a coisa em si [ano-III.n-I.2021] - filosofia da saudade

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a coisa em si

2021 . ano 3 . número 1 . Ponto de Cultura Casa Rosa


2021 ano 3 número 1 Ponto de Cultura Casa Rosa Memorial Virginia e Carlos Mattos Capa _ Reserva Técnica Casa Rosa Foto _ Bruno Bossolan

Casa Rosa Coordenação_ Maria Augusta Bastos de Mattos João Augusto Bastos de Mattos Educativo_ Daniela Canto Curadoria_ Bruno Bossolan

a coisa em si Coordenação e Redação_ Maria Augusta Bastos de Mattos Pesquisa, Revisão e Arte_ Bruno Bossolan

Suplemento Cultural da Casa Rosa rua General Osório, 239 - Centro CEP: 13360-000 - Capivari, SP pontodeculturacasarosa@gmail.com



/ EDIÇÃO _ Filosofia da Saudade

¨ Sumário \ SAUDADE MULTIPLICADA ......................................................................... 6 FILOSOFIA DA SAUDADE .......................................................................... 8 - Referências Bibliográficas ....................................................................... 9 - Manuscritos e Transcrições .................................................................. 12 UMA REFERÊNCIA À DISTÂNCIA .............................................................. 41



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A COISA EM SI - FILOSOFIA DA SAUDADE

Saudade multiplicada MARIA AUGUSTA BASTOS DE MATTOS

O elemento essencial de nosso projeto é a Saudade. Sem ela, não faríamos este trabalho, não procuraríamos recuperar os fatos, as emoções, os registros de uma época. Nosso olhar dirige-se para o passado, e o faz de uma maneira singular: temos um olhar saudoso para o passado. Todos nós conhecemos o poder da saudade: por vezes, é tão nítida que “ouvimos” a voz de alguém querido, “sentimos” o sabor e o aroma de uma comida, “vemos” cenas de nossa infância, revivemos uma emoção já experimentada. A saudade faz com que a memória se mantenha acesa. Ora, se queremos manter viva a lembrança desta casa, é porque temos saudade: a saudade de um tempo vivido, mas com a intenção de que ele se mantenha presente; de que ensine e emocione; de que evoque outras lembranças; de que ecoe na memória de outras pessoas; de que ajude a relativizar o presente e o futuro. A saudade é um tema banal nas poesias simples, nas trovas, nas canções populares. Muitos de nós conhecemos: “saudade, palavra triste quando se perde um grande amor”; “a saudade mata a gente, a saudade é dor pungente”; “quem parte leva saudade de alguém que fica chorando de dor”; “tô com saudade de tu, meu desejo”; “não sei por que você se foi, quantas saudades eu senti”; “Oh, que saudades do luar da minha terra”; “A saudade é uma estrada longa que começa e que não tem fim”...

FLORES SECAS JARDIM DA CASA ROSA OUTUBRO DE 2021


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O tema, no entanto, pode ser visto pela perspectiva da filosofia, já que qualquer questão do homem pode interessar a ela: “Nihil humani a me alienum puto”, já afirmava uns 200 anos antes de Cristo o comediógrafo Terêncio - e essa frase pode ser entendida hoje como um mote dos filósofos, ao menos de um filósofo como Carlos Lopes de Mattos. Quem quiser estudar seu pensamento filosófico pode ler sua obra Filosofia da Realidade e da Projeção (Capivari, Gráfica e Editora do Lar, 1988). Meu pai deixou iniciado um estudo sobre a saudade, uma Filosofia da Saudade, aqui apresentada para que todos possam participar da maneira como o filósofo Carlos Mattos ia constituindo suas reflexões. Ao me deparar com esse estudo, no início senti pena de que ele estivesse incompleto e inconcluso. Entretanto, lendo com mais vagar as anotações nas folhas manuscritas, decifrando as abreviações taquigráficas, procurando entender o que está em outras línguas e driblando o esmaecimento da grafite provocado pelo tempo, percebi que esses papéis, essas trinta páginas proporcionaram-me um prazer inesperado: o prazer de participar da gênese da obra (obra nonata). Décadas depois desse estudo iniciado por meu pai, meu irmão Tonio (certamente sentindo saudade) recolheu pacientemente essas anotações e colocou-as numa sequência. Hoje, na ausência de ambos – pai e irmão – temos, reunidas num único trabalho, a Saudade e a saudade da saudade. [N. do A.] Saudade ou saudades: a discussão de que não existe o plural dessa palavra para mim se resolveu ao ler no conto “A parasita azul” de Machado de Assis: “o Sr. Camilo Seabra (...) voltava agora com o diploma na algibeira e umas saudades no coração”.

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CARLOS LOPES DE MATTOS

FILOSOFIA DA SAUDADE


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REF ERÊ N C I AS BIB LIOG RÁ FI C AS Dentro do exemplar O Mistério da Saudade, de José Antonio Tobias (1926), que integra a Coleção de Boletins (número 6, 1966) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, há numa anotação manuscrita a referência a outro livro, Mitologia da Saudade (1999), do filósofo lusitano Eduardo Lourenço (1923 - 2020), inserida posteriormente à morte de Mattos. A curiosidade desse exemplar que compõe o acervo de Mattos é a dedicatória de Tobias para o amigo Luís Washington Vita (1921 - 1968), que além de professor, atuou como diretor-secretário do Instituto Brasileiro de Filosofia (seção de São Paulo). Porém, essa não é uma curiosidade sem explicação: os três professores - Mattos, Tobias e Vita - se correspondiam pela amizade e para a troca de estudos filosóficos.

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Outra curiosidade e coincidência é que em mais um livro usado como referência ao tema e que estava guardado na pasta do acervo, Saudade (1917), de Thales Castanho de Andrade (1890 - 1977), neto do educador capivariano Augusto César de Arruda Castanho (1849 - 1910), há a ilustração de uma casa que tem aspectos arquitetônicos bem semelhantes aos da CASA ROSA.

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ILUSTRAÇÃO DO LIVRO SAUDADE - THALES DE ANDRADE ACERVO CASA ROSA

CASA ROSA FACHADA ATUAL MARÇO DE 2021


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Ainda nessa compilação de estudos, há recortes de textos datilografados referentes ao livro Coisas Leves e Pesadas (2a edição, 1908), de Camilo Castelo Branco (1825 - 1890), ao livro A Saudade Brasileira (1940), de Osvaldo Orico (1900 - 1981), e à Coleção “Trovadores Brasileiros” - 100 Trovas de Saudade (dos II Jogos Florais de Nova Friburgo, Org. de Luiz Otavio e J. G. de Araujo Jorge). TEXTOS DATILOGRAFADOS SAUDADE EM CAMILO CASTELO BRANCO SEQUÊNCIA DA ESQUERDA PARA A DIREITA ACERVO CASA ROSA

Nas trovas escolhidas por Carlos Lopes de Mattos, percebe-se a opção pelo enfoque que terá o seu estudo: a saudade como perda, solidão, ausência, tempo passado, mas também a saudade como reflexo necessário da vida e a nos constituir como seres. Partindo de trovas simples e de algumas referências a livros acessíveis como antologias escolares, o filósofo afunila sua visão sobre o tema, dá um passo em direção a Gabriel Marcel e a Heidegger e esboça seu percurso, fazendo o primeiro plano da obra.


