são relações entre ”homens”, no sentido de que não são relações entre coisas, máquinas, animais não-animais ou anjos; nesse sentido e unicamente ele: isto é, sem introduzir simultânea, e, e subrepticiamente, uma certa ideia de “o homem” como antinatureza, transcendência, sujeito da história, negação da negação. (PÊCHEUX, 1995, p. 152)

Através dessas informações, reconhecemos que a cineasta Sofia Coppola aproxima a história da personagem com o cotidiano dos jovens da atualidade e trabalha o con-

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texto histórico destacando apenas alguns pontos, e omitindo outros com o objetivo de representar a cegueira da burguesia diante da situação precária do povo fora dos muros de Versalhes. Nesse caso, a história será “um imenso sistema ‘natural-humano’ em movimento, cujo motor é a luta de classes” (PÊCHEUX, 1995, p.152), pois será através dela que iremos reconhecer o funcionamento de determinados discursos ou uma certa ideologia que poderá afetar o sujeito. Por isso, apesar de ter como plano de fundo a Revolução na França, a direção conseguiu tornar visível a decadência da nobreza e a educação dada às mulheres da sociedade francesa, além do comportamento e

influência que as mulheres deveriam ter sobre o sexo masculino diante de algumas situações, como, por exemplo, para a conquista de cargos com a intensão de elevar a projeção social masculina, na qual, os homens estariam sempre em uma posição de poder como o patriarca, sendo aquele que iria ditar as regras aos demais familiares. Portanto, ainda que o filme tenha sido alvo de muitas críticas por ser uma versão “contemporânea”, ele conseguiu evidenciar o sofrimento de Maria Antonieta, que assim como muitas mulheres sofrem com as exigências de uma sociedade que segue os parâmetros de acordo com a ideologia do patriarcado.

REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. Editora Esperança,

Lisboa, 1970. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: Fatos e mitos. Editora: Difusão européia do livro, São Paulo: 1970. Maria Antonieta. Sofia Coppola. Estados Unidos/França: Sofia Coppola, 2006. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: Uma crítica à afirmação do óbvio. 2 edição. Campinas - SP: Editora da UNICAMP, 1995.

VOCÊ SABIA?

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CIDADE DE DEUS: A VIOLÊNCIA COMO CIRCO DA BURGUESIA Marcos Henrique Lopes Rodrigues As favelas brasileiras sempre foram alvo de muito preconceito, na maioria das vezes, estimuladas pelos próprios meios midiáticos através de matérias jornalísticas tendenciosas que sempre pôs o sujeito pobre, preto e periférico à margem da lei. Segundo Althusser, os aparelhos repressivos de Estado (polícia, exército) funcionam pela violência em nome dos sujeitos da classe mais privilegiada da sociedade (políticos, empresários). Um fato tanto quanto controverso, já que o papel constitucional da polícia é a proteção de todo e qualquer cidadão, independente de classe ou cor de pele.

O cinema nacional é um dos responsáveis por refletir as desigualdades estruturantes da sociedade, geralmente, dando ênfase ao meio favelado brasileiro, já que o discurso cinematográfico é responsável por provocar reconhecimentos de outras realidades, reproduzindo e refletindo identidades de diversos sujeitos no cenário cultural. É a partir dessa reflexão que o cinema nacional representa o seu modo revolucionário, chocando quem o assiste com suas imagens impactantes, expondo as vivências de uma sociedade marginalizada.

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Hoje, vemos uma lista enorme de filmes que buscam catalogar o país e suas misérias, alguns até arriscam trazer soluções radicais para revitalizar esse estado de treva que a arte reproduz para o seu público. Mas foi ao longo dos tempos que essa formação crítica

Cidade de Deus é um filme inspirado no romance escrito pelo autor Paulo Lins e publicado em 1997. O filme foi produzido pelo diretor Fernando Meirelles e pela co-diretora Kátia Lund. O longa-metragem foi indicado ao Oscar

contra o Estado foi se tornando algo sem efeito, sem emoção e apenas se tornou algo

de 2004, venceu o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro nas categorias: melhor

repetitivo e insistente, utilizando-se sempre dos mesmos discursos que aos poucos foram perdendo força.

filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado, melhor fotografia, melhor som, melhor montagem e dentre outros prêmios recebidos.

A forma que o cinema nacional materializa a violência das periferias do país é algo que gera dúvidas aos que assistem. Um exemplo famoso é o filme Cidade de Deus, um dos grandes clássicos do cinema nacional que retrata uma comunidade que é o próprio inferno na terra. O filme é narrado pelo Buscapé, um jovem pobre, negro e sonhador que vive em um meio imerso na violência. Como morador da Cidade de Deus, Buscapé vive assombrado pela possibilidade de acabar se tornando um bandido. Mas foi graças ao seu talento com a fotografia que Buscapé encontrou o seu caminho, sem que o seu futuro fosse fadado a viver sob a mira de uma arma. Por trás das lentes, Buscapé passa a fotografar a

Mas, o que tem de tão especial em um filme cujo seu papel principal é glamourizar a pobreza e a violência? De repente, a pobreza passa a receber atenção do público e a extrema violência começa a se tornar algo atrativo. Em um país como o Brasil, onde a distribuição desigual de renda aterroriza o povo mais desfavorecido da sociedade e a violência vive igual a fantasma, aterrorizando todos a sua volta, Cidade de Deus foi uma produção que divertiu (e ainda diverte) as pessoas, inclusive, as próprias pessoas pobres que são retratadas no filme que vivem sob os olhos da violência.

favela em que vive.

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Hoje, vemos uma lista enorme de filmes que buscam catalogar o país e suas misérias, alguns até arriscam trazer soluções radicais para revitalizar esse estado de treva que a arte reproduz para o seu público. Mas foi ao

A violência torna-se presente não só em função das armas que matam, mas também, é influenciada pela ausência do olhar social: a condição de vida é precária, com a ausência de empregos, os

longo dos tempos que essa formação crítica contra o Estado foi se tornando algo sem efeito, sem emoção e apenas se tornou algo

sujeitos passam a ser assombrados pelo espectro da fome, levando muitos a buscarem sobrevivência no mundo do

repetitivo e insistente, utilizando-se sempre dos mesmos discursos que aos poucos foram perdendo força.

crime. Essas causalidades que, quando somadas a uma estrutura familiar precária, acabam acarretando em uma socialização mal sucedida. É notável que sujeitos que crescem em meio ao banditismo acabam com as suas identidades influenciadas pela banalização da violência.

A forma que o cinema nacional materializa a violência das periferias do país é algo que gera dúvidas aos que assistem. Um exemplo famoso é o filme Cidade de Deus, um dos grandes clássicos do cinema nacional que retrata uma comunidade que é o próprio inferno na terra. O filme é narrado pelo Buscapé, um jovem pobre, negro e sonhador que vive em um meio imerso na violência. Como morador da Cidade de Deus, Buscapé vive assombrado pela possibilidade de acabar se tornando um bandido. Mas foi graças ao seu talento com a fotografia que Buscapé encontrou o seu caminho, sem que o seu futuro fosse fadado a viver sob a mira de uma arma. Por trás das lentes, Buscapé passa a fotografar a

Fonte: Cidade de Deus

favela em que vive. No filme, desde muito novos, os sujeitos passam a ser expostos à criminalidade do mundo. Fonte: Cidade de Deus

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Nas imagens acima, vemos Zé pequeno, personagem que desde criança apresenta sua voracidade pelo crime, fato esse evidenciado na cena em que o jovem mata dezenas de pessoas em um motel. E a turma

Essas ações violentas vindas desses sujeitos periféricos podem ser entendidas como uma forma de proteção, quando os sujeitos se encontram fragilizados e incapacitados pelos males sociais externos (Polícia,

da Caixa Baixa, um grupo de crianças abandonadas conhecidas pelos seus assaltos aos estabelecimentos da comunidade, e por

Estado). Dentro dessa realidade, a violência é um modo de defesa encontrado, ou seja, temos um jovem que, aos poucos, mata

terem assassinado Zé pequeno, como forma de vingança pelo seu amigo que fora morto pelo grupo do Zé. O que se compreende disso é que as representações dos sujeitos são produzidas a partir de estímulos recebidos, ou seja, de ações exteriorizadas da atividade humana que acaba se tornando realidade através da objetivação, sendo reincorporados pelo sujeito. É dessa forma, através de seus atos, que o sujeito se sente parte da sociedade, se reconhece e se identifica como tal.

para não ser morto. Nesse cenário, vemos jovens com ações violentas que pode ser entendido como sendo uma resposta à vida que lhe impediu de ter acesso a uma família, a um emprego, a condições de ensino dignas e a uma saúde de qualidade.

Você Sabia? A maior parte do elenco do filme foi composto por moradores de comunidades do Rio de Janeiro na vida real. Depois de selecionados, os indivíduos passavam por aulas de atuação para se aprimorarem aos papéis.

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Partindo das diversas formas representadas no filme Cidade de Deus, é importante destacar o papel desempenhado pelos meios de comunicação no processo de construção das identidades desses indivíduos marginalizados. Com a presença dos meios midiáticos cada vez mais abundante nessa relação indivíduo versus sociedade, os meios de comunicação, em especial o cinema, são também responsáveis por estruturar imaginários e concepções sociais, já que a tendência é de agirmos conforme as concepções que são atribuídas pela cultura de massa da mídia.

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Ao longo do filme, são reveladas as reconstruções de lembranças da Cidade de Deus, contadas por Buscapé, todas envolvendo, de certa forma, os jovens, suas postergações e o uso de drogas. Esses

banditismo e a marginalidade até o fim da vida. Apenas Buscapé encontra um caminho diverso, ao encontrar na fotografia o seu dome a saída daquele lugar. E é através da fotografia de Zé

processos narrados pelo personagem são importantes para a estruturação das identidades dos indivíduos, já que o ato de

Pequeno e seu bando que ele encontra a chance de conquistar seu emprego em um jornal.

relembrar o passado é uma forma de trazer a construção identitária para o presente. Mesmo sendo uma obra de ficção, Cidade de Deus é a personificação do imaginário coletivo brasileiro sobre como é de fato a realidade da periferia.

A favela Cidade de Deus representada no filme, é a personificação do imaginário construído pela classe média sobre as periferias que são retratadas como parte da identidade nacional, ou seja, como sendo o “raio x“ do Brasil para o Brasil.

A forma como é representada a violência em Cidade de Deus ajuda o espectador a criar sua imagem sobre como é viver na favela, que nos anos 80, era reconhecida como sendo

Entre o caminho do crime e o do bem, os tipos de jovens representados no filme evidenciam identidades em eterna construção, típica da atualidade que é

uma das mais violentas do Rio de Janeiro. Mas, quando assistimos ao filme, não temos acesso a esse território, mas sim, a apenas um imaginário mediado pelo discurso

marcada pelo distanciamento social (causado pelo avanço tecnológico), pelo acentuado consumismo e pela exacerbada presença da mídia em nossas vidas. É

cinematográfico. Ou seja, é um acesso aos fatos por meio de um discurso que terá como consequência originar uma realidade

dessa forma que compreendemos que nossas identidades culturais são modeladas pelas representações

distorcida e uma visão histórias narradas ali.

das

construídas no meio midiático e representadas pelas construções cinematográficas, algo que fica evidente

Além de mostrar os papéis sociais destinados aos jovens da periferia, Cidade de Deus apresenta um desfecho que confirma a falta de opção para a classe baixa, frente a sua

nos filmes brasileiros por tornar o dia a dia das periferias brasileiras como o circo dos mais ricos, glamourizando as vivências sofridas e insalubres desses

condição, que é ter que conviver com o

sujeitos.

inadequada

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Referências HUNTER, Pedro. Cidade de Deus: modelo para as produções futuras. Omelete, 2002. Disponível em: https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/cidade-dedeus. Acesso em 26 Jun de 2021. DIAS, Elder. O MDB/Zé Pequeno, a turma da Caixa Baixa e a cruz de Rogério. Jornal Opção, 2021. Disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/colunas-eblogs/conexao/o-mdb-ze-pequeno-a-turma-da-caixa-baixa-e-a-cruz-derogerio-322285/. Acesso em 26 Jun de 2021.

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A RESISTÊNCIA ECOLÓGICA ATRAVÉS DA ARTE

Guilherme Henrique Paro

Arte e consciência ecológica Por muito tempo a relação do ser humano com a natureza foi vista por uma ótica separatista, levando o homem a um lugar de dominação, posicionando-o de forma alheia ao ambiente natural em que se encontrava. À medida em que ele confrontava a matéria natural, sua potência natural, a fim de se apropriar dela, ele age sobre ela. Sua visão analítica e crítica sobre seu entorno ignorou por muito tempo a ideia de que a Natureza, sendo ela o mundo material, natural, também pertencia a espécie humana, mas não como parte

avulsa da matéria, mas como elemento intrínseco à ela. A partir de então, o ser humano modifica a natureza e, ao mesmo tempo, a si mesmo. Essa relação entre o homem e a natureza está presente em todos os pilares do conhecimento, inclusive na arte, que, desde os primórdios da representação artística rupestre na era paleozóica, passando pelos afrescos em Roma do século VIII a.C. e as pinturas milenares de Zhan Ziqian de 317 d.C., na metade do século VI no oriente, as paisagens renascentistas que compunham o cenário nas pinturas de Botticelli, Perugino e Ticiano em meados do século XIV e o fim do século XVI, as pinturas românticas de Hans Gude e John Constable por volta

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do século XVIII e XIX, chegando ao impressionismo nas obras de Monet, Manet e Cézanne entre o século XIX, até a ressignificação da posição da natureza dentro da representação artística na era da contemporaneidade. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e os tensos conflitos emergidos em decorrência da Guerra Fria, surgiu daí um período considerado como o início da globalização. Nessa época, a relação dos seres humanos com a obra de arte havia mudado significativamente em detrimento da produção capitalista e da indústria cultural de massa. Assim, como em todas as outras áreas trabalhistas, a arte passa a ser considerada um produto cultural, ou seja, a “reprodutibilidade técnica” passa a ditar os conceitos artísticos a fim de, além de lucrar sobre ela, padronizar uma estética homogênea. Porém, nesse cenário, alguns artistas começam a implementar em seus trabalhos uma “consciência ecológica” proveniente justamente da globalização, que consentiu um acesso às questões ambientais através da arte, já que pela globalização houve uma forte exploração dos recursos naturais em diferentes condições ao redor do mundo, sobretudo em países emergentes. Entre os anos de 1960 e 1970, houve artistas que se posicionaram à frente das causas ambientais, militando em seus trabalhos artísticos, como é o caso de Agnes Denes. A artista húngara, radicada nos Estados Unidos, teve seus trabalhos reconhecidos no mundo todo por conta do impacto que suas

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obras causaram para além da estética visual e sensorial, buscando conscientizar e educar por meio de sua arte. Um de seus trabalhos mais famosos, Wheatfield - A confrontation, de 1982, consiste em uma plantação de dois acres de trigo em plena Manhattan, ao lado dos grandes símbolos norte-americanos; Wall Street, o World Trade Center e a Estátua da Liberdade. Além do choque visual que essa intervenção causou, havia um questionamento sugerido, produzindo um efeito de denúncia dos impactos que as novas tecnologias, que estavam alinhadas à crescente industrialização, movimentadas pelo capitalismo, causavam ao meio ambiente e consequentemente a nós, seres humanos.

a potência da arte Na atualidade, a identificação de um teor político-ambiental em obras de arte ao redor do mundo ficou mais evidente, não só nas artes plásticas, mas também no cinema, na música, na moda, arquitetura, etc. Porém, os impactos que essas obras causam na sociedade ainda variam, isso, de acordo com as diferentes condições de produção as quais os artistas se encontram. Por conta do avanço das condições capitalistas, ocorreu a abertura de fendas profundas entre a valorização da arte feita por determinados artistas diante das desigualdades sociais que os envolvem. Essa perspectiva pode ser identificada entre diversas obras de arte retratadas

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e reproduzidas nas diferentes áreas e linguagens, por exemplo: mulheres que abordam um olhar feminista sobre a mulher e o homem na sociedade, obras produzidas por artistas negros que levantam questionamentos sobre sua arte trazer sempre apelos relacionados a negritude quando as obras de artistas brancos é considerada universal, e artistas LGBTQIA+ que buscam representar em produções cinematograficas e televisivas, por exemplo, pessoas gays carregando cada vez menos os estigmas depositados pela sociedade com o intuíto justamente de subvertê-los. Com a temática do meio ambiente em obras de arte, o caminho é parecido quando, assim como nos exemplos citados, há uma resistência como motor principal das obras artísticas.

VOCÊ SABIA? O filme de animação "Uma história de amor e fúria" de 2013, dirigido por Luiz Bolognesi, apresenta como elemento principal o desenvolvimento histórico do Brasil ao longo do tempo através da construção da identidade de uma nação, o homem e o meio ambiente, ancestralidade e resistência. Fica dica!

