INFORMELETRAS
INFORMELETRAS
LÍNGUA LITERATURA SOCIEDADE
EDITORIAL
Designers: Aline Reinhardt da Silveira, Anthony Moreira Marques Colares, Eduarda Cunha Gazen Manzke, Gilberto Stanchack Andrade de Lima e Maria
Clara Ramos Petrarca
Arte da capa: Gilberto Stanchack Andrade de Lima
Editor(a) geral: Carolina Fernandes
Redatores: Aline Reinhardt da Silveira, Ana Gabriely dos Santos Dias, Andriele
Soares Zanatto, Anthony Moreira Marques Colares, Arthur Teixeira Ernesto, Eduarda Cunha Gazen Manzke, Elaine Madruga Paiva, Gilberto Stanchack Andrade de Lima, Ilma Teresinha Ferreira Pereira, Luciana Ribeiro Teixeira, Maria
Clara Ramos Petrarca e Nicole de Souza Fernandes
Revisora Geral: Carolina Fernandes
Revisores: Flávia Machado Franco
Contato: pet.letrasbage@gmail.com
Todos os direitos reservados Estritamente proibida a reprodução do material que compõe este volume sem a liberação prévia da equipe PET Letras
NESTA EDIÇÃO:
INFORMELETRAS
SOBREOGRUPOPET-LETRAS
O PET LETRAS faz parte do programa do governo federal chamado Programa de Educação Tutorial Na Unipampa, está vinculado às Pró reitorias de Graduação, de Pesquisa e de Extensão. Na intersecção desses três eixos o ensino, a pesquisa e a extensão, o programa objetiva atuar sobre a graduação, a partir do desenvolvimento de ações coletivas e de caráter interdisciplinar, para formação ampla do profissional em Letras, assim como auxiliar na redução da retenção e evasão O programa, ainda, busca promover a formação ampla de qualidade académica dos alunos de graduação envolvidos direta e indiretamente com o programa, estimulando ações internas e externas que reforcem a cidadania e a responsabilidade social de todos os participantes e a melhoria dos cursos de graduação. O grupo PET do curso de Letras Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa do campus Bagé existe desde 2010, tendo como eixos a leitura, a oralidade e a escrita nas diversas mídias Para levar os acadêmicos a desenvolver tais habilidades, promove se oficinas, minicursos e produções acadêmicas coletivas. O trabalho é desenvolvido de maneira integrada através de atividades variadas, entre elas, a confecção de nossa revista digital chamada Informe Letras
Carta aos leitores
Caro leitor, Na presente edição da Revista Informe Letras, desenvolvida por bolsistas do Programa de Educação Tutorial do curso em licenciatura de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pampa campus Bagé, você terá em sua leitura textos que buscam estudar aspectos sociais em suas diversas áreas de produção, passando pela Linguística, Literatura e Análise do Discurso Todos os textos trazem análises que tenham pertinência para o campo das Letras Dentro de cada texto, procurou se trabalhar com aspectos sociais em seus mais variados âmbitos e esferas de acontecimentos, no intuito de elucidar sobre questões que conversam com as problemáticas sociais enfrentadas tanto dentro do Brasil como no mundo todo, sendo possível analisar temas atuais que continuam se mantendo como questões complicadas de serem tratadas dentro da sala de aula, considerando que a escola se faz uma importante instituição de aprendizado e combate a discursos nocivos tão disseminados e que prejudicam milhões de pessoas, seja em se tratando de questões sociais, étnicas ou de gênero Dessa forma, buscamos trazer, nesta décima terceira edição, discussões de vários temas pertencentes ao universo das Letras, tais como: análises sobre questões sociais e culturais presentes na obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos e breves estudos desenvolvidos na Análise do Discurso, e também, na Linguística, uma pesquisa sobre o uso do gênero neutro na escola. Estas são temáticas sumariamente importantes de serem abordadas nos meios de desenvolvimento de pesquisas que articulam o social, o ético e o político, visto que suscitam a reflexão sobre o funcionamento da linguagem Sendo assim, nós, bolsistas petianos, desejamos uma ótima leitura
Anthony Moreira Marques ColaresSumário
"Texte" "Falande" de "Gênere" "Neutre"
A influência de obras e escritores brasileiros na literatura africana de expressão portuguesa
O desenvolvimento da autoria em textos dissertativos-argumentativos de alunos do ensino médio
Análise do discurso sobre a privatização da maior estatal do Rio Grande do Sul Lula na capa da "time": memória e efeitos de sentidos
05 09 Gilberto Stanchack Andrade de Lima 11 13 Luciana Ribeiro Teixeira 14 19 Arthur Teixeira Ernesto 20 25 Aline Reinhardt da Silveira
A mitologia através das artes modernas, seus discursos e efeitos.
A Recepção das personagens femininas em “É Tarde Para Saber”, de Josué Guimarães, através da experiência de elaboração de um diário de leitura
O SILÊNCIO DAS PERSONAGENS EM “VIDAS SECAS” Obra e Filme VIDAS SECAS E A ESTÉTICA DA FOME
Ping-Pong: ENTREVISTA SOBRE OS 100 ANOS DA SEMANA DE ARTE MODERNA COM A PROFª. DRª. VERA MEDEIROS
36 40 Ana Gabriely dos Santos Dias e Ilma Teresinha Ferreira Pereira 41 44 Andriele Soares Zanatto e Nicole de Souza Fernandes 45 49 Maria Clara Ramos Petrarca 50 60 Elaine Madruga Paiva
"Os Operários", Tarsila do Amaral (1928)
Gilberto Stanchack Andrade de Lima
Desde a década passada, a discussão acerca do "gênero neutro” está em aberto na sociedade. Muito se fala, muito se opina, porém muitos desconhecem questões que precedem a simples criação das formas propostas ou a total rejeição da ideia A partir de parâmetros essenciais de se ter conhecimento ao se debater gênero, identidade de gênero língua gênero na língua etc seja para defender, seja para refutar a ideia, iniciaremos nossa reflexão Para discussão, precisamos ter claro em nosso entendimento que nossa sociedade muda, nossa língua se transforma, nada é estático (principalmente quando se trata de algo que diz respeito a tantas vivências como é a língua). Língua e sociedade são realidades indissociáveis Isso se comprova pelo fato de que a língua se modifica por influência da passagem do tempo, da região, até mesmo de um nicho de mercado específico
Há uma pluralidade de fatores que levam uma língua a ser alterada, mas nem toda alteração é igualmente validada na língua Em 2010, durante a corrida eleitoral para o cargo máximo da nação, Dilma Rousseff passou a referir se como presidentA, em oposição à presidentE A mudança foi criticada por parte da imprensa por ser uma forma que “não existe” A suposta explicação seria o termo na forma “original”, que também significaria o feminino em si, não se fazendo necessário o uso da forma “presidenta Sabendo que, posteriormente, quando eleita, Dilma foi a primeira mulher da história do Brasil a ocupar a cadeira presidencial, é importante observar o posicionamento ideológico que existe ao passar a utilizar a forma "presidenta", considerando o contexto, e a historicidade
masculina do cargo, logo, também é importante salientar como se mostra significativo quando se tenta negar a existência da forma em questão Dilma passando a usar presidenta” é apenas um dos infinitos exemplos de mudança na língua e como a sociedade pode reagir quanto a isso Mas nem toda mudança na língua é criticada. Os acordos ortográficos assinados por países falantes de português alteraram algumas regras, desde inserir letras no alfabeto até alterar regras de acentuação Mas, mesmo causando mudanças na nossa língua, a necessidade, ou uma suposta deturpação da língua não foi colocada sob ameaça da mesma forma que “presidenta” De modo geral, ocorreram diversas ações para a inclusão das mudanças realizadas por conta do acordo (2016 foi o último ano para a adesão as novas regras), mas “presidenta” já se fazia presente no dicionário, ao lado do termo “presidente”, antes mesmo do brasileiro questionar a legitimidade da palavra em 2010 Logo, nota se que a língua muda, mas nem toda mudança é encarada da mesma forma.
A mudança na língua existe, independente da nossa opinião sobre a alteração em si. Para a sociolinguística, o uso é que vai ter a palavra final sobre a validação de diferentes formas Exemplo: o pronome “vós” ainda é ensinado em escolas do Brasil, mas pouquíssimos usos são encontrados na língua, até mesmo em ocasiões mais formais enquanto “sextou” é uma gíria usada amplamente na internet, e fora dela, para expressar que chegou a sexta feira, ou que o indivíduo já começou a executar seu planejamento para o final de semana Para a sociolinguística, a segunda forma é bastante válida pelo seu uso, independentemente de ser usado de maneira coloquial; o “vós”, por outro lado,
caiu em desuso, mesmo que ainda seja ensinado em algumas escolas
A partir das reflexões feitas, entramos de fato na chamada linguagem neutra”.
Buscar descrever algo que não é um consenso, tanto para os que aderiram a proposta, quanto para os que a renegam não é uma tarefa fácil mas por motivo de entendimento do texto, se faz necessário
A questão em debate é uma proposta de se criar uma terceira possibilidade quando se trata de flexão de gênero, abrindo caminho para além do masculino e feminino já conhecidos O intuito é criar uma alternativa para o pensamento binarizado ao se tratar de gênero, além de questionar a relação entre gênero (masculino e feminino) e língua A proposta atende uma demanda social daqueles que não se sentem contemplados com as formas vigentes e/ou discordam da ideia de que o masculino já seria a forma sem marcação de gênero.
Porém, mesmo entre os que defendem e apoiam a proposta da "linguagem neutra", não há consenso em um aspecto: a sua forma. Alguns usam elx/delx”, outros “elu/delu', também há quem use “el@/del@” ou "ile/dile', além de outras várias formas
A falta de consenso pode ser explicada por conta das formas dos pronomes terem sido criados por diferentes pessoas, em diferentes bolhas sociais, que passaram a usar formas para expressar o gênero neutro de acordo com suas preferências e conhecimentos.
Destaco o fato de que essa proposta partiu de pessoas que não necessariamente estudam a língua como no mundo universitário/acadêmico, se valendo de seus conhecimentos intuitivos de língua, então se torna mais difícil cobrar tanto que exista uma uniformidade de formas, quanto que todas as formas propostas respeitem as regras de como nossa língua funciona, entrando em questões como: de qual maneira seria lida a frase “@s meni@s chegaram cansad@s da escola” ou sobre como a letra “ o ” está sendo usada para suprimir gênero, sendo que a vogal em questão já é usada hoje para marcar o gênero masculino das palavras? Ressalto ainda como as formas, mesmo que sem grande uniformidade cumprem a tarefa com certa eficiência, principalmente em textos online que não foram feitos pensando na linguagem oral como publicações no Twitter por exemplo
Em uma proposta com tantas lacunas técnicas para serem preenchidas, a atenção dos que, teoricamente, estariam aptos para, juntamente com a sociedade, estrutura la e criar uma proposta que atenda a demanda social dentro dos padrões já estabelecidos pela língua é voltada para redundantemente argumentar como a proposta seria infundada e desnecessária, usando como justificativas as lacunas técnicas a serem preenchidas e a suposta neutralidade de gênero na forma masculina Tomo por exemplo o texto “Por que a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma” do portal Gazeta Zero Hora Críticas como essas possibilitam a manutenção das lacunas abertas nas formas de uso das pessoas, e continuam a negar a demanda social de novas formas, principalmente por pessoas que não se identificam com o gênero masculino e feminino e/ou não concordam com a maneira como é feita essa distinção atualmente.
Curiosidade: Na língua inglesa usa se “they/them” como opção de pronomes para além do masculino e feminino. Lá a forma já se aproxima de um consenso. Até pouco tempo, os termos faziam referência apenas à terceira pessoa do plural (nosso oficializado “eles/elas”) no dia a dia. Hoje, através do contexto, descobre se se é um they coletivo ou um they singular, assim como o pronome da segunda pessoa, “ you ” . Mas o uso de maneira singular do pronome já existe nos dicionários do século passado, caindo em desuso e voltando a aparecer na língua.
Para continuar a partir daqui devemos ter mais alguns conceitos claros na nossa mente: gênero social é uma identidade, uma identificação, uma representação criada na sociedade, podendo ser masculino, feminino ou não binária (em algumas sociedades dos povos originários dos EUA, como os Navajos e os Cheyenne, existem “ pessoas de dois espíritos”, tendo outras identidades de gênero além da masculina e feminina) E, por ser um conceito criado, em cada sociedade haverá alguma particularidade nessas identidades Paralelamente a isso, existe o gênero gramatical. No português objetos não têm gêneros Exemplo: “máquina” é uma palavra feminina, mas eu posso chamar o mesmo objeto de “aparelho”, que é uma palavra masculina Isso acontece porque o gênero gramatical independe do gênero social, como na palavra “ pessoa ” , que será usada no feminino, independente do gênero da pessoa em questão
Compreender a diferença entre gênero gramatical e gênero social é extremamente importante ao se tratar do tema do gênero neutro Caso contrário, aparecerão formas como “ mesa redonde”, algo que não está na proposta do gênero neutro, já que a proposta se refere ao gênero social. O título escolhido para o presente texto ultrapassa as demarcações entre os dois conceitos em questão, criando de forma proposital estranhamento no leitor já que as palavras “texto”, “gênero” e “neutro”, neste contexto, não demandam flexão de gênero social
Em resumo, o gênero neutro está relacionado com palavras que evidenciam o gênero social da(s) pessoa(s) envolvida(s), como, por exemplo, “ que lindO seu cabelO, filhE”
A importância da compreensão do gênero social é tanta que foi usada como justificativa para a desvalidação da proposta logo no título do texto da Gaúcha Zero Hora: porque a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma
Se contrapondo ao texto do portal Gaúcha Zero Hora, existe a linguista Jana Viscardi. Ela tem um canal no YouTube com o mesmo nome da pesquisadora; o conteúdo do canal é linguístico, geralmente relacionado a algum tema atual Um de seus vídeos apresenta 07 motivos para usar a linguagem neutra; trarei alguns para enriquecer nossa discussão O primeiro deles ela chama de “não cai a língua”, e consiste em tranquilizar a todos, garantindo que sua língua, tanto o órgão quanto a portuguesa, se manterão bem, mesmo com o uso de novas formas Ela ressalta em outro ponto que nossos pronomes atuais não sofrerão alteração por conta das novas formas: se seu pronome é “ele/dele” ou “ela/dela”, as pessoas continuarão podendo te chamar assim. A pesquisadora continua o vídeo e chama atenção para o fato de como as novas formas não impedem o entendimento entre as pessoas, já que entendimento e desentendimento já existem muito antes do debate de gênero neutro surgir Penso em como a falta de colaboração por parte de linguistas contribui ainda mais com o desentendimento e uso dessas formas E, por último, destaco o sétimo motivo exibido no vídeo: gênero neutro não é sobre você, singularmente É sobre um grupo de pessoas, é sobre necessidades coletivas na língua, fazendo se necessária a participação do grupo de pessoas nas decisões que lhes afetam.