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MANUS CRI TO S

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A verdade – que maldade! – tornou-me a vida vazia. Sinto falta da saudade que a mentira me trazia. Januário da Silva Fernandes (18º lugar) 100 Trovas de Saudade, Ed. Vecchi, Rio, 1962 sem pg, só numeração dos II Jogos Florais de Nova Friburgo organização de Luiz Otávio e J.G. de Araújo Jorge Toda a saudade consiste neste contraste evidente: uma alegria tão triste numa ausência tão presente João Rangel Coelho (26)

MANUSCRITO 01 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA

De saudade estou morrendo desde a hora em que parti, nessa morte vou vivendo a vida que não vivi. Manoel Lobato (52) Não foi vida bem vivida a que não sentiu saudade - Quem nela envolveu a vida é que viveu de verdade. Luís Ferreira da Costa (60) O tempo é ladrão perfeito mas a saudade o enganou escondendo no meu peito o que o tempo me roubou... José Maria Machado de Araújo (81) Quantas saudades... E ao fim uma saudade ficou: esta saudade de mim, esta saudade que eu sou. Hermenegildo Pereira (93)


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Quase sempre de mãos dadas, a saudade e a solidão acordam coisas passadas que dormem no coração Horácio Bahiense (33) Sem te ver fico saudoso, sinto a saudade doer, mas de um doer tão gostoso que até dá gosto sofrer. Hermenegildo Pereira (48) Saudade, uma vez perdida entre as vozes do presente. Ao passado dando a vida vai tirando a vida à gente. Nachol Xavier (49) --Ver apud Herbert Palhano, Língua e Literatura, 3ª ed (Curso clássico, científico e normal), 1961, Ferreira Alves. A “Psique Brasileira” pp. 7-13 de Ronald de Carvalho, Estudos brasileiros, 1ª série, Ed. Anuário do Brasil. Rio, 1930. Análise da saudade brasileira, formada pela portuguesa (influenciada pelo fatalismo oriental: lembrança do torrão natal + esperança de vencer o desconhecimento de um “sentimento confuso de impenetrável destino, que lhe irrompia do coração ferido“ Ver p. 9, primeiras linhas. --Vem depois o terror cósmico, dando à saudade um tom de tormento vago e indefinido (o travo do sofrimento resignado do africano (o homem exilado em um

MANUSCRITO 02 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA


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mundo paradoxal) cf. Graça Aranha, Estética da Vida (ver esta passagem p. 12-13, uma análise quase existencialista). --“Mon passé, pour autant que je le considère, cesse d’être mon passé” G. Marcel, Etre et avoir. p.55. --Comparar o arrependimento / renegar o passado com a saudade. --A saudade, sentimento dotado de autenticidade ou autêntico (Heidegger) --Na dialética: Aufhebung do passado e do presente: síntese.

MANUSCRITO 03 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA

Saudade 3 4 5 6? 1 2

(

Capítulos possíveis 1. Estudo descritivo (fenomenologia) 2. Estudo existencial (ponto de vista existencial) 3. Estudo metafísico 4. Estudo psicológico = ? 5. O conceito de saudade na literatura 6. O conceito de saudade nos filósofos

Plano

)

Sentimento produzido pela lembrança de um bem perdido e de profundo significado pessoal. Perdido por ter passado irremediavelmente ou por estar ausente. Significado pessoal; não de bens exteriores, como o dinheiro, por exemplo. Saudade MANUSCRITO 04 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA

Metafísica Pressupostos metafísicos da saudade: 1. Supõe o ser em devir; sua temporalidade. 2. Supõe também a substancialidade (contra o fenomenismo. 3. Supõe a limitação de nosso ser: quereríamos ter o que temos mais o que perdemos (sobretudo na saudade do passado). Prova a espiritualidade (reconhecemos o passado como passado e só por isso ela é possível).


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1. Estudo descritivo (fenomenologia) 2. Estudo existencial (ponto de vista existencial 3. Estudo metafísico 4. Estudo psicológico 5. O conceito da saudade na literatura 6. O conceito da saudade nos filósofos

3. A saudade supõe o ser em devir (temporalidade). Supõe a limitação de nosso ser; quereria se manter o que temos mais o que perdemos, sobretudo a do passado). Supõe a substância (contra o fenomenismo). Prova a espiritualidade (reconhecemos o passado como passado e só por isso ela é possível). 6. Em Platão, na alegoria da caverna, a saudade das sombras a que estavam acostumados. As ideias “anamnese” Na Filosofia Oriental, o apego que prende a personalidade ao mundo e que causa a reencarnação. 3. Prova a espiritualidade (reviver o passado tendo consciência de que não existe mais, conhecendo-o como passado) e imortalidade da alma (desejo de manter até o que já passou, de viver a vida com tudo o que se viveu). --Ver Hölderlin, Hyperion p. 109, ults. linhas. --Cf. Guardini, De la Mélancolie, p. 69-71 --Bíblia: Cântico dos Cânticos cap. 3; Ps. 136. Tobias? --Hegel, Phänomenologie des Geistes p. 136! Cf. 406 e 463. --Agostinho. Confissões IV cap. 10-11: quereríamos o todo, mas o tempo faz com que o todo não possa ser presente simultaneamente. --Ver Enciclopédia Filosófica: Memória, para a parte científica (deformação das lembranças, por exemplo). Hölderlin: Wenn aus der Feme, vol. I, p. 401-8. Andenten vol. I, p. 240-1.

MANUSCRITO 05 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA


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Saudade – influência do passado. O estádio primitivo mais pobre em realidade do que o evoluído, mas também mais rico em possibilidades. É dessa plenitude que se tem saudades. Heimweh – desejo de ubiquidade, sofrimento pela limitação espaciotemporal. Saudade do ausente – produto da sociabilidade, desejo do convívio interrompido. A saudade é o sentimento do não-ser no ser. A face positiva desse sentimento negativo é o apego ao ser, o instinto de conservação. Se a temos é porque estamos no ser mas de algum modo o ser nos é estranho, afastado, perdido, pois que sentimos falta de algum ser. [grego] : o que era para ser: a essência nunca é totalmente. Por outro lado [grego], o sendo nunca é para nós [grego], enquanto sendo, mas é sendo. Este foi e será parcial, fluido. Este ser que perdura, perdendo sempre duração e percorrendo sua trajetória no ser.