Aqui no Brasil, tivemos artistas que buscaram representar em suas obras temas envoltos à resistência social, cultural e ambiental do país. Artistas como Camila Soato, Jaime Lauriana e Paulo Nazareth, por exemplo. Porém, dentre eles há uma distinção na relação entre suas obras, em relação à

visibilidade, o reconhecimento e o lucro que eles recebem, isso mediante as suas diferentes condições de produção. A influência da mídia a favor de determinados artistas também corrobora para a disparidade entre eles. Podemos notar isso ao observarmos o tratamento e o reconhecimento que o artista Vik Muniz teve ao produzir obras feitas a partir do lixo, registradas no documentário Lixo Extraordinário (2010). O artista utilizou da matéria prima e da imagem dos catadores de materiais recicláveis para compor suas obras, possibilitando uma emancipação no horizonte desses sujeitos, que a partir do contato com a arte e o lucro proveniente desse trabalho, tiveram a oportunidade de uma mudança de vida, mesmo que de forma ideológica e crítica em relação às suas condições de trabalho. Ao dividir o protagonismo com esses catadores, surgiu a possibilidade de resistência dessa classe trabalhista. Muniz levanta questionamentos ao mostrar as condições de trabalho no aterro sanitário, usa da arte para possibilitar uma mudança social e lucra com isso. Suas fotografias, além de valerem milhões, posicionaram o artista em um espaço consagrado no meio artístico contemporâneo brasileiro e mundial. Por uma via distinta de Muniz, temos um outro artista plástico brasileiro que nos últimos anos vem galgando espaço no meio artístico nacional e internacional, Denilson Baniwa. Denilson é nascido no Amazonas e faz parte do povo Baniwa. Seu trabalho

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carrega um apelo estético em diferentes linguagens; desenhos, gravuras, pinturas e performances que trazem uma temática frequente atrelada a desmistificação do “ser indígena” e as demais questões que a cercam. Antes de ser identificado como artista, Denilson já lutava pelos direitos indígenas fazendo parte de movimentos e assembléias em prol de sua existência, mas foi através da arte que ele conseguiu atingir e alcançar uma visibilidade que o movimento por si só não conseguia. Foi por lugares, sensações, sensibilidades e emoções diferentes que Denilson fez-se ser visto, ouvido e sentido. Em 2019, foi ganhador do Prêmio PIPA Online, um dos prêmios mais importantes da arte contemporânea brasileira e em uma categoria por voto popular. Em uma entrevista ao podcast Mekukradjá, do Itaú Cultural, Denilson Baniwa diz que, em um primeiro momento, o seu trabalho fala que “todos os lugares do mundo são terra indígena” de que “por mais que o concreto, por mais que o ferro e as estruturas coloniais tentem apagar esse território indígena, ele continua sendo território indígena. Como do concreto da cidade, no mais alto prédio consegue nascer uma planta, assim é a gente”. Sua arte reflete a insistência, a persistência e a resistência que os povos indígenas sustentam para manterem-se vivos, através de seus costumes, suas memórias, suas lutas e sua arte. O processo discursivo ao qual podemos analisar, a partir dos efeitos de sentidos que as obras de Baniwa produzem, nos revelam qual a sua

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formação discursiva, de acordo com sua determinação histórica e ideológica. Denilson questiona o seu lugar no mundo a partir de sua posição-sujeito, e por meio de sua arte, cria um espaço de contra identificação para aqueles que se encontram abertos à interpelação. “Tentaram nos apagar, tentaram nos manter num passado mítico, exotico como forma de nos afastar de tudo que era nosso, mas mesmo assim estamos aqui.”, concluiu Denilson. Em uma de suas obras, o artista produz sentidos a partir de uma visão topográfica de uma floresta. Como uma visão de um satélite espacial que detecta um espaço, uma localização, em que ocorre um desmatamento, o artista cria formas ao terreno desmatado, delimitando uma silhueta de um corpo com uma espécie de cocar na cabeça e chocalho na mão. A produção de sentidos é acrescida quando identificamos a interdiscursividade com o nome da obra, “Natureza Morta”, rompendo com a formação imaginária a qual se tem projetada sobre a representação da natureza morta nas artes plásticas. Atrelado a isso, notamos a presença do indígena como sendo parte inerente à natureza, como em um movimento de resistência aos costumes naturalizados ao passar do tempo entre a sociedade colonizada, em que a natureza está separada direta ou indiretamente do ser humano. Na arte de Baniwa, podemos supor que o sujeito representado sofre os impactos do desmatamento das florestas assim como as próprias árvores ao serem

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derrubadas e incendiadas pelas ações de grileiros, garimpeiros e fazendeiros que agem movidos pelo agronegócio.

Natureza Morta, Infogravura, Tamanhos variáveis, 2016-2017-2019

O agronegócio é um tema explorado nas obras de Denilson, não apenas como uma resposta às consequências climáticas que essas ações de destruição ambiental causam à natureza, mas também como uma forma de registrar como essas ações estão ligadas à ideologia de extermínio cultural. Na entrevista para o podcast Mekukradjá, Denilson faz um paralelo histórico para contar como foi feita a composição de seu trabalho voltado para a denúncia ao agronegócio brasileiro. Ele conta que os Estados Unidos, na guerra contra o Vietnã, desenvolveu, em parceria com a Monsanto (empresa de agricultura e biotecnologia), um químico chamado Agente Laranja. Esse químico foi pulverizado em territórios do Vietnã com o intuito de exterminar os povos indígenas de lá e assim vencer a guerra. Mesmo com o fim da batalha e

a derrota dos EUA, há ainda sequelas desse químico presentes até hoje. A empresa Monsanto, atualmente adquirida pela Bayer, mantém em seu site relatos de como foi criado esse herbicida, em um tom de orgulho em ter sido parceira dos EUA na luta pela liberdade e pela pátria norte americana durante a guerra. Denilson diz que, no fim desse texto, a Monsanto revela que, a partir do Agente Laranja, foram feitos três defensivos agrícolas que são hoje utilizados para pulverizar venenos sobre aldeias indígenas no Mato Grosso do Sul. Esse caminho para entendermos a composição da obra do artista pode soar, de certa forma, distante, até “Pode parecer que não é muito indígena as coisas, mas é muito indígena, porque é a realidade que nós vivemos hoje”, diz Denilson. Muitas pessoas não devem imaginar a relação que há entre os Agentes Laranjas e as aldeias indígenas no interior do Mato Grosso do Sul, e é justamente aí que o Baniwa entra, para incitar a discussão acerca da liberação que o atual governo fez para que esses defensivos agrícolas fossem usados para ameaçar e eliminar os indígenas, e assim ser possível que se crie gado e se plante soja e milho transgênicos. A obra “A terra envenenada e com odor de morte” faz parte da série “O agro é pop”, e ela apresenta uma cena de um avião pulverizando veneno nos solos brasileiros, e para representar o veneno, Denilson usou a palavra “morte” em sua pintura. O uso dessa imagem em paralelo com o título da

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série, possibilita uma produção de sentido que, mais uma vez, rompe com a formação imaginária de que o agronegócio brasileiro, por ser visto como popular, pode ter suas ações degradantes tidas como naturais. Nesse sentido, notamos a necessidade de haver, cada vez mais, artes que possibilitam, sugerem e incitam um pensamento crítico sobre as nossas diversas condições de produção a fim de romper com as formações imaginárias que corroboram para o apagamento da cultura indígena.

A terra envenenada e com odor de morte, 2018

A obra “A terra envenenada e com odor de morte” faz parte da série “O agro é pop”, e ela apresenta uma cena de um avião pulverizando veneno nos solos brasileiros, e para representar o veneno, Denilson usou a palavra “morte” em sua pintura. O uso dessa imagem em paralelo com o título da série, possibilita uma produção de sentido que, mais uma vez, rompe com a formação imaginária de que o agronegócio brasileiro, por ser visto como popular, pode ter suas ações

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degradantes tidas como naturais. Nesse sentido, notamos a necessidade de haver, cada vez mais, artes que possibilitam, sugerem e incitam um pensamento crítico sobre as nossas diversas condições de produção a fim de romper com as formações imaginárias que corroboram para o apagamento da cultura indígena.

RESISTÊNCIA AMBIENTAL = RESISTÊNCIA CULTURAL As obras de Denilson Baniwa deixam em evidência como os desafios ambientais se atrelam aos desafios sociais dentro da resistência cultural (a arte resiste). O artista reflete sobre a importância de seu trabalho no momento presente em que as alternativas de sobrevivência se encontram na resistência, afinal “É importante a luta política, mas é também necessária uma luta imagética, pois o cidadão comum tem pouco interesse pelas lutas políticas indigenistas.” E diante dessa realidade brasileira, Denilson alcança esse sujeito pela arte. Os sentidos produzidos por suas obras são o resultado de toda uma historicidade que carrega uma necessidade de expressar sua realidade, e ela tem como alvo todo sujeito suscetível à ela. As obras do artista

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podem até soar como didáticas em alguns momentos, mas que assim seja, se for preciso, pois “Essa pessoa comum não acessa o Diário Oficial, mas acessa a arte”, e esse é o caminho de afluência para a sensibilidade do ser humano. As artes em geral carregam um potencial de acesso à sensibilidade humana como nenhuma outra área consegue, e, se voltarmos esse olhar para as artes brasileiras, o apelo é potencializado, já que podem carregar, invariavelmente, características estéticas culturais proeminentes à nós brasileiros. Para Denilson, “O papel do indígena-artista é fazer com que o coração deste cidadão comum acelere quando der de cara com um trabalho nosso, quiçá fazê-lo repensar sua realidade” e cabe a nós, “pessoas comuns”, nos permitir nos sensibilizar por essa arte que nos revela tanto sobre o outro e sobre nós mesmos.

MEKUKRADJÁ: Denilson Baniwa. Entrevistado: Denilson Baniwa. Entrevistador: Daniel Munduruku. Itaú Cultural, 17 ago. 2020. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/4W OC0HZUMozDz0gpLwjSqt? si=m0JmZ7hyTHGUqJS0VGoZyA&dl _branch=1 VIVIEUVI. Consciência ecológica através da arte. YouTube, 26 de Outubro de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=JAlKi_28_v4

REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 6 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. DENILSON BANIWA. Enciclopédia Itaú Cultural, 2021. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br /pessoa628975/denilson-baniwa Acesso em: 04 de agosto de 2021. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIN. nº 2, Março de 2001, Fortaleza. Lugares de enunciação e discurso.

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ADORADA DORA Maria Carolina Silva de Oliveira Central do Brasil é um filme de 1998, de Walter Salles com o elenco de Fernanda Montenegro, Vinícius de Oliveira e Marília Pêra. Dora é uma protagonista que não conquistou o público com sua simpatia, e sim, com sua sensibilidade. Interpretada por Fernanda Montenegro, ela é apresentada no início do filme, na passagem dos créditos iniciais, enquanto mostra o fim da jornada diária da personagem em um trem lotado no calor do Rio de Janeiro. Ela escreve cartas na estação de trem para complementar sua renda de professora aposentada, o que não a torna uma escritora, pois ela apenas escreve palavras ditadas de quem não foi alfabetizado. Em sua casa com a sua

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amiga observamos que ela não envia algumas das cartas que escreve na estação Central do Brasil, e além disso, ela e sua amiga, Irene, se divertem fazendo um juízo de valor sobre o conteúdo, ironizando a aparência e as escolhas de vida de seus clientes diários, das cartas escritas e seus remetentes. Dora possui o que Irene descreve como um "purgatório" no formato de gaveta cheia de cartas não enviadas. Quando há uma completa reprovação, a personagem Dora rasga a carta e mente “A culpa é dos correios”. O efeito de sentido que isso produz é de uma indiferença aos sentimentos de seus clientes e suas escolhas de vida. O sentimento que a atriz Fernanda

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Montenegro ao interpretar Dora demonstra, com uma atuação incrível, é a solidão, pois ela se relaciona superficialmente com as pessoas e sua única amiga é Irene. A personagem é descrita durante o filme como “Sem marido, sem filhos e nem cachorro, escrevedora de cartas, mulher que cuida de si mesma". Contudo, em sua rotina cômoda de não sentir nada além da sua solidão, ela conhece Josué, uma criança que ficou órfã após a morte de sua mãe, atropelada por um ônibus ao sair da estação Central do Brasil. Após a tragédia, a criança procura Dora, pois foi com ela que sua mãe, Ana, pediu para escrever para o seu pai desconhecido. A reação da personagem ao ver o menino exigindo que ela escreva para o pai é grosseira, impaciente e condizente com sua constante demonstração de ausência de empatia, ela o manda ir embora. A estação de trem Central do Brasil, reproduzida pelo filme, expõe a desigualdade social e o abandono. Josué passa seus dias sozinho no terminal. Um dia, Dora o convida para ir com ela para sua casa e fala a verdade sobre o que aconteceu com sua mãe: “Sua mãe morreu, ela não vai voltar”. Ele passa uma noite com ela em sua casa, no dia seguinte, ela o vende para pessoas que têm intenções duvidosas, movida pela vontade de comprar uma nova TV. Depois de uma conversa com sua amiga Irene, que diz que tudo tem limites, ela se mexe na cama com culpa na consciência por ter vendido o menino. Após resgatar o menino que ela mes-

mo vendeu, ela sabe que precisa fugir, pois ela sofrerá represálias quando voltar para a sua casa, pois, as pessoas para quem ela vendeu o menino querem sua mercadoria de volta. Nesse contexto, ela começa a desenvolver sua relação com o Josué e com essa relação podemos observar que ela é mais que uma mulher idosa rabugenta, ela é uma mulher que, como todas nós, quer ser amada, receber atenção e carinho.

IMAGEM 1

Fonte: Tele Cine (1998)(

A primeira imagem que eu apresento é a primeira tentativa de fuga da Dora e o início da viagem para reencontrar o pai de Josué. Os olhos de ambos demonstram uma seriedade desagradavél, um laço de sentimentos indistintos para os personagens que, neste momento, mesmo que não verbalmente, eles percebem que estariam juntos nessa viagem sem destino certo.

VOCÊ SABIA? Fernanda Montenegro foi indicada para o Oscar de 1999 pelo papel de Dora no filme Central do Brasil.

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IMAGEM 2

Fonte: Tele Cine (1998)(

Antes de iniciar a viagem juntos, Josué estava abandonado na Central do Brasil, Dora, após seu dia de trabalho, o chama para passar a noite em sua casa e não dormir na rua novamente, repare que na imagem a única pessoa que percebe e reconhece o menino é a Dora, demonstrando a negligência dos outros, que passam todos os dias na estação e compreende que o abandono e descaso faz parte da paisagem da cidade.

dificando e a confiança vai sendo conquistada. Josué percebe e demonstra com os olhares tortos e com o sorriso discreto que Dora lembrou que o seu sonho era dirigir caminhões e com isso ela sugeriu e pediu para que o motorista de caminhão que estava oferecendo carona deixasse ele segurar o volante. Pois, apesar de os dois estarem nessa viagem e ambos sofrendo com perdas e com medo ela esforça-se para que ele lembre de bons momentos. Ao estarem chegando ao início do fim da sua busca, nesse momento em que, onde eles estão cansados, perdidos, percebem que eles estão sozinhos no mundo, eles só tem um ao outro.

IMAGEM 4

IMAGEM 3 Fonte: Tele Cine (1998)(

Fonte: Tele Cine (1998)(

Nessa cena, representada na imagem 3, mostra como ao longo do trajeto da viagem a relação entre eles vai se mo-

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Essa cena, representada pela imagem 4, para mim, é uma das mais bonitas, ela recebe o colo dele, pois, assim como ele, ela precisa de carinho e atenção, até o encontro dos dois ela também fazia uma viagem sem destino sozinha. Agora, ela recebe um colo amigo. Dora, conta para Josué que a vida dela também não foi fácil, quando jovem ela procurou o pai e ele não a reconheceu. E com isso, ambos se dão

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apoio.

la ,depois de muito tempo, tem alguém para quem escrever, e ela pede para que ele não esqueça dela, pois, ela foi a primeira pessoa que o ajudou a realizar o sonho de dirigir um caminhão. E para finalizar, voltamos ao o que é dito no início desse texto a protagonista Dora ela pode não transparecer simpatia, mas ela produz efeitos de sentido de sensibilidade nas imagens selecionadas e também ao longo do filme, com suas expressões faciais e semelhantes, seu olhar profundo e emocionante. A imagem para análise do discurso constrói o conceito de "formação imaginária" que são projeções feitas pelo sujeito discursivo para si, quando pensamos na linguagem cinematográfica, esse imaginário ele produz o efeito de sentido dos sentimentos, por isso, que para analisar a personagem não foi preciso utilizar as suas falas, ela produzia suas emoções pelo significante do seu semblante.Produzindo efeitos de sentido de sensibilidade. Ao final, ela chora, e são lágrimas de profunda tristeza e com um pouco de esperança, pois, ela depois de muito tempo tem alguém que ela possa escrever cartas.

IMAGEM 5

Fonte: Tele Cine (1998)(

A imagem 5 é da partida dela, ao chegar no destino, Dora e Josué descobrem a casa e os irmãos de Josué por parte de pai. Eles são convidados a passar a noite, e Dora acredita que mesmo que ela tenha se sentido novamente feliz, após criar um vínculo afetivo com a criança, ela entende que deve ir embora e deixá-lo com os irmãos. Para ela Josué ficar com a família será melhor para ele. E para não deixar a criança em uma situação desconfortável, ela parte, pela manhã, de volta para casa, Rio de Janeiro, e no banco do ônibus, ela escreve uma carta, dedicada a Josué, com olhos cheios de lágrimas, ela agradece, pois e

REFERÊNCIAS

CENTRAL DO BRASIL. Direção: Walter Salles. Brasil, França: Sony Pictures Classics, 1998. Tele Cine. FERREIRA, CRISTINA, org. Glossário de Termos do Discurso: Edição Ampliada. Campinas, São Paulo: Pontes Editores, 2020.

