a coisa em si janeiro.2019
Neto Grous
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a coisa em si
janeiro 2019 . ano 1 . número 1 . Ponto de Cultura Casa Rosa
Apresentação O suplemento cultural “a coisa em si” é uma publicação independente do Ponto de Cultura Casa Rosa _ Memorial Virginia e Carlos Mattos. Sua finalidade é difundir o conhecimento guardado desde a década de 50 na casa onde residiu a família Mattos. O acervo é formado por livros, cartas, documentos e registros históricos sobre Capivari e suas inúmeras famílias, acontecimentos que marcaram a vida cultural e política do município.
Expediente Coordenação Maria Augusta B. de Mattos João Augusto B. de Mattos Revisão Gloriete Gasparetto Textos e Diagramação Bruno Bossolan O conteúdo do “a coisa em si” é de responsabilidade exclusiva dos que constam no expediente e das pessoas que assinam os artigos.
MEMORIAL VIRTUAL CASA ROSA facebook.com/pontodeculturacasarosa twitter.com/ponto_casarosa instagram.com/memorialvirginiaecarlosmattos pontodeculturacasarosa@gmail.com Apoio Cultural
O “Ponto de Cultura Casa Rosa _ Memorial Virginia e Carlos Mattos” tem a missão de promover a democratização do conhecimento, a difusão e o fomento à cultura, o incentivo às propostas de economia criativa e o resgate da memória da cidade de Capivari, preservando e problematizando o patrimônio histórico que abriga, tanto o arquitetônico quanto seu acervo. A principal proposta é criar um Museu Virtual da Casa Rosa, isto é, digitalizar e tornar esse acervo acessível para todos. O suplemento “a coisa em si” é um compilado mensal dos apanhados desses textos, informações e ações tomadas por seus coordenadores e pela curadoria pedagógica. Um informativo poético e artístico para os saberes tradicionais, um auxílio para a educação em espaço não-escolar.
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A proposta de montar o Memorial Virtual (Ponto de Cultura Digital) é, antes de tudo, uma preocupação com o resgate histórico de Capivari. Basta uma simples pesquisa sobre a cidade na internet que pouquíssimo material será encontrado, é como se seus registros existissem apenas para quem viveu sua realidade, uma cidade de sombras e vultos a quem não é daqui. Partindo do princípio de que o esquecimento é eminente em nossa história, reconhecemos que os saberes e fazeres precisam ser preservados. Criamos então esse mecanismo de trocas, de informação e de vínculo com a população capivariana. Trata-se de uma maneira de democratizar o acesso à cultura e qualquer que seja sua natureza (religiosa, musical, literária, etc.), pela valorização do patrimônio material e imaterial, de pessoas que se expressaram na vida com a riqueza do nosso dialeto caipira. É preciso seguirmos firmes nessa proposta de reafirmar nossa identidade, nossas raízes e resgatarmos nosso passado. Ainda temos o conceito de que em Museus e Memoriais existem apenas “coisas velhas e sucatas” sem nenhum valor, o que é extremamente errado. Aprendemos a acreditar nisso por puro descuido e desinformação de quem nos orientou. Muitas pessoas não vão a museus por questões financeiras, porque moram longe, por desinteresse ou por um combinado de motivos que acabam por deixá-las longe da sua formação social. Então pensamos, “e se levássemos o Memorial ao povo, de uma maneira gratuita em que ele mesmo fosse protagonista e perpetuador desses conhecimentos?”. Também pensamos: “Não adianta termos milhares de livros nas estantes se não temos leitores, pessoas (re)educadas ao hábito da leitura.Se não tivermos nenhuma influência que eleve nossa condição de telespectador, nada mudará”. Por isso, além de transformar o acervo físico da Casa Rosa em Virtual, pretendemos coordenar ações na cidade que dialoguem com a população de uma maneira orgânica, participativa e democrática.