Valor da saudade Enquanto voltada para o passado ou desejo de retorno ao passado, a saudade poderia ser encarada como uma tendência ao atraso (“reacionários”), contrária ao progresso. Entretanto, na dialética do progresso, a fase passada nunca é de todo supressa, e foi ela que permitiu o presente. Ademais, no caso de decadência relativa (se a evolução não é sempre para melhor, como pretenderia o evolucionismo otimista), a saudade nada teria de negativo. 19-10/62

MANUSCRITO 06 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA

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Filosofia da Saudade Por que indefinível? Mesmo de uma pessoa e em relação a uma situação, um lugar. Impregnamos de nós mesmos as outras pessoas e as coisas. Afastando-nos ou separando-nos, é portanto uma parte de nós que nos é tirada. --A morte como completação/adimplemento da saudade. --A saudade do espacionamento, separando de todo o ecúmeno da humanidade? -----Tanto é a personificação das coisas que nos dá, que quando retornamos a um lugar e a ver com a nossa saudade, sentimos decepção. Embelezamos/idealizamos o passado e o ausente: é a tendência a aperfeiçoamento de nós próprios (mais fácil quando separado da nossa realidade). --Ver a Unheimlichkeit de Heidegger, análise que dá uma abertura para um aprofundamento existencial (De Waelhens pp 122 sgs: Sein und Zeit 188, Geworfenheit (derrelição?). Ver De Waelhens n.80 sgs --V O. Ruif (???) Só haveria a análise da temporalidade S.Z. p. 328 De W. 185 --Ver Spinoza “Desiderium” Eth. III 52 XXXII e Descartes “regret” -----Língua Portuguesa FTD (curso superior) --Fernando Pessoa: Odes p. 158, 122, 133, 118, 119, 113, 46, 94, 96, 28, 101, 193, 152, 115, 8, 15, 165, 169, 181, 169, 189 Vives p. 213, 158, 161 cf. León Hebreo : Diálogos de Amor

MANUSCRITO 08 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA


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Saudade [1] Fenomenologia A explicação que um psicólogo apresentasse mostrando como a memória sempre tende a despojar as imagens de alguns aspectos, embelezando com isso o passado, não seria satisfatória para o filósofo, pois não atingiria o essencial da saudade – seu caráter profundamente afetivo, resumindo-se sua explicação numa simples descrição de fatos, concatenados em leis abstratas. Contentar-se com essa explicação seria o mesmo que dar-se por satisfeito com o estudo fisiológico do mecanismo da dor, pensando que assim estaria inteiramente resolvido o problema do sofrimento humano. -- Sobre a saudade cf. Max Scheler, Vom Ewigen im Menschen (“Reue und Wiedergeburt”): arrependimento, expectativa. -- Começar expondo que na perspectiva racionalista o estudo da saudade só poderia ser secundário. Abandonando-se o racionalismo ela pode tornar-se um tema central.

MANUSCRITO 09 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA


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[Saudade 2]

MANUSCRITO 10 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA

Costumam considerar a saudade uma das palavras mais características da língua portuguesa, quase inconfundível com os termos estrangeiros que a traduzem, tendo sido já proclamada um verdadeiro “lusitanismo”. E todos conhecem a frequência do tema saudade nas duas literaturas irmãs, a literatura de um povo navegante e fundamentalmente emigrador, ou a de uma população nova, pouco enraizada num imenso território, produto de três raças deslocadas de seu ambiente. Nas produções populares e até na nomenclatura de lugares, o (mesmo) tema ocorre com insistência. Seria normal, portanto, que os nossos filósofos também procurassem desenvolver uma filosofia da saudade, Sentimento impreciso e indefinível quantos caminhos a reflexões de toda ordem não nos abriria a saudade num estudo de ordem filosófica. Por que é ela indefinível, por exemplo? Não bastaria dizer que todos os sentimentos e emoções também o são. Há nela um caráter bem mais profundo de fluidez, do que nos outros estados afetivos, o que os poetas exprimem com antíteses, como “presença do ausente”, “espinho e flor”, “dor que tem prazer”, e que poderíamos dizer que provém da compenetração desse sentimento e todo o sentido essencial do nosso ser. Não é uma sensação de alguma coisa, um sentimento causado por um objeto, mas sim o sentimento do nosso ser em devir, da alteridade e da dispersão. Há três casos típicos de saudade: a de uma situação passada e com suas (???)


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O primeiro tipo é, por exemplo, a saudade da infância, “que os anos não trazem mais”, ou a de uma fase feliz da nossa família, quando, digamos, os pais se alegravam com os encantos de suas crianças. O segundo é o da saudade que ocorre mais frequentemente, a saudade da terra natal (ou da pessoa querida de que estamos separados). O terceiro seria como o de Lamartine que quis voltar ao lago para reviver a ventura de outrora, ou como aquele que quis rever o lar paterno, já sem os entes queridos. Implicação metafísica A saudade é uma prova contra o fenomenismo: há um substrato a que chamamos nossa vida espiritual, e esse substrato transcende o tempo (Sugerido por Solages pp 102-3 [106 -7 datil.]) A lembrança do passado não é como um objeto que ficasse atracado à beira da corrente (mas é vivido atualmente e modificado pela vivência atual). Sugestão ibid p. 103 (107 datil.). A saudade é o reconhecimento do passado como passado – prova também da espiritualidade, mas de uma espiritualidade mergulhada na matéria, pois sente-se falta do que o tempo e o espaço nos impedem de possuir agora só a posse pela memória não nos satisfaz. ibid, 107-8 datil. --Fenomenologia A saudade do passado é a orientada: vai para o passado. É o contrário da aspiração do futuro (a criança que quase não tem passado nutre intensa aspiração no futuro). A saudade do ausente reduz-se na do passado, porque se só a distância (ou outro impedimento) faz com que demoremos para alcançá-lo é que sentimos a falta do ausente: se ele fosse acessível imediatamente, não sentiríamos saudade.

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1) Por que uma filosofia da saudade? Poderíamos começar nosso estudo por isso. Para nosso intento pouco importaria a discussão filológica sobre a palavra “saudade”, tradicionalmente afirmada desde D. Duarte como exclusiva da língua portuguesa. Isso, porém, pouco importa para nosso intento. Muito mais interessante nos parece observar que só os que falam português tivessem a ideia de analisar esse sentimento. Assim, D. Francisco Manuel de Melo, ao mesmo tempo que justificava esse fato, tentou explicar por que só em nossa língua existe um termo bem distinto para designar essa “generosa paixão”. Eis a passagem, tomada de Epanáfora [...] 31: “E pois parece que lhes toca ...(até naturalmente.) Aí está a justificativa do estudo que pretendemos fazer. Todos conhecem a frequência do tema “saudade” nas nossas duas literaturas irmãs, a literatura de um povo navegante e insistentemente emigrador, e a de uma população nova, pouco enraizada num imenso território, produto de raças deslocadas de seu ambiente originário. Também nas produções populares e até na nomenclatura de lugares, o tema volta sem cessar.