Como último ponto essencial para o debate de gênero neutro, o masculino como algo genérico, que expressaria a ideia de que as palavras seriam originalmente no masculino com a possibilidade de se flexionarem no feminino, a argumentação é sustentada por vários ao recusar a proposta do gênero neutro, inclusive foi usada no texto da Gaúcha Zero Hora Jana Viscardi também fala sobre isso em seu canal no YouTube, ressaltando como formas masculinas já carregam o sentido da marcação do gênero; seria impensável ouvir “ esposo ” e imaginar que não se trata de um h í ta ar o ge os p o al mo gê no ge s: d o fo m h ma m ma m as fo
Observe que em português, mesmo havendo uma turma lotada de meninas, a presença de um menino já nos obriga a usar a forma não marcada de gênero, que seria a masculina O ponto chave da presente reflexão é nos ousar a tirar nossos olhos e ouvidos desse local de costume e pensar de maneira crítica quanto a isso, relembrando que muitas coisas ditas como arbitrárias na língua foram pensadas e elaboradas socialmente para serem assim, como ressalta Viscardi Após a reflexão proposta, convido a todos a pensarem em como são poderosas nossas singularidades pessoais e coletivas na língua; fazemos parte da sua constituição assim como ela nos constitui A proposta de gênero neutro é um exemplo de como essa constituição linguística nos molda assim como a moldamos A língua nos acompanha por toda nossa vida, e é um dos principais elos do conjunto de pessoas que formam uma sociedade Individualmente, a língua está presente em construções de identidade
A partir disso, é indispensável pensar em maneiras de nosso idioma conectar pessoas de maneira que todos se sintam contemplados. Destaco o objetivo de inclusão de novas formas, sem excluir outras formas já conhecidas, sendo inofensivas ao português que conhecemos O debate entre linguistas e setores da sociedade que reivindicam por novas formas na língua, com o objetivo de estruturar de maneira coesa e sólida novas possibilidades ao se falar português, tem se mostrado como uma possível resolução do embate de argumentos. Caso contrário, manteremos a descentralização e a falta de coesão linguística das formas propostas como justificativa para a deslegitimação de diferentes identidades e possibilidades da língua
7 RAZÕES PARA USAR O GÊNERO NEUTRO |
JANA VISCARDI São Paulo: Jana Viscardi, 2022 Disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=Os837cT8moM&t=386s&ab channel=JanaVisc ardi Acesso em: 3 dez 2022
COELHO, Izete; GÖRSKI, Edair; SOUZA, Christiane; MAY, Guilherme Para conhecer sociolinguística; Editora Contexto São Paulo, 2015
DOIS espíritos. Diversidade de gênero nas tribos norte americanas [S l ]: Brasil 247, 9 set 2016 Disponível em: https://www brasil247 com/oasis/dois espiritos diversidade de genero nas tribos norte americanas Acesso em: 3 dez 2022 LINGUAGEM e lugar de mulher In: LINGUAGEM, gênero, sexualidade, clássicos traduzidos Tradução: ANA CRISTINA OSTERMANN, BEATRIZ FONTANA (São Paulo) 1 ed São Paulo: Parábola, 2010 v 1, cap 2, p 13 31 ISBN 9788579340123
POR QUE a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma. Gênero é uma categoria linguística inerente aos substantivos, mas em apenas um subconjunto desses substantivos está relacionado a "sexo", [s l ], 12 dez 2015 Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto alegre/noticia/2015/12/por que a distincao entre genero social e gramatical na lingua portuguesa e necessaria ao idioma 4928930 html Acesso em: 3 dez 2022
ODESENVOLVIMENTODAAUTORIAEM TEXTOSDISSERTATIVOSARGUMENTATIVOSDEALUNOSDO ENSINOMÉDIO
Luciana Ribeiro Teixeira
Em meados de 2021, durante a atuação como corretora de redações do maior programa social de voluntariado estudantil, chamado Salvaguarda, obtive uma importante atividade reflexiva e de análise que envolveu o estudo sobre o desenvolvimento da autoria em textos dissertativo argumentativos de estudantes do ensino médio que estavam treinando suas escritas para obterem um melhor desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) Os resultados desses estudos trouxeram uma importante reflexão sobre como esses alunos desenvolvem seus argumentos com isso foram consideradas as formações imaginárias, as quais constituem se através de formações discursivas relacionando as aos sujeitos e às condições de produção Sendo assim, através da análise foram compreendidos os efeitos de sentidos a partir da consideração das condições de produção as quais envolvem tanto o contexto imediato de comunicação quanto o contexto sócio histórico Sobre investigar o desenvolvimento da autoria, é relevante a reflexão sobre a existência de um sujeito que faz um deslocamento do indivíduo para o sujeito que assim constitui se ideologicamente na construção de uma escrita. De acordo com os estudos da Análise do Discurso (AD), todos os indivíduos são interpelados por ideologias em sujeito discursivo Sendo assim, a partir da teoria o autor, trata se
da função do sujeito discursivo podendo ocupar mais de uma posição de sujeito no texto Com isso, há uma reflexão a partir da atuação da ideologia que constitui qualquer e toda prática discursiva Além disso o texto é considerado um espaço discursivo heterogêneo, pois é produzido por sujeitos autores sendo estes ideologicamente interpelados por uma determinada ideologia que se representa através de diferentes posições sujeitos inscritas em uma ou mais formações discursivas
A pesquisa e análise fundamentaram se através dos estudos da Análise do Discurso (AD) que considera a análise discursiva a partir de textos tendo em vista as formações discursivas que se relacionam com as constituições ideológicas que intrinsicamente correspondem com a noção de sujeito Assim sendo, quando se estuda a Análise do Discurso, observa se a necessidade de compreender a noção de língua discurso e texto assim como as de sujeito
e autor A língua de acordo com Orlandi (1999, p 77) ,“é estrutura não fechada em si mesma, sujeita a falhas”, com isso podemos observar que não há língua perfeita, nem estrutura acabada, porque existe um sujeito para desestabilizar esse sistema, com isso este sujeito não é homogêneo, uma vez que é e está sempre se (re)organizando em relação à exterioridade, compreendida com base no contexto sócio histórico A língua se caracteriza pela opacidade, isso significa que a língua, sendo opaca sujeita a diferentes interpretações, com isso a língua não é transparente Sobre o discurso, este conceitua se por ser materialidade ideológica, sendo assim ele atribui sentido para um sujeito quando este o reconhece como pertencente à determinada formação discursiva Enquanto que o texto é tudo que produz uma materialidade verbal e também não verbal na qual permite a produção de sentidos para que o sujeito interprete o texto segundo sua constituição ideológica e as condições de produção em que se produz a escrita e a leitura, sendo assim o sujeito interpretará a partir de um lugar social ao qual está inserido Ao estudar a noção de sujeito e sentido, entende se que o indivíduo não nasce sujeito e nem chega a se desenvolver em um sujeito pleno ou acabado de acordo com a teoria da Análise do Discurso, com isso sujeito e sentido se constituem mutuamente
Ao tratar da argumentação Pacífico (2016, p.192 apud Aparecida, 2016, p 2), afirma que a argumentação “deve ser entendida como um direito humano, direito este que deve ser exercido no contexto escolar a fim de que sujeitos alunos pratiquem a argumentação, dentro e fora da escola, como uma prática social” Ainda de acordo com Pacífico (2013 apud Aparecida, 2016, p 3), a leitura e a escrita são comumentes trabalhadas no ambiente escolar como meros instrumentos de comunicação a serem praticados e apreendidos por meio de
atividades mecânicas não possibilitando a construção da identidade do autor e também não criando espaço para que o sujeito possa assumir a responsabilidade pelo dizer direcionando os sentidos do seu texto, assumindo a posição discursiva de autor Sendo assim, a partir da leitura e análise do texto, que tratou sobre o tema “Caminhos para combater a crise no sistema penitenciário brasileiro”, observou se que o discente se posicionou como sujeito aluno que responde a uma atividade utilizando de mecanismos argumentativos para se posicionar segundo a formação discursiva em que se insere ao argumentar sobre o combate à crise do sistema penitenciário brasileiro.
Sobre o segundo texto em análise, que tratou sobre o tema “Os impactos da não integralização dos moradores de rua à sociedade”, observou se que a estudante inicia sua escrita apresentando um efeito por meio do processo de paráfrase quando se coloca na posição sujeito favorável aos direitos humanos, tendo em vista que reproduz discursos anteriores trazidos nos textos motivadores Contudo no desenvolvimento de sua escrita, a aluna coloca se, em seu discurso, em uma posição preconceituosa ao associar o morador de rua como alguém que pode causar um perigo para sociedade Como afirma em: “À medida em que o tempo vai se passando, a situação de se deparar com moradores de rua é o medo de um suposto assalto, agressão, ou algo relacionado, até mesmo evitamos contato visual, nos distanciamos ” De certa forma, a aluna se utiliza do interdiscurso apresentando um pré construído funcionando a partir de um preconceito sócio histórico contra os moradores de rua. Com isso, a estudante apresenta um discurso que retoma um imaginário de preconceito produzido por uma formação discursiva conservadora. No entanto como as condições de produção do texto demandam reflexão crítica e respeito aos direitos humanos, a
estudante relaciona a situação dos moradores de rua a sujeitos necessitados que se encontram em uma situação precária devido à falta de opção sendo que a realidade de quem está na rua seja “decerto outra” essa posição condiz com o lugar social que ocupa de uma jovem branca que não está em situação de vulnerabilidade Sobre o terceiro texto que foi analisado, que tratou sobre o tema “Os obstáculos para combater a violência doméstica no Brasil”, o aluno introduz e desenvolve sua escrita parafraseando os textos motivadores apresentados Além disso, o aluno destaca as mulheres como sendo as principais vítimas de violência doméstica, e assim ressalta a criação da Lei Maria da Penha. É possível perceber que o estudante coloca se em uma posição sujeito sendo contrária à violência contra as mulheres, assim como o discente especifica as mulheres como sendo as principais vítimas que sofrem violência comparada a outras categorias de pessoas que também sofrem violências no ambiente doméstico como, por exemplo, crianças e idosos O aluno evidencia as mulheres como seres que são mais acometidas a sofrerem violência doméstica e devido a isso o estudante justifica a criação da Lei Maria da Penha Outro aspecto importante que foi analisado é que o aluno neutraliza o gênero do agressor, procurando tirar o foco das mulheres que sofrem violência, apontando o homem como seu agressor Com isso, também é observado que o discente, em nenhum momento, específica quem é o agressor justamente por se tratar de pessoas do gênero masculino, com isso é evidente a omissão comumente de quem pratica a agressão Sendo assim, observamos que o sujeito autor produz seu dizer a partir de um lugar social de um jovem do gênero masculino não identificado com a ideologia feminista Portanto a partir da noção dos principais termos estudados na Análise do Discurso, a pesquisa e
análise dos textos desenvolvidos pelos alunos do Salvaguarda, observou se o funcionamento da argumentação autoria e os processos de paráfrase e polissemia, com isso foram exploradas as práticas argumentativas próprias do discurso desses estudantes de modo a produzir originalidade no processo de autoria Contudo, ao se analisar a argumentação nos textos dos discentes selecionados e trazidos neste trabalho, é perceptível, que além dos alunos se posicionarem conforme suas posições sujeitos, defendendo suas perspectivas os discentes direcionam o seu dizer que é encaminhado para uma conclusão trazendo seus conflitos ideológicos que são conduzidos por temas considerados relevantes para se debater em sociedade Logo, a partir da análise da argumentação nos textos dos discentes selecionados do programa é perceptível que além dos alunos se posicionaram defendendo suas perspectivas os discentes direcionam o seu dizer que é encaminhado para uma conclusão trazendo seus conflitos ideológicos que são conduzidos por temas considerados relevantes para se debater em sociedade
Referências:
FERREIRA Maria Cristina Leandro. Linguagem Ideologia e Psicanálise; Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); n 1, p 69 75, junho/2005
FONTANA, Mónica Graciela Discurso e Argumentação: fotografias interdisciplinares; vol 1 p 135 136 julho/2018
INDURSKY, F Discurso, língua e ensino Especificidades e interfaces In: TFOUNI, L V ; MONTE SERRAT, D M ; CHIARETTI, P (Org ) Análise do discurso e suas interfaces São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2011 p 327 340
LAGAZZI RODRIGUES, Suzy Texto e Autoria In: LAGAZZI RODRIGUES, Suzy; ORLANDI, Eni P. (Org ) Discurso e textualidade 2 ed Campinas, SP: Pontes Editores, 2010, p 83 103
Análisedo discursosobre aprivatização damaior estataldoRio
GrandedoSul
Arthur Teixeira ErnestoA data de oito de julho de dois mil e vinte um ficou e ainda ficará marcada no estado do Rio Grande do Sul, pois nesse dia a Companhia Estadual de Distribuição de Energia Elétrica (CEEE D) passou a ser administrada pelo Grupo Equatorial Energia, que é uma holding empresarial que, além de controlar a rede de energia elétrica no Rio Grande do Sul, ela administra também as redes dos seguintes estados: Alagoas Amapá Maranhão (primeiro estado a ter a sua energia elétrica privatizada), Pará e Piauí
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Mas, você, leitora deste texto, deve estar se perguntando: “ por que um estudante do Curso de Letras está escrevendo sobre a privatização de uma companhia de luz elétrica se o assunto não faz parte do campo da área em que estuda?”
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Carlos Kawall Leal Ferreira é docente do curso de Economia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) 3
De acordo com Ferreira, a privatização:
em andamento no setor elétrico do Brasil e a implementação de um novo modelo para esse setor são parte da transição econômica do Brasil, do modelo de crescimento impulsionado pelo Estado, para o crescimento impulsionado pelo mercado Também é consistente com a necessidade do setor de serviços públicos de aumentar a produtividade e reduzir os custos através do aumento de eficiência, um objetivo a ser atingido pela economia como um todo, para uma integração bem sucedida no mercado global A privatização do setor elétrico também ajuda a reduzir a dívida do setor público, contribuindo para o ajuste fiscal necessário para a sustentação do crescimento a longo prazo do Brasil (FERREIRA, p 181, [s d ])
Portanto, a privatização da energia elétrica no país serve como um novo modelo de manter e garantir a economia já que o Estado se encontra endividado para manter as contas em dia Assim, o Estado acaba colocando à disposição as suas estatais para o mercado, e com a venda dessas estatais se privatizam os serviços que eram oferecidos pelas empresas públicas Então, após a privatização, as empresas prometem oferecer serviços de alta qualidade em tempo curto.
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Neste artigo, utilizarei sempre as palavras no gênero feminino, pois sabemos que, predominantemente, a escrita acadêmica é sempre escrita para o gênero masculino Então, resolvemos fazer essa oposição
Minha cara leitora, o meu interesse em escrever este artigo surgiu por conta do aumento dos preços da energia elétrica, principalmente, na conta de luz da minha residência, e refletir sobre as minhas lembranças de quando eu era mais jovem e sonhava com o extinto concurso público da CEEE
Em menos de 10 minutos, o “ meu sonho”, e acredito que de milhares de pessoas concurseiras, tiveram os seus sonhos ou sonhos interrompidos, pois este foi o tempo em que a maior estatal do Rio Grande do Sul foi leiloada Na época (2021), houve centenas de manifestações contrárias à privatização e, ao mesmo tempo, circulavam diversos pronunciamentos a favor da venda da CEEE
Assim, esse texto propõe fazer a análise dos discursos pró e contra à privatização dessa estatal. Para isso recorreremos aos estudos e conceitos da Análise do Discurso (AD),
Fonte: Brasil de Fato
de vertente Materialista, em que o objetivo é analisar os efeitos de sentidos que constituem a materialidade discursiva Com isso, compor o nosso corpus de análise, serão analisados trechos de reportagens, título de uma reportagem e imagens. Iniciamos pela SD 01:
SD1:
O secretário explica que o valor de R$ 50 mil para conceder a CEEE D à iniciativa privada não pode ser considerado um “ preço simbólico” “A empresa não será comprada por apenas esses R$ 50 mil, o comprador irá assumir toda dívida existente hoje Esses itens são bem conhecidos, estão no data room aberto com informações da CEEE e o novo proprietário estará bem ciente”, conta o titular da Sema Lemos relembra que a situação financeira da empresa é grave e não vender a CEEE D significa perder a concessão e os ativos
No trecho dessa reportagem, observamos o discurso de um sujeito ao ser questionado sobre o “ preço simbólico” que a CEEE D foi vendida Com isso, a partir desses discursos, percebemos que a marcação das aspas em: “preço simbólico” e também em “a empresa não será comprada por esses apenas R$ 50 mil”, nos faz refletir que esse sujeito tenta amenizar a venda da estatal, como se contrapusesse ao discurso de que a CEEE foi vendida a “ preço de banana”
ou parafraseando dessa forma: “Como a CEEE está endividada, nós vendemos a CEEE por 50 mil, então, para não dizer que entregamos a companhia de graça aos empresários nós vendemos por esse valor, pelo menos ganhamos alguma coisa ” Mas esse sujeito não se dá conta que esse “valor simbólico” significa muito para centenas de funcionários que foram praticamente expulsos dos seus empregos, como mostra a seguinte SD 02:
Como podemos observar nessa reportagem, são discursivizadas as demissões em massa. Milhares de sujeitos que, provavelmente, passaram horas e horas estudando e sonhando em se tornar um funcionário público da CEEE que por sua vez esses sonhos foram tirados, foram silenciados, para que a empresa compradora da extinta estatal possa controlar as contas e assumir a dívida que tem com o Estado
Também vale destacar a parte do lide que acompanha esta reportagem: “A companhia, hoje privatizada e controlada pelo segundo homem mais rico do Brasil vai perder quase mil funcionários” Nesse trecho, percebemos que há uma contradição nesse discurso, entre o sujeito da oração e o sujeito discursivo nesse caso estamos nos referindo ao “segundo homem mais rico do Brasil”, pois se esse sujeito que é o “segundo homem mais rico do Brasil”, como é que ele “vai perder quase mil funcionários”?