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A VOZ SUPREMA DO BLUES E O RACISMO NA SOCIEDADE DO SÉCULO XX Daniela Peres e Taize Goulart

O filme A voz suprema do Blues dirigido por George C. Wolfe, estreou no catálogo da Netflix no dia 18 de dezembro de 2020, trazendo em seu elenco atores como: Viola Davis, Chadwick Boseman, Colman Domingo e Glynn Turman. Sua narrativa gira em torno da cantora Ma Rainey e se passa em um dia de gravação de seu primeiro disco, abordando a “exploração da cultura negra em uma indústria musical racista, misógina e branca.” O filme se passa em 1920, na cidade de Chicago, sendo a adaptação de uma peça, escrita em 1984 por August Wilson. O autor desta peça, August Wilson, escreveu dez peças com temáticas negras no século XX, uma para cada

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década. Duas delas foram vencedoras do Prêmio Pulitzer, sendo uma delas a voz suprema do Blues. Além disso, este filme também foi o último do ator, diretor e roteirista Chadwick Boseman (Levee Green) que faleceu, vítima de um câncer de cólon. Dentro do filme, encontramos discursos racistas repetidos pelos próprios personagens negros, através dos quais denunciam seus sofrimentos e fazem reflexões impactantes enquanto “homens de cor” que estão inseridos no contexto da época daquela sociedade na qual o negro é visto como um ser inferior. Na trama, os atores exclamam afirmações esteriotipadas como “os homens de cor são os restos” ou “um negro sempre fi-

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cará insatisfeito de qualquer forma” ou até mesmo um racismo de caráter religioso, a partir da falta de fé de Leeve como “Deus não presta atenção nos negros”, “Deus odeia os negros” e “Jesus odeia essa sua pele negra”. O autor desta peça, August Wilson, escreveu dez peças com temáticas negras no século XX, uma para cada década. Duas delas foram vencedoras do Prêmio Pulitzer, sendo uma delas a voz suprema do Blues. Além disso, este filme também foi o último do ator, diretor e roteirista Chadwick Boseman (Levee Green) que faleceu, vítima de um câncer de cólon.

divertir”, não havendo por parte deles preocupação sobre o tipo de vida que será deixada para os jovens e em tornar a vida melhor para os homens de cor nos Estados Unidos. Ele começa seu discurso dizendo que “esse é um dos problemas dos homens de raça, estão sempre querendo se divertir. Mais negros foram mortos querendo se divertir do que Deus consegue contar”. Os diálogos intensos que geram desconforto entre uma cena e outra retratam o papel do negro na Chicago dos anos vinte, por mais que tenha sido antiescravagista e conhecida por defender a liberdade, o clima era de segregação, mesmo que os A VOZ SUPREMA DO BLUES E O RACISMO NA SOCIEDADE Dentro do filme, encontramos personagens fossem artistas, a cor da DO SÉCULO XX discursos racistas repetidos pelos pele ainda era uma questão de próprios personagens negros, através desprezo para a sociedade da época. dos quais denunciam seus sofrimentos A Ma é uma personagem e fazem reflexões impactantes empoderada, que se posiciona, que enquanto “homens de cor” que estão enfrenta “os brancos” quando inseridos no contexto da época necessário, e se impõe em diversas daquela sociedade na qual o negro é situações, como quando discute com visto como um ser inferior. Na trama, um policial logo em sua chegada em os atores exclamam afirmações Chicago; quando impõe a versão da esteriotipadas como “os homens de cor música que quer cantar; quando ela são os restos” ou “um negro sempre estabelece certo período de tempo ficará insatisfeito de qualquer forma” para retornar as gravações diante de ou até mesmo um racismo de caráter um erro, entre outras. religioso, a partir da falta de fé de É notável que os personagens têm Leeve como “Deus não presta atenção bem claro a distinção entre o homem nos negros”, “Deus odeia os negros” e branco e o homem de cor, colocando“Jesus odeia essa sua pele negra”. os como superior e inferior, Ocorrem muitas discussões entre os respectivamente. Embora Leeve e Ma próprios personagens negros sobre o tenham conflitos durante o filme, ela é racismo nos bastidores das gravações para ele uma inspiração. E apesar dele do disco deixando a trama cada vez dizer que sabe “lidar com os brancos” e mais tensa. O personagem Toledo diferenciar isso do “medo dos homens chega a contestar a diversão dos brancos”, carrega consigo uma forte negros, dizendo que “só querem se história vivida por ele e sua família, INFORME LETRAS - 12ª EDIÇÃO- 2447-1895

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envolvendo estupro e vingança. Ele almeja mais, pois planeja ter uma banda e gravar um disco, assim, como Ma, poder dizer “ao homem branco o que fazer” e fazer respeitá-lo. A época retratada no filme nos faz pensar numa série de acontecimentos históricos que antecederam a década de 20. Estes nos levam a refletir sobre o contexto em que o filme se insere.

IMAGEM ilustrativa

defendia a não expansão, sendo o vencedor da guerra. Em 1963, aconteceu o "Juneteenth" (décima primeira emenda) que tinha como objetivo abolir todo e qualquer tipo de escravidão no estado do Texas e todos os demais estados americanos localizados no sul dos EUA. Em contraponto, a emancipação não acabou com a humilhação sofrida pelos negros, nem a violência contra eles, pelo contrário, quando o presidente Abraham Lincon declarou emancipação motivou, acreditamos que não intencionalmente, grupos supremacistas como Ku Klux Klan, interessados em manter uma hegemonia branca.

IMAGEM ilustrativa

Fonte: Fonte:

A questão a ser levantada sobre este cenário que se passa quase cinquenta anos depois da guerra civil americana, que ocorreu entre os anos de 1861 e 1865, um dos motivos para que o sul e o norte entrassem em conflito era a questão da expansão do modelo escravista para o norte dos EUA, defendida pelos estados do sul, o norte

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O Independence Day, comemorado dia 19 de junho, trouxe consigo a liberdade de cerca de quatro milhões de escravos negros, mas o ato foi oficializado apenas dois anos depois pelo congresso americano, sem contar a questão de direitos iguais aos brancos que foi constitucionalizado somente em 1968. Com um histórico da escravidão e abolição desta, buscamos então entender como viviam os negros

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“Não haverá tranquilidade nem sossego na América enquanto o negro não tiver garantidos os seus direitos de cidadão… Enquanto não chegar o radiante dia da justiça… A luta dos negros por liberdade e igualdade de direitos ainda está longe do fim" "Naturalmente, hoje temos liberdade de opinião, imprensa e religião. Mas algumas outras liberdades faltam. Basta pensar, por exemplo, nos altos escalões empresariais, claramente dominados por homens brancos. Por isso, temos de nos esforçar para sermos a nação que pretendemos ser".

VOCÊ SABIA? Pela primeira vez na história, o Oscar de Melhor Cabelo e Maquiagem foi concedido a mulheres negras nesta categoria, o prêmio foi dado à Mia Neal e Jamika Wilson, além de Sergio Lopez-Rivera. O filme também ganhou o Oscar 2021 na categoria Figurino.

americanos na década de vinte dentro da indústria musical e como esta década foi marcada a partir do enredo do filme “A voz suprema do blues” e seus personagens. A década de vinte, conhecida como “os anos loucos”, época em que se passa o filme em questão é marcada pela era do jazz influenciado pelo blues. Os Estados Unidos da América se tornavam uma das maiores potências mundiais, as mulheres começaram a adquirir certos direitos de igualdade de gênero e oportunidades, já os negros procuravam igualdade buscando aceitabilidade e menos discriminação por conta da cor de sua pele. No entanto, as atrocidades vividas pelo povo negro não deixaram de existir, dando espaço para que, cada vez mais, esses grupos se reunissem para criar seu próprio estilo de vida e obter acesso à música, arte, teatro, esportes, religião, etc. Contudo concluímos com duas citações de Martin Luther King as quais concordamos:

Martin Luther King na marcha pelos direitos civis rumo a Washington em 1963). As falas citadas acima ainda são pertinentes nos dias em que vivemos: faltam sim, liberdades! E essa luta está longe do fim! Nosso povo parece estar longe também de obter respeito, sendo alvo de preconceito em diversas esferas da sociedade.

VOCÊ SABIA? Chadwick Boseman, conhecido por interpretar Pantera Negra nos filmes da Marvel, e que em A voz suprema do blues VOCÊ SABIA? interpretou o trompetista Leeve, se dedicou a ponto de aprender a tocar trompeta. E foi indicado postumamente ao prêmio de Melhor Ator do Oscar 2021.

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REFERÊNCIAS DEMEROV, Bárbara. A voz Suprema do Blues: Críticas. Adoro Cinema, s/d. Acesso em: <https://www.adorocinema.com/filmes/filme-275143/criticasadorocinema/>. Disponível em: 10 de abr. de 2021. Chadwick Boseman recebe indicação póstuma ao Oscar por 'A Voz Suprema do Blues'. O Globo, 2021. Acesso em: <https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/chadwick-boseman-recebe-indicacaopostuma-ao-oscar-por-voz-suprema-do-blues-1-24926005>. Disponível em: 06 de agosto de 2021. GIANNINI, L. Resenha: ‘A Voz Suprema do Blues’. Guia da Semana, 2021. Disponível em: <https://www.guiadasemana.com.br/filmes-eseries/noticia/resenha-filme-a-voz-suprema-do-blues-netflix>. Acesso em 10 de abril de 2021. SABBAGA, Julia. A Voz Suprema do Blues rende 1º Oscar para mulheres negras em Cabelo e Maquiagem. Omelete, 2021. Disponível em: <https://www.omelete.com.br/oscar/oscar-mulheres-negras-a-voz-suprema-doblues>. Acesso em 06 de agosto de 2021. THEBAS, Isabella. "CRÍTICA | A Voz Suprema do Blues” Instituto de Cinema SP. Disponível em: https://institutodecinema.com.br/mais/conteudo/critica-a-vozsuprema-do-blues. Acesso em 02 de abr. de 2021.

VOCÊ SABIA?

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"EXISTEM TRÊS CLASSES DE PESSOAS: AS DE CIMA, AS DE BAIXO E AS QUE CAEM". OS EFEITOS DE SENTIDO PROFERIDOS NESSE (E EM OUTROS) DISCURSO (S) EM "O POÇO" Arthur Teixeira Ernesto No presente texto, abordaremos o seguinte assunto: as classes sociais e as desigualdades sociais. Para isso, utilizaremos como objeto de análise o filme exibido pela Netflix “O poço”, dirigido pelo diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, que tem duração de 1 hora e 34 minutos e 50 segundos. Assim, o nosso texto consistirá em alguns relatos do filme e a análise. No início do filme, apresenta o seguinte discurso: “Existem três classes de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem”. Nossa, que impactante, não? Pois bem, esse discurso deixaremos para analisar antes do fechamento deste texto que será relacionado com os desperdícios de comida. Em seguida, mostra um resta-

urante requintado, no qual está um sujeito branco que ocupa a posição de chefe em uma postura rígida dando ordens aos seus funcionários. Logo, mostra o personagem principal, Goreng, que é interpretado pelo ator espanhol Ivan Massagué, que está deitado em uma cama no 48° nível do poço. Esse poço seria uma analogia aos poços profundos que estamos acostumados a ver com água, mas no caso do filme, o poço é uma espécie de um “edifício sem fim”, no qual abrigam duas pessoas por andar. Assim, durante o percurso do filme, percebemos que há uma frase dita pelo personagem Trimagasi que é interpretado pelo ator espanhol Zorion Eguillor, que diz “o poço con-

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csiste em comer”, ou seja, através desse discurso, o sujeito interpela a nós telespectadores umas das temáticas do filme, que é a busca/disputa pela sobrevivência. Após isso, ainda no 48º nível do poço, o personagem principal, Goreng, se depara com as “comidas” que são oferecidas aos presos, que por sua vez, são preparadas em um restaurante, nesse caso, esse restaurante fica no nível zero da prisão, e após o preparo das comidas, elas são vindas por uma pedra/elevador/mesa/plataforma flutuante, nas quais ficam os alimentos. Assim, conforme essa farta comida vêm descendo pelos andares superiores, elas acabam sendo reviradas pelos detentos até chegar aos outros presos que estão nos níveis inferiores. Então, Goreng, indignado com os desperdícios de comidas, propõe aos outros detidos que racionem a comida para evitar desperdícios, sendo assim, o personagem Trimagasi questiona se Goreng é comunista? E afirma para o seu companheiro de cela como mostra a seguinte fala:

sd 1

“Os de cima comunista.”

não

vão

escutar

um

Observa-se, nessa fala do personagem que nesse discurso, o sujeito está materializando e propagando um discurso dominante, porém, ele e os sujeitos que estão nos níveis acima não detêm nenhum poder, pois eles estão na mesma situação que os demais

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aprisionados. Então, por isso, os sujeitos que estão nos níveis superiores não iriam escutá-lo, pois não estão no mesmo pé de igualdade que os sujeitos que estão nos níveis inferiores e, então, esses sujeitos acabam não se conscientizando com os demais prisioneiros. E além disso, talvez, o fato de Trimagasi relaciona à imagem de Goreng como um sujeitocomunista, porque as práticas de Goreng de pensar e agir coletivamente se estabelece a partir da materialização de um imaginário que se designa pelo inconsciente do personagem. Com isso, após o questionamento se Goreng era comunista, e da afirmação de que “os de cima não vão escutar um comunista”, Goreng demonstra a sua indignação contra as injustiças presenciadas naquele ambiente para Trimagasi, como mostra na seguinte SD:

“Os de cima comunista.”

sd 2: não

vão

escutar

um

Então, observa-se, que nesse discurso mostra a indignação desse sujeito que não está de acordo com administração da penitenciária, assim, relacionando à má gestão da prisão com o Aparelho de Estado que: compreende: o Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, as Prisões, etc., que constituem aquilo a que chamaremos a partir de agora o Aparelho Repressivo de Estado. Repressivo in-

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indica que o Aparelho de Estado em questão «funciona pela violência», - pelo menos no limite (porque a repressão, por exemplo administrativa, pode revestir formas não físicas). (ALTHUSSER, 1970, p. 43)

Portanto, a administração da penitenciária se torna um Aparelho Repressivo de Estado, pois, em nenhum momento do filme, os gestores oferecem alguma assistência, seja ela de saúde bucal, mental, higiênica, segurança, porque no meio da cela há um buraco aberto por onde passa a pedra flutuante, a qual é utilizada para servir os detentos, e que causou a morte de um detento que caiu do nível em que estava. Com isso, o que se observa na detenção são só punições, como por exemplo, os aprisionados só fazem uma refeição por dia, sendo que eles só podem comer quando está descendo o elevador flutuante, e após a descida, a mesa flutuante fica parada por um certo tempo para que os detentos se alimentam, e depois ela vai descendo para os níveis inferiores. E, se porventura um preso se esquecer ou ficar com algum alimento na cela, a punição é: aquecimento ou congelamento do ambiente em que estão os apenados. Então, observamos que a repressão da administração do poço se materializa também pelo psicológico, pois faz com que presos fiquem desesperados por comida, daí pode ser por isso que eles vasculham toda a refeição, alguns ficam com a me

mória debilitada, e outros ficam desnutridos por falta de comida, que resulta na má distribuição de alimentos. Durante o filme, surge a personagem Miharu, interpretada pela atriz espanhola Alexandra Masangkay. Ela desce junto com a comida ferida, pois os homens da prisão haviam-na violentado, e ela estava à procura da sua filha. Então, é a partir da procura da sua filha que começa o clímax do filme que se relaciona com os desperdícios de comida, e com outras situações tristes. Em consequência disso, Goreng presencia o seu colega de cela, Baharat, que é interpretado pelo ator espanhol Emilio Buale, que foi vítima de humilhações, de preconceitos raciais e religiosos por ser um sujeito-negro que tem fé em Deus, e teve a sua fé questionada por um dois sujeitosbrancos. Logo, Goreng convence o seu colega de cela Baharat, a descer pela plataforma para fazer a distribuição da comida. Assim, os dois começam a distribuir as porções de comidas para os demais detentos de forma pacífica, mas eles percebem que teriam que usar a mesma forma que a polícia age, que é por meio da repressão, utilizando palavras de baixo calão e de força bruta. Em seguida, eles chegam em um determinado nível, e lá estava um sujeito-negro-cadeirante que disse conforme a seguinte SD:

sd 3: “Não é suficiente o que vocês estão fazendo, pois vocês precisam convencer antes de vencer.”

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Então, nesse discurso, percebe-se que Goreng e Baharat precisariam convencer as pessoas a partir do diálogo, e não utilizar a força repressiva, a violência física, pois, assim, os detentos entenderiam a situação em que eles estariam passando. E, além disso, o sujeitonegro-cadeirante sugere aos rapazes que cuidassem a panna cotta para não ser devorada, pois ela era o "símbolo", ou seja, a sobremesa era uma espécie de respeito. Durante o percurso do filme, Miharu, que já vinha em decorrências de tantas torturas e violências sexuais, acaba falecendo por ser vítima de estupro e de esfaqueamento, mas Goreng decide continuar à procura de sua filha mesmo assim.

VOCÊ SABIA? “O poço” era na verdade uma peça teatral que nunca foi realizada. Assim, quando o diretor Galder Gaztelu-Urrutia recebeu o roteiro, ele ficou fascinado com o enredo e adaptou a peça teatral para o filme.

No decorrer do filme, Goreng e Baharat encontram a criança e descobrem que os níveis do poço vão além do que eles imaginariam, e que eles teriam que colocar a panna cotta fora para não morrerem de frio ou ca-

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lor, porém, eles não jogaram fora a sobremesa e não aconteceu nenhuma reação no ambiente da cela, assim, eles deram o doce para a criança, e então, eles, Goreng e Baharat descobriram que a criança era a mensagem... Mas e a análise do discurso "existem três classes de pessoas…”? Ela virá na seguinte SD:

sd 4:

“Existem três classes de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem.” Então, como mencionamos anteriormente, que iríamos analisar esse discurso proferido pelo sujeito Trimagasi, percebemos que, a partir dessa fala, o que está presente em “O Poço” é o que acontece e se materializa na nossa construção em sociedade. Quando o sujeito diz: “as de cima”, nós nos remetemos ao imaginário sobre os sujeitos que possuem grandes riquezas (dinheiro), no caso do filme, estão os administradores do poço, pois eles nem aparecem no filme. Já “as de baixo”, nós consideramos aqueles sujeitos que pertencem à classe média ou baixa, pois ambas as classes não detêm os mesmos poderes, os mesmos privilégios e riquezas dos sujeitos que possuem grandes riquezas, no caso do filme, nós relacionamos com a equipe do restaurante, e incluindo o chefe de cozinha, pois acima deles estão os administradores da prisão, pois não garantem e nem oferecem nenhuma dignidade e bem-estar para os aprisionados, e nem para equipe do restaurante, porque eles trabalham sob pressão. E “e as que caem”, nós relacio-

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namos com atual situação em que vivemos causada pela pandemia provocada pelo Covid-19, a qual estão as pessoas que não tenham água encanada nas suas casas, que não possuem uma rede de esgoto tratada, que tenham valas a céu aberto, que, infelizmente, mesmo com a pandemia, lockdown, tiveram que sair das suas casas para tentar conseguir ajuda de comida em casa de religiões, ongs, e até mesmo, irem juntar objetos recicláveis para vender. E no caso do poço, “as que caem” nós relacionamos com os detentos, pois eles vivem em celas em que não há banheiro fechado, colchões, cobertores, e principalmente, alimento suficiente para todos os presos.