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2) Se, concentrando-se sobre qualquer setor da realidade, pode o filósofo desenvolver toda uma concepção do ser, é justo supor que a reflexão sobre um tema tão caro à nossa raça nos abriria vastos horizontes, onde inclusive as características do nosso povo chegariam a ser compreendidas de um ponto de vista filosófico. Nota “... já em fins do século XVI a saudade era considerada quase como filosofia ou religião nacional” Carolina Michaëlis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa, Porto (1944) p.32. A saudade, aliás, só poderá ser tomada como tema central por pensadores de determinada característica. O filósofo de tendências científicas, por exemplo, a abordaria quando muito num estudo de psicologia da memória. O tradicionalista considerá-la-ia como de interesse secundário. Já o racionalista extremado recusar-se-ia de todo a tratar do assunto. Entretanto, é um tema que, em todo caso, não pode deixar de ser encarado, se a filosofia quer ser estudo do real. Como a dor, digamos, a saudade deve ter um tratamento filosófico sui generis, mas talvez seja ela uma penetração mais profunda ainda na personalidade e na realidade, por seu caráter mais íntimo e suas múltiplas implicações. A explicação que um psicólogo etc. Ver pg. Saudade [1] (página 18)


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Saudade Fenomenologia A saudade do ausente quase se reduz à do passado, pois só por sabermos que a distância ou outro impedimento faz com que demoremos para alcançar o amado é que sentimos sua falta: se ele fosse sempre acessível imediatamente, não haveria a saudade. Saudade Fenomenologia Existe a de um bem espiritual? Há três casos típicos de saudade: 1. A de uma situação passada e que não pode mais voltar (por exemplo, a saudade da infância “que os anos não trazem mais”, ou de uma fase feliz da nossa família, quando, digamos, os pais se alegravam com os encantos de suas crianças, ou o convívio com uma pessoa que morreu). 2. A de uma situação perdida, de um lugar afastado ou de uma pessoa ausente, que podemos recuperar ou com quem podemos tornar a conviver (por exemplo, a saudade da terra natal ou de um ente querido). 3. A de um lugar que desejamos rever mas sabendo que não na mesma situação (Lamartine, que queria voltar ao lago para reviver a ventura de outrora ou como o poeta que quis rever o lar paterno, já sem os entes queridos.

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Saudade Fenomenologia A lembrança do passado não é como um objeto que ficasse encalhado abraçado à beira da corrente, mas é vivido atualmente e modificado pela vivência atual. Cf. Solages p.126 Saudade

Metafísica ou psicologia

A saudade é o reconhecimento do passado como passado, prova da espiritualidade, mas de uma espiritualidade mergulhada na matéria, pois sente-se falta do que o tempo e o espaço nos impedem de possuir agora: só a posse pela memória não nos satisfaz. Cf. Solages p.126-7 Ver em Foulquié, Dictionnaire de la langue philosophique: absence

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Fenomenologia A saudade – “sordade” (de “solitatem”) pressupõe a solidão. A pessoa busca reatar sua ligação sentimental no espaço (saudade do ausente) e no tempo (saudade do passado). Não se trata, é claro, de uma solidão meramente material, mas sim psíquica, que se pode sentir no torvelinho de uma grande cidade ou no meio de ruidosa festa. A saudade é um sentimento do homem que vive profundamente, que vive uma vida autenticamente humana; não a podem ter, ou então só muito enfraquecida, os alheados da vida interior, os que se perderam na supercivilização e no tecnicismo. É mais vívida na ingenuidade da infância e da juventude ou dos poetas, amortecendo-se com o ceticismo dos anos mais maduros, mas, quiçá, para se tornar então mais profunda. Ver Sartre, L’être et le néant (temporalité) Ver Gabriel Marcel. Etre et avoir. Cf. p. 121 sgs. (o ser fica, o homem é que passa?) Em Plotino, a conversão do que proce-

de era seu princípio (o retorno no Um). Na Índia, volta ao princípio também. Ver Lavelle, La présence totale pp 164173, pp 186 sgs, De l’Acte pp 480-7 Só o atirado pode ter saudade, porque “passa” e não se detém. A saudade seria o vestígio de sua orientação anterior? Ele se sente atirado (e portanto “tirado de” onde estava), temeroso do vazio a percorrer. A saudade nem sempre é desejo de reviver ou recuperar o perdido (quando se volta à pátria, ao lar, etc. pode-se trazer saudade do lugar que se deixa): ela pode acrescentar-se a uma coisa que se prefere (o que prova que provém da finitude, da limitação, e prova a finitude de tudo o que se alcança). Porque somos finitos, precisamos indefinitamente de mais coisas (logo somos potencialmente indefinitos). --A saudade como fome do ser Temos saudade do passado porque toda mudança representa uma perda da forma anterior, como se diz na linguagem aristotélica.


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Isso não significa que a saudade seja uma tendência ao retrocesso, uma volta ao passado. Podemos preferir a forma atual e não querer voltar à antiga, mas, apesar disso, ter saudades. Cf. Revista. Brasileira de Filosofia 40, p. 515. Quer dizer que, se fosse possível conciliar o que nos parece bom no que perdemos com o melhor que talvez tenhamos, desejá-la-íamos. Quereríamos, por exemplo, poder conciliar a fantasia da criança com a ponderação e experiência da idade adulta. A saudade pressupõe uma profunda consciência da personalidade; o homem perdido no man não pode ter saudade, porque não é ele quem vive e viveu.

A COISA EM SI - FILOSOFIA DA SAUDADE

G. Marcel Etre et avoir p. 14, l. 2-4; p. 104 --A saudade provocada pela distância diminui com a maior velocidade das comunicações, hoje. --Cf Sartre L’être... p. 15: a ausência desvela o ser. --Aproximar a saudade da busca do desconhecido (de aventura) e do sentimento do infinito. Assim, por exemplo, a saudade da meninice, do tempo em que o desconhecido e o indefinito predominavam. --Ver Bergson Matière et mémoire.