Provavelmente, você, leitora deste texto, assim como eu, deve estar se perguntando: “Se esse sujeito teve dinheiro para assumir uma dívida bilionária (mais de 4 bilhões em ICMS), então, por que ele demitiu as pessoas que trabalhavam para ele? Será que era para reduzir os custos e aumentar os lucros?
Sim, pois a ideologia que se materializa o discurso neoliberal Assim, Althusser (1970) vai apontar que “ a ideologia passa então a ser o sistema das ideias, das representações, que domina o espírito de um homem ou de um grupo social (p 69)”, nesse caso, estamos nos remetendo ao bilionário que tem o seu discurso voltado para visão mercadológica, ou seja, relacionamos isso com a ideologia neoliberal, em que o discurso desse bilionário visa somente a desburocratização e no lucro em que a maior estatal do RS se encontrava endividada
Com isso analisando o enunciado “Debandada de técnicos na CEEE pode provocar um “verão de apagões” no Rio Grande do Sul”, verificamos que esse discurso prevê a materialização da precarização dos serviços públicos como mostra a/o imagem/print abaixo de uma manchete:
9 INFORME LETRAS 13ª EDIÇÃO 2447 1895
Fonte: Brasil de Fato8
Observando a imagem acima, nos mostra o título de uma manchete, a qual é construída para informar que com a privatização da estatal, aumentou o valor da cobrança de conta de luz no RS. Com isso materializa também a insegurança dos direitos trabalhistas, a ganância de um sujeito, em que ele se aproveita do
endividamento da estatal para se oportunizar através dos lucros provenientes da energia elétrica
Para além disso, essa ideologia neoliberal ou também conhecida como organização econômica, resultam em grandes problemas, como mostram as seguintes SDs 03:
problemas na vida dos sujeitos que dependem da energia elétrica
Portanto, diante dos trechos das reportagens, manchetes e das imagens e analisadas, notamos que todos esses sujeitos envolvidos que são afetados de alguma maneira pela privatização da maior estatal do Rio Grande do Sul, inclusive aquelas pessoas que, assim como eu que desejava fazer concurso para ser servidor público da extinta CEEE Também a constante falta/queda de luz no RS, e em outros lugares do Brasil alteram a vida dos consumidores, a qual precisam improvisar meios alternativos para não perderem os seus alimentos, pois muitas vezes ficam mais de um dia sem luz elétrica como mostrou as SDs 3, que por sua vez, essa improvisação nos remete à memória e a historicidade dos tempos das charqueadas no século XIX, em que os tropeiros abatiam o gado, salgavam as carnes para que virassem charques Mas como consumidores não podemos deixar que esse fato pertencente ao passado não ressoe novamente nos nossos dias atuais Sendo assim, cabe a nós clientes da CEEE Equatorial ficarmos atentos aos problemas que vêm sendo recorrentes, e cobrar das autoridades melhorias pelos serviços prestados, pois as taxas e as cobranças de luz são absurdamente altíssimas, e caberá a empresa melhorar o seu atendimento para sociedade, pois só queremos um serviço de qualidade que seja condizente com o valor que estamos pagando pelos serviços prestados
Referências:
ALTHUSSER, Louis Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado Editora esperança, Lisboa, 1970.
Curiosidade: De acordo com o site Extra Classe, mostra uma pesquisa realizada pela Agência Internacional de Energia (IEA) o ranking de dez países em que a tarifa de energia elétrica é mais cara, como mostra a listagem abaixo: 1º Alemanha 2º Brasil 3º Itália 4º Turquia 5º Singapura 6º Indonésia 7º Japão 8º Índia 9º Reino Unido 10º África do Sul
FERREIRA, C K L A privatização do setor elétrico no Brasil. In: Armando Castelar Pinheiro; Kiichiro Fukasaky (Org ) Coletânea: A privatização no Brasil: o caso dos serviços de utilidade pública São Paulo: OCDE/BNDES, 2000, v. , p. 179 220.
Governo do RS assina contrato de venda da CEEE T por R$ 2,67 bilhões. G1 RS, 14 Out 2021. Disponível em: <https://g1 globo com/rs/rio grande do sul/noticia/2021/10/14/governo do rs assina contrato de venda da ceee t por r 267 bilhoes ghtml> Acesso em: 27 Mai 2022
FORLANDI ENI Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos 10° edição Campinas SP: Pontes, 2012
Link da imagem: https://www brasildefato com br/2020/11/24/visan do a privatizacao governo do rio grande do sul aumenta preco da conta de luz
Link da reportagem: https://www.jornaldocomercio.com/ conteudo/e conomia/2020/11/765971 com r 7 bilhoes em dividas ceee d tera preco minimo de r 50 mil para venda.html#
Link da reportagem: https://www brasildefato com br/2021/12/05/deba ndada de tecnicos na ex ceee pode provocar um verao de apagoes no rio grande do sul
Link da reportagem: https://www brasildefato com br/2020/11/24/visan do a privatizacao governo do rio grande do sul aumenta preco da conta de luz
Link das imagens: https://www jornalminuano com br/noticia/2022/ 03/05/moradores das palmas relatam interrupcao frequente no fornecimento de energia eletrica
Link da reportagem: https://www extraclasse org br/economia/2022/01 /em breve o brasil podera ter a conta de luz mais cara do mundo/
LULANACAPADA"TIME":MEMÓRIAE EFEITOSDESENTIDOS
Aline Reinhardt da Silveira
Na primeira semana de maio de 2022, a disputa eleitoral pela presidência do Brasil foi tema de capa de ao menos três revistas de grande circulação e projeção nacional e internacional: Piauí, Le Monde Diplomatique Brasil (ambas voltadas ao público brasileiro) e Time (revista norte americana e com alcance global) estamparam os candidatos que dominavam intenções de voto e manchetes a respeito das eleições, um deles o então presidente, Jair Bolsonaro, e o outro, o ex presidente Luiz Inácio Lula da Silva Enquanto o então presidente estampou as capas de Diplomatique e Piauí na forma de ilustrações bastante críticas e até mesmo jocosas, Lula despontou como uma das capas da edição de 23 de maio da revista norte americana Time, o que rapidamente se tornou pauta de veículos noticiosos tradicionais e assunto dos comentários circulantes nas redes sociais
Se as capas que retrataram o então presidente e seus aliados basearam se na ilustração a capa protagonizada por Lula traz uma fotografia do ex presidente, de autoria da brasileira Luisa Dörr, acompanhada da chamada “Lula’s Second Act: Brazil’s most popular leader seeks a return to the presidency”, ou, em tradução livre, “O Segundo Ato de Lula: O líder mais popular do Brasil busca um retorno à presidência . É nessa capa que nos deteremos neste trabalho, buscando compreender, a partir da fundamentação teórico metodológica da Análise de Discurso Materialista (AD), os efeitos de sentido possíveis
de serem produzidos a partir da emergência dessa capa, observando o contexto brasileiro para tanto, e mobilizando a noção de memória discursiva para empreender essa análise Para a AD, os sentidos nunca são dados a priori, estão colados às palavras ou até mesmo às imagens O que temos é a produção de efeitos de sentido possíveis a partir de uma materialidade dada, a partir de uma formação discursiva em relação com uma dominante, em determinadas condições de produção (PÊCHEUX, [1975]2014; ORLANDI [1999]2015) O sentido, assim, sempre pode ser outro, apesar de não poder ser qualquer um já que é fundamentado em uma materialidade na forma que citamos anteriormente Ao adotarmos a AD como fundamento teórico metodológico para essa pesquisa, temos em mente a relação do sentido com o social e com o político, com a historicidade constitutiva dos sentidos possíveis de serem produzidos. Como afirma Orlandi ([1999]2015 p. 18), “ as palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que no entanto significam em nós e para nós”
A capa da Time
Fernandes (2008) salienta que a leitura de uma capa de revista enquanto materialidade textual se dá de forma diferente da leitura linear de um texto verbal uma vez que o olhar percorre primeiramente a imagem, ou seja, a linguagem não verbal, para somente após se deter sobre a linguagem verbal É por esse motivo que a autora reforça que “não podemos afirmar que o verbal ‘traduz’ ou explicita a leitura da imagem como se esta não pro
duzisse sentidos [ ] Antes mesmo do leitor se deter na leitura do verbal, a imagem já está lá, desencadeando sentidos, significando sem precisar de uma legenda que a explique. (FERNANDES, 2008, p 96)
É considerando o exposto que observamos a capa da Time que Lula protagoniza. Há, primeiramente, uma chamada ao olhar para o texto não verbal, com o texto verbal da materialidade ocupando até mesmo um segundo plano de interesse Corrobora esse argumento o fato de mesmo pessoas que não leem em inglês serem capazes de identificar Lula na capa de uma prestigiosa revista e produzir sentidos a respeito disso, deixando de lado a textualidade verbal presente Neste trabalho, procuramos considerar ambas, linguagem verbal e não verbal como o todo de uma materialidade Para efeitos de clareza de nossas formulações, eventualmente poderá ser necessário tratá las como partes separadas; entretanto, convidamos quem nos lê a manter atenção ao fato de que imagem e língua produzem sentido como um todo a ser interpretado
A capa da Time traz sua tradicional borda vermelha, a qual é acompanhada de uma borda branca menos espessa. Ao centro, vemos a imagem de Lula sobre um fundo escuro avermelhado Ele veste terno azul escuro, camisa azul claro sóbria e gravata listrada de azul marinho verde amarelo e branco remetendo às cores da bandeira do país Lula mantém um semblante sereno, com as mãos em frente ao torso Uma aliança é vista no dedo anelar da mão direita Há um sombreamento da mão esquerda, cujo dedo mínimo está cortado, não ficando em destaque essa marca de um acidente de trabalho sofrido anos atrás As letras do nome da revista são parcialmente escondidas pela cabeça do fotografado, e os letreiros laterais com a chamada da capa estão diagramados sobre o braço esquerdo de Lula Os créditos das autoras da matéria e da fotografia também estão presentes Não há qualquer outro tipo de intervenção gráfica, como ilustração ou inserção de outras fotos ou elementos. Lula é o único assunto dessa capa e sua foto produz o efeito de um retrato como os retratos oficiais ou históricos que costumamos ver.
Como efeito de sentido, temos uma pose que nos remete à imagem de um verdadeiro estadista, e se assim é possível interpretar é porque há uma memória discursiva da qual nos valemos a cada novo gesto de interpretação realizado Esse efeito de sentido possível se torna ainda mais premente nas condições de produção em que essa capa circula, às vésperas da campanha eleitoral oficial para as eleições presidenciais de 2022, em um momento que Lula despontava como um dos favoritos a vencedor Podemos assim afirmar, pois há uma memória que se difere de uma memória social, coletiva e histórica, que atua na produção de sentidos ao nos depararmos com uma capa como essa, e essa memória é discursiva Afirmamos juntamente com Fernandes (2020, p 213) que “ em síntese, a memória discursiva é o que dá acesso aos sentidos” Essa noção diz respeito, confor
Figura 1: Capa da revista Time, edição dupla de 23 de maio de 2022. Foto de Luisa Dörr.me Courtine (2009), à existência histórica do enunciado em questão no interior de práticas discursivas (as quais são por sua vez regradas por Aparelhos Ideológicos), seja esse enunciado verbal ou, como em nosso caso, imagético É o que nos remete ao que foi dito antes, em outro lugar, mas do qual esquecemos e cremos ser novo de novo É uma repetição que aparece não em extensão ipsis literis, mas sim uma repetição vertical, sujeita a falhas, deslizamentos, lacunas, não sabidos e não reconhecidos que ao mesmo tempo, parece nos estranhamente familiar Assim é a imagem de Lula na capa da Time, que recupera de forma “estranhamente familiar” outras formulações de capas e retratos oficiais de outros presidentes e outros estadistas, produzindo um efeito de apoio à sua candidatura por meio do espaço privilegiado de circulação de sentidos de um veículo de imprensa com alcance global
Fig. 2 Ronald Reagan edição de 21 de setembro de 1981 Fig. 3 Emmanuel Macron edição de 20 de novembro de 2017
Nas figuras 2 e 3, fotos posadas de presidentes, sendo esses alguns dos retratos de líderes mundiais que foram tema de capas da Time
A gravata de Lula
A memória discursiva se fricciona à memória coletiva quando nosso olhar se demora sobre a gravata azul profundo, verde e amarelo usada por Lula ao ser fotografado para a revista O adereço não se faz presente ao acaso: para além de ser item que imprime formalidade ao traje escolhido, e de remeter às cores da bandeira de nosso país e em contraste ao vermelho associado ao Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual Lula é filiado e foi fundador Essa gravata em específico é associada ao petista por seu uso em momentos chave dos dois mandatos como presidente do Brasil Foi a gravata usada por ele em discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), no anúncio da descoberta do Pré Sal, no anúncio do Brasil como país sede dos Jogos Olímpicos de 2016, assim como em entrevistas coletivas em momentos de crise de seu governo como no Mensalão, e ao depor no inquérito da Lava Jato ao então juiz federal Sérgio Moro O acessório é tão identificado com o ex presidente que uma busca no Google pela expressão “gravata do Lula” retorna inúmeras imagens do ex presidente utilizando a referida gravata e até mesmo indicações de como comprar uma igual aparecem entre os primeiros resultados
Fonte ; TimeFig 4: Tela de resultados para a busca “gravata do Lula” no Google Acesso em 20 de setembro de 2022
Fonte: autora.
A gravata de Lula, portanto, se inscreve em uma tessitura discursiva ao recuperar uma memória e ser o estranhamente familiar que ressurge na fotografia que estampa a capa da Time É um mesmo Lula, agora mais velho e experiente em busca de uma segunda era como presidente do país, mas que o faz calcado nas memórias e nos feitos comemorados inclusive com o uso da gravata verde amarela , buscando essa nova oportunidade
O uso da mesma gravata vai para além de uma repetição que apoia a estabilização de sentidos e faz discurso, e para discorrermos sobre isso precisamos nos debruçar sobre qual modalidade de discurso aquele produzido pela mídia se inscreve Mariani (1998) compreende o discurso jornalístico como uma modalidade do discurso sobre, um discurso que se configura como um intermediário entre um discurso de (alguém)
e aquele que lê, ouve ou vê. Segundo a autora, tais discursos intermediários têm como efeito imediato de tornar objeto aquilo sobre o que se fala, criando um efeito de distanciamento entre o sujeito enunciador com relação ao que é falado Entretanto, Indursky (2021) nos chama a atenção para como discurso de e discurso sobre se imbricam de forma a não ser possível separá los quando observamos o discurso da imprensa Ao mesmo tempo que a imprensa vai produzir um discurso sobre alguém, ela recorre ao discurso desse alguém ou algo para produzi lo na forma de uma entrevista, da recuperação de falas públicas e até mesmo de uma fotografia O discurso da imprensa se enquadraria, portanto, em uma modalidade de discurso de/sobre, assim imbricada e inseparável E é a partir disso que cremos ser possível afirmar que estamos diante de uma modalidade de discurso de/sobre Lula quando observamos a capa da Time Assim sendo, a capa da Time produz um discurso de/sobre Lula: sobre Lula ao tomá lo editorialmente como assunto de pauta jornalística; discurso de Lula pois é ele o próprio retratado junto com sua equipe quem define, de certa forma, sua vestimenta e pose para ser retratado, expressão de seu discurso A escolha editorial e a materialidade que se apresenta imbrica, assim, tanto o discurso de quem é retratado como o discurso sobre quem é retratado, ao retratá lo Essa imbricação dos discursos de/sobre nos permite compreender materialidades em que as posições sujeito em que se inscrevem o discurso da mídia e o discurso de quem a mídia está relatando sejam diferentes, e até mesmo divergentes, como são os casos analisados por Indursky (2021) a respeito do discurso do MST.