IMAGEM ilustrativa

Fonte: Aller Editora (2020)

Então, diante de tudo que foi exposto, consideramos que “O Poço” além de fazer uma analogia aos poços artesianos, ele faz uma comparação com a nossa sociedade. E é certo que

ainda há fome no nosso país e no mundo lá fora, mas teve que acontecer uma pandemia mundial para velar e aproximar as pessoas que, sim, ainda há milhões de pessoas que vivem na miséria, sem ter pelo menos um pão para comer. Teve que acontecer uma pandemia mundial para mostrar para sociedade os percalços que as comunidades das favelas e regiões ribeirinhas passam sem terem um esgoto tratado ou que tenham a água misturada com esgoto. E, para nós, é difícil compararmos “as que caem” do filme com “as que caem” da nossa sociedade, pois sabemos que por trás da produção do filme existe a maquiagem, o cenário, os atores e atrizes, mas também sabemos que, na nossa realidade, ainda existem pessoas que passam necessidades. Então, consideramos que o ato de coletividade de Goreng no filme não é simplesmente um sinônimo de comunismo, mas sim, de ajudar o próximo, de se preocupar com o coletivo. Assim, nos remetendo às próximas eleições, devemos votar em políticos que se preocupem com os mais necessitados, para que não aconteça de você cair em discursos de “melhorias” do “vamos acabar com a bolsa escola/família”, e se dar conta que caíram em um engano de políticos que reproduzem discursos dominantes.

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Santa Catarina: Editorial Presença, 1980.

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FÉLIX, HARLEN. "O Poço" é uma contundente fábula sobre desigualdade social. Diário Da Região. Acesso em: 08 mai. 2021. Disponível em: https://www.diariodaregiao.com.br/_conteudo/2020/04/cultura/filmes_e_series/1189 975-o-poco-e-uma-contundente-fabula-sobre-desigualdade-social.html>. Acesso em: 06 jun. 2021. ORLANDI, ENI. Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos. 10° edição. Campinas-SP: Pontes, 2012.

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A violência Racial e policial retratada no curta metragem “Dois estranhos” Ana Gabriely dos Santos Dias Sempre ouvimos falar que a violência policial é algo presente em nossa sociedade, mas o que acontece quando essa violência é por causa da cor de uma pessoa e é sobre esse assunto que se trata o curta-metragem Dois estranhos da Netflix, lançado no dia 2 de abril de 2021, com direção de Travon Free e elenco: Joey Badass, Andrew Howard e Zaria Simone. O curta-metragem conta a história de Carter James, um homem negro que, após passar a noite na casa de Perri, se vê surpreendido por um policial

ao tentar voltar para casa. O policial Merk, um homem branco, aborda Carter logo após ele sair do prédio em que estava, perguntando se o que ele fumava era algo ilícito, o questionando por um maço de dinheiro que ele havia deixado cair no chão e perguntando em que ele trabalha. Como mostra a sequência discursiva a seguir:

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SD 1

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Policial Merk: Isso é cigarro? Carter: É, sim. Policial Merk: Não tem cheiro de cigarro. Carter: Com todo o respeito, seu senso olfativo não é problema meu. Policial Merk: É muito dinheiro para quem tem cigarro que não cheira a cigarro. Em que você trabalha? Carter: Design gráfico. Crio gibis. O que posso dizer? Sou requisitado. Logo depois, o policial mandou-o encostar na parede para uma revista policial, exercendo o abuso de autoridade, pois, não havia motivos para tal ato, mas Carter se mantém seguro de que não havia feito nada de errado.

SD 2 Policial Merk: Me faça um favor. Carter: Por que… Policial Merk: Largue a mochila e encoste na parede. Carter: O quê? Estou na boa, cara. Policial Merk: Eu não estou. Carter: Escute. Policial Merk: Mê de a mochila e encoste na parede. Carter: É minha. Policial Merk: Mê de a mochila e encoste na parede. Carter: Não fiz nada, irmão. Policial Merk: Me dê a mochila. Carter: Por quê? Policial Merk: Muito bem, valentão. Mãos para trás. Carter: Mas que merda! Me larga! Personagem secundário: Solte-o! Ele não fez nada!

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Podemos ver que há uma terceira pessoa nessa cena, uma senhora que, ao ver o desenrolar da discussão deles, começa a gravar, com um aparelho celular, e a falar que Carter não havia feito nada de errado para tal atitude por parte do policial. E Carter, ao resistir, é jogado no chão pelo policial Merk e outros dois policiais que o seguram, onde o Merk põe o braço em volta de seu pescoço, e assim o sufoca. Ao morrer naquela situação, Carter se vê de volta em seu corpo ao acordar novamente naquela mesma manhã, inicia-se, assim, um loop temporal, em que ele tentará ir para casa sem ser morto pelo policial. Quando Carter morre sufocado, automaticamente, nos lembramos de George Floyd, que morreu exatamente do mesmo jeito no dia 25 de maio de 2020, vítima dessa mesma violência. E agora um ano depois nos é apresentado esse curta que não deixa de ser uma homenagem e um ato de resistência. Assim como lembramos de George Floyd, podemos nos lembrar também de Eric Garner que morreu do mesmo jeito em 2014, quando um policial branco é visto agarrando seu pescoço, enquanto eles lutavam no chão, as falas de Eric e George antes de morrer foram as mesmas “eu não consigo respirar”. O que o personagem Carter tem em comum com George e Eric é que eles eram homens negros e foram mortos por policiais brancos, por aqueles que deviam protegêlos.

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Segundo o site da BBC “De acordo com o banco de dados de mortes pela polícia do jornal americano The Washington Post, embora os afroamericanos representam menos de 14% da população, eles foram quase 24% vítimas das mais de 6 mil mortes causadas pela polícia desde 2015.” E quando vemos esses dados nós perguntamos: o que leva essa taxa ser tão alta? Podemos dizer que isso é um crime de ódio, pelo qual os policiais veem que pessoas negras são mais perigosas só por causa da cor de sua pele. A primeira reação é empunhar a arma antes de perguntar qualquer coisa, e isso é retratado em filmes, séries, músicas e livros, pois as pessoas buscam a justiça que tanto lhes é negada.

de casa para procurar a boneca que a filha havia perdido, perto de sua casa, e um policial branco o autua, pensando que poderia ser um ladrão, pois era um bairro de classe alta. Terry não estava com identificação. O livro “O ódio que você semeia” de Angie Thomas, conta a história de Starr, uma menina de 16 anos que, ao voltar para casa de carona com seu amigo, tem o carro parado por um policial, e vê seu amigo sendo morto pela autoridade.

No episódio dez da décima quarta temporada de Greys Anatomy, podemos ver um menino negro que, ao esquecer a chave de casa, tenta entrar pela janela e acaba sendo baleado por um policial, com a justificativa que se tratava de um bandido, pois ele tinha uma aparência “diferente” das pessoas que viviam naquele bairro, nesse caso, não houve uma abordagem antes do ato dele atirar, e dois personagens dessa serie decidem conversar com o seu filho sobre como agir perto de um policial, por ele ser negro, deve tomar todo cuidado para poder voltar para casa. No episódio Dezesseis da quarta temporada de Brooklyn Nine-Nine, o policial Terry sai

É como se existissem regras especiais para pessoas negras: você deve levantar as mãos e ser educado mesmo quando eles são violentos; você deve concordar com tudo o que eles disserem mesmo quando for mentira; você não deve andar em bairros de classe alta porque pela sua cor você não tem condições de viver ali e deve estar tentando roubar alguém; você tem que sentir medo quando sair de casa porque as chances de um policial lhe parar por nada são maiores.

Poderíamos continuar citando se for necessário, mas esses exemplos já são o suficiente para nos mostrar como a arte fílmica retrata a sociedade, se ao olhar para uma pessoa negra eles imaginam se é uma pessoa boa ou se eles não conseguem enxergar mais nada além da cor de sua pele.

Você Sabia? O curta-metragem foi ganhador do Oscar na categoria de Melhor curtametragem em Live action.

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Por isso questionamos, quantas lutas ainda serão necessárias, quantas mortes ainda podemos esperar, a partir desse sistema que é falho, não esquecemos a história, mas enquanto nos lembramos de tanta dor que foi sofrida, eles lembram das diferenças que eram impostas. Não podemos apagar o que já foi vivido, todos os crimes cometidos, toda a violência imposta, mas podemos mudar o futuro, prezar pela liberdade, igualdade e respeito. No documentário “Eu não sou seu negro” vemos a segregação racial nos EUA, e como o lugar do homem negro dentro da sociedade era onde o homem branco sempre ficasse superior. Onde tudo era separado, bancos, entradas, escolas, entre outros. E quando alguém “invadia esse espaço” dos brancos, era insultado e maltratado, até que desistisse de tentar ser tratado com o respeito merecido. Não existem mais esse tipo de diferenças, elas nunca deveriam ter existido. E a violência policial racial não é diferente no Brasil, segundo a CUT (Central única dos trabalhadores), “A mortalidade de jovens negros no Brasil é superior a de países em guerra civil no mundo. São 63 mil jovens brasileiros mortos por ano, sendo mais de 70% são negros [...] Agatha Vitoria Sales tinha 8 anos, Eduardo de Jesus, 10 anos, João Pedro Matos, 14 anos e Guilherme Silva Guedes, 15 anos. Todos eram negros. Todos moravam em comunidades pobres.

Todos foram mortos pela polícia brasileira”. E esse número aumenta a cada ano, quanto mais é mostrado que precisamos de igualdade, mais as pessoas fecham os olhos. O curta apresenta várias cenas onde Carter morre de maneiras diferentes, todas essas cenas são representações de mortes que ocorreram com pessoas reais, e cada morte representa o sofrimento, o medo e a vontade de que o mundo em que vivemos fosse melhor. E ao analisar a primeira morte de Carter até a última, notamos as diferentes abordagens que Carter tenta sair do prédio sem ser morto, nas primeiras ele não sabe porque fica acontecendo isso, ele tenta de novo e acontece a mesma situação só que de uma maneira diferente, então ele muda e decidi não sair do prédio, mas então o apartamento que ele está é invadido e ele acaba morto novamente. Ele corre, foge, tenta se esconder mas nada adianta, então sem saída e como última alternativa ele decide ir conversar com o policial, explica o que tá acontecendo, ele prova que está falando a verdade prevendo pequenas coisas que acontecem, e então pede para o policial ajudá-lo a voltar para casa, porque é só isso que ele deseja, chegar em segurança em casa e poder alimentar o seu cachorro. Como mostra o diálogo a seguir:

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SD 3

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Carter: Policial Merk! Policial Merk: O que foi? Carter: Olhe, não sei o que está rolando. Talvez um déjà vu de racismo, mas estamos presos num loop em que nos encontramos e você sempre me mata. Policial Merk: Sei que está fumando… Carter: Sim, acha que meu cigarro não é cigarro. Já passamos por isso. Policial Merk: Pra trás. Me mostre a identidade. Deixe as mãos à mostra. Carter: Tem cara de armadilha, mas tudo bem. É aqui que abro minha mochila. Você vê o maço de dinheiro e diz: “É muito dinheiro para quem tem cigarro que não cheira a cigarro.” Carter: Você me revista ilegalmente. Eu resisto. Nós lutamos, e eu morro. Policial Merk: Chega de truques. Me dê a mochila, encoste na parede. Carter: Cara, vou confundir sua cabeça agora. Está vendo a esquina? O casal fofo se beija. A garota tira uma selfie. O garoto no skate ali, vai ser dar mal em três, dois… Policial Merk: Está me provocando? Carter: Não. Policial Merk: Se eu atirar em você agora, vamos repetir tudo isso? Carter: É cara. Só quero ir pra casa ver meu cachorro. O policial Merk deixa ele ir, mas então outro policial atira nele, então ele decide novamente ir conversar com o policial Merk e pedir para ele levá-lo para casa. O policial Merk decide ajudá-lo, ele dá uma carona para Carter, e, no caminho, eles conversam sobre suas opiniões diferentes em relação ao sistema e como

bairros onde negros moram são o alvo da policia. E parece que eles se dão bem até, apesar das diferenças. E então chega o momento que estamos ansiosos para ver, o policial Merk para o carro, Carter desce, podemos ver que o cachorro sente que o dono está perto, eles se despedem e Carter caminha enquanto o oficial Merk para na frente do carro e observa. E sentimos a paz por um segundo até que o policial Merk começa a bater palmas, demora para entender porque ele está fazendo isso, mas quando entendemos, gostaríamos que não fosse verdade. Tudo isso não passou de atuação, o policial Merk lembra de tudo, ele sabe que mata Carter todas as vezes, ele provavelmente espera ansiosamente por esse momento, pois ele quer isso. E quando ele saca a arma novamente, percebemos que não há saída.

SD 4 Policial Merk: Bravo, jovem Carter. Bravo! Parabéns! Carter: O quê? Policial Merk: Tenho de admitir que foi divertido, o seu jeito charmoso tentando despertar minha bondade, meu lado humano, foi um primor. Tem coragem de sobra, garoto. Só não tem tempo. Às vezes, você corre, às vezes, você luta quando alguém o estrangula com força, mas desta vez, amigo… Foi uma atuação de primeira. A melhor de todas. Foi minha predileta. A melhor de todas!

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Carter acorda novamente naquela manhã, mas agora com a consciência que o policial Merk tem ódio dele por causa de sua cor, isso tudo é uma perseguição doentia, o preconceito é a doença da sociedade. Ele não sabe porque está acontecendo isso com ele, a única certeza que ele tem é que vai fazer de tudo para ir pra casa. E assim acaba o curtametragem, com a certeza de que Carter não vai parar de lutar, não importando quantas vezes ele tenha que viver a mesma situação. Algo que chama a atenção ao final do curta metragem é a lista de nomes de afroamericanos, mortos por policiais indicando o que a pessoa fazia antes de morrer. Percebemos que havia gente que estava dentro de casa, atendendo a porta ou sentado no sofá e isso nos faz refletir, que nem mesmo dentro de casa essas pessoas estão seguras, o lugar onde deveríamos nos sentir seguros, e não é mais assim. Quantas listas como essas existem, quantas pessoas estavam na mesa de jantar ou brincando na frente da casa, quando policiais atiraram. O que poderemos ensinar para os nossos filhos ou netos, sobre o nosso passado e como a geração deles terá que consertar os erros cometidos. A partir dessa análise vemos que embora estejamos no século XXI as pessoas continuam com esses discursos de ódio contra tudo aquilo que elas acham que não devem aceitar. E discursos como este são mais frequentes do que podemos tolerar.

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Isso é uma pratica tão recorrente, e frases como essas sempre existem: Um policial branco matou um homem negro “o que esse homem estava fazendo, o policial estava só fazendo o seu trabalho”; Vai haver o live-action da pequena sereia e escalaram uma atriz negra “estão estragando com a minha infancia”. É por isso que escrever esse texto se torna tão importante, esses tipos de comentários não deixam a sociedade evoluir, temos dois assuntos diferentes, mas o que mais vai ser falado será o que uma atriz negra não pode ser a pequena sereia. A existência do curta fez com que muitas pessoas se identificassem com essa realidade. Bastou um curta metragem para fazer muita gente chorar, para fazer a raiva, a tristeza e a incerteza de dias melhores virem à tona. Não esqueceremos de como Carter luta pela vida, ele é a representação da necessidade de justiça, igualdade, respeito e liberdade. Liberdade desse sistema opressor que está apenas de um lado. Assim como não esqueceremos de todos os nomes que lutaram e lutam pela igualdade, e aqueles que nem a oportunidade de lutar tiveram. O movimento “Vidas negras importam” teve início no ano de 2013, fundado por três mulheres negras: Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi. Vai chegar o dia em que movimentos como esses não vão mais ser necessários, pois não haverá mais essa desigualdade, e é isso que devemos esperar do futuro.

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Referências BBC NEWS, site. Quatro fatos que ajudam a explicar a tensão entre negros americanos e a policia. Brasil 2021. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56737516 >. Acesso em 06/06/2021 CUT BRASIL, site. Violência policial contra jovens negros escancara o racismo estrutural no Brasil. Brasil 2020. Disponível em: <https://www.cut.org.br/noticias/violencia-policial-contra-jovens-negrosescancara-o-racismo-estrutural-no-brasil-f507>. Acesso em 06/06/2021 YOUTUBE, site. Eu não sou seu negro - Documentário completo. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=vS4xmvJRXPQ>. Acesso em 06/06/2021.

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A RELAÇÃO DO PRECONCEITO RACIAL ABORDADO NA LITERATURA DO SÉCULO XIX E NA TELENOVELA DO SÉCULO XXI Luciana Ribeiro Teixeira Inevitavelmente, no contexto atual no qual vivemos ainda perdura o preconceito racial. Há séculos o racismo se apresenta presente nas atitudes e comportamentos dos sujeitos e isso ainda hoje é refletido nas ações dos sujeitos. Nos telejornais, assim como nas mídias digitais e também nas telenovelas o tema racismo, frequentemente, é abordado, mas não somente nesses meios de comunicações assistimos e refletimos sobre atitudes humanas que costumam explicitar questões relacionadas ao racismo. A literatura é um meio onde o racismo também é bastante abordado. Nos anos de 1881, foi publicado o livro “O Mulato” de Aluísio de Azevedo, literatura que é bastante debatida nos

tempos atuais com jovens que frequentam o ensino médio. O tema principal dessa obra é o racismo que era bastante presente no século XIX. Na verdade o preconceito racial é um tema que constitui-se historicamente e ideologicamente. Há uma luta constante dos sujeitos que sofrem tais preconceitos e essas lutas nada mais são atitudes de resistência que têm como intuito diminuir o preconceito racial que sujeitos negros ainda, infelizmente, sofrem. Em “O Mulato” a sociedade da época claramente transparecia nas atitudes e no modo de pensar o racismo. Os comportamentos preconceituosos e os discursos racistas apresenta-se presente desde o início da obra. Aluísio

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de Azevedo, nada mais quis debater no enredo de sua obra o modo de pensar dos sujeitos da sociedade do século XIX, porém as atitudes e os pensamentos preconceituosos que ocorriam nesse século, ainda permeiam o período contemporâneo.