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Quantos quintais cabem na infância? Quantas meninices na memória? Tardanças em borboletas, tartarugas e jabuticabas
MABM
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Casa Rosa A casa da rua General Osório, 239, em Capivari, foi adquirida em 1953. A antiga proprietária era Dona Jovita do Lago Carvalho, professora primária que em 1908 se mudou para Capivari, vinda de Limeira, a fim de lecionar no recém-criado Grupo Escolar, depois denominado Augusto Castanho. Dona Jovita, na época da venda de sua casa, já aposentada, era viúva do professor de música Olímpio de Carvalho, que usava o primeiro cômodo da casa (hoje biblioteca) como sala de aula de teoria musical e de violino. Trata-se de uma casa de estilo eclético, conforme registram algumas de suas características: quartos se abrindo para a sala, pé-direito alto, assoalho de tábuas corridas; ladrilhos hidráulicos (dos quais hoje restam apenas no piso da varanda da frente e alguns como decoração no piso de um dos cômodos); o portão de folha e o rendilhado do beiral do alpendre da frente da casa, o terraço lateral na parte dos fundos. No jardim da casa (notável atualmente pelo tamanho tendo em vista que se trata de localização central na cidade), além de um poço desativado, algumas plantas que já existiam quando a casa foi comprada perduram até hoje: duas jabuticabeiras paulistas, uma cameleira branca e uma cameleira vermelha, uma pereira, algumas uvaieiras, plantas de hortênsia. Mais tarde, houve o plantio de cabeludinha, grumixama; seriguela, jabuticaba-sabará, sapoti, resedá, primavera, guaco, pitangueira, carambola, amor-agarradinho, flor-de-são-miguel, ipês (rosa e amarelo), buquê-de-noiva, pau-brasil, loureiro, orquídeas, flor-de-cera, palmeiras, biri, íris. 07
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A Vida do Casal Carlos e Virginia moraram a partir de 1949 em Capivari, cidade escolhida por Carlos Mattos para lecionar francês e filosofia no Ginásio Padre Fabiano. Residiram primeiramente numa casa à Rua André de Melo, desde 1949 até 1953, quando então passaram a viver na Rua General Osório, 239. Tiveram oito filhos (quatro dos quais nascidos após sua vinda para Capivari). O casal teve grande participação na vida cultural da cidade, sendo sua casa foco de reuniões com temáticas várias: discussões políticas, a questão da educação e da cultura, estudos de religião, aulas de francês, aulas de filosofia, organização de movimentos sociais e muitas outras atividades. É de se ressaltar o espírito aberto e os sólidos princípios humanísticos do casal, que fizeram com que os dois se alinhassem com aqueles que buscavam garantir, de forma igualitária, a cada ser humano, o atendimento a suas necessidades básicas, fossem elas materiais, culturais ou espirituais. O cotidiano na casa era recheado de leitura de obras de literatura, de genealogia, de religião, de questões sociais,
de fábulas e contos da carochinha. Havia grande atividade de correspondência com parentes, filósofos, amigos; dava-se total liberdade e estímulo a atividades artesanais, jogos, brincadeiras, representações teatrais; havia histórias infantis contadas à noite aos filhos; havia muitas visitas, muitas crianças se deliciando no quintal; havia uma vida de experiências domésticas (como tingir, engomar, pintar, torrar sementes, experimentar receitas de sabão), enfim, dentro daquela casa – casa sem aparelho de televisão, isto é, sem o “paraíso via Embratel” – na sarcástica definição de Luiz Milanesi, o criador do Sistema de Bibliotecas Públicas do Estado de São Paulo – havia intensa atividade dos dois, de seus filhos e das frequentes visitas. Observa-se que o casal se mudou para Capivari quando estavam sendo iniciadas as atividades do Ginásio Estadual que passou a funcionar tendo a cidade como pano-de-fundo; esta chegou a mudar seu funcionamento por causa das atividades estudantis. Foi o Ginásio o grande responsável pela abertura de horizontes e pela busca de uma cidade melhor. 08
Os professores se envolviam como educadores, como formadores do grupo de alunos, enxergando-os em toda a sua dimensão de cidadãos. O Ginásio passou a se fazer presente nos eventos esportivos, na vida política, nos desfiles cívicos, na vida religiosa; os meios de comunicação então disponíveis – rádio, jornal – davam destaque aos eventos escolares; os professores eram convidados a opinar sobre questões que interessavam à cidade, a fazer palestras nos clubes e na estação de rádio. Acontecimentos nos demais setores da sociedade eram vividos pela escola, com destaque para o envolvimento do Ginásio no programa de Serviço Social do município, no ano de 1964. A casa de Virginia e Carlos Mattos era uma espécie de “campus avançado” da escola, ocorrendo aí discussões sobre o ensino, a situação política do país, os modos de engajamento social dos estudantes, a resistência na década de 60 através de grêmio estudantil, as ideias para aperfeiçoamento do corpo docente, com a criação de clubes de Sociologia e Psicologia, entre outros debates para a formação crítica da sociedade.