A autora explica que no discurso do/sobre o MST praticado pela Folha de S Paulo e por ela analisado posições sujeitos diferentes são encontradas, filtradas pela posição sujeito do veículo, permitindo assim formular a noção de discurso de/sobre Tal noção nos permite compreender as torções discursivas provocadas por posições sujeito em tensão em um mesmo discurso praticado pela mídia Há um imbricamento indissolúvel entre aquilo que é dito por e aquilo que é relatado sobre o que foi dito Em nosso caso, poderíamos dizer que há um imbricamento indissolúvel entre a pose adotada e o retrato resultante escolhido editorialmente para compor a capa da edição A fotógrafa, autora da imagem, certamente dirigiu o fotografado, fez escolhas das quais Lula não participou, bem como não fez parte das escolhas editoriais que levam em conta os efeitos de sentido que se pretende provocar ao compor uma capa de revista, como qual foto utilizar, a diagramação dessa foto em relação ao texto verbal e a formulação verbal que irá compor esse texto verbo visual que entendemos como uma capa de revista Queremos nos deter à parte verbal desse texto verbo visual em análise Como dito anteriormente, lemos na capa “Lula’s Second Act: Brazil’s most popular leader seeks a return to the presidency” ou em tradução livre, “O Segundo Ato de Lula: O líder mais popular do Brasil busca um retorno à presidência”. Há também a indicação da autora e de quando a fotografia foi tirada O efeito de sentido de um estadista é corroborado pela indicação de que se trata de um líder ao qual a revista qualifica como o mais popular do país Entre os efeitos de sentido possível de produzirmos, o trecho “segundo ato” remete nos a
uma memória erudita, do teatro, do segundo ato de uma peça ou uma performance em que os dois mandatos de Lula como presidente nos anos 2000 diriam respeito ao primeiro ato Logo em seguida, a linha de apoio à chamada principal encaminha para um sentido oposto ao do erudito, destacando Lula como um líder popular Popular por popularidade, mas que também poderia relacionar se à palavra “ povo ” e à origem popular de Lula e tendo esse recorte demográfico como seu principal apoio em uma disputa política Juntamente à gravata nas cores da bandeira, é possível produzir o efeito de sentido de que ele é um representante do povo brasileiro
Levando em consideração tanto os segmentos visuais quanto verbais dessa sequência discursiva composta pela capa da Time, cremos poder afirmar que a revista se identifica com a posição sujeito pró eleição de Lula em um novo mandato, o qual seria o “segundo ato”, a segunda parte de um todo a ser cumprido ou performado após um intervalo Tal afirmação é possível não apenas pelo segmento verbal analisado, mas sim por sua combinação com a fotografia que produz efeito de sentido de um estadista, a qual assim pudemos analisar a partir da noção de memória discursiva
A Time para o Brasil Não poderíamos negligenciar o fato de que as condições de produção de sentidos variam se tomarmos como ponto de vista o Brasil ou os Estados Unidos, local original da publicação No Brasil, às vésperas da corrida eleitoral, a recepção de uma capa como a aqui analisada foi motivo não só de interpretação, mas de tensão e até mesmo de disputas Uma delas foi objeto de desmentida pela verificação de fatos do jornal Estadão, o qual esclareceu em contato com a própria revista Time o porquê de existirem outras
O vídeo que contestava a veracidade da presença de Lula na capa da edição foi julgado como falso, portanto pela verificação desse veículo de imprensa
A Time explicou que, por vezes, diferentes capas são produzidas e distribuídas em diferentes regiões para assinantes e nas bancas, como foi o caso dessa edição. Entretanto, isso não impediu que circulassem versões alegando que a capa seria falsa, apesar de amplamente noticiada pela imprensa brasileira.
assim é possível, pois há uma memória discursiva em funcionamento a qual é recuperada a partir do universo de coisas ditas e possíveis de serem ditas ao qual nomeamos em AD como interdiscurso Essa memória funcionando na produção de sentidos se tece a partir de um discurso de tipo de/sobre, conforme dito anteriormente, em que o discurso do retratado e o discurso sobre esse retratado se imbricam de forma indissociável, constituindo o discurso praticado pela mídia tal como visto na capa da revista Time
Referências:
Figura 5: Imagem de Estadão Verifica sobre vídeo viral que contestava a veracidade da capa com Lula
COURTINE Jean Jacques Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos São Carlos: EdUFSCar, 2009 FERNANDES, Carolina O imaginário de Veja sobre "Os Lulas Presidenciáveis" Dissertação (Mestrado em Letras) Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, p 169 2008
Memória In: LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Glossário de termos do discurso. Campinas: Pontes Editores, 2020
INDURSKY, Freda O discurso do/sobre o MST: movimento social, sujeito, mídia Campinas: Pontes Editores, 2021
Fonte: Estadão.com.br. Acesso em 31 de agosto de 2022 Disponível em https://politica estadao com br/blogs/estada o verifica/lula capa revista time/
Essa disputa em torno da veracidade da capa corrobora nosso argumento de que sentidos de prestígio, reconhecimento, construção de imagem de estadista, entre outros, são possíveis de serem produzidos a partir da capa da Time Retomamos a compreensão apresentada de que
MARIANI Bethânia O PCB e a imprensa: Os comunistas no imaginário dos jornais (1922 1989) Rio de Janeiro: Revan; Campinas: Editora da Unicamp 1998
ORLANDI, Eni P Análise de discurso: princípios e procedimentos Campinas: Pontes Editores, 2015[1999].
PÊCHEUX, Michel Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio Campinas: Editora da Unicamp, 2014[1975].
AMITOLOGIAATRAVÉSDAS ARTESMODERNAS,SEUS DISCURSOSEEFEITOS.
Anthony Moreira Marques Colares
Introdução:
Desde os primórdios da civilização humana, as esculturas e artes rupestres são algumas das formas de obra de arte mais apreciadas e que evidenciam a longevidade e/ou importância do que está sendo retratado, seja na madeira, pedra ou metal Sendo produzidas há mais de dois mil anos atrás, continuam em evidência, apesar de algumas mudanças nas suas formas de produção e o que representam, cada uma com um valor histórico e materializando uma determinada ideologia dominante a partir da formação discursiva do artista que é realizada através do corpo da escultura. Estamos cientes, conforme a teoria da Análise do Discurso, das diversas formas que o discurso se propaga dentro do âmbito social, seja conversando com a formação ideológica da época, região, ou influenciando esta e as que estão por vir Dentro do presente texto buscaremos analisar algumas destas estátuas produzidas nos anos de início da formação das sociedades modernas que conhecemos hoje até as mais atuais, e procurar discutir sobre o discurso materializado através do estilo e do contexto de produção de cada uma destas Lembrando que todos os elementos que influenciam na produção e no significado almejado pelo artista são de suma importância para realizar uma interpretação fundamentada
teoricamente nos conceitos da Análise do Discurso, já que é através destas análises que se buscará contemplar criticamente, seja um momento histórico, um símbolo moral ou ético para a sociedade em que aquela obra de arte está localizada.
Para estas análises ao decorrer do texto, iremos nos fazer valer de conceitos da análise do discurso como: Discurso; Cultura; Formação cultural; Formação ideológica; Historicidade; Imagem e Materialidade discursiva e político Todos os conceitos serão, como de costume e de forma indispensável, trabalhados juntamente com as análises para conseguirmos compreender como a arte produz sentidos no corpo em que ela se materializa dentro de uma formação cultural que buscou estes objetos para ser desenvolvida e da formação ideológica que contribui na construção e proliferação das ideologias que representam e do discurso que desejam disseminar As esculturas que iremos analisar serão observadas juntamente com o contexto de sua produção e os locais onde se encontram, para depois as analisarmos a partir da teoria da AD
Especificações de alguns termos: Como neste artigo serão analisadas essencialmente representações humanas históricas e importantes formas de expressão de como a sociedade da época via ou desejava que as gerações futuras vissem tais patrimônios nacionais desenvolver o conceito: Materialidade discursiva, usado na análise do discurso será importante para contextualizar a expressão do discurso materializado nas figuras analisadas, a historicidade presente em cada um destes objetos, juntamente com o conceito de “político”
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que se liga com toda e qualquer análise de construção social, direta ou indireta Por fim, o conceito de Imagem também nos será essencial para os objetos analisados, uma vez que a língua não é o único meio de materialização da ideologia Começando pelo mais básico a imagem dentro dos conceitos de AD é, pode se dizer, a forma como algo se materializa no enunciado do interlocutor uma vez que é materializada a partir da ideologia e discurso do mesmo, buscando mostrar como algo, por exemplo uma obra de arte aborda diferentes questões ligadas a ideologia e historicidade, servindo de projeção de sentidos e discursos, fazendo desse processo discursivo poder ser representado unicamente pelo conceito de imagem, que projeta no discurso a ideologia, historicidade, política etc tudo isso ligado de forma dependente ao sujeito enunciador, sendo, desta forma, a imagem um conceito sujeito inevitavelmente à opacidade, ou seja, à não transparência.
Materialidade significante que dá forma ao discurso, constituindo se em uma possível formulação para efeitos de sentido Tanto as formulações imagéticas (ou visuais) quanto as verbais são recuperadas pela memória discursiva e significam quando inscritas em formação discursiva (FERNANDES, 2020 p 147)
Já os conceitos teóricos de político/política costumam carregar um significado levemente singular e único para cada linha de pesquisa, sendo na linha da AD um destes casos, já que o conceito de política é um dos que mais implica constituição do sentido e não se pode associar ele unicamente à linguagem, pois é preciso que se tenha consciência do todo que permeia essa palavra e a “autoridade” que ela carrega dentro dos textos alinhados à análise do discurso
O político traz para o discurso efeitos da disputa, da contradição que permeia uma formação social Resulta de práticas políticas que o colocam em constante movimento É a política que lineariza o político nos processos discursivos Política e político sofrem afetação concomitante nas práticas discursivas, embora com funções distintas(DORNELES, 2020 p 231)
As esculturas: Enthroned Washington (1840) Horatio Greenough
Figura1 EnthronedWashington
Os primeiros comentários que podemos tecer a respeito dessa escultura, é como ela parece desalinhada com seu período de produção, já que se assemelha mais a uma escultura grega antiga do que uma do século XIX. Baseando se na própria escultura de Zeus em Olímpia, feita por Fídias, podemos especular a respeito dos ideais e qualidades que o autor da estátua de Washington teve em esculpi la tão semelhante a uma das sete maravilhas do mundo antigo Altivez nobreza importância histórica e valor podem ser alguns destes sentidos produzidos pelo artista, no entanto, nossa preocupação está em mostrar qual ideologia está materializada dentro desta obra e como ela poderia contribuir para a formação cultural daquela população Talvez o artista tenha escolhido este aspecto por conta da grandiosidade do antigo mundo para imbuir excelência em sua obra, mas de que forma isso afeta o discurso e a ideologia ali presentes? Como já assinalado, Washington foi um pilar da revolução americana, mas sua representação na obra está longe de ser fiel, não há nele poderes divinos ou sequer alguma ascendência de qualquer panteão antigo Talvez, possamos apontar o exagero da representação, mas esse exagero não é mero capricho, provavelmente o intuito era o de proliferar um discurso de admiração e patriotismo a respeito do indivíduo essa exaltação está presente não só na vestimenta e na posição da figura, que está sentada, padrão de esculturas de governantes desde os tempos antigos mas no local que está atualmente alocado (Museu Nacional da História Americana) e na data de comemoração a que foi dedicado o centenário da independência americana
Podemos dizer que ele se tornou uma figura da criação da nação, quase como um criador divino, como a própria estátua sugere, um deus vindo do próprio Olimpo
Os Estados Unidos é provavelmente a nação que mais contribuiu para o conceito de patriotismo e que tal aspecto político muito ajudou a construir uma ideologia de adoração política a figuras públicas que auxiliaram na construção da nação em questão Dessa forma, se mostrando, provavelmente, o local que mais contribuiu para a formação ideológica que hoje colabora determinando várias sociedades no mundo, inclusive no Brasil Essa obra é uma das materialidades do discurso em questão pois ambiciona reforçar uma adoração por um humano e pelo que ele representa sócio historicamente por todo discurso que ele transmitiu e que suas representações materiais ainda influenciam na formação ideológica e cultural não restrita aos limites espaciais de onde se originaram Pode se concluir que, embora a estátua faça uma representação a uma figura de sujeito político, ela tem mais força ideológica e discursiva do que uma homenagem por si só, já que como ela é feita, onde se encontra e seu significado trabalham conjuntamente para pôr em movimento um discurso que reforça certas ideologias políticas e que faz parte de uma formação ideológica bem difundida, independente dos fins da mesma serem bons ou ruins, o fato é que lhe contribui a materialização e reforça seu discurso.
Medusa Luciano Garbati
Esta escultura, mais moderna, teve um propósito bem diferente, ainda que essencialmente ligada à questões políticas, já que veio a se tornar uma arte do movimento #MeToo. Como a anterior tem uma relação com o passado, em virtude de ser uma inversão de papéis da escultura de Perseu com a cabeça da Medusa do escultor renascentista Benvenuto Cellini, já que nessa escultura do século XXI é Medusa quem segura a cabeça de Perseu
Essa escultura é uma perfeita materialização do discurso contra as injustiças, já que o mito de Perseu e Medusa é provavelmente o feito heroico de cunho mais duvidoso e questionável entre todos os mitos gregos. A saber: Medusa foi amaldiçoada a se tornar uma górgona pela deusa Atena, a jovem foi perseguida pelo deus Poseidon até o templo de Atena e lá estuprada pelo deus, o que não faz sentido nenhum o seu castigo, já que fora a vítima, porém, não era isso que os gregos da época pensavam. Não obstante, sua má sorte tornou se o degrau na ascendência de Perseu como herói, que foi mandado para matá la por ter sido amaldiçoada e se tornado um monstro, apesar da origem dos fatos que levaram a isso Medusa é a única inocente dentre todos os personagens envolvidos no mito e, por isso, a estátua representa pontualmente este fato, pois fora algo ignorado pela sociedade há eras, até que se tornou um dos principais problemas em boa parte da população feminina do século XXI, que após séculos de silenciamento, teve finalmente voz e leis que asseguram a execução da justiça e a punição dos culpados, ainda que não aconteça sempre e que com certeza não é algo que se concretizou sem muita luta por todo mundo.