VOCÊ SABIA? Na obra “O Mulato”, os artistas pretendiam dar visibilidade a assuntos tabus, especialmente urbanos, trazendo para o debate importantes questões sociais que eram silenciadas.

Os termos utilizados na obra publicada em 1881, que relacionavam os negros, eram adjetivos bastante preconceituosos, a forma como os negros eram tratados e chamados refletiam as atitudes da época. A obra “O Mulato” que trata como tema principal o racismo refletido, naquela época, trata da história de amor proibida do personagem Raimundo “O Mulato”, filho de um fazendeiro português como uma escrava, e Ana Rosa, filha de pais brancos. Raimundo desde a sua infância sofria preconceitos relacionados a sua cor não só na sua cidade natal esses preconceitos eram refletidos, mas também na cidade de Lisboa onde o menino estudou e se preparou para sua vida adulta. Na escola Raimundo era chamado por apelidos preconcei-

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tuosos, porém essas atitudes não só foram refletidas na sua infância, também refletiram a sua vida adulta. Aluísio de Azevedo em sua obra quis trazer em sua abordagem uma crítica da sociedade da época que ainda permeia a sociedade na qual vivemos. É claro que o preconceito refletido em séculos passados eram mais expostos se tornando totalmente perspectível diante dos sujeitos que viviam naquela sociedade, mas mesmo assim o preconceito ainda continua bastante arraigado na sociedade na qual vivemos. O enredo da trama de Aluísio de Azevedo se relaciona com uma telenovela atual que foi há pouco tempo exibida no canal da globo, novela chamada “Do outro lado do paraíso”, a telenovela exibida no século XXI aborda no decorrer de vários episódios questões sobre o racismo em que os pais, mais evidentemente a mãe, do protagonista branco não aceitava a relação amorosa com a protagonista negra, está no início da novela interpretava a empregada doméstica dos pais do seu noivo. A telenovela “Do outro lado do paraíso”, além de tratar questões de discriminação racistas abordou atitudes e discursos de resistência, na qual a protagonista negra conquistou no decorrer da trama a sua Ascenção social onde através dos estudos conquistou o seu cargo de juíza. Os discursos e as atitudes proferidas na telenovela se relacionam bastante com a obra “O Mulato”, obra que foi desenvolvida numa época distinta, porém onde o contexto social ideoló-

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gico e histórico perdura até os dias de hoje. Com isso, o tema racismo é bastante debatido na forma literária e também em filmes, telenovelas e telejornais. Mesmo esse tema sempre estar presente como forma de crítica social dos sujeitos que ainda carregam uma ideologia que apresentam traços

VOCÊ SABIA?

preconceituosos de uma sociedade constituída pela história o preconceito racial é um tema difícil de se extinguir da sociedade devido a sujeitos que carregam em seu modo de pensar e agir formas que transparecem atitudes de preconceitos.

IMAGEM ilustrativa

Fonte: Purebreak (2018)

referências AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Martins, 1964.

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“Quem não luta tá morto”: A arte como forma de resistência do povo nordestino na luta contra a desigualdade social Daniele Pio Falcão Ao ouvir pela primeira vez a música “Meu primeiro amor”, do álbum “O Céu é Velho Há Muito Tempo”, do ano de 2019, que possui um clipe disponível no YouTube, composta e interpretada por Lucas Santtana, conta com a participação da cantora Duda Beat, e que será analisada nessa escrita, talvez não possamos perceber todos os contextos que cabem nela e nos fazem no mínimo refletir sobre as condições de vida em cada canto do nosso país.

Fonte: Arte da capa do single “Meu primeiro amor”, feita por Bruno Biano

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Uma música que nos conta através de uma história de amor, as dificuldades econômicas, sociais e outras mazelas que um povo inteiro sofre, fala da dureza da vida do nordestino, e dos inúmeros momentos em que é preciso resistir para sobreviver. Inicialmente, com uma letra que traz ou traria apenas a história de um romance entre um casal de adolescentes apaixonados, a parceria entre os cantores e compositores nordestinos Lucas Santtana e Duda Beat, vai além, e nos mostra através da crítica social, como precisamos ainda (e muito), romper barreiras, para enxergar o óbvio. A música, assim como tantas outras maneiras de expressão através da arte, são formas muito importantes e bonitas de mostrar a nossa luta. E nesse caso, nos mostra como o amor também pode nos acompanhar e mover essa luta! Através de uma letra romântica e do ritmo cadenciado do forró nordestino, a música conta a história de um casal. A moça pertence à classe média, moradora de São Paulo, o rapaz é nordestino, pobre, que parte para o sudeste, em busca do sonho de mudar de vida migrando assim para a cidade grande. Eles se apaixonam, e o que deveria ser apenas uma diferença de região e classe social entre eles, se torna um romper de barreiras sociais, políticas e culturais também, que, através de muita resistência, atravessa todo o preconceito que a desigualdade social gera no nosso país.

Cada canto do nosso país tem as suas características, e é notório que elas são muitas, e muito diversas entre si. Cada região tem a sua cultura, as suas tradições, os seus costumes, que nos acompanham há muito tempo, e toda essa diversidade incrível nos chegou de muitas formas, porém, não temos somente essas diferenças culturais. Como bem sabemos, existe uma disparidade social, política, econômica e cultural bem significativa entre os estados e cidades do Brasil. Os estados do norte e nordeste, por exemplo, principalmente do nordeste, dos quais vou tratar aqui, apresentam uma diferença muito grande nesses quesitos em relação aos estados do sul e sudeste, principalmente se tratando das questões sociais e econômicas, o que acaba levando muitas pessoas a migrarem em busca de melhores condições, deixando seu estado, sua cidade, muitas vezes, deixando também a sua família com esperanças de um dia proporcionar uma vida melhor para os seus também, vindo tentar a vida no sul e no sudeste principalmente. Historicamente, sabemos o quanto o povo nordestino sofre, pelas condições sociais e econômicas em que vive, somos um país cruelmente desigual principalmente se tratando das diferenças socioeconômicas entre as cinco regiões, o nordeste notadamente é uma das regiões mais pobres do país, enquanto o sudeste concentra maior parte da riqueza.

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No ano de 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir de um estudo, divulgou dados sobre a concentração de renda no país, apontando que a parte mais rica da população correspondente a 1%, possuía rendimentos mensais 34 vezes maiores do que a metade mais pobre do Brasil. Em 2020, o site G1 Economia aponta mais alguns dados levantados pelo IBGE nos anos de 2018 e 2019, mostrando que enquanto a desigualdade econômica aumentou no nordeste, diminuiu nas outras regiões. Em novembro do ano de 2020, o Fundo Estadual de Combate à Pobreza (FECOP) juntamente com a Secretaria do Planejamento e Gestão do Governo do Estado do Ceará trouxe ainda outros dados divulgados pelo IBGE, apontando que na região nordeste está concentrada quase metade da pobreza do país inteiro. Esse mesmo estudo feito pelo IBGE ainda traz outros índices que mostram a região Sudeste como a que mais contribui com a desigualdade no Brasil, visto que, essa região possui uma vasta densidade populacional e concentração da maior parte da renda nacional. Além disso, dados concedidos pelo Ministério da Cidadania mostram que, em 2020, o

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nordeste foi a região menos favorecida quanto à concessão de novos cadastros para o Programa Bolsa Família, recebendo apenas 3% de novos beneficiários, enquanto os estados do sul e sudeste receberam 75%. O nordeste concentra 36,8% das famílias que apresentam situação de pobreza ou extrema pobreza e estão na lista de espera para cadastro no programa. São informações alarmantes, tristes e infelizmente só nos mostram a dura realidade de boa parte da nossa população. Através da música analisada aqui, composta e interpretada por nordestinos, podemos ver o quanto esse povo resiste. Euclides da Cunha em sua obra literária “Os Sertões”, já disse: “o sertanejo, antes de tudo, é um forte”, e é, pois apesar de todos os percalços segue firme em sua luta, e a arte lindamente nos serve como discurso de resistência, e de resiliência também, eu diria. A música conta a história de um casal de adolescentes apaixonados que se torna um casal que luta, que resiste e enfrenta todas as adversidades.

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Vamos analisar essa música dividida em sequências discursivas (SDs), logo na primeira estrofe, temos a apresentação da menina:

SD 1 "Nasci menina na cidade grande A maior da América do Sul Comia hambúrguer, via filme gringo Falava inglês e ouvia Blur Um belo dia já adolescente No Remelexo conheci forró E desde então é coração saudade." Esse trecho já nos mostra que ela pertence à classe média, que possui boas condições de vida tanto financeiras como sociais, estuda, mora em um estado e cidade favorecidos economicamente. São Paulo é a maior cidade da América do Sul, inclusive é a maior da América Latina, possui uma economia bem distribuída, e apesar de ainda apresentar fome e pobreza, já oferece condições muito melhores para as pessoas que lá vivem. Também nos mostra que ela foi como espectadora de um show de forró. Após o refrão temos a apresentação do rapaz:

SD 2

A partir dessa sequência podemos ver a condição de vida que o personagem da música tinha, as condições econômicas e sociais quando fala que não tinha água e nem comida, podemos entender as dificuldades que enfrentava, e os motivos pelos quais foi tentar a vida na cidade grande e escolheu a capital paulista. Percebemos também, o quanto o governo de Lula, um político de origem nordestina, investiu em programas sociais, gerando oportunidades para melhorar as condições econômicas do nordeste. Esse trecho nos mostra que ele foi fazer um show de forró, enquanto a menina foi nesse mesmo show para se divertir, para dançar, o rapaz estava lá trabalhando, a música dele o sustentava na cidade grande, e durante essa história ficam cada vez mais nítidas as diferenças sociais e econômicas existentes entre os dois. O que não impediu o romance, nem mesmo vendo todas as barreiras impostas pelo contexto social distinto em que vivem e de onde vem, e o que enfrentariam dali pra frente. Ela se une a ele nessa luta, que agora também é dela, como nos fala o título desse artigo que veio de um grafite de um muro em uma travessa da rua Martins Fontes, no centro de São Paulo, e aparece no clipe da música.

"Nasci menino longe da cidade No semiárido lá do sertão Não tinha água tão pouco comida Até que Lula veio e deu a mão Um belo dia já adolescente No Remelexo fui fazer forró E conheci uma galeguinha linda."

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Para além das questões econômicas e sociais que há muito permeiam a nossa sociedade em torno da realidade do povo nordestino, temos um estereótipo formado com relação à personalidade e à identidade desse povo, dessas pessoas. E tudo isso muitas vezes se mostra para nós atrelado a nossa realidade. (FOTO: Flávio Paes)

O grafite, um outro tipo de arte e que também atua como forma de resistência, foi desenvolvido para a galeria do projeto Ocupação 9 de Julho, organizada pelo Movimento dos SemTeto do Centro (MSTC), e nos mostra que todos podemos e devemos lutar por alguma causa. O trecho a seguir reforça a ideia de que ela abraça a luta dele e juntos eles resistem:

SD 3 "Será que pode um nordestino pobre E uma menina classe média, sim Juntar os trapos, romper as barreiras De um país que ainda pensa assim Hoje moramos na cidade grande Mas nossa casa é do interior E nossos filhos cada vez mais lindos. De início houve um pensamento deles em resistir à união, justamente por serem de mundos diferentes, e talvez isso fosse um impedimento muito grande, mas o amor venceu, eles perceberam que são mais fortes para romper as barreiras, e juntos eles também resistem!

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Apesar do nordeste ter sido há muito uma região com uma potência econômica muito grande, com o passar do tempo e de algumas imposições sobre a economia da região, isso foi mudando e houve um declínio e um grande empobrecimento. Quando um povo é histórica e socialmente considerado preguiçoso, que não apresenta vontade nem aptidão para trabalhar e lutar, que apresenta capacidades intelectuais limitadas, como o nordestino é (infelizmente) taxado, temos muitas consequências negativas. Sabemos do preconceito oriundo de outras regiões, que o nordestino sofre, e o quanto é atingido com discursos de ódio vindos de todos os lados, proferidos por tantas pessoas, que sequer conhecem sua história, sua cultura e sua gente. Nos últimos anos, com o crescimento do uso de redes sociais percebemos mais ainda essa disseminação de ódio gratuito, quando nessas redes muitas pessoas escondidas atrás de suas telas atacam com duras palavras, sem pensar em quem será atingido nem aonde essas mensagens cruéis irão chegar.

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Se tem registro de muitos casos de xenofobia, de marcas famosas produzindo propagandas ofensivas depreciando a imagem do nordestino, pessoas julgadas e condenadas após se pronunciarem de forma cruelmente preconceituosa contra nordestinos em períodos pós-eleições, em que venceu o candidato contrário à política assistencialista de Lula. A marca Renault, em um de seus comerciais, se referiu aos nordestinos como preguiçosos, foi criticada na internet e retirou o vídeo do ar. Em 2014 após o resultado das eleições, um jovem pernambucano recebeu ataques em uma rede social contendo mensagens preconceituosas contra nordestinos e compartilhou os ataques publicamente, recebendo pedidos de desculpas dos agressores logo após. Em São Paulo, uma notícia do G1 mostra que, através de rede social, um homem chamou nordestinos de burros e preguiçosos, com comentários em uma postagem onde o nordeste foi exaltado, os comentários ocorreram também após o resultado das urnas, no ano de 2018. Nesse caso, o autor do crime e as agressões cometidas por ele foram investigadas e denunciadas pelo Ministério Público Federal (MPF), o homem deve responder por crime previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/89.

Além da depreciação moral dessas pessoas, a economia sofre com essa desvalorização, eles acabam sendo considerados pouco importantes, e os estados que a região nordeste abrange, recebem muito pouca assistência, e muito pouco respeito por parte da população em geral e de alguns governantes também, a região acaba sofrendo bastante com toda essa negligência. Através da história que é contada na música, percebemos que a realidade do rapaz é realmente essa, ele veio para um estado econômica e socialmente mais desenvolvido em busca de uma vida melhor, pois, na sua terra natal, não encontrava suporte necessário para se manter, recursos básicos para que uma pessoa tenha condições para viver dignamente. Uma realidade bem diferente da moça que ele conhece, natural de São Paulo, possui uma estabilidade financeira, é de classe média, conhece e tem acesso a muitas coisas das quais ele não teve, ela pertence a uma posição social que propicia isso a ela, o que explica também a migração do povo nordestino para o sudeste na esperança de melhores condições de vida. Porém, fica claro que existe uma disparidade social, cultural e econômica entre eles, entre suas classes sociais, e ele ainda

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precisa resistir. Aliás, muitas vezes mesmo na cidade grande, o nordestino ainda precisa lutar em busca de mínimas condições para sobreviver, em busca de encontrar e firmar o seu lugar na sociedade e no mundo, um povo tão rico de cultura, de tradições, que tanto tem a nos ensinar, mas que é tão deslegitimado e desvalorizado. A luta contra a desigualdade social pode ser e é de todos nós também. E através da música e das artes em geral, não apenas o personagem analisado aqui, o rapaz vindo lá do semiárido do sertão, mas a população do nordeste e nós lutamos e resistimos. O povo nordestino e pobre resiste!

Você Sabia?

A Literatura de Cordel, além de eternizar a cultura nordestina, atua como forma de resistência desse povo através da arte e para manter viva a sua cultura. Vale a pena conferir e saber mais sobre essa arte tão bonita e forte! Além disso, vale muito a pena também, conhecer mais sobre outros tipo de arte, como as danças típicas do nordeste, que contam a história dos nordestinos e também é uma forma linda de resistir através da arte, e pela conservação dessas artes, alguns desses ritmos são: xaxado, boibumbá, frevo, forró e torém.

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Referências Portal do Governo. Região Nordeste possui quase metade de toda a pobreza no Brasil, segundo IBGE. Brasil, 2020. Disponível em: https://www.fecop.seplag.ce.gov.br/2020/11/20/regiao-nordeste-possui-quasemetade-de-toda-a-pobreza-no-brasil-segundo-ibge/ Acesso em 10 de junho de 2021. G1 ECONÔMIA, site. Desigualdade de renda cresce no Nordeste e diminui nas demais regiões, aponta IBGE. Brasil, 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/06/desigualdade-de-rendacresce-no-nordeste-e-diminui-nas-demais-regioes-aponta-ibge.ghtml Acesso em 10 de junho de 2021. UOL ECONÔMIA, site. Nordeste fica só com 3% das concessões do Bolsa Família. Brasil, 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/03/05/nordestefica-so-com-3-das-concessoes-do-bolsa-familia.htm Acesso em 11 de junho de 2021. G1 TECNOLOGIA E GAMES, site. Jovem denuncia preconceito contra o Nordeste na web e recebe desculpas. Brasil, 2014. Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2014/10/jovem-denuncia-preconceitocontra-o-nordeste-na-web-e-recebe-desculpas.html Acesso em 12 de junho de 2021. JC, jornal digital. Renault é acusada de preconceito contra nordestinos em comercial. Brasil, 2017. Disponível em: https://jc.ne10.uol.com.br/canal/mundo/brasil/noticia/2017/08/30/renault-eacusada-de-preconceito-contra-nordestinos-em-comercial-304385.php Acesso em 12 de junho de 2021. G1 BARIRI E MARÍLIA, site. Morador de Bariri é alvo de ação do MPF por xenofobia após chamar nordestinos de ‘burros’ e ‘preguiçosos’. Brasil, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/baurumarilia/noticia/2021/06/02/morador-de-bariri-e-alvo-de-acao-do-mpf-porxenofobia-apos-chamar-nordestinos-de-burros-e-preguicosos.ghtml Acesso em 12 de junho de 2021. MAGNÓLIA COSTA, blog. O que não é floresta é prisão política. Brasil, 2019. Disponível em: https://magnoliacosta.art/blog/2019/11/1/o-que-nao-e-florestae-prisao-politica Acesso em 15 de junho de 2021.