ARQUIVO PESSOAL
Carlos Lopes de Mattos
Filho de imigrantes portugueses, nasceu na cidade de São Paulo em 26 de setembro de 1910. Fez o curso secundário com os beneditinos, na escola de oblatos de Sorocaba - SP, entre 1923 e 1928. Diplomou-se pela Faculdade de Filosofia mantida pelos mesmos beneditinos, na capital do estado. Em seguida, de 1936 a 1939, estudou na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, onde se doutorou em 1940, em plena guerra, defendendo com “la plus grande distinction”, a tese Recherches sur la Théorie de la Connaissance dans le “Scriptum super Sententiis” de Saint Thomas d’Aquin (São Tomás de Aquino). De regresso ao Brasil, lecionou filosofia social e história da filosofia moderna na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento, em São Paulo, de maio de 1940 a junho de 1942. Deixando a vida monástica, foi professor secundário, a princípio no Rio de Janeiro, depois em São Roque (SP) e finalmente, a partir de 1949, no Ginásio Estadual de Capivari, onde lecionou francês e filosofia.
Também foi professor da Escola Técnica de Comércio (atualmente CNEC). Foi membro do Instituto Brasileiro de Filosofia, tendo colaborado com assiduidade na Revista Brasileira de Filosofia. Traduziu textos de Ockham, Spinoza, Newton e Leibniz para a coleção “Os Pensadores” da Editora Abril Cultural, além de ter feito inúmeras outras traduções, a partir do francês, do alemão, do holandês e do latim: Coreth, Gadamer, Henz, Hiller, Jolivet, Luijpen, Rondet. Como tradutor e autor de livros de Filosofia, cultivava interesse por dicionários e, até como uma espécie de passatempo, levou toda a família a pesquisar as lacunas do Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, o dicionário mais conhecido e consultado na época, publicando então em 1984 “Falhas do Grande Aurélio”. Foi autor de estudos minuciosos sobre Heidegger (Heidegger e o problema da fi09
losofia. Limeira, Foi autor de estudos minuciosos sobre Heidegger (Heidegger e o problema da filosofia. Limeira, Letras da Província, 1954), sobre Espinosa, sobre o filósofo brasileiro Farias Brito (O pensamento de Farias Brito - sua evolução de 1895 a 1914. São Paulo, Herder, 1962), do qual também compilou os textos inéditos (Inéditos e dispersos, notas e variações sobre assuntos diversos. São Paulo: Grijalbo, 1966). Carlos Lopes de Mattos escreveu panoramas da história da filosofia: Francis Bacon, Descartes, Spinoza. Prefácio de Miguel Reale e História da filosofia - da antiguidade a Descartes (Capivari: Gráfica e Editora do Lar, 1987 e 1989). Seu dicionário filosófico (Vocabulário filosófico. São Paulo: Leia, 1957) foi de grande valia para os estudiosos da área. Intelectual independente, elabo-
rou sua própria filosofia, na qual expõe seu pensamento libertário: Filosofia da realidade e da projeção (Capivari, Gráfica Editora do Lar, 1988). Também escreveu inúmeros artigos e resenhas críticas. Em 1954, em reconhecimento a seus estudos sobre Espinosa, foi o vencedor do Prêmio Horácio Lafer, do Instituto Brasileiro de Filosofia. Na cidade que escolheu para morar, Capivari (SP), pesquisou a obra do poeta Rodrigues de Abreu, tendo publicado na Revista dos Tribunais (São Paulo, 1951) o texto de sua conferência “As mulheres na poesia e na vida de Rodrigues de Abreu”. O fruto de sua pesquisa foi editado em 1986: Vida, paixão e poesia de Rodrigues de Abreu. Capivari: Gráfica e Editora do Lar/ABC do Interior. Faleceu aos 83 anos, em 1993, em Capivari, cidade na qual viveu e trabalhou por 44 anos, desde 1949.