Saudade

Fenomenologia A saudade do passado é o contrário da aspiração ao futuro (a criança que quase não tem passado nutre intensa aspiração ao futuro). Ela é bem orientada, distinguindo-se da vaga nostalgia ou desejo indefinido (como seria a saudade de Deus?). Saudade MANUSCRITO 18 - SAUDADE CARLOS LOPES DE MATTOS ACERVO CASA ROSA

Metafísica Prova da permanência do eu (contra o fenomenismo): um substrato que transcende o tempo. Ver Solages ± p. 106


A COISA EM SI - FILOSOFIA DA SAUDADE

Carolina Michaelis de Vasconcelos. A Saudade Portuguesa. Porto, Renascença Portuguesa (1914). 144 pgs. Sentimento doce-amargo: the joy of grief, como dizem os ingleses. Saudade minha, quando te veria/ ou: saudade minha, quando vos veria, velho mote popular. “Já em fins do século XVI, a Saudade era considerada quase como filosofia ou religião nacional.” p.32. Dá ao bem ausente o nome carinhoso, triste e doce de “Saudade minha” 30-31. Há exagero em dizer que o sentimento e o termo não tenham equivalentes p. [??] ainda que não perfeitos nem com a mesma frequência, o quid de misterioso que lhe adere. 34 Castelhano: soledad; asturiano: senhardade (de singularitate); catalão: anyoransa e anyorament. 34 Schnsucht [......], aspirando a esta dor [?] e regiões ideais (35). Mais frequente na época das viagens, “traço distintivo da melancólica psique portuguesa” (35): saudade é o morrer de amor. Esta (36) onde aparece: Bernardim Ribeiro, Samuel Usque, Gaspar Fructuoso, Camões, cancioneiros do povo etc. Soldade, soridade, suidade tornam-se saudade por fusão com saludade ou salvação (39) [.......] Veio de solitates (51). A forma saudade só se explica por fusão com saúde,

saudação, salvação. No português primitivo soedade = lugar ermo, “estado da pessoa que é só ou solitária, sem companhia, quer no meio do mundo, quer apartada do mundo; mas também significa isolamento, em abstrato” 61. Alguns amam a solidão; daí os adjetivos amena e deleitosa; para a maioria, porém, é triste. Depois as ideias de ausência, abandono, falta, míngua [...] Por último, devemos [.............] de ausência, a nostalgia, o Heimweh (desejo de rever o lar] 62. Abrange pois: “todos os desabrimentos, cuidados e desejos da solidão, a [...] de já não se gozar um bem de que em tempos se fruía, a (p.62) vontade de volver a desfrutá-lo no futuro, e mesmo de possuir aquilo que nunca se possuiu: a bem-aventurança, o céu. 63 A saudade portuguesa “ficou apenas com os sentidos derivados de: a) lembrança dolorosa de um bem que está ausente, ou de que estamos ausentes, e desejo e esperança de tornar a gozar da expressão desse afeto dirigido a pessoas ausentes, ou de que estamos ausentes, e desejo e esperança de tornar a gozar deles; b) expressão desse afeto dirigido a pessoas ausentes. Esse bem desejado, ausente, pode ser tanto a terra em que nascemos, o lar, a família, os companheiros da infância, como a bem-amada, ou o bem-amado. Com res-

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peito a esse sentido, designa sobretudo o vácuo nostálgico ou peso esmagador que nas ausências dilata ou oprime o coração humano – agravado, quantas vezes, pelo arranhar da consciência (o “gato” de Heine); pelo remorso que nos acusa de não havermos estimado, aproveitado e efusivamente reconhecido o bem que possuíamos”. p.65 Em sueco längtan = saudade, desejo, almeja; längta = almejar, ter saudade (alemão: verlangen). Na Galícia, morrinha = [sarna?], ronha, saudade (p.34 e 72). Nome popular de várias flores [roxas?] ou róseas (sarapintadas de branco) até a cor escura de violeta; a sabiosa arverse dos campos, de agradável perfume, e a atro-purpureata dos jardins (Nota scabiosa descabies = sarna) p. 72. & ainda outra, cf. nota 122.

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1) Joaquim de Carvalho. Problemática da saudade, 1950. Lisboa (separata XII Congresso Luso-Espanhol para o progresso das ciências). Desinteresse nos tempos racionalistas (séc. XIII), ao contrário do romantismo (p.229). Vem de solu, estar só, podendo ser no sentido tópico como no psicológico. Soledade e saudade derivam de solitudine (baixa latinidade); por isso Amador Arrais preferia soedade. É a ideia do isolamento e do espírito refluir sobre si mesmo. Mas saudade em português nunca foi sinônimo de soledade (p. 230). Por que só existe o termo formado na região central Douro e Galiza? Sociologicamente, a celtização, e historicamente seria porque aí se operou “a mutação do sentimento terrantês em sentimento nacional”. Outro problema é se o expressado também é só luso-galaico (p.231). 1ª resposta: é só desses povos. 2ª: só aparece a consciência desse sentimento em Portugal (cf. D. Francisco Manuel de Melo); 3ª: é um fenômeno humano, embora o termo seja só português. “... bastam os dados elementares da psicologia da vida afetiva para inculcar que a saudade é um acontecimento psíquico suscetível de se dar no espírito de qualquer ser humano. Pode a consciência de uns ser mais sensível que a de outros à inadaptação das circunstâncias, ao contraste das situações vividas, à distanciação do mundo ambiental, ao recolhimento sobre si mesmo, à privação de bens ausentes e ao desejo de bens futuros; não obstante, é da própria natureza da vida emocional e da temporalidade da constituição espiritual o sentimento da conformidade ou desconformidade das situações sucessivamente vividas, e consequentemente a possibilidade do contraste da vivência de uma situação atual com a recordação da vivência ou das vivências de situações anteriores”. Não é como o riso e a dor que tendem ao estabelecimento da comunicação entre pessoas; faz parte da vida emocional, “é uma das maneiras por que a ipseidade de cada um responde ao mundo que o circunda ou à situação em que se encontra” (p. 232).

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2) “... o ser saudoso... pertence à categoria dos fenômenos psíquicos que importam a tomada d posição perante as qualidades dos objetos circundantes e cujo ponto de partida irrompe do mais íntimo da personalidade. A saudade não se dá se a consciência vive plenamente o mundo que lhe é dado e a totalidade da experiência anteriormente vivida flui na situação presente sem contraste nem desvios; como isto é supremamente improvável e difícil, segue-se, consequentemente, que todo o ser humano – e só o ser humano, pois no ser divino é inconcebível a saudade – é suscetível de estar saudoso e sobretudo de ser saudoso. Dito de outro modo, isto significa que todo o ser consciente e temporal é suscetível de estabelecer uma relação valorativa entre a situação que atualmente vive e a situação outrora vivida e de a sentir como desvio agradável ou desagradável do fluir da existência...” Há profundas diferenças individuais, porque cada um é suscetível de ser afetado diversamente. “É neste terreno da vida psicológica que se dá a saudade da qual se nutrem alguns estados psíquicos que têm por nota comum a solitariedade, como sejam a solidão contemplativa do eremita, a nostalgia do desterrado e a soledade do desconsolado. Acompanha-se normalmente de tristeza, mas o ato saudoso também pode trazer consigo a situação d alivio...” (233) “Do que vimos dizendo resulta que o terceiro problema consiste em isolar a saudade do que lhe é afim, em ordem no estabelecimento de uma descrição precisa e, podendo ser, de uma [p.233] definição exata.” Problema que se desdobra em dois sentidos: o metodológico e o histórico. No primeiro, sobreleva o método da descrição fenomenológica da consciência saudosa. “É que o conhecimento do “estar saudoso” tem de preceder o conhecimento do ser saudoso e do lidar da saudade, dado que a saudade é verbo e substantivo, é estar e ser, modo e essência, egogania e alofania, isto é, manifestação do eu e manifestação no eu; e este conhecimento apreende-se principalmente na fenomenologia da saudade, quer

