BioPontal Francilelle EMMachadoAssis Anexo 47

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES AS RAZÕES DO IMPROVÁVEL

O tema da omissão parental é um mito, esse mito é produzido pelos professores, que ignorando as lógicas das configurações familiares, deduzem, a partir dos comportamentos e dos desempenhos escolares dos alunos que os pais não se incomodam com os filhos, deixando-os fazerem as coisas sem intervir. Mas há estudos que revela a injustiça interpretativa que se comete quando se evoca uma “omissão” ou uma “negligência” dos pais, pois há resultados de investigações que qualquer que seja a situação escolar da criança, tem o sentimento de que a escola é algo muito importante e demonstram que almejam para sua progênie um trabalho menos cansativo, menos sujo, menos mal-remunerado. Existem casos em que as rupturas são tão numerosas, e as condições de vida familiar, econômica, são tão difíceis que, ou o tempo, ou suas disposições sociais e as condições familiares estão a mil léguas das disposições e das condições necessárias para ajudar as crianças a “ter êxito” na escola. Alguns professores até parecem pensar que a ausência de relações, a ausência de contatos com algumas famílias (populares, é claro), explicaria o “fracasso escolar” das crianças. Por isso, é preciso fazer os pais irem, de qualquer jeito, à escola nas diversas reuniões, festas escolares, etc. Mas, mesmo que a ida dos pais ao espaço escolar pareça ser desejada por grande parte dos professores, isso não está desprovido de ambigüidade. Há professores que não gostam de “certas cobranças” por parte dos pais. O direito educativo de ingerência é, portanto, dissimétrico: os pais se vêem sendo aconselhados sobre a maneira de agir com seus filhos, mas os professores não gostam que lhes digam o que devem fazer. A presença objetiva de um capital cultural familiar só tem sentido se esse capital cultural for colocado em condições que tornem possíveis sua transmissão, é importante reconstruir as disposições sociais dos adultos, podemos nos perguntar o que é transmitido concretamente através das relações pais e filhos. Por isso, só podemos ficar desconfiados em relação a concepções que poderíamos qualificar de “ambientalistas” e que abordam os efeitos de um “meio” (familiar ou social) de maneira muito abstrata. Se o capital ou as disposições culturais estão indisponíveis, se “pertencem” a pessoa que, por sua posição na divisão sexual dos papeis domésticos, por sua situação em relação às pressões profissionais, por sua maior ou menor estabilidade familiar, por sua relação com a criança, não têm oportunidades de ajudar a criança a construir suas próprias disposições culturais, então a relação abstrata entre capital cultural e situação escolar das crianças perde a pertinência. Em contrapartida, o efeito,


em algumas escolaridades da presença constante de adultos que exercem disposições escolarmente harmoniosas a todo instante de maneira sistemática e duradoura. Isso se mostra particularmente importante em configurações familiares onde tudo depende do alto grau de vigilância dos pais. “Transmitir” ou “transmissão” entre aspas remetem a idéia de uma reprodução idêntica, de uma disposição (ou esquema) mental e levam, antes, a pensar em situações formais de ensino, nas quais um saber está explicitamente em jogo. Nas mais formais situações de aprendizagem o que o adulto julga “transmitir” nunca é exatamente aquilo que é “recebido” pelas crianças. Há um grande número de situações nas quais a criança é levada a construir disposições, conhecimentos e habilidades em situações “organizadas”, não conscientemente pelos adultos e sem que tenha havido verdadeiramente “transmissão” voluntária de um conhecimento. Nenhuma família é desprovida de objetos culturais, mas estes (principalmente os impressos) podem às vezes permanecer em estado de letra morta porque ninguém os faz viver familiarmente. A existência de um capital cultural familiar objetivado não implica forçosamente a existência de membros da família que possuem o capital cultural incorporado adequado à sua apropriação. Os pais compram enciclopédias para seus filhos, mas sem que possam acompanhá-los em suas descobertas desses objetos culturais. As crianças são, portanto, colocadas numa situação paradoxal uma vez que possuem objetos cuja ausência de utilidade familiar pode constatar todos os dias. E os livros estão fora do alcance das crianças, em relação ao seu conteúdo. Resultando na má compreensão de texto pelos leitores. Um capital cultural objetivado não tem efeito imediato e mágico para a criança se interações efetivas com ele não a mobilizem. Tratase, portanto, de um patrimônio cultural morto. Podemos observar que famílias fracamente dotadas de capital escolar ou que não possuam de forma alguma (caso de pais analfabetos) podem, no entanto, muito bem, através do diálogo ou através da reorganização dos papeis domésticos, atribuir um lugar simbólico ou um lugar efetivo ao “escolar” ou a criança “letrada” no seio da configuração familiar. As conversas com pelo menos um membro da família possibilitam verbalizar uma experiência nova. Da mesma forma, quando pais alfabetos ou com dificuldades na escrita pedem aos filhos escolarizados que os ajudem a ler ou escrever. O que se “transmite” de uma geração a outra é muito mais do que um capital cultural: um conjunto construído em relação à escola e à escrita de angústias e de humilhações, de reticências e de rejeições, em relação ao tempo, à ordem e as pressões. O estudo dos fenômenos “herança cultural” nunca deve omitir a análise da especificidade cognitivo que se herda. As mulheres se encarregam da educação dos filhos e, principalmente, do acompanhamento escolar


deles. Isso não deixa de produzir efeito nas escolaridades dos filhos, pois, da mesma forma que interpretações sociológicas já clássicas têm como objetivo as desigualdades sociais diante da escola nunca evocaram a natureza escrita dos conhecimentos escolares nenhuma das teses defendidas em relação ao “melhor êxito” escolar das meninas na escola primária (nos meios populares) considera as diferenças de práticas da escrita conforme o sexo. A criança pode estar cercada de pessoas que representam princípios de socialização, tipos de orientação em relação à escola muito diferentes, até mesmo opostos. Essa presença de elementos contraditórios que lhes possibilitam ter pelo menos um membro da família em que podem apoiar-se em sua experiência escolar. A oposição ou a contradição pode estabelecer-se, conforme o caso, entre o controle moral muito rígido e a indulgência, entre o “divertimento” e o „trabalho escolar”, entre uma sensibilidade muito grande para com tudo o que diz respeito à escola e uma menor sensibilidade, entre preferência com a leitura e uma ausência de práticas e preferências pela leitura....mas as contradições perpassam as próprias pessoas. Como dizia Norbert Elias, o termo “indivíduo” é particularmente confuso na medida em que desperta a impressão de que se está falando de um adulto sem nenhuma relação, isolado e que nunca foi criança. A consciência de qualquer ser social só se forma e adquire existência através das múltiplas relações que se estabelece, no mundo, com o outro. Ele é, portanto, social por natureza, e não porque seria “influenciada” por um “meio social”, um “ambiente social”. A preocupação como coerência e exaustão que implica, para ser concretizada, técnicas intelectuais especiais como formulários, regras, instruções ou procedimentos automatizados, é a linguagem própria da taxonomista. Do ponto de vista de uma sociologia do conhecimento, podemos considerar que essas técnicas intelectuais são os padrões lingüísticos. O homem é social de parte a parte, do principio e por constituição: porque é um ser em relação e um ser com linguagem.

REFERÊNCIA

LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. Tradução Ramon Américo Vasques e Sonia Goldfeder. São Paulo: Átila 2004.


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