Assim como a escultura anterior, esta também apela para traços culturais da Grécia antiga pois se trata de um mito que lá surgiu e se popularizou pelo mundo todo Neste caso, estes traços estão aqui para reivindicar a justiça que foi ignorada nesse mito tão antigo, que não apenas culpabiliza a mulher de sofrer o próprio assédio, um discurso do qual muito já se ouviu falar das mais variadas formas na atualidade (“Estava com roupa curta, quem mandou sair sozinha à noite?” etc ),
Fig 2:Medusacoma cabeçadePerseu
Fonte:DASartes,2020
mas que também reforça a posição de inferioridade a que as mulheres foram colocadas durante séculos e as violências que sofreram ao decorrer da história sociocultural, seja em acontecimentos reais como em outros mitos Diferente do primeiro objeto de análise, vemos neste um discurso de resistência à opressão, violência e ao machismo estrutural e histórico, que mesmo nos dias atuais faz inúmeras vítimas pelo mundo Assim como a outra escultura, a materialidade discursiva evidencia o mito original da contradição presente em toda ideologia que ele ajudou a formar e que agora, através desta obra de arte e resistência, ajuda a combater uma formação ideológica e cultural que marca presença em todos os ambientes e faz vítimas de todas as idades, raças e etnias
A forma material da escultura mostrou se ainda mais facilmente interpretável quando essa estátua foi colocada em frente a um tribunal de Nova Iorque que tem seus julgamentos focados em casos de assédio sexual e estupro, um ato político que conversa perfeitamente com a ideia da escultura, se alinhando com o tipo de ideologia e cultura questionada por ela e que estava na frente de um lugar que julgava dezenas de casos como este todos os dias
conduzindo, dessa forma, um discurso contra as inúmeras injustiças e principalmente contra a própria cultura do estupro Um mito do passado muito glorificado que deveria passar a ser estudado e questionado, pois contribuiu e ainda o faz, com um discurso que está ligado diretamente com as formações ideológicas e culturais, pois se apoia em fatos sócio históricos que, por muito tempo, foram exaltados e nunca questionados
Considerações:
O que podemos retirar dessas análises se baseia em um conceito bem chave da sociedade atual e das que nos precederam, a própria formação ideológica disseminada através de seus discursos verbais e não verbais Podemos dissertar sobre as diferentes ideologias demonstradas pelas esculturas, uma pregando uma ideologia e discursos que predominaram nas sociedades durante boa parte da existência humana, e outra que visa combater esse discurso, expondo os danos que tais discursos, instaurados por culturas que muitas vezes reforçam esse discurso conservador Um fator que evidencia isso de forma mais clara, mas que não é determinante, é o momento em que as esculturas foram desenvolvidas, uma no século XIX e outra no século XXI considerando que esse salto temporal para o discurso materializado de uma obra para outra tenha se desenvolvido largamente dentro de mais de cem anos
Principalmente se falando das grandes conquistas alcançadas pelas mulheres sendo em sua maioria conquistadas no século XX, oportunizando não só mais espaço na sociedade, mas também, com o passar do tempo, dando lugar para que muitas injustiças fossem sendo reveladas na vida das mulheres, o que foi progredindo até chegarmos atualmente, em que
temos instituições jurídicas para julgar casos específicos de mulheres, como o tribunal onde foi alocada a estátua de Medusa com a cabeça de Perseu Essa estátua não só é um símbolo artístico que visa combater os discursos machistas que se propagaram mas também mostrar um dos maiores propósitos da arte moderna, questionar as ideologias e as formações ideológicas instigadas por discursos seculares que danificaram tão largamente a vida da sociedade como um todo Podemos considerar que as análises são de obras que têm objetivos diferentes De um lado temos a glorificação de um homem mortal, com características de deus grego, o que acentua uma característica heroica. De outro, o inverso de uma estátua grega antiga, que visa combater as ações e discursos de uma cultura patriarcal e essencialmente machista, invertendo os papéis e materializando uma vítima que sofreu abuso e castigada injustamente e que se defende de seu agressor, que foi ordenado a matá la simplesmente por ter se tornado um monstro como castigo por ter sido violentada em um templo sagrado como se fosse culpa dela Atualmente, o discurso materializado através dessa escultura nos traz uma mensagem de resistência contra uma cultura predominantemente violenta, em vários níveis Dentro da segunda figura, vemos que a mulher representada de forma monstruosa consegue se voltar contra a injustiça e seu agressor, mas é evidenciada como um ser horrendo
Talvez o discurso que caiba seja a forma que a mulher precisa tomar para viver contrária ao sistema, e como ela acaba sendo vista por este mesmo, especialmente pelos esforços que ela tem que fazer para se desprender de um sistema que a aprisiona de formas físicas e psicológicas
Esse movimento discursivo de resistência dentro da arte só tende a crescer atualmente, e podemos esperar muitos mais daqui pra frente, especialmente se com o combate à violência, estas obras de artes auxiliarem na produção de uma formação ideológica e discursiva que esteja isenta de preconceitos tão danosos para a sociedade
Referências:
A intrigante estátua de Medusa em homenagem ao movimento MeToo em Nova York BBC News Brasil, 20 nov 2020 Disponível em: https://www bbc com/portuguese/internacional 54669548 Acesso em 21 de nov 2022
FERREIRA M C L Glossário de termos do discurso Campinas, SP : Pontes Editores, 2020
George Washington (estátua) Wikipédia a enciclopédia livre Disponível em: https://pt wikipedia org/wiki/George Washington (estátua) Acesso em 21 de nov 2022
ARECEPÇÃODASPERSONAGENS FEMININASEM“ÉTARDEPARASABER”, DEJOSUÉGUIMARÃES,ATRAVÉSDA EXPERIÊNCIADEELABORAÇÃODEUM DIÁRIODELEITURA
A reflexão proposta neste trabalho se deu a partir de um instrumento de avaliação utilizado no componente curricular “Literatura para crianças e jovens” do curso de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). A proposta da avaliação constituía na produção de um diário de leitura a partir da obra É tarde para saber, de Josué Guimarães.
Da leitura da obra e da simultânea produção do diário de leitura surgiu a discussão sobre a recepção das personagens femininas do romance, em particular da protagonista, pelas jovens leitoras contemporâneas, que fomentou a elaboração deste estudo Havia, primeiramente a necessidade de entender de que forma essa recepção acontece e porquê Em um segundo momento, nos dedicamos a analisar como a produção de um diário de leitura acerca da obra teve sua influência sobre essa recepção Procuramos aqui dar atenção à maneira como o uso do diário de leitura nesse contexto afetou a forma como se dá a recepção das personagens dentro desse contexto de leitura, oferecendo novas perspectivas de interpretação da obra Também procuramos destacar a importância da subjetividade envolvida na leitura do romance, fundamental para o processo de recepção da obra
Se durante séculos a representação do feminino na literatura ocidental esteve limitada pela perspectiva masculina, a crítica feminista que ganhou força ao longo do século XX se propôs a questionar o papel que é tipicamente ocupado pelas mulheres nas narrativas De acordo com Pimentel (2021), a partir do momento que as mulheres passam a ocupar posições de destaque na sociedade, se torna incoerente a produção de histórias que continuam a perpetuar personagens femininas marcadas por estereótipos de gênero.
Na literatura juvenil pensar os lugares ocupados por mulheres se mostra importante à medida que concebemos que as obras produzidas para o público adolescente têm grande adesão e impactam a percepção e a constituição das identidades femininas (PIMENTEL, 2021; BARTHES, 2018) Conforme se altera o entendimento acerca do papel das mulheres na sociedade, é preciso considerar a constituição e a recepção das personagens femininas na literatura juvenil, o perfil das leitoras de hoje e como se dá o diálogo entre essas duas instâncias
Considerando essas reflexões teóricas e pensando na relação entre leitoras contemporâneas e personagens femininas na literatura juvenil, para a elaboração deste trabalho trabalhamos com a leitura e a produção de um diário de leitura da obra É tarde para saber (1977), do autor Josué Guimarães produzido entro do contexto de um componente curricular voltado para a literatura infantil e juvenil e a revisão bibliográfica acerca tanto da produção de diários de leitura quanto da recepção de personagens femininas na literatura juvenil
É tarde para saber acompanha o romance entre Mariana e Cássio, uma menina de classe alta que vive com os pais em um amplo apartamento no Rio de Janeiro e um jovem de origem humilde Além da diferença de classes sociais, a narrativa
também coloca Cássio e Mariana em oposição dentro do espectro político A obra, publicada originalmente em 1977, momento em que o Brasil enfrentava a repressão e a censura da Ditadura Militar, não foi pensada para o público juvenil, mas com o passar dos anos foi entre os jovens leitores que a história se popularizou
A narrativa é contada do ponto de vista da protagonista Mariana, uma personagem confinada aos estereótipos de gênero associados por séculos às mulheres: uma jovem mulher que vive sob o controle do pai, isolada do mundo e cujo primeiro e principal interesse é seu namoro com Cássio Na frase que abre romance temos um panorama da dinâmica que domina a obra:
Se dentro de três dias, Cássio não telefonasse, ela cerraria as persianas, puxaria as cortinas de renda, esconderia dos seus olhos o mar verde claro, o azul do céu, a claridade do sol, o voo das gaivotas e transformaria o quarto de paredes brancas numa negra prisão de lágrimas e desespero (GUIMARÃES, 2018, pg 13)
É da leitura realizada de É tarde para saber que foi produzido o diário de leitura O conteúdo do diário foi escrito em um pequeno caderno quadriculado cuja capa contém o título “diário de leitura” e um desenho, feito pela autora, que reimagina a capa do livro Cada entrada no diário, que foi concebido ao longo de 41 dias corresponde às impressões da leitura realizada até aquele momento, a avaliação dos personagens, as relações estabelecidas entre a obra de Guimarães e outras produções e as expectativas com relação à leitura
Para Rouxel (2013), a prática dos diários de leitura pode ser utilizada para fazer com que o leitor aplique a sua subjetividade a leitura e interpretação da obra trabalhada Os diários são, assim, um instrumento através do qual o leitor entra em confronto consigo mesmo, pois quando posto diante da necessidade de escrever sobre suas impressões da obra lida traça um caminho de retorno a si mesmo (JOUVE, 2013), adicionando a obra uma subjetividade que não é exigida do leitor pelo texto mas surge a partir dos conhecimentos prévios que cada leitor carrega
A recepção de Mariana como vista no diário de leitura parte primeiramente da rejeição e da crítica à concepção da personagem A descrição das impressões de leitura é marcada pelo questionamento acerca dos estereótipos de gênero que a narrativa reforça Se no momento da publicação do romance tais estereótipos seriam aceitos como apenas outro elemento da história, para a leitora contemporânea são motivo de estranheza e questionamento, pois “podemos afirmar que o ato da leitura implica uma atualização do texto em seu contexto de recepção” (JOVER FALEIROS, 2013, p 115) Para além disso, a prática dos diários de leitura, na medida em que faz com que o leitor transforme em registro escrito suas opiniões sobre o que lê, o impele na direção de uma percepção sobre o texto que de outra forma passaria despercebida No contexto do diário produzido a reflexão escrita após a leitura permitiu o entendimento de que a personagem Mariana não era em si mesma somente a reprodução de estereótipos femininos mas sim construída como uma representação de uma parcela da sociedade que, como ela, viveu os anos da ditadura alheia aos acontecimentos políticos do país, isolada do resto da sociedade
A elaboração do diário de leitura tornou possível essa visão da personagem que não teria sido permitida com uma leitura mais superficial pois:
É finalmente quando as configurações subjetivas do leitor são questionadas pelo texto (quer dizer, quando a subjetividade é acidental), que a experiência de retorno a si é mais impactante O leitor é levado a refletir sobre o que o conduziu a projetar no texto tudo aquilo que não estava lá (JOUVE, 2013, p 60)
Dessa forma, é diante da necessidade de aplicar e questionar sua subjetividade que o diário de leitura traz ao leitor que se pode atingir um entendimento mais amplo da construção do feminino na obra de Guimarães
Através dessas considerações, observamos que para a leitora jovem contemporânea, há inicialmente um estranhamento com relação às personagens femininas do romance de Guimarães, em especial com a protagonista Mariana Esse estranhamento é fruto de uma atualização na concepção do papel das mulheres em nossa sociedade e na nossa literatura Não parece mais cabível, na contemporaneidade, que mulheres sejam confinadas a estereótipos de gênero que as limitam, o que gera a rejeição imediata que observamos inicialmente no diário de leitura
Entretanto, o ato de escrever sobre a leitura durante a produção do diário e consequentemente, o uso da subjetividade, permitiu ampliar a visão da leitora sobre a personagem, passando a percebê la não apenas como uma reprodução feminina estereotipada, mas como uma personagem de complexa interpretação, representativa de uma parcela da sociedade naquele período específico. Essa mudança na recepção foi possível porque o diário permitiu à leitora questionar seu entendimento
da obra, relacionando os acontecimentos do romance com seus conhecimentos prévios em um movimento de retorno a si
Portanto constatamos que a utilização do diário de leitura, dentro do contexto inicial de seu uso como método de avaliação de um componente de literatura, possibilitou ampliar e alterar a recepção das personagens femininas da obra de Guimarães pelas leitoras contemporâneas, na medida que seu desenvolvimento trabalha o uso da subjetividade na interpretação do texto lido.
Referências
BARTH, P A Entre Cinderelas e Belas Adormecidas: representações femininas na literatura juvenil contemporânea Entremeios: Revista de estudos do discurso, v. 17, p. 289 299, jul /dez /2018
GUIMARÃES, Josué É tarde para saber Porto Alegre: L & PM, 2018
JOVER FALEIROS, Rita Sobre o prazer e o dever de ler: figurações de leitores e modelos de ensino da literatura Leitura de literatura na escola São Paulo: Parábola, p 113 133, 2013
JOUVE Vincent A leitura como retorno a si: sobre o interesse pedagógico das leituras subjetivas In: REZENDE, Neide Luzia de (org ) Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, p 53 65, 2012
PIMENTEL, Jaqueline Lúcio A construção da personagem feminina na obra O caso do marquês desaparecido (2020). 2021.
ROUXEL, Annie Aspectos metodológicos do ensino da literatura. Leitura de literatura na escola São Paulo: Parábola, p 17 33, 2013
No presente texto será abordado como a literatura brasileira influenciou no processo de formação de escritores de países africanos de Língua Portuguesa, e em foco teremos a inspiração das obras de Jorge Amado. Para isso falaremos de um intercâmbio cultural entre esses países e como a literatura brasileira se desenvolveu. Este tema foi compreendido a partir do projeto de pesquisa “Autores africanos/leitores da produção literária brasileira: relações influência e implicações na criação artística” orientado pela professora Miriam Denise Kelm, em andamento no Curso de Licenciatura em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa, da Universidade Federal do Pampa, Campus Bagé/RS Os países onde a Língua Portuguesa é o idioma oficial e a produção literária pode ter sofrido influência de autores brasileiros são: Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
No decorrer do desenvolvimento da literatura africana em Língua Portuguesa, o diálogo poético que foi estabelecido entre as literaturas africanas e brasileiras acabou reforçando e aproximando a produção dos escritores africanos com as obras de autores brasileiros, a partir do final da década de 1940 Isso ajudou a preencher os vazios que foram criados pelo processo de desterritorialização provocado pela colonização (NASCIMENTO, 2018, p 4)
obras que contém características próprias e marcantes, sendo alguns dos mais conhecidos: Mia Couto, José Eduardo Agualusa, José Luandino Vieira, Ondjaki e Pepetela
Podemos colocar como exemplo desse diálogo poético o poema “Canção do exílio” do autor brasileiro Gonçalves Dias, escrito em 1843 e publicado em 1846, que acabou sendo inspiração para outros autores que utilizaram da intertextualidade para escreverem suas obras Nesse poema, Gonçalves enfatiza o nacionalismo e as características de sua terra, como podemos ver nos trechos a seguir:
“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá; as aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá
A partir da década de 1950, a literatura nos diversos países, ainda sob o domínio português, adquiriu aspectos mais nativistas criando assim a afirmação de uma identidade local, expressando uma cultura e valores que eram rejeitados pelo colonialismo lusitano, pois era um povo idealizando uma autonomia e elevando se além de Portugal Atualmente, temos autores africanos reconhecidos internacionalmente, com
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A desterritorialização é assim definida como um processo voluntário ou forçado, violento, de perda de território
Nosso céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores ” (GONÇALVES, 1959, p103) 2
Percebemos ao ler que o autor encontra se afastado de sua terra, e nesse poema ele faz uma comparação entre a terra em que está e a sua pátria enaltecendo as características presentes na mesma
Em comparação com o poema de Gonçalves Dias, temos o poema “A minha terra”, que faz parte do livro "Espontaneidades da minha alma: Às senhoras africanas”, publicado em 1989 do autor luandino José da Silva Maia Ferreira.