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3) pela observação introspectiva, quer na análise extrospectiva, notadamente nas expressões poéticas das literaturas gaélica, galega, portuguesa e brasileira, no comportamento resultante de algumas exaltações mórbidas designadamente de emigrantes e enlutados. A análise fenomenológica permitirá determinar as componentes do ato saudoso, como sejam a renúncia, a nolontade, a sensação de isolamento, o desejo dose bens ausentes e anteriores vividos, e a tristeza. Isoladamente as definições conhecidas da saudade não dão nota de todas estas componentes, por isso o resultado da análise fenomenológica não só será mais completos, senão que será mais preciso”. O sentido histórico investigará historicamente a saudade. Assim o desiderium (+ deixara de ver) em Santo Agostinho e em Spinoza, Locke no Ensaio sobre o entendimento humano a Uneasiness (p.234). “O alcance máximo da indagação orientada e sentido fenomenológico e histórico-filosófico cremos que virá a ser a apreensão da intencionalidade da saudade, ou por palavras mais precisas, o correlato intencional da consciência saudosa, ou seja, a comunicação da consciência com outras consciências” ou com outros seres ou estados ausentes”. A saudade é sempre de algo ausente cuja presença se apetece (problema ontológico: o ser a que se refere). Porque a saudade é ensimesmar-se e exsimesmar-se com “presentação atual de um estado ou de uma situação indesejável ou menos agradável, e a representação de um estado de uma situação de objetos ou entes conhecidos em experiência transacta e que se desejariam revivescentes com vívida comunhão afetiva”. Por isso não é o mesmo que a reminiscência platônica: é colocação emocional perante o seu mundo pessoal e vivido, com objeto real e não conceptual ou explicativo (daí a evasão ou desprendimento da presentação objetiva atual e apetência do ser ausente que existe ou existia independentemente do sujeito).

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4) Consequentemente, no ato saudoso dão-se a existência do ser para o Ser e a existência do Ser para o ser, ou por palavras expressivas do vocabulário escolástico, a coisa de que há saudade é, sob certo ponto de vista, esse in, isto é, acontecimento que se dá numa consciência individualizada, e sob outro, esse ad, isto é, relação intencional com o O ausente e desejado (p.136 e segs.). Por isso, se o ensimesmar-se da saudade implica a determinação categorial da vivência saudosa no conjunto da vida psicológica, o seu exsimesmar-se implica o complexo problema das formas matéria e lugar ontológico dos objetos que a saudade desejaria atualizados. Do conjunto destas considerações resulta, afinal, o problema central e totalizante da significação metafísica da saudade, ou talvez mais propriamente, a importância da saudade como dado para uma interpretação metodológica da existência”. Isso não considerando a filosofia ou teoria geral do mundo como síntese do saber ou fundamentação crítica da possibilidade do próprio saber (aí a saudade seria um acontecimento individual e apagado na interpretação geral da vida psicológica), mas admitindo o mundo das qualidades e significações, do qual somos criadores pela arte, pela ética e pela metafísica (aí a saudade é elemento capital de uma interpretação do mundo, por implicar uma tomada de posição com o mundo).]É a interpretação saudosista, ao lado da intelectualista e pragmática. Há um, personalismo inerente à saudade, oposto ao intelectualismo impessoal como o de Spinoza [236] “A presença espiritual da ausência outrora vivida e agora desejada, que é porven-

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tura a essência da saudade, desentranha alguns problemas, como o da realidade vital do tempo, o da realidade da mudança e da alteração e o da existência da multiplicidade irredutível dos seres e das consciências, cujas soluções são elementos indispensáveis de qualquer configuração metafísica da existência e da concepção da Vida, Com serem importantes, creio não distante que a significação suprema da saudade consiste em conduzir o pensamento, a interrogar-se e a interrogar a existência vivida e a viver, perceptível e desejável, na sua expressão concreta, e não meramente abstrata e menos ainda como espetáculo de que a mente e o coração humanos sejam meros espectadores, passivos e indiferentes” (p. 237).

ou desenvolveu a individualidade psíquica. Reverte, por isso, duas formas - a nostalgia da terra natal e a nostalgia do lar familiar. Ambas geram o mesmo tormento do exílio, ou seja a inadaptação e insatisfação (mesmo que se esteja bem de vida). (p. 21) A nostalgia se caracteriza pelo vácuo que todos sentem (por isso traduzido em todas as línguas). “A saudade, porém, não é propriamente um estado psíquico de desarticulação da realidade, mas o impulso e a satisfação em interpretar a existência dom sentido personalista.” Sempre se é saudoso de algo, isto é consequência de algo ausente e cuja presença se apetece, o ensimesmar-se e o exsimesmar-se. (p.22)

--“A saudade manifesta-se sempre pelo contraste do presente que se vive com o passado que se viveu e exprime-se pela presença espiritual da ausência que se perdeu ou de que a consciência se sente distante, acompanhada do desejo, ativo ou contemplativo, de a tornar a reviver” Idem. Compleição do Patriotismo Português, Coimbra, Atlântida, 1953, p. 19. A nostalgia distingue-se da saudade. Ambas partem do isolamento psíquico, mas a emoção da saudade apresenta-se multiforme, ao passo que a nostalgia se reporta direta e imediatamente ao ambiente onde se constituiu


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A saudade em Santo Tomás

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A memória do passado é só acessível. Summa Theologica. I, 79 (???) (até localizada na extrema parte do cérebro. Onde a citação? A tristeza da recordação ligada à alegria. Summa Theologica, I-II q. 32 a 40 c I – II 33 a 2c O que era deleitoso causa o desejo quando perdido. Nota: Desiderium para S. Tomás é só do que não se possuiu ainda? (???) mas ele parece não pensar que se pode desejar o que se possuiu e se recuperou (pelo menos não analisa esse sentimento que é diferente do desejo do que nunca s possuiu). Não é verdade (?) Ver I-II 33 a 2 c. --Na Enciclopédia Filosófica: sentimento, emozione, desiderio --O atirado sempre mais rico, mas sempre empobrecido com a perda do que passou. --A saudade é a superação das limitações de tempo e espaço. Ela torna presente nos dois sentidos que tem em português (presente de tempo e presente materialmente). É o presente da história ou a história presente e a presença do ausente. --Ver no Instituto Brasileiro de Filosofia: Afonso Botelho, D. Duarte e a fenomenologia da saudade. Lisboa, 1951. Também Joaquim de Carvalho, Problemática da Saudade: XIII Congresso Luso-Espanhol para o progresso das ciências, Separata do Tomo VII – 6ª secção Ciências Filosóficas e Teológicas. Lisboa, 1950, pp 229-237. Também “Elementos constitutivos da consciência saudosa”, 1952, Rev. Bras. Fil. 31, p. 512.