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“Filosofia da Realidade e da Projeção” é um livro publicado por Carlos Lopes de Mattos em 1988. O nome deste suplemento cultural tem origem em um dos textos que compõem o livro, mais precisamente no que trata o ser como transcendente, que está no capítulo sobre Ontologia (área que estuda a natureza do ser). A coisa em si, explicada de uma maneira simples, é o que existe independentemente da crença individual - a essência de algo. A percepção limitada do homem o conduz a uma imagem que ele já conhece e, quando tenta definir pelos sentidos, acaba por distorcê-la. Sendo assim, a coisa em si é inacessível ao mundo de interpretações do homem e incognoscível (que não se pode conhecer). A capa do livro faz referência ao modelo arquitetônico eclético da Casa Rosa. 10
RAQUEL RODRIGUES CALDAS
Virginia Bastos de Mattos Nasceu na cidade de São Paulo, em 20 de outubro de 1915, filha do desembargador Benedicto Alipio Bastos e Maria Luiza Almeida Soares, ambos naturais do Vale do Paraíba. Virginia estudou na Escola Modelo Caetano de Campos, na Praça da República da capital paulista, desde a escola primária, passando pela Escola Complementar, o Ginásio (recém instituído pela reforma de ensino de Fernando de Azevedo), o Colégio Universitário de Pedagogia, da então nascente Universidade de São Paulo, e, finalmente, o Curso Universitário de Formação de Professores Primários. Deixou a Caetano de Campos, após um período de 12 anos de brilhantes estudos, tendo sido escolhida como a oradora de sua turma. No ano seguinte, iniciou outro curso, agora na Faculdade de Filosofia São Bento, formando-se em 1940. Lá, foi contemporânea, amiga e colega de estudos e movimentos sociais do então casal de namorados Lucy Pestana e André Franco Montoro (futuro
governador de São Paulo, deputado e senador da república), Rubens Padin (que, posteriormente, monge beneditino com o nome de Cândido, foi bispo de Bauru), Ester Figueiredo Ferraz (que foi ministra da Educação), Dulce Nogueira Garcez, Heloísa Monzoni, Dora de Barros, Ignacio da Silva Telles, entre outros nomes de destaque no campo da cultura. Nesse tempo, Virgínia participou ativamente da Ação Católica, movimento essencial à sua formação humanística e social. Realizado o encontro entre o filósofo tomista Carlos e a jovem recém-formada Virginia, os dois foram morar, em 1942, na zona rural de Pati do Alferes (no Estado do Rio), na própria cidade do Rio de Janeiro, na cidade paulista de São Roque, e finalmente, a partir de 1949, na também paulista Capivari. Em Capivari, Virginia participou da vida religiosa, tendo sido uma das voluntárias que mantiveram ativa a Biblioteca Padre Eusébio, voltada para a catequese. Interes11
sada nas questões sociais, participou de atividades de promoção social, principalmente no apoio à Associação de Serviço e Assistência Social (ASAS) e na criação e manutenção da Escola Artesanal. Em sua atuação no Movimento Capivari Solidário, Virginia Mattos, entre outras atividades, coordenou a publicação do livro A Ronda das Ruas: a história nas ruas de Capivari, que veio à luz em 2004 (Capivari: Ed. EME/Movimento Capivari Solidário, 2004). Em 2009, foi responsável pela coordenação e pela redação final do livro: Léo Vaz – o cético e sorridente caipira de Capivari (Capivari: Movimento Capivari Solidário; Ribeirão Preto: Migalhas, 2009), obra que resgatou para a cidade a memória desse jornalista (diretor de O Estado de S. Paulo) e escritor de renome da nossa literatura nacional. Acompanhou seu marido no levantamento da vida e da obra de Rodrigues de Abreu e, posteriormente, ajudou a criar a Semana Rodrigues de Abreu, um
movimento que até hoje procura fazer com que a memória do poeta local seja especialmente lembrada e reverenciada todos os anos, no final do mês de setembro. Virginia sempre auxiliou seu marido nas traduções de livros, acompanhou os estudos dos filhos, deu eventuais aulas de repetição de matéria, atuou nos cursos preparatórios aos noivos, lecionou religião na escola Augusto Castanho, participou da organização inicial da Casa da Criança, foi uma das organizadoras da Biblioteca Padre Eusébio, na qual, já idosa, passava algumas tardes por semana trabalhando no atendimento e orientação aos leitores. Teve uma atuação importante na cidade na medida em que incentivou pessoas de variadas idades a estudar, a pesquisar, a se interessar por assuntos que as tirassem de um cotidiano raso e sem perspectivas. Faleceu aos 102 anos incompletos, em 2017, na cidade onde residiu desde 1949.
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o homem tem que ser pensado como um dardo atirado no Ser Carlos Lopes de Mattos