Nesse poema, embora se percebam similaridades com o poema de Gonçalves Dias, ele não faz uma comparação exaltando a sua terra, mas sim, ele realça Portugal e o que não tem na terra dele como vemos nos trechos abaixo
“Minha terra não tem os cristais Dessas fontes do só Portugal Minha terra não tem salgueirais, Só tem ondas de branco areal
Em seus campos não brota o jasmim, Não matiza de flores seus prados, Não tem rosas de fino carmim, Só tem montes de barro escarpados ( )” (FERREIRA, 2018, p34)
Nessas duas primeiras estrofes percebemos que o autor embora mantenha o mesmo tom de Gonçalves Dias não segue pela mesma linha, enfatiza as características europeias trazidas pelos portugueses que povoam o imaginário dos africanos colonizados, mas mostra que o seu território é feito de outras belezas Em outros versos do poema o autor realça a força de seu povo e a saudade que sente de sua terra, que pode ser uma referência a “Canção do exílio" já que este poema se destaca nisso (Vieira, 2015, p. 10) Nos trechos abaixo, podemos ver quando ele fala de seu povo e sua terra,
Nesses montes percorre afanoso, A zagaia com força vibrando, O africano guerreiro e famoso A seus pés e panthéra prostrando [ ]
[ ] Mesmo assim rude, sem primores d’arte, Nem da natura os mimos e bellezas, Qu’em campos mil a mil vicejam sempre, É minha pátria!
Embora a sua terra se diferencie da matriz portuguesa no tipo de belezas naturais, sua pátria é o lugar onde cresceu e aprendeu sobre suas origens, é o lugar com o qual ele consegue se identificar e do qual sente saudades
de Jorge Amado entre os leitores africanos
Presença
Para os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa ou PALOPs, a figura literária de Jorge Amado é reconhecida, pois ele como autor abre uma perspectiva histórico literária dando ênfase principalmente às questões sociais. Os principais rumos que impulsionam os romances na década de 1930 foram as relações sociais, o autor em suas obras tinha a preocupação em trazer a realidade vivenciada pelos afro descendentes; além disso, tem se o fato de que passou se a encontrar na cultura afro brasileira matérias primas e coletâneas literariamente significativas Muito se estudou sobre as enunciações do negro, da raça e da mestiçagem na obra de Jorge Amado A apropriação que o autor exerceu da questão racial e afro brasileira se consagrou (COSTA, 2011, p 79)
Minha pátria por quem sinto saudades Saudades tantas que o peito ralam [ ] (FERREIRA, 2018, p39)No decorrer dos anos, Jorge Amado foi se se consagrando como autor que iniciaria a especular sobre a figura do negro e o universo simbólico ligado à cultura afro brasileira, expressando as desigualdades de classes. Assim, a ligação de diversos elementos biográficos, sociais e regionais colaborou para que o autor pudesse ofertar um produto próprio quando se fala de prática literária brasileira Desta forma, seu romance “proletário”, descobriria no negro e na condição racial fundamentos para dar formas para as ficções revolucionárias da essência de suas obras
Segundo Bergamo (2020), percebe se que as obras de Jorge Amado tem a presença de aspectos periféricos evidenciando a exploração do trabalhador do campo e da cidade, a presença rigorosa do latifúndio que impede a ocupação do solo, as dificuldades da inserção de novos atores no espaço público democrático, como a mulher e o negro e o descaso com as crianças Essas características presentes nas obras de Jorge Amado serviram de inspiração a autores estrangeiros, principalmente, para obras de literaturas africanas em língua portuguesa (BERGAMO, 2020, p.119). A partir dessa ponte literária é que surgiu uma literatura mais expressiva e empenhada nesses países africanos, como Angola Cabo Verde e Moçambique
Já falamos aqui da grande inspiração que Jorge Amado representou para os escritores africanos de Língua Portuguesa, o autor não foi exclusivamente o mais lido, mas o que mais os influenciou Temos um tripé composto por Jorge Amado, Brasil e África Contudo, não podemos defini los como uma vivência; Jorge Amado, por exemplo, é um autor de inúmeras e variadas vozes afro descendentes. Já a África, apresenta grande diversidade cultural, étnica e linguística
E o Brasil segundo Mia Couto (2012, p 187) “não é apenas de origem africana; como ele guarda uma África que, em larga medida, já não existe no próprio continente africano”
Jorge Amado foi um autor baiano que caiu na graça do povo brasileiro e também na de leitores africanos, e isso se deu, por todo o seu carisma, sua espontaneidade e sua impecável qualidade de construir personagens que jamais serão esquecidos pelos leitores Os escritores, com seus personagens, tanto de lá como de cá, traziam uma sincronia, pois suas vivências tinham muito em comum (COUTO, 2012, p 189 190)
Para percebermos a influência de Jorge Amado nos autores africanos, temos abaixo dois trechos de poemas dos escritores Baltazar Lopes de Cabo Verde e Noêmia Souza de Moçambique que foram escritos em homenagem ao autor:
Exemplo 1
“A Jorge Amado esta voz do irmão desconhecido: Para que no seu território haja o abraço de outra latitude Para que Zumbi dos Palmares ilumine também os meninos da ponta de praia, os rocegadores de carvão e as velas de faluchos e a Princesa de Aioká leve os meus marinheiros para o seu palácio do fundo do mar Para que o moleque Balduíno pegue novamente as goiabas de vez no quintal do Comendador Para que os meus contrabandistas atravessem o canal na companhia de Guma e Lívia espere os meus marinheiros no cais quando anoitece subitamente no mar ” (LOPES, 1986 p 84 apud BERGAMO 2020 p 121)
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“O cais
O cais é um cais como muitos cais do mundo As estrelas também são iguais às que se acendem nas noites baianas de mistério e macumba (que importa afinal que as gentes sejam moçambicanas ou brasileiras, brancas ou negras?)
Jorge Amado, vem! Aqui nesta povoação africana o povo é o mesmo também é irmão do povo marinheiro da baía, companheiro Jorge Amado, amigo do povo, da justiça e da liberdade” (SOUZA, 2016, p 125)
Ao ler os trechos acima, podemos ver que nos dois poemas Jorge Amado é tratado como “irmão desconhecido” “companheiro” e “amigo do povo ” , esse tratamento se dá a partir de suas obras, esses poetas se sentem próximos de Jorge Amado pois encontraram em seus livros elementos e realidades com as quais eles se identificavam
Referências:
BERGAMO, Edvaldo Aparecido Jorge Amado na África: literatura imprensa e colonialismo Cerrados: Revista do programa de Pós Graduação em Literatura, v 52, p 116 126, 2020 Disponível em: https://periodicos unb br/index php/cerrados/artic le/view/29435/27535
COSTA Sérgio Luiz de Souza Jorge Amado: a margem que faltava Encontros, n 17, 2011 Disponível em: http://cp2 g12 br/ojs/index php/encontros/article/v iew/291/232
COUTO, Mia Jorge Amado 2012. Via Atlântica, São Paulo, n. 22, 185 194, 2012. Disponível em: https://www revistas usp br/viaatlantica/article/vie w/51694/55758
FERREIRA, José da Silva Maia. Espontaneidades da Minha Alma: Às senhoras africanas. Porto, 2018 Disponível em: http://web letras up pt/ftopa/Livros/Maia%20Ferre ira
Espontaneidades%20da%20minha%20alma pdf MARTINS, Vima Lia; MORAES, Anita Martins Rodrigues de O Brasil e a poesia africana de língua portuguesa. Itinerários Araraquara n 30 p 65 84, jan /jun 2010 Disponível em: https://periodicos fclar unesp br/itinerarios/article/ view/2996
NASCIMENTO, Carolina Machado A literatura africana de expressão portuguesa e a construção da identidade afro-brasileira Revista eletrônica do ISAT v 11 n°1 p 1 10 2018 Disponível em: https://www revistadoisat com br/numero11/1%20 Carolina Literatura Africana pdf SECCO, Carmen Lucia Tindó Travessia e rotas das literaturas africanas de língua portuguesa. Légua & meia revista de literatura e diversidade cultural Feira de Santana,n°1, 2002 Disponível em: http://periodicos.uefs.br/index.php/leguaEmeia/ar ticle/view/1717/1155
SOUSA, Noémia Sangue negro. São Paulo: Kapulana, 2016. (Série Vozes da África) VIEIRA, Júlio César À minha terra: leitura do sentimento nativista na poesia de Maia Ferreira e Gonçalves Dias. Jangada: Colatina/Urbana, n 6, jul dez, 2015 Disponível em: https://www revistajangada ufv br/Jangada/article /view/92/106
OSILÊNCIODASPERSONAGENSEM “VIDASSECAS”-OBRAEFILME
Andriele Soares Zanatto e Nicole de Souza Fernandes
A obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, publicada em 1938, conta a história de uma família de retirantes sertanejos, formada pelas personagens Sinhá Vitória, Fabiano, a cachorrinha Baleia, os filhos que ganham os nomes de “Menino mais velho” e “Menino mais novo ” , os quais, de tempos em tempos precisam se deslocar para áreas menos castigadas do sertão nordestino Graciliano nos traz uma literatura regionalista, durante a segunda fase modernista, que transforma o autor em um dos mais importantes representantes desta tendência literária Essa escrita tem como objetivo evidenciar o silêncio das personagens na obra, o motivo que leva o autor a escolher uma narrativa silenciosa deixando o leitor em muitos momentos agoniado pela falta ou a mínima comunicação entre os mesmos O filme Vidas Secas (1963) dirigido por Nelson Pereira dos Santos, nos traz uma nova perspectiva do silêncio: apesar de ainda termos a mínima comunicação entre os personagens conseguimos ter uma amplitude de sons, como os passos dos personagens, o latido da cachorra Baleia entre outros sons que surgem no ambiente em que se passa a história De acordo com a interpretação das autoras do texto, o silêncio aparece na obra como uma manifestação de revolta com a realidade que os circunda
da função do sujeito discursivo podendo ocupar mais de uma posição de sujeito no texto Com isso, há uma reflexão a partir da atuação da ideologia que constitui qualquer e toda prática discursiva. Além disso, o texto é considerado um espaço discursivo heterogêneo, pois é produzido por sujeitos autores sendo estes ideologicamente interpelados por uma determinada ideologia que se representa através de diferentes posições sujeitos inscritas em uma ou mais formações discursivas
Por se sentirem excluídos socialmente, estarem isolados do resto da sociedade, as personagens vêem o silêncio como algo acolhedor que impõe um mecanismo de defesa, Fabiano acredita que a palavra pensada vale mais do que a palavra falada, é mais verdadeira Defender se no silêncio é como se fosse o último refúgio da dignidade humana. Não se sentem nem humanos, e para eles é bom perderem um pouco essa humanidade porque assim acreditam que vão sobreviver ao sertão rigoroso, pois pensam que o ser irracional possui mais qualidades e inteligência do que o homem:
No entender de Orlandi, “ o silêncio não são palavras silenciadas que se guardam no segredo sem dizer O silêncio guarda um outro segredo que o movimento das palavras não atinge” (ORLANDI, 2007, p 69)
Veja se o exemplo no excerto a seguir:
Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta Conteve se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar se ouvindo o falar só E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente Corrigiu a, murmurando: Você é um bicho, Fabiano Isto para ele era motivo de orgulho Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades (RAMOS, 1977, p11) INFORME LETRAS 13ª EDIÇÃO 2447 1895
características similares principalmente com a estética da seca
Silêncio esse que também retrata a ausência de habilidade na fala e a falta de escolarização dos personagens Pode se dizer também que é um recurso usado pelo autor para chamar a atenção do leitor de certa forma, causando cansaço irritação com a narrativa extensa, sem muitas pausas e poucos diálogos como também para retratar e passar aos leitores a tristeza causada pela seca vivida pelos personagens da história narrada, criando assim uma comoção A escolha do autor por uma narrativa em terceira pessoa na obra é mais um aspecto sobre esse silêncio, comprovando que os personagens possuem uma dificuldade em se comunicar
A poética do espaço de Ramos em Infância, escrita anos depois de Vidas Secas é marcada por casa, escola, mãe e pai opressores O escritor, depois de sair desse ambiente familiar, já adulto, continuou a sofrer processo opressor, em que a prisão da infância continuou fazendo parte de sua identidade de narrador e personagem de si mesmo, como ex preso político e autor de Memórias do Cárcere, um clássico da literatura brasileira O narrador autobiográfico de Infância, consciente de seu fazer literário, deixa ao leitor pistas sobre o fio condutor de sua narrativa pelo labirinto da história pessoal, em exercícios de metalinguagem e de fabulação que unem história de vida, memórias e ficção Seco enquanto estilo; profundo, fluente e influente, enquanto conteúdo reflexivo (ROIG, 2016, p3)
No trecho em que Fabiano é preso injustamente e sente que os homens que são responsáveis pela lei não estão cumprindo com o seu papel quando prendem um homem de bem, podemos encontrar mais uma similaridade com a vida do autor, já que o mesmo foi preso na Era Vargas, e assim através da sua escrita Graciliano pode expressar sua insatisfação com o governo, ou como diria Fabiano “ os homens que mandavam”.
Ora, o soldado amarelo Sim, havia um amarelo, criatura desgraçada que ele, Fabiano, desmancharia com um tabefe Não tinha desmanchado por causa dos homens que mandavam Cuspiu, com desprezo: Safado, mofino, escarro de gente Por mor de uma peste daquela, maltratava se um pai de família Pensou na mulher, nos filhos e na cachorrinha [ ] Então porque um sem vergonha desordeiro se arrelia, bota se um cabra na cadeia, dá se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara se a todas as violências, a todas as injustiças E aos
conhecidos que dormiam no tronco e agüentavam cipó de boi oferecia consolações: "Tenha paciência Apanhar do governo não é desfeita” Mas agora rangia os dentes, soprava Merecia castigo? Ah! E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar (RAMOS, 1977, p17)
Uma outra perspectiva para o silêncio está relacionada ao título da obra, é um lugar seco, as vidas são secas, e os personagens são secos como se seus sentimentos estivessem enraizados naquele lugar que já não possui vida Fabiano e a sua família acabam usando os seus outros sentidos na falta de uma comunicação oral porém se sentem inseguros quando são colocados em situações que fogem do seu contexto social, essa falta de falas muitas vezes fazia com que eles se sentissem e se colocassem como animais Segundo Orlandi, o silêncio se manifesta como fundante ou fundador “Todo processo de significação traz uma relação necessária ao silêncio” (ORLANDI, 2007, p29)
No início da obra a família possuía um papagaio que não falava, apenas imitava o som de outros animais que passavam pelo caminho dos retirantes e reproduzia os latidos da cachorrinha Baleia a ave era vista como um animal inútil para a família porque não tinha aprendido a “falar”, eles simplesmente não conseguiam entender que a falta de comunicação fazia com que o papagaio não imitasse as palavras, como mostra o trecho a seguir
Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertada de mais os retirantes e por ali não existia sinal de comida Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetivos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se
equilibrava mal Fabiano também às vezes sentia falta dela mas logo a recordação chegava [ ] Sinhá Vitória queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos [ ] Despertara a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula Resolvera de supetão aproveitá lo como alimento e justificara se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil Não podia deixar de ser mudo Ordinariamente a família falava pouco E depois daquele desastre, viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas (RAMOS, 1977, p5)
No filme conseguimos nos sentir mais incomodados com o silêncio, apesar de termos os sons do ambiente a história acontece de uma forma mais lenta, não temos muito diálogo entre os retirantes, é um filme em preto e branco, mesmo que na época das gravações já existissem recursos cinematográficos que possibilitavam a cor no cinema, porém essa estratégia foi usada para vermos uma outra perspectiva do sertão Na obra descreve se que era um lugar seco e sem vida, e para o cinema a melhor forma de evidenciar que o lugar não possuía vida era tirar as cores do cenário Livro e filme iniciam se com uma fuga e terminam com uma nova partida, dando a entender que eles nunca irão pertencer a algum lugar
A adaptação do romance de Graciliano nos apresenta um filme quase mudo Na tentativa de comunicação entre sinhá Vitória e Fabiano existem apenas frases jogadas, uma sobreposição sonora dos seus desejos, mostrando que ambos não se escutam e que a comunicação não possui tanta importância quando se está lutando para sobreviver A concepção de silêncio da obra e filme se assemelham apesar de não termos uma narrativa que nos mostre as perspectivas de cada
personagem, os recursos cinematográficos nos ajudam a perceber esse silêncio e fazer a comparação com a obra, diante dessa falta de comunicação estar ligada ao fato dos personagens se sentirem deslocados e oprimidos
RAMOS, Graciliano Vidas Secas Rio de Janeiro: Record, 1977. Disponível em: <https://lelivros love/book/download vidas secas graciliano ramos em epub mobi e pdf/> Acesso em: 20 set 2022
De acordo com a obra Literatura comparada de Tania Franco Carvalhal "A literatura comparada é uma forma específica de interrogar os textos literários com outros textos, literários ou não, e outras formas de expressão cultural artística". Assim, podemos dizer que o filme é uma representação bastante fiel da obra literária, ele faz uma representação dos momentos e paisagem que são descritas no livro.