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Um corpo não recomendado. Por quem? Para quem? As marcas da resistência e denúncia à violência contra pessoas LGBTQIA+ em canção de Caio Prado Taiza da Hora Fonseca

A arte foi e tem sido uma das grandes ferramentas de resistência contra as ideologias dominantes que buscam enjaular sujeitos de forma binária para manter a hegemonia da ideologia dominante e o status quo da sociedade. E pensando como Pêcheux (1988, p. 304), partindo do princípio de que não há dominação sem resistência, buscarei, neste texto, analisar a canção ‘’Não recomendado’’, do cantor, performer e compositor Caio Prado e refletir, através de sua composição, quais são as marcas de resistência e denúncia à violência contra pessoas LGBTQIA+ que se materializam na produção de seu discurso através da arte/música composta pelo artista.

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Nesse sentido, é importante levarmos em consideração o contexto sóciohistórico para entendermos que dominação é essa e como essa música consegue, através do discurso, produzir efeitos de sentido que resistem e fazem oposição à formações ideológicas dominantes. Em 2020, o jornal Carta Capital divulgou uma pesquisa inédita que revela que, a cada hora, no Brasil, um LGBTQIA+ é agredido. A pesquisa em questão foi realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), secretarias de Atenção Primária em Saúde e de Vigilância em Saúde do Ministério da

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Saúde, Instituto Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os pesquisadores coletaram dados do SUS, através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e concluíram que, entre os anos de 2015 a 2017, 24.564 notificações de violências contra sujeitos LGBTQIA+ foram registradas. Em uma média de 22 notificações por dia, nesse sentido, quase uma notificação a cada hora. Esse número pode ser considerado ainda maior se pensarmos na subnotificação de casos e de pessoas que não procuram atendimentos do Sistema Único de Saúde, que não registram ocorrência da violência ou que não declaram sua orientação sexual nos documentos. E ainda em 2020, pelo 12º ano consecutivo, o Brasil foi considerado o líder no ranking mundial de assassinatos de pessoas transsexuais. Nos últimos anos, diversos avanços ocorreram nas mudanças dentro da legislação de leis para a proteção de pessoas LGBT’s, como em 2019 com o reconhecimento da discriminação contra pessoas LGBTQIA+ enquanto crime, previsto na Lei Nº 7.716/1989 (Lei do Racismo) ou a suspensão das restrições de doação de sangue por homossexuais, em maio de 2020, tendo o STF declarado enquanto inconstitucional as normas do Ministério da Saúde e da Anvisa que exigia abstinência sexual de um ano para doações do grupo social.

Entretanto, apesar dos avanços, como a conquista de alguns direitos com o registro do nome social e casamento entre pessoas do mesmo sexo, a violência LGBTfóbica ainda é uma realidade massacrante no país. Com a ascensão do discurso conservador, na última década no país, podemos observar a crescente onda dos discursos de ódio que fere não só os Direitos Humanos, mas também grupos sociais específicos de maneira direta e indireta. Tomemos como exemplo a relação da Igreja com a Política Brasileira, mesmo que Estado nos garanta uma relação baseada na laicidade, na prática não ocorre de tal forma. Em matéria divulgada pela da Folha de São Paulo, a Bancada Evangélica e religiosa cresceu 63% desde as eleições de 2018 na Câmara de Deputados, o que pode nos apontar que essa atuação funciona enquanto um Aparelho Ideológico de Estado (ALTHUSSER, 1992), monitorando não só comportamentos sociais, mas também como a legislação funciona internamente, visto que, são eles quem as aprovam. Uma atuação que pode exemplificar bem essa questão é a da Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, a pastora evangélica que comanda importante pasta do governo de Jair Bolsonaro, em 2020, deixou de investir no orçamento destinado a políticas públicas para pessoas LGBTQIA+, mesmo que os marcadores

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sociais indiquem que essas pessoas se encontram em vulnerabilidade social, à margem, submetidos a diversas violências e violações diárias. Esse discurso conservador geralmente traz em suas formações discursivas ideias que entoam discursos contra a autonomia das mulheres, contra o aborto, contra o casamento de pessoas do mesmo gênero e negam outras identidades que fujam do binarismo heterocisnormativo da formação ideológica reacionária. Isto posto, nesse contexto, surge a necessidade inerente da existência de um discurso que faça o contraponto, que denuncie esses aspectos sociais que marginalizam grupos por sua identidade, por sua sexualidade e que negam sua existência. E é por isso que olharemos para o ‘’efeito de sentido’’ (PÊCHEUX, 2009) produzido pela composição ‘’Não recomendado’’ de Caio Prado, para identificar nessa produção quais são as marcas dessa materialidade que produzem tanto o efeito de resistência frente a essas opressões, bem como, as denunciam. Para isso, olharemos para canção em quatro sequências discursivas (SDs), segue:

SD 1 Canção: Caio Prado - Não recomendado Uma foto, uma foto Estampada numa grande avenida Uma foto, uma foto Publicada no jornal pela manhã Uma foto, uma foto Na denúncia de perigo na televisão Já no início da canção Caio Prado nos chama atenção para como os corpos LGBTQIA+ são retratados pelos veículos midiáticos, que também influenciam na hegemonia do discurso conservador, geralmente retratando tal grupo social de forma sensacionalista, caricata, criando arquétipos marginalizados, com intuito de alertar a sociedade sobre os possíveis perigos aos quais serão expostos caso entrem em contato com pessoas que vivem e discutem questões de gênero e sexualidade. Dessa forma, a mídia tem certa parcela de responsabilidade pelas construções de sentido sobre a homossexualidade, bissexualidade e transexualidade e, pensando nisso, a manutenção da heteronormatividade através de tais

Indicações Quer conhecer mais artistas LGBTQIA+? Ouça Liniker, As Bahias e a Cozinha Mineira, Jaloo, Linn da Quebrada, Johnny Hooker, Bia Ferreira e Glória Groove.

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materialidades não se dá através da exclusão de tais grupos sociais mas sim pela propagação de estereótipos, a transformação de tais sujeitos em excêntricos, exóticos, desviantes e até mesmo perigosos, assim como afirma Parker (2002, p. 57) como sendo esta uma estratégia que age para estigmatizar e marginalizar performances de gênero desviantes do padrão normativo, expondo tais sujeitos não tão somente à violência simbólica mas à física também.

SD 2 A placa de censura no meu rosto diz: Não recomendado à sociedade A tarja de conforto no meu corpo diz: Não recomendado à sociedade

No refrão somos apresentados a outros aspectos sociais de construção de sentido aos quais estes sujeitos foram submetidos, a não recomendação de seus corpos à sociedade. Podíamos observar esse tipo de posição-sujeito partindo da patologização de sujeitos LGBTQIA+, assim como Foucault (2009, p.43) afirma “a proliferação de discursos acabou por multiplicar as condenações judiciárias e logo a associação da irregularidade sexual como doença mental”.

Além disso, podemos observar na diversa materialidade significante, entre os instrumentos musicais, entonação da voz, atmosfera de tensão criada instrumentalmente para as palavras ‘’censura’’ e ‘’a tarja’’ que fazem alusão ao silenciamento dessas vozes, e considerando o que elucida Orlandi (2008, p.14) “[...] o discurso é um processo contínuo que não se esgota em uma situação particular. Outras coisas foram ditas antes e outras serão ditas depois. O que temos são sempre pedaços, trajetos, estados do processo discursivo”, podemos pensar a SD 02 enquanto uma alusão a períodos obscurantistas pelos quais o Brasil já passou, como a Ditadura Militar, quando a censura era constante e também teve um papel fundamental no processo de normatização em defesa da FD religiosa e conservadora.

SD 3 Pervertido, mal amado Menino malvado, muito cuidado Má influência, péssima aparência Menino indecente, viado

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Nessa SD, o autor já explicita de forma sucinta os adjetivos que são utilizados para qualificar, julgar, estereotipar e violentar os sujeitos LGBTQIA+, essas formações discursivas conservadoras impõe características à esses corpos e as desqualifica, produzindo o efeito de rejeição social e escárnio contra qualquer performance que não seja a heterossexual normativa.

SD 4 Não olhe nos seus olhos Não creia no seu coração Não beba do seu copo Não tenha compaixão Diga não à aberração Por fim, na última SD produzida por Caio Prado, o artista nos apresenta novamente a ideia de patologização desses corpos, como se um sujeito por ser Gay, Lésbica, Bissexual ou Transsexual, esteja sob a constante suspeita de algum tipo de doença ou irregularidade que seja transmissível. Dessa forma, fazendo com que os discursos discriminatórios sejam legitimados e encorajados socialmente. Mais do que uma simples canção, Caio Prado compôs ‘’Não recomendado’’ enquanto denúncia à violência contra pessoas LGBTQIA+, uma manifestação de como seu corpo ‘’inadequado’’ não é recomendado pelas FD’s conservadoras

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e une em uma semiose artística, discurso, corpo e instrumentos para formalizar o seu discurso de resistência. O meu corpo não é recomendado por quem? E para quem? Se, para a Análise do Discurso (AD), levando em consideração uma perspectiva pecheutiana, o sujeito é afetado pelo inconsciente, inscrito na história, interpelado pela ideologia e é constituído pela interação das mais diversas formações discursivas dada a posição social em que está situado. É possível concluir que a materialidade do discurso produzido na canção de Caio Prado, analisada nesse texto, surge enquanto uma forma de resistência e oposição frente à uma formação ideológica que produz um discurso dominante sobre esses grupos sociais marginalizados.

(FOTO: Caio Prado. Mimo Festival)

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Referências ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 6 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 19. ed. Trad. Maria Thereza Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2009. PARKER, Richard G. Abaixo do Equador: culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 1997. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio [1975]. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. PRADO, Caio. Não recomendado. Intérprete: Caio Prado. In: CAIO PRADO. Variável Eloquente. [S. I.]: Independente, 2015. 1 CD. Faixa 8.

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MUTANTE COM ORGULHO: DE MÍSTICA ATÉ NÓS

Gilberto Stanchack Andrade de Lima Uma memória afetiva para muitas crianças dos anos 90 e 2000 é almoçar, antes ou depois da aula, assistindo ao desenho “X-Men Evolution”. A animação se baseia nos quadrinhos dos X-Men, da Marvel, criados em 1963 por Stan Lee e Jack Kirby. A história de seres superdotados, tidos como uma espécie diferente dos humanos por conta da ativação de Genes X, viviam à margem da sociedade, chamados de “mutantes”, se escondendo para sobreviver, ganhou atenção dos leitores e passou a ser uma série animada “X–Men: Pryde of the X– Men”, em 1989, daí em diante, foram mais seis animações e seis filmes. O enredo, em sua essência, conta a história de Professor Xavier e

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Magneto, dois mutantes que tiveram uma relação próxima no passado, mas hoje se veem em lados diferentes. Magneto foi vítima do holocausto durante a Segunda Guerra, esse trauma do passado o faz crer que humanos e mutantes nunca viverão em paz. Para ele, é questão de tempo até a humanidade formalizar uma guerra e os mutantes serem extintos, então, o objetivo de Magneto é difundir a ideia de que os mutantes precisam se unir por conta de um inimigo em comum: os humanos. Meu foco neste texto vai para uma mutante em específico, Mística. Com uma pele escamosa azul, olhos amarelos e cabelos ruivos, Mística apareceu pela primeira vez em uma

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HQ de 1978, além da aparência singular, ela tem a habilidade de trocar de forma, podendo se tornar outras pessoas (e animais) alterando cor de pele, altura, peso, cor dos olhos e cabelos. Essa técnica de camuflagem se chama Mimetismo, muito utilizada no mundo animal, seja por camaleões que trocam de cor ou borboletas com falsos olhos nas asas.

manter, principalmente entre mutantes, com sua aparência natural, ou usar suas habilidades e trocar sua fisionomia para ser mais bem aceita socialmente.

HQ "X-Men - Deus ama, o homem mata” - de 1982. Imagem 2

X-MEN: Primeira Classe.

Com uma mutação tão explícita, Mística é alvo constante de repressão, por parte dos humanos. Conhecendo o imaginário coletivo hegemônico, a personagem entra em uma crise existencial para decidir entre se

Você Sabia? Curiosidade: O escritor da Marvel Chris Claremont criou uma história onde Mística usa seus poderes para engravidar sua esposa, a mutante Sina, que geraria o mutante Noturno, mas a história foi descartada pela própria empresa, ficando Noturno como filho de um casal héterossexual

Falas discriminatórias, como a materializada na imagem acima, exemplificam a maneira como a sociedade enxerga os mutantes como uma ameaça monstruosa que deve ser combatida, frases como essas nos permitem observar uma metáfora, relacionando o preconceito sofrido por mutantes no mundo da ficção e o preconceito contra pessoas LGBTs na vida real. Na página da HQ de onde se retirou o recorte acima, é dito que a ameaça do senador, que acredita estar seguindo um plano divino, era expôr publicamente os que eram mutantes, para que o preconceito da própria população encerre o trabalho do governo de matar e reprimir os que não são humanos. Personagens como mística se vêem com menos opções do que a maioria dos mutantes, já que sua mutação é bastante aparente, fazendo ela ter uma vivência ainda mais reprimida pelo discurso dominante, do que os outros

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colegas mutantes que não apresentam alterações corporais. Nesse ponto, encontra-se a metáfora da vivência da personagem com a de pessoas trans, que encaram desafios envolvendo seus corpos e identidades tidas como monstruosas, assim como a mutante de olhos amarelos. Com isso, pode-se entender a rejeição inicial da mutante para com a frase “Mutante com Orgulho”, dita por seu (quase) irmão Charles Xavier, tendo em vista a discrepância entre a vivência dos dois mutantes. Charles, por exemplo, consegue flertar com seus poderes mentais, enquanto Mística era apenas vista como um monstro. Ao longo da trama vemos uma personagem amadurecer a partir de suas experiências tidas com pessoas (sejam elas mutantes, ou não) e situações que expõem a diferença de tratamento recebido por ela, tanto em comparação com outros mutantes, quanto para com os humanos. Sejam elas na CIA, sejam elas com pessoas comuns que encontramos pela cidade. Mística notava como o preconceito contra mutantes afetava de uma forma mais branda o jovem Xavier com sua aparência humanizada, em relação à ela com sua aparência verdadeira, tida como monstruosa. Com a possibilidade de transitar entre diversas fisionomias seria impossível não sentir a tentação, e a pressão, de esconder sua pele azul marinho, já que isso facilitaria a sua vida social, às custas de sua saúde mental e emocional.

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Com o passar do filme, União Soviética e os EUA concordam em algo durante a Guerra Fria: os mutantes são perigosos e uma ameaça, independente do lado em que se dizem estar. Com a experiência de ajudar os EUA e acabar sendo vista como inimiga pelos dois lados da disputa, Mística aprende que humanos sempre verão mutantes como algo perigoso e perverso, independentemente da ideologia defendida por esse sujeito, e que mesmo com as diferenças entre eles, os mutantes ainda eram os seus semelhantes mais próximos. Após isso a mutante azul percebe que entrar para o grupo de mutantes com o objetivo de lutar por seus interesses era necessário, já que o Estado é um dos principais inimigos de sua existência, seja pela violência direta, como a que gerou a revolta de Stonewall em 1969, ou com a omissão, como ocorreu no caso da travesti amarrada e agredida na frente da Guarda municipal de Teresina, que apenas assistiam o crime ocorrer. Também vale ressaltar que apenas em 2019 cria-se uma lei nacional garantindo a utilização do nome social em ambientes públicos e privados, com mais de 130 anos de república e mais de 30 anos da atual constituição federal, apenas recentemente pessoas trans tiveram o direito ao seu nome verdadeiro, direito esse que nunca foi removido ou ameaçado à pessoas que não são trans. A monstruosidade atribuída às pessoas trans geram sentimento de medo e

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raiva na população geral, alimentado por discursos religiosos e/ou políticos, que resulta em violência e hostilidade. Com a vivência de Mística, conseguimos acompanhar o seu processo de aceitação e entendimento de sua identidade mutante, além disso, vemos como a identidade dela altera sua posição social, de sujeito mutante reprimido à mutante com orgulho. Ela é vista como um exemplo de resistência por se aceitar como é, mesmo em uma sociedade completamente contrária à isso, o que é algo heróico, porém, podemos (e devemos) criar um contexto social onde não seja necessário um esforço heróico para sermos quem somos ou termos nossos nomes respeitados, já que todos temos problemas pessoais, mas minorias tem que lidar com seus problemas pessoais e os da coletividade que os permeiam. Que todos tenham o direito de dizer que sou quem sou com orgulho.

NUNES, Ronayre. Travesti é amarrada e agredida em porta-malas diante de policiais em Teresina. Correio Braziliense, 2021. Disponível em <https://www.correiobraziliense.com.b r/brasil/2021/07/4938738-travesti-eamarrada-e-agredida-em-porta-maladiante-de-policiais-em-teresina.html>. Acesso em 20 de Jul. de 2021 SANTANA, Felipe. As principais diferenças entre Deus Ama o Homem Mata e X-Men 2, 2020. Disponível em <https://universoxmen.com.br/2020/0 8/diferencas-deus-ama-o-homemmata-x2/>. Acesso em: 10 de Jun. de 2021. FERREIRA, CRISTINA, org. Glossário de Termos do Discurso: Edição Ampliada. Campinas, São Paulo: Pontes Editores, 2020.