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D. Francisco Manuel de Melo, Epanáfora 3ª (pp. 239-292) “E, pois, parece que lhes toca mais aos Portugueses que a outra nação do mundo o dar-lhe conta desta generosa paixão, a quem só nós sabemos o nome, chamando-lhe saudade, que eu agora tomar sobre mim esta notícia. Floresce entre os Portugueses que saudade por duas causas mais certas em nós que em outra gente do mundo, porque ambas essas causas têm seu princípio: Amor e Ausência são os pais da saudade, e como nosso natural é, entre as mais nações, conhecido por amoroso, e nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausências, de aí vem que donde se acha muito amor e ausência larga, as saudades sejam mais certas, e esta foi sem falta a razão por que entre nós habitassem como em seu natural centro. Mas porque tenho por certo que fui eu o primeiro neste reparo parece que não será compreensível, que me detenha algum tanto, por fazer a anatomia em humano??, o qual ainda que padece de todos, não a temos, todavia, averiguado se compete às injúrias, ou aos benefícios, que do amor recebemos humanos: ou sem amor também se podem experimentar saudades. Do Amor, houve quem disse: Era o único afeto de nossa alma, porque até o Ódio, que é

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do Amor a coisa mais dessemelhante, se afirma ser o me?? Amor, porque é certo que ninguém pode ter Amor a uma coisa, que não tenha ódio à coisa que for contrária àquela que ama; ou de outro modo: ninguém pode odiar uma coisa que não ame aquela coisa contrária da que aborrece. Se esta regra fosse certa (de cuja validade não disputo) bem se seguia que sem Amor não pode haver saudade: contudo nós vemos que muitas vezes a saudade se contrai com coisas que antes da saudade nós amávamos. É a saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso tão sutil e equivocamente se experimenta deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É um mal de que se gosta, e um bem que se padece: quando fenece, troca-se a outro maior contentamento, mas não que formalmente se extinga, porque se sem melhoria se acaba a saudade, é certo que o amor e o desejo se acabarão primeiro; não é assim com a pena: porque quanto é maior a pena, é maior a saudade; e nunca se passa ao maior mal, antes rompe pelos males, conforme sucede aos rios impetuosos, conservarem o sabor de suas águas, muito espaço depois de misturar-se com as ondas do mar mais opulento. Pelo que devemos dizer que ela é um suave fumo do fogo do Amor e que do próprio medo que a lenha odorífera lança um vapor leve, alvo e

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cheiroso, assim a Saudade modesta e regulada dá indícios de um Amor fino, casto e puro. Não necessita de larga ausência: qualquer desvio lhe basta para que se conheça. Assim prova ser parte do natural apetite da união de todas as coisas amáveis, e semelhantes; ou ser aquela falta que da divisão dessas tais coisas procede. Compete por esta causa aos racionais, pela mais nobre porção que há em nós; é legítimo argumento da imortalidade de nosso espírito por aquela muda ilação que sempre nos está fazendo interiormente de que, fora de nós, há outra coisa melhor que nós mesmos com que nos desejamos unir. Sendo esta tal a mais subida das saudades humanas, como se disséssemos um desejo vivo, uma reminiscência forçada com que apetecemos espiritualmente, o que não havemos visto jamais nem ainda ouvido; e temporalmente o que está de nós remoto e incerto. Mas num e outro fim sempre debaixo das promessas de bom e detestável. Esta é em meu juízo a teórica das saudades, pelos modos que sem as conhecer as padecemos agora humana, agora divinamente.” Apud Carolina Michaëlis, A Saudade, nota 56 pp.116-120

transcrição em ortografia atual.


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Vasco Botelho do Amaral Meditações críticas sobre a Língua Portuguesa. Edições Gama, Lisboa, 1945. “Saüdade e “saüdades” pp. 43-51 “... a palavra mais poeticamente portuguesa é – a saüdade” p. 43. romeno – dor; galego – morriña; catalão – anyoranza; alemão – Schusucht e Heimwel; mal du pays, souvenir (du coeur), le doux regret; desiderium. p. 43 Talvez haja nas línguas do homem primitivo. O “banzo” africano. p.44 inglês: longing, home – sickness, to be home-sick”. O “nunca mais de corvo. Para João Ribeiro, do árabe çauda = melancolia (termo médico: doença do fígado) p. 45 = sleen (do grego splen = baço). Neto acha que venha do árabe. vem de solitate -> soedade ou spidade, soydade, suidade. No século XIV já saudade (talvez influência de saüde: D. Carolina Michaëlis). Também se pode escrever sem trema, porque há as duas pronúncias. p. 46. D. Duarte e Garrett julgaram-no intraduzível. p. 47. O que melhor caracteriza a saudade é “a placidez, a suavidade melancólica, e não a revolta ou o desespero”. p. 48 Camões: “Agora a saudade do passado, Tormento, puto, doce e magoado Que converter fazia estes furores Em magoadas lágrimas de amores” Vossler achou que houve na palavra influência de suavis. As viagens deram aos Portugueses o sofrer das grandes ausências.

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D. Francisco Manuel:

“Amor e ausência são os pais da saüdade e, como nosso natural é entre as mais nações [p.48] conhecido por amoroso, e nossas dilatadas viagens ocasiona as maiores ausências, daí vem que, onde se acha muito amor e ausência larga, as saüdades sejam mais certas...” p. 49 No Brasil também porque há muito da alma e do sangue de Portugal p. 49. Também se manifesta em saudações:. Dar saudades. Dê saudades a seu pai (p.51). Carpir saudades. Mandar muitas saudades. Cícero: alicuius desiderio mori. Suavidade do “gosto amargo de infelizes” p.50, o “delicioso pungir de acerbo espinho”. João Ribeiro: a língua portuguesa foi “a primeira que traduziu a alma das imensas distâncias – saudade”. p.51. O autor insiste na afirmação que com o tom especial que tem em português, não encontra similar em outras línguas “pelo que toca ao conteúdo psicológico de tal palavra, tradutora de sentimento essencialmente português, e não pelo léxico” p. 183 Vasco. --Por que voltamos sempre ao passado mais longínquo (na velhice à infância) e mais insistência? --G. Marcel p. 42-3!

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Saudade

Saudade Spinoza

Descartes

Ethica III, 59, XXXII:

Du regret - Passions III art 209

Desiderium est cupiditas vive appetitus (= tendência a agir) re aliqua potiundi, quae eiusdem rei memoria fovetur, et simul aliarum rerum memoria, quae eiusdem rei appetendae existentiam recludent coercetur. Explic. Quum alicuius rei recordamur,... e o ipso disponimur, ad landem ladem affectu contemplandum, ac si res praesens adesset; sed haec dispositio seu conatus, dum vigilamus, plerumque coibetur ab imaginibus rerum, quae existentiam lius, cuius recordamur, secludunt. Quando itaque rei meminimus, quae nos aliquo laetitiae genere affectu, e a ipso concamur condemcum e o dem laetitiae affectu ut praesentem contemplari (ver o resto)”. No fim acha que é mais tristeza (passagem da maior à menor perfeição).