Assim sendo, o silêncio é tido na obra Vidas Secas como uma estratégia comunicacional para transmitir aos leitores e telespectadores sensações de espanto, compaixão e envolvimento com a história, o lugar retratado a seca as dificuldades vividas pela família de Fabiano, com o sentimento de revolta, tristeza e uma ponta de esperança, nos aproxima não só da história contada,mas também da história vivida até hoje pelos povos do mundo inteiro aproximando os da história contada
Referências:
CARVALHAL, Tania Franco Literatura Comparada 4° Ed São Paulo: Ática, 2006
ORLANDI Eni Puccinelli As formas do silêncio: no movimento dos sentidos 6ª Ed Campinas: UNICAMP, 2007
RAMOS, Graciliano Vidas Secas Rio de Janeiro: Record, 1977
ROIG, José Antonio Klaes Infância de Graciliano Ramos: a estética da seca no romance autobiográfico XVI Encontro de Pós Graduação FURG 2016 Disponível em: <https://mpu historico furg br/encontro de pos graduacao 2015? download=1794:jose roig&start=120> Acesso em: 12 set 2022
SANTOS Nelson Pereira dos Vidas secas Brasil [1962] 1963 105’, preto e branco Prod : H Richers, L C Barreto, D Trelles Distribuição: Sino Filmes Disponível em:< https://youtu be/m5fsDcFOdwQ> Acesso em: 25 ago 2022
VIDASSECAS EAESTÉTICA DAFOME
Maria Clara Ramos PetrarcaBrasil e o mapa mundial da fome Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), no ano de 2014, o Brasil chegou a menos de 4 milhões de habitantes em segurança alimentar, saindo, então, do Mapa Mundial da Fome Porém a partir do ano de 2015 a 2021, aproximadamente 15 milhões de brasileiros passaram fome, e, com a chegada da pandemia causada pelo vírus da Covid 19 esses números apenas obtiveram a inclinação a aumentar, pois cerca de 15 milhões de brasileiros ficaram desempregados, conforme o registro feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
Portanto esse assunto é uma questão antiga que vem se intensificando na sociedade à medida que aumentam as desigualdades sociais No que se refere à subnutrição, existem diversas manifestações, embates e lutas, tanto dos setores dominantes, quanto da classe subalterna em busca de soluções a esses problemas enfrentados E se nós olharmos para o passado, em meados do século XIX ao século XX, dispuseram inúmeros confrontos sociais liderados pelas classes populares, que mesmo ao tentarem trazer uma solução aos mais necessitados, essas lutas eram classificadas como “revoltas”, pois a população não enxergava a realidade complexa que estava por trás destas manifestações
Desta forma, que tipo de relação há entre esse tema e a obra de Graciliano Ramos? Vidas Secas nos traz a ambientação do sertão nordestino, cujas personagens principais são Fabiano Sinhá Vitória (esposa de Fabiano), a cachorra Baleia e seus filhos que não possuem nome, sendo assim, são comumente chamados somente de “menino mais velho” e “menino mais novo ”
E quando nós falamos sobre o contexto social e histórico do país na qual a obra foi escrita, existe uma forte questão política e geográfica que beneficiava os grandes latifundiários e fazendeiros, características estas encontradas no período da República Oligárquica.
Com isso, podemos concluir que a pobreza, medida pela renda escassa, alcança mais de um quarto da população brasileira e propaga se por todas as regiões do país, angustiando, principalmente, as populações do Norte e Nordeste, e ainda mais particularmente, a população rural dessa última região A desnutrição, com base no retardo do crescimento infantil, alcança cerca de 10% das crianças do país e se dissemina ao longo do território nacional de forma similar à pobreza, mesmo havendo diferenças regionais mais intensas
Agora se recordava da viagem que tinha feito pelo sertão a cair de fome
As pernas dos meninos eram finas como bilros, Sinha Vitória tropicava debaixo do baú de trens Na beira do rio haviam comido o papagaio, que não sabia falar Necessidade (RAMOS, p 22)
Quando nós paramos para analisar o título da obra "vidas secas" e separamos ambas as palavras buscando metáforas e significação, percebemos que "secas" não é somente sobre a falta de água, mas quando não há alimento e existe uma precariedade cultural A obra conta uma história sobre vidas que não são ficcionais pois o sertão nordestino traz exatamente essa separação econômica, social e cultural
Fabiano também não sabia falar As vezes largava nomes arrevesados, por embromação Via perfeitamente que tudo era besteira Não podia arrumar o que tinha no interior Se pudesse Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas (RAMOS, p 22)
Pensando nisso, existem outros dois tópicos dentro de Vidas Secas que conversam com os assuntos sociais de países como o Brasil, Haiti, Venezuela, Cuba, etc São eles:
A migração
Para contextualizar, a migração acontece no momento em que um grupo de pessoas se desloca pelo espaço geográfico buscando meios de sobrevivência Sendo assim uma das características mais marcantes na história de Vidas Secas é a migração da família de Fabiano e Sinhá Vitória, e por isso, muitas vezes na história, o autor utiliza a comparação das revoadas das aves de arribação, na qual esses são pássaros migratórios que vivem justamente no semiárido nordestino e acabam deixando esse espaço em períodos de seca
“Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava parada E ele, Fabiano, era como a bolandeira” (RAMOS, p 09)
“Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta Ele, a mulher e os filhos tinham se habituado à camarinha escura, pareciam ratos e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera ” (RAMOS, p 11)
Apesar de um dos fatores da migração ser por causa da seca, o assunto principal da obra não é a seca, e sim, a fome. Pensando nisso, a migração pode ser caracterizada em possíveis quatro etapas que conversam com a obra e a sociedade em contexto mundial:
Fatores econômicos é sobre a busca por oportunidades de trabalho;
Fatores sociais é sobre a busca por melhores condições de vida;
Fatores culturais é sobre a busca por identificação social;
Fatores ambientais é sobre a busca por locais que não inviabilizam a vida humana no geral
Em relação aos fatores listados anteriormente o que mais motiva a migração é o fator ambiental, pois entre os anos 2000 a 2017, 27% da população do Nordeste foi obrigada a se deslocar, portanto, mesmo que estas sejam razões que cabem perfeitamente em vidas secas, normalmente não é a maior causa atualmente
Vale ressaltar que existe uma diferença entre migrante”, “imigrante” e “emigrante” portanto migrante é o movimento de uma pessoa, grupo ou animal de um local para outro Imigrante é a entrada de uma pessoa em um país estrangeiro E emigrante é a saída de uma pessoa de seu país de origem a fim de viver em um diferente No caso da obra é "migração" porque a família de Fabiano e Sinhá Vitória estão, temporariamente, buscando um lar estável e saudável para viver. Quando pensamos em imigrantes podemos usar os habitantes de Cuba ou Síria chegando de barco no Brasil, com a intenção de fugir da guerra ou da fome, em busca de sobrevivência
Ambos os casos servem como exemplo dentro da obra e quando observamos a humanidade de forma social, econômica e geográfica.
E quando mencionamos os imigrantes o Brasil acolhe cerca de 22,5 milhões de refugiados e a maior parte deles é proveniente de países como a Síria (2 554 refugiados), Angola (1 477 refugiados), Colômbia (1 141 refugiados), República Democrática do Congo (1.089 refugiados) Palestina (421 refugiados) e Líbano (391 refugiados)
Gráfico da porcentagem de refugiados
A escassez da água
A vegetação básica que existe no sertão é a caatinga, na qual apresenta grande variedade de formações, todas adaptadas à prolongada estação de seca As temperaturas variam de 23 e 27 °C e a pluviosidade fica entre 2 000 e 3 000 milímetros Levando em consideração os valores médios anuais das chuvas, geralmente estas podem ocorrer em somente um mês ou se distribuem de forma irregular entre 3 a 5 meses geralmente no período entre abril a julho
No começo do texto foi apresentado que o ponto crucial da história da obra não era a seca, porém quando pensamos em plantação, é necessário levar em consideração a necessidade de água pois não há como desfrutar da produtividade agrícola quando não há água o suficiente para que isso aconteça Sendo assim, foi registrado no ano de 2016, no Piauí umas das maiores secas
já observadas diminuindo cerca de 30% o número de cabras e ovelhas do estado, uma vez com a seca em excesso, os açudes extinguiram se Por causa disso, os moradores dessa região se reuniram com a intenção de furar um poço artesiano, e mesmo essa ocasião não acontecendo pela primeira vez, os agricultores precisaram desembolsar cerca de R$10 000 para furar o terreno
Considerações finais
Sendo assim, para finalizar o texto, nós podemos tirar como conclusão o fato de que as diferenças identificadas na evolução da pobreza, da desnutrição e da fome confirmam a natureza diversa desses problemas e portanto podemos afirmar que por trás das águas cristalinas presentes nas praias onde quase toda a população brasileira idolatra, existe uma lacuna preenchida pela escuridão e que assim como em Vidas Secas existem outras inúmeras obras e demais indivíduos que sofrem com esse tipo de problemática a qual, como dito anteriormente, alcança mais de um quarto da população brasileira, mas, ainda assim, podemos interpretar e retirar da obra de Graciliano Ramos a identificação da existência de uma esperança em suas personagens sendo assim pode ser possível ainda hoje a permanência da fé, em muitas pessoas, de que dias melhores virão
Referências:
As causas da migração forçada no Brasil entre 2000 e 2017 Instituto Igarapé: pensa, conecta, transforma Disponível em: <Observatório de Migrações Forçadas (igarape org br)> Acesso em: 05 Out 2022.
Brasil volta ao Mapa Mundial da Fome Jornal da Band, 2021 Disponível em: <Brasil volta ao mapa mundial da fome | Band (uol com br)> Acesso em: 05 Out 2022
NICOLAU Analice Brasil no mapa da fome: Conheça o Movimento Circular e como ele pode ajudar a evitar o desperdício de comida Jornal de Brasília, 22 Jun 2022 Disponível em: <Brasil no mapa da fome: Conheça o Movimento Circular e como ele pode ajudar a evitar o desperdício de comida Jornal de Brasília (jornaldebrasilia com br)> Acesso em 05 Out 2022
RAMOS, Graciliano Vidas secas São Paulo: Record, 2019
Relatório indica que Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome em 2014 GOV 16 Out 2014 Disponível em: <Relatório indica que Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome em 2014 Português (Brasil) (www gov br)> Acesso em: 05 Out 2022
INFORME LETRAS: CEM ANOS DA SEMANA DE ARTE MODERNA: CELEBRAÇÃOOUREFLEXÃO?
Vera Medeiros: Me parece que a resposta para esta pergunta é: celebração e reflexão A forma de celebrar a passagem dos cem anos desse evento artístico e literário chamado “Semana de Arte Moderna” é refletir sobre o que ele representou no momento em que aconteceu, ou seja, em fevereiro de 1922
Quais as repercussões que ainda hoje esse evento literário que aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo traz pra nós; quais os significados que se mantiveram ao longo desses 100 anos e que fazem com que hoje esse evento possa ser celebrado ou os efeitos desse evento na cultura brasileira de um modo geral e na cultura literária mais especificamente possam ser celebrados
Cartaz do primeiro dia do festival da Semana de ArteModerna Cartaz da Semana de Arte Moderna, produzidos peloartistaDiCavalcantiIF: QUAIS OS ASPECTOS MAIS
QUE ALGUNS HISTORIADORES SE UTILIZAM PARA QUESTIONAR OS CEM ANOS DA SEMANADAARTEMODERNAEOQUEDIZERDOSDIVERSOSPONTOSDE VISTA E ARGUMENTOS CONSISTENTES DOS CRÍTICOS, QUE ATÉ DIMINUEM E DEFENDEM A IMPORTÂNCIA DO EVENTO QUE É A SEMANA DA ARTE MODERNA AO LONGO DESSES ANOS? QUAIS FATORES PREPONDERANTES QUE LEVARAM, PRIMEIRAMENTE AOS 50 ANOS DE SILÊNCIO EM TORNO DA SEMANA DA ARTE MODERNA, E LOGO APÓS ESSE PERÍODO, ELA SE TORNA UM MARCO DA CULTURA E DA LITERATURABRASILEIRA?