REFERÊNCIAS X-MEN: Primeira Classe. Direção: Matthew Vaughn. Produção de Lauren Shuler Donner. Estados Unidos, Marvel Films, 2011. Acessado pela plataforma de Stream Disney+. LEI garante uso de nome social a transexuais e travestis. Justiça do Trabalho, 2019. Disponível em <https://tecnoblog.net/247956/referen cia-site-abnt-artigos/>. Acesso em 25 de Jul. de 2021.

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DE ONDE VEM O QUE SOMOS? AINDA NOS SERVEM ESSES ASPECTOS? Anthony Moreira Marques Colares Muitas de nossas relíquias artísticas e culturais estão se tornando cada vez mais o que já são, relíquias. Textos escritos há mais de quatro mil anos atrás estão ficando para uma cultura mais seleta e que se interessa por cultura antiga. Atualmente com o choque de uma cultura pop nos últimos vinte anos, grandes obras dos primeiros séculos foram sendo esquecidas, ainda que suas referências permanecem vivas até mesmo em obras do século dezenove. Ao lidar com teorias da análise do discurso e também da literatura descobrimos que nada é novo, tudo é readaptado, tudo faz parte do interdiscurso, e parte de alguma formação ideológica que se materializa em uma formação

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discursiva. Ainda que a palavra esteja em curso há séculos, a base do imaginário continua sólida na cultura e também na língua, e este artigo irá trabalhar e analisar a forma com que os primeiros fragmentos de expressão artística, como a poesia épica grega e latina, serviram para formar um imaginário masculino que detém de muitos aspectos que perduram até os dias atuais. Sabe-se que o homem desencadeou muitos processos que contribuíram para discriminação de raça, gênero e orientação sexual. Ainda que estes fatores não estejam explícitos nas obras, buscaremos então pôr sob observação os discursos produzidos

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pelos primeiros protagonistas homens da história da poesia e, portanto, da literatura mundial. A partir das obras Ilíada e Odisséia, ambas de Homero, e Eneida, de Virgílio, será analisado, a partir da perspectiva da Análise do Discurso como as ações e personalidades destes canônicos personagens auxiliaram na construção do imaginário sobre o homem. Como as três histórias se interrelacionam fica ainda mais fácil de trabalhar com questões intertextuais e colocar sob observação três personagens com personalidades extremamente distintas e que, de sua forma, cada um teve um impacto consistente na imagem de homem que se formou na época e nos resquícios que continuam intactos até os dias de hoje, mesmo após dois mil anos de produção e circulação. Com o choque cultural sendo cada vez mais impactante na impressão dos sujeitos, pode parecer para muitos identificados com uma única formação ideológica a vida inteira que todo processo de “revolução” social que emerge nos dias de hoje, nas lutas contra todos os tipos de opressão, foi algo arbitrário e sem qualquer traço de ação humana, o que não é verdade, todo discurso se materializa através da história e nada do que passamos hoje, em quesito político-social é por acaso. Contudo, é a partir dos conceitos da Análise do Discurso que podemos entender que todas as ações, expressões e atitudes tidas pelos seres humanos hoje não são novas ou inéditas, apenas se remodelam através de processos históricos que formaram

diversas culturas e concretizaram costumes e dizeres que acabam sendo mais comuns ao ambiente com uma formação ideológica dominante. Ao colocar sob análise a jornada do homem desde os tempos mais primordiais, descobrimos que tudo que se torna costume e parte da cultura é resultado de processos determinados pela mente humana, em sua maioria, caracterizados como atos políticos, o que nos leva a considerar, que como humano, pondo nossas decisões como atitudes que alteram e corroboram falas e ações na contemporaneidade em que são ditas, são por si só atos políticos e, consequentemente, ideológicos. Esses dizeres e atos que transitam na história, que podem se solidificar ou se ressignificar nas diferentes culturas, mas que continuam contribuindo para ação e produção do discurso, é o que se nomeia, dentro da teoria da análise discursiva: interdiscurso.

Compreende o conjunto das formações discursivas e se inscreve no nível da constituição do discurso, na medida em que trabalha com a re-significação do sujeito sobre o que já foi dito, o repetível, determinando os deslocamentos promovidos pelo sujeito nas fronteiras de uma formação discursiva. (Costa e Guimarães, 2020, p. 161)

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E este conceito colabora diretamente com as obras literárias que serão objeto de estudo neste artigo, pois, embora duas delas sejam contemporâneas, a outra se concretiza séculos depois, aspecto que proporcionará uma visão mais ampla e variada, pois apesar do contexto histórico do conteúdo destas três obras ser o mesmo, o momento em que foi escrito, o lugar onde foi e a cultura a que pertenceu nos dão oportunidade de observar aspectos culturais de um mesmo fato em condições de produção diferentes. Então, para que se possa dar início às análises, será feita uma breve apresentação dos personagens alvos do estudo deste artigo. Primeiro, temos Aquiles, príncipe dos Mirmidões e o guerreiro mais formidável do lado da Grécia. Um líder feroz em combate, agressivo e poderoso, indomável e astucioso. Parte da trama do livro que protagoniza, Ilíada, se deve ao fato desse personagem ser extremamente vingativo e rancoroso e até orgulhoso, não aceitando represálias de qualquer superior na hierarquia de comando do exército grego. Filho de uma divindade e banhado em poder e força, sua imagem mítica traz aspirações para concretizar um imaginário de homem forte e impiedoso. Após Aquiles, veremos Odisseu, rei de Ítaca, um humano isento de poder divino no sangue, contudo, frequentemente favorecido pelos deuses por conta de seu caráter ardiloso e extremamente sábio. O livro que conta sua história, Odisséia, relata

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os longos dez anos de intentos que o monarca empenhou no seu regresso à pátria que governa: Ítaca, continuamente sendo atrasado por outras divindades e criaturas míticas. Posteriormente, Odisseu castiga com a morte os pretendentes que desejavam casar-se com Penélope, sua esposa, e tomar o trono, não obstante, abusavam das leis de hospitalidade e faziam uso pródigo dos recursos da família real, a atitude punitiva pode vir tanto de um acesso mais sentimental movido a fúria, porém é mais provável que venha de um discurso de honra familiar e masculino de um patriarca que teve seus bens e entes queridos abusados por outros, novamente, um discurso movido por questões ideológicas que se concretizaram numa época primitiva em que a morte e o assassinato eram atos “compreensíveis” para sociedade da época, discurso que se disceminou durante séculos e que se aplicava de forma semelhante em situações das mais diversas como adultério ou brigas simplórias e parvas. Por fim, vemos um personagem do outro lado do tabuleiro, Enéias, herdeiro do trono de Dardânia, filho de uma dos doze deuses principais, comandantes do Olimpo, filho da deusa do amor, Afrodite. Sua história, Eneida, foi escrita em semelhança às outras duas anteriormente citadas, tendo os seis primeiros cantos podendo serem assemelhados à Odisseia e os seis últimos a Ilíada. Ao fugir da destruída cidade de Tróia, ele busca um local para fundar a nação

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que os deuses lhe asseguraram por direito e mérito, após tempos no mar, encontra a tão citada terra, contudo, uma sequência de batalhas terá início para que ele possa garantir os direitos assegurados a ele. Feita esta breve introdução à história destes protagonistas, passaremos aos estudos dos atos destes e sua colaboração para a formação ideológica e imaginária do homem, que ainda muito se perpetua nos dias atuais.

as formações humanas Uma das histórias mais antigas do mundo e uma das primeiras criações literárias é a obra de poesia épica Ilíada, recitada pela voz do poeta grego Homero, criada mais ou menos no século IX a.C., tornou-se uma enorme base para as grandes obras que a seguiram como Eneida, de Virgílio e até a Divina Comédia, de Dante. Podemos dizer que Aquiles fez parte da primeira geração de protagonistas que marcaram o mundo. Sua força e personalidade continuam sendo influentes mesmo que desconhecidas pelos indivíduos que vivem hoje e que têm um interesse na cultura pop, que, há séculos, continua sendo vivamente referenciada, mesmo que de formas tão sutis. Por ter sido uma figura tão importante na mitologia grega, que foi a cultura basilar do mundo atual, a história e os personagens se tornaram figuras e

pontos de referência na formação imaginária dos homens tanto da época quanto de séculos posteriores, já que desejavam ser fortes e respeitados como os heróis de guerras passadas eram. Sabíamos que nas obras descritas todos eles pareciam verdadeiros deuses em aspecto e atitudes, belos, fortes, astuciosos, impetuosos, e como os homens sempre reverenciavam os deuses, querer ser igual a um deles em excelência, ainda mais por ser parte humano, acabou por se tornar uma ambição constante. Como estamos nos referenciando a um período muito antigo da história, conflitos eram extremamente comuns e eram vistos como algo necessário para o crescimento de cada cidadeestado ou simplesmente por se tratar de uma ambição de governantes ou outras causas que hoje podem se considerar fúteis. Ainda sim, a guerra era um ofício de muito respeito e glória, o que fazia com que aqueles que a ela se dedicassem se tornassem homens de honra indiscutível. Isso se tornou mais enfático até que esses mitos sobre grandes guerreiros como Aquiles começaram a circular na cultura grega, reforçando uma formação ideológica já bem dominante a respeito do valor da profissão de soldado na Grécia. Este também é um importante termo discutido na análise do discurso que contribui para a pesquisa e estudo que desenvolvemos neste artigo: formação ideológica. Pruinelli afirma isso através do seguinte trecho:

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As formações ideológicas (FIs) sinalizam o processo pelo qual o sentido percorre para “existir”, ou melhor, para se materializar no fio do discurso. Esse movimento pode ser verificado pelas identificações dos sujeitos a determinados conjuntos de saberes, que se manifestam por intermédio das formações discursivas (FDs). Em face disso, compreendemos formação ideológica como uma série de dizeres, rituais, práticas, representações que, de acordo com a formação social vigente, instaura posições de classe, a partir das relações estabelecidas entre os sujeitos. Estes posicionamentos, por sua vez, mantêm entre si vínculos que podem ser de hegemonia, oposição ou concordância. (PRUINELLI, 2020, p. 121).

Como se estuda na AD, a ideologia não existe senão através do discurso, eles se interdependem e se completam. A ideologia surgiu tanto através da mitologia quanto dos costumes, que, por sua vez, se materializam e propagam-se através da linguagem. Como na época das obras abordadas, as formas de entretenimento eram limitadas, e a população tinha como lazer ouvir histórias e praticar atividades físicas, muitas dessas atividades eram ligadas às histórias contadas a partir dos cantos

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homéricos, principalmente porque a luta era e continua sendo um esporte, o que atribuía muito valor aos soldados, que em sua grande maioria treinavam em grandes ginásios, geralmente esportes que lhes ajudariam a melhorar suas formas físicas, o que acabou por se tornar cultural e curiosamente se propaga até na cultura atual, pois as academias continuam sendo pontos extremamente frequentados, tanto por homens quanto por mulheres. Devemos lembrar que o discurso não se materializa através das falas apenas, mas das ações em geral, principalmente se dando dentro das mais variadas situações, podendo possuir não apenas forma verbalizada, mas uma atitude em si. Pruinelli novamente, aborda como a formação discursiva é constituída e de que forma ela se manifesta na FI:

As formações discursivas (FDs) correspondem ao espaço no qual se dá a constituição dos sentidos; onde os sujeitos, por meio de suas identificações a determinadas formações ideológicas (FIs), manifestam seu posicionamento. A FD é moldada a partir de fragmentos do interdiscurso, estabelecendo, por intermédio da atuação ideológica, sua matriz de sentido, a qual é afetada pela contradição e heterogeneidade. (PRUINELLI, 2020, p. 115)

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O interdiscurso acaba por se tornar o elemento que determina uma parte considerável dos sentidos que se formam e que se alteram conforme o desenvolvimento da linguagem, como já explicamos anteriormente. Agora, por mais que um discurso continue se repetindo e se desenvolvendo, não é apenas através de uma formação ideológica que ele continuará se propagando, até porque há maneiras além destas que podem conduzir e manter a palavra em curso, principalmente quando se fala de questões mitológicas e literárias, estamos falando do interdiscurso agindo sobre outro tipo de formação, a social. A formação social é basicamente a formação que reflete o lugar em que os sujeitos estão ou são representado, e como qualquer local físico, é suscetível de atuação humana nele, atuação que firmam raízes nos mais diferentes tipos de formações ideológicas, geralmente é elemento significativo da luta de classes (PRUINELLI, 2020, p. 131). Por fim, temos a formação que vai mais significar dentro da pesquisa que se mostra nesse artigo, a formação cultural, sabemos que dentro de uma única cultura podem se atravessar inúmeros discursos e ideologias, semelhantes e até mesmo contrárias umas às outras. Muitas vezes é através do discurso ou da ideologia de uma pessoa que podemos identificar qual a cultura a que ele pertence, no caso, a dos protagonistas homens, guerreiros e símbolos da masculinidade e humanidade.

É através de diversas práticas discursivas, verbais ou não verbais que podemos testemunhar os processos de formação ideológica de uma cultura, podendo assim determiná-la, tudo isso analisando seu modo de pensar, ver, sentir e agir, as ações comuns à cultura do sujeito são discursos que atravessam diretamente o sujeito que ele se constitui (ANJOS, 2020, p. 109).

as análises aquiles, ilíada Primeiramente apresentamos um dos primeiros e mais importantes protagonistas masculinos da história da literatura. Apesar de ser representado através da poesia épica e não ter uma caracterização tão detalhada sobre esse personagem, podemos observá-lo como um protagonista proeminente e que exala não só respeito, mas também medo em seus inimigos e até mesmo aliados. Agraciado com descendência divina, sua força e habilidade na guerra eram famosas, temos como fatores principais a força, desde os primórdios dos tempos este se tornou um aspecto de extremo valor, algo que impunha respeito entre toda a comunidade masculina. Afinal, é uma questão da vida natural, na vida animal os machos lutam continuamente entre si para disputar a liderança do bando, território, comida ou até uma fêmea para procriar. Podemos dizer que estes hábitos por parte dos animais

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influenciou no comportamento humano, que a partir da observação do funcionamento da natureza desenvolveu ideologias de personalidade, essas ideologias se disseminaram através de discursos que conseguiram se concretizar como parte das culturas mais antigas, essas culturas muitas vezes ultrapassam sociedades, tornaram-se parte de um discurso hegemônico que buscava usar estes exemplos da natureza como forma de legitimar seus hábitos e costumes, possivelmente para manter a posição de dominância através de ideologia e não precisar recorrer a métodos violentos, por exemplo. Esse discurso baseado no comportamento dos animais se desenvolveu principalmente se tratando de predadores, pois até mesmo um homem adulto que é tido como o auge da evolução, por mais inteligente que seja não conseguia enfrentar fisicamente um leão ou um tigre, por causa dessa superioridade física até mesmo animais eram adorados em culturas passadas, levando a serem considerados representações divinas, podemos entender que a partir deste ponto os homens se inspiraram para se tornarem mais fortes, viris e até ardilosos, considerando que isso os traria excelência em sê-los. Apesar de se tratar de uma questão de formação ideológica para os seres humanos, para os animais não era, pois são irracionais, ainda sim, o discurso hegemônico masculino buscou estes exemplos imprecisos para tentar pregar uma dominância da qual não

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havia explicação racional, agindo de forma tautológica a partir de questões biológicas como força ou desenvolvimento corporal. Por essa razão, buscou-se continuamente praticar rituais e outros costumes, que vem das mais variadas culturas, desde a europa até a américa indigena, para buscar ter a força de animais, por isso guerreiros são frequentemente comparados a animais quando são ferozes ou fortes. Isto fez com que os homens levassem aspectos físicos como características que legitimizassem a dominação de um ser que neste mesmo aspecto se apresenta menos favorecido. Tal ideologia desenvolvida agiu de forma crescente, aumentando o privilégio masculino em questões políticas, sociais e educacionais, por exemplo. Aquiles, além de se apresentar como o mais bravo e forte guerreiro do mundo grego, era impetuoso e autoritário, durante a obra a qual protagonizou se mostrou um homem extremamente orgulhoso, aspecto esse que levou ao desenvolvimento de toda essa trama. É através dele que vemos a proeminência masculina se manifestar dentro da sociedade, podemos dizer que são obras como a Ilíada que retratam o nascimento destas ideologias patriarcais que privilegiam seres do sexo masculino. Podemos ver que, apesar de ser um homem poderoso e forte, não levanta seu braço para seus aliados em resposta às injúrias, mas se recusa a colaborar com a campanha após ter sido desrespeitado pelo chefe da

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mesma, Agamemnon, decisão esta que prejudicou muito no sítio à Tróia, pois além de perder seu principal guerreiro, também perdeu o mais bravo exército que era por ele comandado. Mesmo sendo o protagonista da história, ele não é retido na narrativa em comparação às outras obras que falaremos. Vemos nele um personagem feroz, um homem decidido e orgulhoso, forte e impetuoso, tomando atitudes norteadas geralmente pelo seu ego. É através de Aquiles que vemos concretizar as ideologias que põem em prática discursos violentos, tanto fisicamente quanto em ações. Também não podemos descartar como aspecto da personagem sua descendência divina, fator que pode levar a uma personalidade repleta de orgulho e arrogância, tendo em vista que a grande maioria dos deuses olimpianos são extremamente orgulhosos, e Aquiles, por ser um semideus, não seria diferente, na verdade, esse orgulho pode se ver até como um complexo de superioridade, tendo em vista que ele é como um rei em meio à plebe. Em síntese, vemos nele uma personalidade masculina muito marcada pelo orgulho e complexo de superioridade, pois ele era detentor de aspectos que eram extremamente valorizados naquela época. Se trouxermos esses aspectos para cá, podemos ver que, pelo menos, o que se refere a violência continua bem ativo, embora os aparelhos do Estado

que desenvolvem e disseminam ideologias antidiscriminatórias batalhem para fazer com que esses costumes primitivos se extingam. Não é incomum dentro de sociedades mais conservadoras ter como discursos recorrentes o uso da violência para aplicação da lei ou punição, tanto através dos aparelhos repressores de estado, mas também através de cidadãos comuns sem qualquer direito legal para isso. Apesar de personalidades como a de Aquiles serem extremamente impulsivas, violentas e primitivas, não é nenhum pouco incomum encontrar sujeitos que defendem tais aspectos na convivência social, até mesmo sujeitos que exercem cargos políticos e que incitam discursos violentos.