VM: Para responder a isso, eu vou me valer de dois artigos: O primeiro escrito pelo crítico pensador da cultura brasileira, escritor e jornalista Ruy Castro que tem como título “Como a Semana de 22 virou vanguarda oficial depois de 50 anos esquecida” Esse artigo foi publicado no jornal Folha de São Paulo em fevereiro de 2022. Nesse artigo o Ruy Castro apresenta uma posição bastante crítica em relação à Semana de Arte Moderna, dizendo que a Semana, que costuma ser tratada como um momento, um marco que colocou fim ao parnasianismo e ao soneto, a uma linguagem bastante elaborada e rebuscada,
como ele diz “ os pronomes bem colocados” E ele questiona justamente essa condição e importância que é dada a Semana de Arte Moderna como um fato que trouxe o modernismo e todo um contexto e um cenário de desenvolvimento, de novidades e descobertas no campo artístico, cenário esse que havia se estabelecido no continente Europeu desde o início do século XX, e que no Brasil então, vai se afirmar nos anos 20 com a Semana Segundo o autor há um entendimento que foi isso que aconteceu, que todo o contexto, a virada do século, as
as modernidades e as inovações observadas no continente Europeu entraram no Brasil com a Semana de Arte Moderna, é isso que a crítica cultural literária sustenta há um bom tempo Porém, o Ruy Castro discorda dessa posição Ele diz que não vai ser a Semana de Arte Moderna que faz isso, que o cenário e o contexto de modernidade e modernização do país já estava colocado aqui, e que a visão que hoje em 2022 nós temos da Semana de Arte Moderna, uma visão que destaca a importância desse evento de três noites e não de uma semana, essa é uma visão que se intensificou de 1972 para cá, ou seja, por ocasião dos 50 anos da Semana de Arte Moderna Acontece então uma redescoberta ou até uma descoberta deste evento e uma valorização dele, de modo que ele vai começar a se constituir e a se consagrar como um evento central na formação do modernismo brasileiro, coisa que não acontecia antes Essa é a crítica que o Ruy Castro faz em relação a Semana. Ela não foi recebida imediatamente como um evento marcante, foi preciso que decorresse algum tempo para que ela fosse percebida dessa maneira Para dissolver o posicionamento de uma crítica majoritária em relação a Semana de Arte Moderna, o autor vai se debruçar sobre um dos personagens centrais para a Semana de Arte Moderna, que é o Oswald de Andrade Ele mostra que essa figura passa por um processo de transformação pessoal no campo das ideias, nos contextos por onde ele circulava e que esse movimento do Oswald de Andrade também contribuiu para a imagem que a Semana de Arte Moderna tinha, para a forma como ela era vista pela crítica literária. Oswald de Andrade é preocupado em apresentar a Semana de Arte Moderna e a si mesmo como um progressista a partir dos anos 40 O que o Oswald escreveu, sobretudo as obras mais críticas, vai
destacar o caráter progressista e inovador da Semana de Arte Moderna e isso vai contribuir para mudar a imagem e a forma como a sociedade via a Semana Um outro fato que o Ruy Castro menciona nessa tentativa de redescoberta da Semana de Arte Moderna que se dá em 1972, tentativa muito bem sucedida, diga se de passagem, é o aproveitamento, a forma como o governo militar se aproveitou da Semana de Arte Moderna no momento de comemorar o sesquicentenário da Independência
Ele destaca a centralidade que o governo militar, em 1972, confere a Semana de Arte Moderna, então eles tomam a comemoração dos 50 da Semana, dentro do evento que vai comemorar os 150 anos da independência do Brasil, e ela passa a ser vista como um evento central da cultura brasileira contemporânea Ruy Castro afirma que o governo usou o sesquicentenário da Independência para gerar um sentimento ufanista e positivo e que em função disso, desse aproveitamento de um evento artístico literário feito para atender a motivações políticas, gerou alguns subprodutos, como ele vai chamar Então, toda obra do Oswald de Andrade foi reeditada a preços mais acessíveis o que evidentemente favoreceu a circulação dessa obra , questões de vestibular sobre o Oswald
e o Mário de Andrade começam a se tornar mais frequentes, há ainda a aquisição da biblioteca, do arquivo do Mário de Andrade, que é feita pela Universidade de São Paulo O governo de São Paulo compra a biblioteca do Guilherme de Almeida que era outro integrante do grupo, começam a surgir exposições e essas são levadas também para fora do país Então tudo isso colabora para que haja uma verdadeira redescoberta da Semana de Arte Moderna, na visão do Ruy Castro O que passamos a entender é que a redescoberta, a valorização da Semana de Arte Moderna em 1972, ou seja, 50 anos depois de transcorrido o evento, ela se deve principalmente a questões políticas e de poder O governo acaba incentivando, vendo naquele movimento uma forma de destacar o sentimento ufanista, nacionalista que era muito explorado naquele período, por isso que há uma valorização da Semana de Arte Moderna Ora, por conta desta forma como o evento vai se projetar a partir de 1972, na visão de Ruy Castro é que ele faz a sua crítica Não foi uma motivação literária ou o público leitor que descobre ou redescobre a Semana de Arte Moderna, suas obras e seus autores Há um incentivo por parte do governo brasileiro de modo geral, principalmente por motivações políticas e depois um incentivo por parte de diferentes instituições no estado de São Paulo que acabam projetando essas obras e autores e vem daí a sua importância. Assim, a importância do evento tem principalmente uma motivação política Essa é a opinião do Ruy Castro para justificar o questionamento que ele faz da Semana de Arte Moderna O outro autor em que eu me baseio é o Luís Augusto Fischer, num artigo também publicado na Folha de São Paulo em dezembro de 2021 intitulado “Consagração da Semana de 22 impôs falsa ideia de que São Paulo foi o berço do modernismo”
Nesse artigo, o Fischer vai destacar o fato de que a Semana vai ser difundida como um período ou evento de profunda modernização do país, mas na verdade essa modernidade já estava presente no Rio de Janeiro Para ele, o Rio já era moderno e conhecia, praticava e discutia uma cultura popular urbana vibrante, abordava questões como conflitos sociais da sociedade de classes, feminismo, divorcio, defendia os estados alterados da consciência. Então, tudo isso já circulava na produção literária que se fazia principalmente no Rio de Janeiro, o autor se pergunta, o que faltava no Rio de Janeiro já moderno? Nacionalismo, Indianismo literário, ânsia de ruptura, estes traços são próprios do modernismo paulista A crítica que o Luís Augusto Fischer faz a essa centralidade da Semana de Arte Moderna na cultura brasileira, na opinião dele e de outros como o Ruy Castro que eu mencionei antes, a crítica é que a Semana não inaugura o moderno ou o modernismo no Brasil. Várias condutas e atitudes identificadas como modernas já eram encontradas no Rio de Janeiro que era a capital do país naquele momento e que era uma cidade muito pulsante, ao contrário de São Paulo, que estava apenas no começo do seu desenvolvimento, estava despontando, mas o Rio de Janeiro era o centro da cultura brasileira. O autor percebe que a Semana de Arte Moderna, o lugar, a centralidade que esse evento ocupa hoje, na cultura brasileira e literatura brasileira é resultado de um processo de uma longa construção que demorou cerca de 50 anos para se impor e que essa se deve tanto a presença e ao trabalho de alguns intelectuais no plano da crítica e da historiografia quanto a atuação de instituições O crítico Luís Augusto Fischer também
destaca, como Ruy Castro, que a Semana de Arte Moderna é aproveitada em 1972 na comemoração dos 150 anos da Independência. Os dois críticos concordam neste aspecto e ainda o Fischer pontua que foi feito um apagamento da importância de outros lugares brasileiros e estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, em que havia atitudes autores, obras de caráter modernista e que eles não receberam o mesmo destaque. O que esses dois autores criticam é o fato de que parece que modernismo no Brasil só existiu a partir da semana de 22 e eles dizem que não, que o Rio de Janeiro era a capital do país e tinha uma vida cultural muito efervescente e muito moderna com inovações e com tudo aquilo próprio da estética modernista Eles identificam isso em outros estados como inclusive Rio Grande do Sul, que tinha escritores que faziam suas obras dentro de preceitos identificados com o modernismo e que portanto não se deve a semana de 22, o momento o marco inicial da eclosão de tendências estéticas contemporâneas aqui no país Também ambos são bastantes críticos ao fato de que a Semana de Arte Moderna se torna esse evento tão importante nas letras brasileiras por obra do governo militar
IF: QUAL
A IMPORTÂNCIA ARTÍSTICA
E CULTURAL DA SEMANA DE 22
PARA O ENSINO, PRINCIPALMENTE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES E PROFESSORAS, O QUE PODE SER FEITO PARA MELHORAR COM RELAÇÃO A FORMA COMO É CONTADA A HISTÓRIA DA LITERATURA E COMOPODESERINSTITUÍDOOCÂNONELITERÁRIO?
VM: A importância da Semana é igual a importância de qualquer outro evento, fenômeno ou fato referente ao campo literário, sobretudo quando se pensa no letramento e na apresentação da cultura literária É um evento que é importante, porque coloca e traz junto com outros, algumas questões da produção artística, da mentalidade do século XX que traz para o cenário brasileiro e introduz algumas atitudes e posturas intelectuais e artísticas que vão vigorar e permanecer fortes ainda nos dias de hoje Lembramos de um artigo do artista Mário de Andrade que esteve presente no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em fevereiro de 1922, e se envolveu bastante neste movimento modernista, no que ele tem de mais abrangente e aprofundado Então, em 42, Mário de Andrade escreve um texto, cujo o título é “O Movimento Modernista” onde faz
um balanço do movimento modernista, e diz que a contribuição da Semana de Arte Moderna pode ser percebida na fusão de três princípios fundamentais: O direito à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira e estabilização de uma consciência criadora nacional. O próprio Mário de Andrade aponta que esses princípios não correspondem a inovações ou melhor não se trata de algo que não existia e passa a existir, mas conjugados eles acabam repercutindo e atuando dentro da consciência coletiva Então, quando pensamos na importância artística e cultural da Semana de 1922, consideramos outros momentos dessa produção O fato é que em 1922 temos um evento que surge a partir de princípios, de ideias de um grupo que atua e representa uma postura artística, o que Mário de Andrade chama de consciência coletiva Eu acho que essa é uma importância ou uma das razões pelas quais a semana é um evento literário importante e interessante de ser observado De alguma maneira, ele colabora para que a produção artística brasileira atravesse o século XX, mantendo uma certa postura crítica buscando isso que ele chama da inteligência artística brasileira, que são ideais de atualização e de experimentação formal, que foram colocados, de uma maneira programática pela Semana de Arte Moderna, então vejo aí a importância da Semana, me aproveitando também das palavras do Mário de Andrade Uma outra forma de perceber essa
importância é perceber que ela mobiliza tantas reflexões neste ano em que se assinalou o centenário desse evento, textos, autores, estudos, alguns favoráveis e outros críticos da Semana Temos um disco e show do Emicida, “Amarelo”, que faz uma defesa, um elogio a Semana de Arte Moderna Então, a gente vai ter depoimentos importantes que vão resgatar e valorizar a importância da Semana Temos outros textos, ideias e intelectuais importantes mostrando quais são as limitações de ter dado esse lugar tão destacado na produção literária nacional. A importância de termos o privilégio de observarmos o questionamento em torno de um conteúdo que está lá nos livros didáticos Por meio das discussões dos autores, é que podemos observar que não são conteúdos inquestionáveis, pois quando vamos estudar a literatura por meio de uma abordagem histórica, destacando fatos ou eventos, essa abordagem sempre vai passível de colocar e recolocar conteúdos ali . Se eu estou vendo toda essa reflexão que se faz em torno do centenário da Semana da Arte Moderna e for olhar o material didático de larga difusão que é fornecido para as escolas por exemplo, eu vou ser obrigada a relativizar isso, eu não posso mais falar da Semana de Arte Moderna sem apontar os questionamentos feitos pelos importantes críticos que eu mencionei aqui Então, esse é também um fator de destaque nesse sentido quando dizemos que somos privilegiados porque estamos aqui acompanhando o questionamento de um fato, de um evento e de um conteúdo porque como a literatura é muito dinâmica e ela não é definida como algo estável como se houvesse uma essência do que é literário, mas ela se faz em constante interação com a sociedade
Na medida que a sociedade olha para aquele período, evento, obras de uma maneira diferente isso tudo vai provocar necessariamente uma revisão Então, a importância artística e cultural da semana para o ensino podemos ver em termos do que representou esse movimento exatamente, mas também em termos da discussão que se faz hoje para redimensionar o significado da Semana, eu acho isso muito saudável, o que nós temos de efetivo, estático é a obra de arte, extático no sentido de a obra de arte os poemas, romances de Oswald de Andrade, do Mario de Andrade e de outros autores, textos estes que permanecem. O que muda? O sentido que nós atribuímos a esses textos ao longo das décadas, do século que essas obras estão entre nós, isso muda, mas os textos permanecem ali para que a gente possa derramar sobre eles os nossos olhares que vão se transformando ao longo do texto
IF: A EXEMPLO DO QUE OCORREU NAS COMEMORAÇÕES DO CINQUENTENÁRIO DA SEMANA E DOS 150 ANOS DA INDEPENDÊNCIA, COMPARADOS AOS 100 ANOS DA SEMANA COM OS 200 ANOS DA INDEPENDÊNCIA, O QUE PODE SER DITO EM RELAÇÃO AO APROVEITAMENTO DESTE MOMENTO HISTÓRICO PARA O AVANÇO NO CONTEXTOCULTURALELITERÁRIODOBRASIL? INFORME LETRAS 13ª EDIÇÃO 2447 1895
Então, essa ideia de copiar o que vem de fora, os modernistas vão pontuar isso e vão buscar uma alternativa para esta convivência, dentro de um panorama de diversidade Oswald de Andrade vai usar a ideia de antropofagia numa perspectiva cultural Vejam, essa é uma das contribuições do modernismo para a cultura brasileira ainda vigente Enfim, em relação aquilo que se fez em 1972, quando se comemorava os 50 anos da semana e 150 anos da independência, neste ano a gente não teve algo na mesma dimensão, mas tivemos com esses artigos, vários estudos e publicações , houve ali um movimento de repensar sobre esse aniversário, mas num contexto um pouco diferente porque o mundo é mais complexo e dinâmico, então nem caberia aquele tipo de aproveitamento que foi feito lá em 1972
IF:ÉCOMUMNOSDIASDEHOJEVERMOSCOMOSEFAZESEDESFAZO CÂNONE LITERÁRIO. O QUE DIZER DOS ACONTECIMENTOS
SOBRE LITERATURA QUE SÃO CONSTRUÍDOS E DESCONSTRUÍDOS? E O QUE OS 100 ANOS DA SEMANA DE ARTE MODERNA PODE VIR A CONTRIBUIR NESTESENTIDO?
VM: O que dizer desse faz e desfaz do cânone literário é exatamente o movimento que a gente deve saudar. O cânone ele não é de fato imutável, ele é estabelecido e ao mesmo tempo é constantemente revisto, e é bom que assim o seja, porque quem estabelece que obras são modelares ou são exemplares para uma sociedade, para uma comunidade, é essa própria comunidade que está em constante transformação. Então, se algumas obras permanecem como modelares enquanto elas dizem algo para aquela comunidade, depois que elas deixam de dizer elas acabam sendo substituídas, ou outras vão ingressando e se juntando a esse conjunto estabelecido. Então, me parece que este movimento de construção e desconstrução é um movimento próprio da sociedade e da arte e de toda a nossa produção Os cem anos da Semana de Arte Moderna nos trazem por um lado a comemoração de alguns aspectos da Semana e por outro a gente vai questionar. Por exemplo, há um questionamento sobre quem eram os grupos que se faziam representar naquele momento Hoje nós colocamos outros grupos Podemos apontar a exclusão dos negros, e resgatamos por exemplo a condição do Mario de Andrade como sujeito negro, gay, há cartas que muito recentemente foram reveladas em que ele afirma a sua orientação sexual e que permaneceram silenciadas por muito tempo, depoimentos de que ele foi alguém que sofria inclusive algum preconceito
por ser negro e gay e ao mesmo tempo há um silenciamento quanto a isso Então hoje, quando se comemora a Semana da Arte Moderna, se exige que se fale, como não vamos apontar essa condição negra, a negritude do Mário de Andrade, por que esconder isso? Nesse sentido é muito importante que a gente possa ver, rever, fazer e desfazer, incluir e excluir, obras, autores, tendências e pensamentos, esse movimento dinâmico ele assim possa ser revisto
IF: FRENTE A COMEMORAÇÃO DESSA DATA IMPORTANTE, PASSADOS 100 ANOS DA SEMANA DA ARTE MODERNA ALIADO AOS 200 ANOS DE INDEPENDÊNCIA DO BRASIL. QUAL O NOSSO PAPEL ENQUANTO AGENTESCULTURAIS?
VM: O nosso papel enquanto agentes culturais é o papel de estarmos nessa posição sempre, voltando ao Mário de Andrade, de quem se coloca numa posição de pesquisa estética, de parte de uma inteligência, de uma comunidade pensante e que está constantemente revendo posicionamentos, buscando ler de outra forma, para que assim a gente possa tornar esses autores, obras, momentos e movimentos significativos para cada tempo A gente não pode hoje olhar e avaliar a Semana da Arte Moderna como se estivéssemos em 1922 ou em 1972. Em 2022 a gente precisa ler a Semana da Arte Moderna com os instrumentos, as ferramentas, os valores e pensamentos do nosso tempo Então hoje quando eu penso na Semana de 22, eu penso nas obras, nos poemas que foram escritos, eu penso nas críticas que hoje nós fazemos, e isso tudo então, torna essa obra significativa hoje Como agentes culturais, temos que fazer esse movimento constante, de articular e aproximar passado e presente, o que veio, o que chegou até nós, e como nós conseguimos hoje olhar para essa produção, para todos esses eventos