Pintura representando Ilíada

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odisseu, odisseia Vamos agora para análise de outro personagem homérico, talvez considerado mais importante do que o anterior. Odisseu, diferente do outro protagonista aqueu é um mortal, sem qualquer descendência divina, mas que é reconhecido pela sua enorme sabedoria e ardilosidade. Rei de Ítaca e o estrategista que levou os gregos à vitória sobre Tróia carrega em si vários títulos de honra. Assim como Aquiles, Odisseu tem sua personalidade regada a certa quantidade de orgulho, embora não seja tanto quanto o primeiro. Como chefe de Estado pode-se ver na personalidade dele uma certa frieza em situações de pressão, afinal, como rei é preciso saber tomar sábias decisões, atitudes pelas quais ele é conhecido.

Gravura representando a Odisseia

Analisando toda sua jornada é possível constatar que ele é um bom modelo de homem que se porta em sociedade, inteligente, forte e bonito, sua jornada expõe características que, até hoje, são valorizadas pela

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comunidade masculina, homem que apesar de ser casado tem relações íntimas com outras mulheres, o que continua sendo comum, seja imoral ou não. Essas relações extraconjugais, especificamente com deusas, detentoras de belezas sobrehumanas e de poderes igualmente incomuns, poucos homens dentro da cultura foram conhecidos por se relacionarem com seres imortais, então apesar de não ser evidenciado de forma tão conhecida esses fatos, não é preciso dizer que tal “conquista” seria muito bem vista pelos outros homens, discurso este que, mesmo após milênios, continua se proliferando no imaginário masculino, pois, desde a infância de garotos, é comum receber perguntas sobre o número de namoradinhas. Podemos notar nesse caso, que, apesar de alguns costumes serem já considerados rudes e primitivos, sua ideologia continua presente e se materializa através de discursos mais sutis e mascarados, ainda que a essência da proeminência masculina pregada através desta ideologia acabe por ser a raiz deste problema e de outras questões ideológicas que atualmente compactuam de forma explícita e implícita com o machismo dentro da convivência social, prejudicando a vida não só de mulheres, mas de outros homens também, sobretudo aqueles que estão crescendo nas presentes gerações. Dentro dos primeiros mitos de homens, podemos considerar o

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Odisseu como o primeiro protagonista desprovido de sangue dos deuses, mas ainda por eles adorado. Os tempos remotos fizeram com que o efeito natural do imaginário sobre o homem se materializassem dentro de nossas culturas, força, proeminência para alcançar nossos objetivos, nos inspirando sempre em predadores implacáveis como leões ou lobos, alegorias brutais feitas no intuito de demonstrar a dominação e e superioridade em relação aos outros seres que lhe pudessem prejudicar ou que fossem contra a vontade dele. Durante os primeiros séculos que construíram a serviram para solidificar uma ideologia machista, foram essas imagens que se projetaram através do discurso que fundamentou toda sociedade ocidental, podemos dizer que a personagem de Odisseu contribuiu muito para os paradigmas de homem na sociedade, contemplamos tudo isso se materializando na narrativa de retorno e reconquista do aqueu rei de Ítaca, um homem astuto, ardiloso, forte e habilidoso, só esses predicados seriam suficientes para considerá-lo como modelo de homem perfeito. Poucos séculos depois disso, houve outra narrativa que teve como protagonista um homem, também governante, filho de divindade grega: Eneias.

eneias, eneida Governante dos dardânios e um dos principais aliados de Troia, Eneias era filho da deusa Afrodite, deusa do

amor. Apesar de dividir uma situação semelhante a de Aquiles, ser um semideus, vemos no troiano uma personalidade quase oposta a do grego, um líder bondoso, generoso, que se importa com o bem-estar de seus seguidores e que demonstra sentimentos mais profundos para com aqueles que lhe são próximos, como sua esposa, filho e pai, se mostrando um esposo e filho devoto, um pai afetuoso e carinhoso. Características mais humanitárias, por assim dizer, um homem que se preocupava mais com os entes queridos do que com sua glória. Diferente do primeiro protagonista analisado, vemos o personagem de Eneias sendo mais caracterizado, a obra trabalha mais a personalidade dele através da narrativa vemos como Eneias lida com as perdas e obstáculos que se apresentam na sua jornada, idealizado mesmo tendo em conta suas emoções e sentimentos, ele, um líder forte e digno, mas que se frustra, se entristece, se enfurece. Apesar de ser semideus, vemos em Eneias um governante gentil e um bom homem que, apesar de querer conquistar seu novo lar à comando dos deuses, traça esse caminho como um homem cujo imagem não condiz com a daquela época, vemos isso quando o troiano chora ao ter que deixar a amante Dido, ou quando perde o pai. Também se mostra um líder compreensivo quando permite que parte de seu povo, já cansado de viajar em busca da terra prometida pelos deuses, se instalasse na terra livre mais próxima. Eneias,

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compadecido da situação de seus conterrâneos, que perderam amigos e familiares durante a jornada, permite que estes se instalem sem ele e os demais. Diferente de Odisseu, ele não exige uma serventia e obediência plena de seus súditos, nem mesmo demonstra interesse em relações amorosas cárnicas extraconjugais, diferente do rei grego, que se relacionou com deusas mesmo estando casado. Ainda que relações extraconjugais não fossem moralmente condenadas na época em que a obra foi escrita, o conceito de fidelidade já existia e um homem que o respeitasse poderia ser visto de forma positiva, mas, em geral, poderia ter sua virilidade criticada por conta de sua devoção a uma única mulher. Essas situações como a fidelidade amorosa, que no discurso moral da atualidade são tomados como corretas, na época, eram até mesmo incomuns e dispensáveis para a cultura ocidental, tais atitudes tomaram força no discurso, que, uma vez sendo posto em exercício pela fala e escrita, se concretizou na formação imaginária e desta para a cultural, todas tendo como base e alimentando a formação ideológica que, apesar de hoje ser condenada austeramente, se mantém como um ato oculto que muitas vezes nem mesmo é criticado e sim tratado com normalidade, atos de infidelidade e brutalidade, que põem em risco a integridade física e moral de toda uma sociedade. Fazendo um comparativo com os demais protagonistas analisados,

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podemos fazer algumas considerações significativas a respeito da personalidade e habilidades de cada um. Eneias não era tão bom guerreiro como Aquiles, e não se sabe como sua força se mostraria frente a Odisseu, mas em contraponto aos dois, ele tem o respeito e o amor de seu povo, devoção fundamentada através dos atos de compaixão que o governante tem para com seus compatriotas. Também não se mostrou um guerreiro e comandante tão ardiloso quanto o protagonista analisado anteriormente, contudo, vemos nele um homem fiel e condescendente para aqueles que o ajudam e o dirigem bons cuidados, vemos nele um homem que dificilmente passaria impiedosamente por cima de outros seres inocentes, dificilmente os machucando, tanto fisicamente quanto emocionalmente, e ainda quando o faz, a um bom custo de sua tristeza, atitude que se vê quando ele tristemente se vê obrigado a deixar sua amante Dido a mando dos deuses. Para que não haja uma idealização da benevolência deste, vê-se que ele também se deixa levar por sentimentos humanos como raiva e rancor, como no momento em que ele se compadece de Turno, seu inimigo que roga para que ele não o mate, quase o convence, mas logo Eneias recorda-se que Turno assassinou em combate momentos antes o filho de um rei que presta auxílio a Eneias, acometendo no aliado dos troianos uma raiva impiedosa e matando seu inimigo. Outro ponto muito relevante no troiano é o fato dele ser

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completamente devoto e respeitoso aos deuses, realizando qualquer pedido e exigência feito por eles e não lhes dirigindo qualquer injúria, diferente do protagonista da Odisseia que teve em grande parte da narrativa como inimigo o próprio deus Poseidon e o injuriando de forma explícita. A devoção de Eneias faz com que ele tenha boa parte do panteão grego a seu favor na jornada. Tal discurso de devoção ao divino pode bem ser comparado aos atuais, pois é extremamente normal ouvirmos repreensões quando reclamamos de deus ou de qualquer divindade que seja integrante de uma crença religiosa, sempre com contestações dentro dos discursos e ideologias, através de histórias ou da bíblia, por exemplo, formações culturais que produzem ditados populares como: Deus castiga; Com Deus não se brinca; Deus tudo vê ou tudo ouve. Sabemos que tais artifícios foram muito prejudiciais para a cultura, uma vez que esse discurso serviu de ferramenta para o controle e manipulação do povo, tendo como consequência a morte de milhares de pessoas. Mesmo sendo escrito numa sociedade politeísta, Eneida materializa um homem que teríamos exemplificado nos dias de hoje como bom cristão, humano e temente aos deuses, podemos dizer que ele contribui menos diretamente para a progressão de uma supremacia masculina através do discurso produzido por ele na obra, ele se põe como um homem mais sentimental e

justo, sem ter um complexo de superioridade tão notável quando os outros dois protagonistas. Vemos nele um governante humilde e obstinado, podendo se considerar mais humano do que os anteriores. Tais considerações nos levam para a análise conjunta dos três personagens abordados.

conclusão Apesar dos personagens e das histórias em comum que os liga serem da mesma época, vemos personalidades diferentes em cada um dos três personagens analisados. Com um desenvolvimento bastante primário no que se refere aos aparelhos de Estado, pode-se pensar que sem um instrumento estatal específico para articular o conhecimento, almejando uma disseminação de cultura, fez com que em muitas regiões da Grécia e de Troia formassem sujeitos com ideologias e comportamentos diferentes, cada qual ligado a uma cultura com uma formação ideológica dominante. Como estamos falando de culturas e nações extremamente arcaicas, devemos também levar por consideração que uma das formas mais comuns de disseminação cultural e ideológica vinha da conquista de outras nações, pois, mesmo quase um milênio antes de Cristo, questões como a colonização em busca de recursos, riquezas e mão de obra escrava eram contínuas, o que apenas reforça parte da ideologia supremacista que

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perdurou abertamente pelas sociedades mundiais mais diversas, cultura essa que se propagou até o final do século dezenove. Muitas das ideologias comportamentais não eram apenas propagadas pelo discurso social, mas até mesmo pelo religioso da época, uma vez que até os comportamentos poligâmicos eram praticados da mesma forma indiscriminada por deuses e deusas. Agora, uma indagação que podemos ter como pertinente é: por que o mesmo comportamento era julgado de forma diferente perante o sujeito homem ou mulher? Podemos considerar este um clássico exemplo da manipulação ideológica da informação por aqueles que em teoria, na época, detinham o poder de dizer o que era correto e o que não era, o que permitia que eles retirassem informações como essas e as recortassem, apontando que apenas parte dela deveria ser aplicada dentro da convivência social, o que era feito de forma injusta, fato com que a sociedade patriarcal dificilmente se preocupava. Tendo em vista tais aspectos, reforçam-se os pontos chaves da teoria discursiva em que nada se cria, tudo se transforma, o que vemos na atualidade são os resquícios de uma ideologia ainda mais discriminatória, portanto não podemos negar o constante avanço nas culturas e ideologias que circulam na contemporaneidade. Com a conquista de direitos, regulamentação e observação de possíveis condutas prejudiciais ao funcionamento social

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saudável, seja de sujeitos qualquer identidade de gênero, podemos observar que os únicos condutores de ideologias conservadoras e nocivas para a saúde física e mental dos seres humanos, são também sujeitos, o que torna o progresso algo real e alcançável, com estratégias e ideologias adequadas.

VOCÊ SABIA? Virgílio, mesmo tendo entregue o poema Eneida para o imperador Augusto de Roma, afirmava que a obra estava completa, mas não pronta, e pediu aos seus companheiros para que a destruíssem caso não completasse, ainda sim, ela continua até hoje.

referências FERREIRA, M. C. L. Glossário de termos do discurso. Campinas, SP : Pontes Editores, 2020. GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo – Rua Barão de Iguape, 110: Editora Ática, 1991. HOMERO. Ilíada. São Paulo. Penguin Classics Companhia das Letras. 2013. HOMERO. Odisseia. São Paulo. Penguin Classics Companhia das Letras. 2011. LEITE, L. C. M. O foco narrativo. São Paulo. Ática. 1985. VIRGÍLIO. Eneida. São Paulo. Editora 34. 2016.

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ENTREVISTA COM A ESCRITORA MAR BECKER Maria Clara Petrarca Nesta 12ª edição da Revista Informe Letras, tivemos a satisfação em entrevistar a escritora Mar Becker, nascida em Passo Fundo (RS) no ano de 1986. Tem formação em Filosofia e Especialização em Metafísica e Epistemologia. Publicou duas plaquetes no gênero “poesia”, uma pelo Centro Cultural São Paulo, Coleção Poesia Viva (2013), e outra pela Editora Quelônio, Coleção Vozes Versos (2017). “A mulher submersa” (Urutau, 2020), seu livro de estreia, tem circulação no Brasil e na Europa, cuja história traz a conjunção de rigor e imaginação. A combinação desses elementos aparentemente antagônicos ressurge com esplendor nas páginas de A Mulher Submersa (Urutau, 2020) – livro de estreia da gaúcha Mar Becker. A autora criou sua própria língua. Descobri-la é uma ocasião de espanto e felicidade. (José Francisco Botelho)

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1 Maria Clara: Mar, como e em qual momento você percebeu que desejava seguir a carreira de escritora? Mar Becker: Não sei se houve algum momento em específico… Acho que se deu aos poucos. O que sei é que o encontro com a literatura foi fundamental nesse sentido. Isso porque entre os meus 14 e 15 anos, comecei a frequentar a Biblioteca Municipal de Passo Fundo, minha cidade natal, e aí entrei em contato com um universo que me modificaria e impulsionaria à escrita autoral. 2 Maria Clara: Antes de começar a carreira, alguém a inspirou e motivou a trilhar este caminho? Quais foram as suas referências? Mar Becker: Poderia citar muitos autores e autoras, mas fico com aqueles que conheci ainda bem moça e que minha memória puxa de modo espontâneo: Clarice Lispector, Virginia Woolf, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Murilo Mendes, Drummond, Augusto dos Anjos, Laura Riding, Thomas Mann e Sylvia Plath. Veja que menciono “todo mundo junto”, sendo indiferente aqui às tradições e escolas de origem. É que foi assim que os conheci, numa espécie de caos primordial. Não havia orientação de fora. Abria o livro da estante, e, se gostava da frase lida, se encontrava graça aos olhos daquele bicho e reconhecia suas notas pelo faro, pelo nariz, aí levava pra casa.

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3 Maria Clara: Levando em conta a posição em que as mulheres são colocadas na atualidade, como é ser escritora em um país machista que valoriza muito pouco a mulher? Mar Becker: Difícil; na maioria das vezes, é partir de descrédito – e por isso, é preciso angariar muitas provas de que aquilo que tu fazes tem valor. 4 Maria Clara: Pensando que todos nós temos muitas demandas para cumprir ao longo do dia, gostaria de saber se você possui uma rotina fixa de escrita? Se sim, qual seria? Mar Becker: Eu diria mais ou menos fixa. De qualquer modo, procuro estar sempre em contato com o texto, mesmo quando não tenho como escrever ou quando estou fazendo outra coisa. Esse meu “estar em contato com o texto” pode significar tanto me entranhar no íntimo - meu rumor de fundo - quanto, pelo contrário, me espalhar aos sentidos: catalogar imagens, sons, gostos, cheiros… Ângulos de luz e sombra. E, essas cenas, são materiais que de certa forma aparecem mais tarde na escrita. 5 Maria Clara: Você já teve medo de não corresponder às expectativas dos leitores ou às expectativas de si mesma? Mar Becker: Sim, estar exposto a esses olhares, sejam os dos outros, seja o nosso, isso gera alguma insegurança.

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Procuro entender que faz parte e sigo adiante mesmo assim.

inadequação que se vê assim, não se perde no tempo.

6 Maria Clara: Para você, quais são os principais desafios no mercado literário para quem deseja publicar um livro?

8 Maria Clara: Quais são seus projetos futuros? Há algum novo livro em processo de criação?

Mar Becker: Ter pressa em publicar é um problema, penso eu, porque impede a estruturação e o amadurecimento de um projeto estético. Comprometer-se com expectativas externas também pode ser desencaminhador, pelo mesmo motivo citado. Sei que é remar contra a maré, mas vale a pena ter autocrítica, rigor e desenvolver faro, essa capacidade quase animalesca de sentir a palavra pelo que dela é cio e predatismo. 7 Maria Clara: Qual foi o maior desafio que você já enfrentou sendo uma escritora? Mar Becker: Tenho muita dificuldade com prazos. Na verdade, tenho dificuldade de ajustar o fluxo criativo, que quer ser livre e seguir quando e como acha bom, com outras rotinas – lives, lançamentos, chamadas para prefácios, orelhas, etc. E, uma

Mar Becker: Sim, penso numa nova publicação; tenho trabalhado aos poucos nesse sentido. Às vezes o processo se dá dentro da minha cabeça, outras no próprio tecido da palavra. Também ando lidando com contos, alguns materiais nesse gênero. Vamos ver. 9 Maria Clara: E, para finalizar, quais livros você considera indispensáveis à leitura e, sobretudo para mulheres que querem ser escritoras? Mar Becker: É uma pergunta que me convida a lembrar uma série de livros e nomes que li ao longo da minha vida de leitora. Vou em sentido oposto, no entanto – para não me alongar demais –, e falo de uma poeta em especial que me arrepia e que tenho lido recentemente: Danielle Magalhães. Lançou o livro “Vingar” este ano, pela Editora Sete Letras, e, sim, considero indispensável que chegue a mais escritoras mulheres, a muitas de nós.

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