“Le regret est aussi une espèce de tristesse, laquelle a une particulière amertume, en ce qu’elle est toujours jointe à quelque désespoir et à la mémoire du plaisir que nous a donnés la jouissance; car nous ne regretons jamais que les biens dont nous avons joui, et qui sont tellement perdus que nous n’avons aucune espérance de les recouvrer au temps et en la façon que nous le regrettons”. No art, 210 diz: “Et je ne vois rien de fort remarquable en ces trois passions”. Ver Spinoza, Court Traité II c. 14 Du regret.


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uma referência à distância MARIA AUGUSTA BASTOS DE MATTOS

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Seja em poesias profundamente reflexivas, seja em trovas românticas populares ou em aforismos, é difícil escapar do desejo de falar sobre a saudade, esse sentimento que une a dor à felicidade. No estudo iniciado por Carlos Lopes de Mattos, há uma questão: é facilmente desmontável o mito de que a língua portuguesa é a única a ter uma palavra específica para o sentimento da saudade; o que se constitui matéria de interesse é o fato de que os portugueses tomam a Saudade como tema de profunda reflexão e, isso sim, os torna um povo singular. Herdeiros desse sentimento, os brasileiros também continuam a dissertar e a falar sobre a saudade. Assim, o grande romântico Castro Alves escreveu em 1870 estes versos, que colhemos na obra Espumas Flutuantes & Os Escravos, com texto fixado pelos especiais amigos (e especialistas) Luiz Dantas e Pablo Simpson, livro editado pela Martins Fontes em 2000, na coleção Poetas do Brasil, organizada por Haquira Osakabe.

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VERSOS DE UM VIAJANTE Ai, nenhum mago da Caldeia sábia A dor abrandará que me devora. F. Varela Tenho saudade das cidades vastas, Dos ínvios cerros, do ambiente azul... Tenho saudades dos cerúleos mares Das belas filhas do país do sul. Tenho saudade de meus dias idos – Pét'las perdidas em fatal paul – Pét'las, que outrora desfolhamos juntos, Morenas filhas do país do sul! Lá onde as vagas nas areias rolam, Bem como aos pés da Oriental 'Stambul... E da Tijuca na nitente espuma Banham-se as filhas do país do sul. Onde ao sereno a magnólia esconde Os pirilampos "de lanterna azul", Os pirilampos, que trazeis nas coifas, Morenas filhas do país do sul. Tenho saudades... ai! de ti, São Paulo, — Rosa de Espanha no hibernal Friul — Quando o estudante e a serenata acordam As belas filhas do país do sul. Das várzeas longas, das manhãs brumosas Noites de névoa, ao rugitar do sul, Quando eu sonhava nos morenos seios Das belas filhas do país do sul.

Em caminho, fevereiro de 1870.


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Alguns anos depois, ao cantar a cidade de São Paulo da Belle Epoque, o poeta santista Martins Fontes também manifesta sua saudade de um tempo em que o centro era coalhado de estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco entoando suas serenatas de amor, e compõe esta paródia à qual dá exatamente o nome de:

Serenata Tenho saudade da garoa antiga, Pálida amiga, que me faz sonhar... Desse São Paulo, romanesco e belo, Que era um castelo sob a luz lunar... Tenho saudade das gentis morenas, Lindas pequenas do hibernal Friul... De uma, entre todas, cor de jambo-rosa, Flor perfumosa do País do Sul Dona querida, de cabelos pretos, Quantos sonetos me inspiraste tu! Neles prendias, entre os altos grampos, Os pirilampos do Anhangabaú... "Ó Liberdade, ó Ponte-Grande, ó Glória", Ó da Memória o Largo do Bailéu! O luar batia no Tietê, de chapa, Como uma capa de estudante ao léu...

E a serenata soluçava, outrora, Até que a aurora despontava al fim... Adormecendo, pelo vale, as flores Dos meus amores e do teu jardim... Velho São Paulo do romanticismo, Do misticismo, da saudade azul... Tua lembrança nos perfuma a vida, Terra querida do País do Sul... Soturnamente, pela noite morta, Abre-se a porta da alucinação... E sai um vulto, de livor funéreo, Do cemitério da Consolação... Branca, a visagem, sob o véu da lua De rua em rua caminhando vai... Até que, em face do vetusto aprisco De São Francisco, sobre as lajes cai... Dentro da noite, nebrinosa e bela, Que sombra é aquela de mortal palor? É a estudantina, sob o céu de prata, É a serenata que morreu de amor.


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Tendo ganho melodia pela musicista e professora de piano Meire Buarque, temos hoje dessa canção duas gravações memoráveis, a de Inezita Barroso (que a gravou primeiramente em 1966) e a de Sílvia Maria, em 1980.

Ouça a versão de Inezita Barroso https://bityli.com/vIYFqrY Ouça a versão de Sílvia Maria https://bityli.com/HbORII8

O poema Versos de um viajante, de Castro Alves, cantando a saudade de algumas cidades, passando pela paródia feita por Martins Fontes, estava fadado a ser recriado mais outras vezes. Assim, Virginia Bastos de Mattos , numa versão mais intimista, relembra a S. Paulo, onde ela e Carlos nasceram (ela nos Campos Elíseos, ele na Consolação), onde passaram a adolescência (ela no bairro de Perdizes, ele com os beneditinos) e onde se conheceram, fazendo do poema o seu hino de amor:

Dialogando com Versos de um viajante de Castro Alves “Tenho saudades da garoa antiga Pálida amiga que me fez sonhar Desse S. Paulo romanesco e belo Que era um castelo sob a luz lunar.” Velho S. Paulo que foi nosso berço Campos Elíseos e Consolação Onde sonhamos os dourados sonhos Que alicerçaram nossa união. E nas Perdizes, a adolescência Ou no Mosteiro, estudos do rapaz Nossos caminhos se cruzaram um dia E separá-los ninguém foi capaz. Foi no S. Bento que te vi primeiro Meu carneirinho imolado enfim Aos meus amores juvenis e ternos Para esta vida que não terá fim. “Velho S. Paulo do romanticismo Do misticismo ou da saudade azul Tua lembrança nos perfuma a vida Terra querida do país do sul.”

Virginia Bastos de Mattos, década de 80.


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Maria Virginia, uma das filhas do casal, morou por muitos anos na cidade de Marabá, no Pará. Numa carta que envia aos pais, em 1981, também faz sua paródia dos versos de Martins Fontes, num jogo terno e brincalhão, sem preocupações formais, mas cantando e relembrando a cidade de Capivari, onde ela passou sua infância e adolescência:

Tenho saudades das verdes colinas, cálidos ventos nos canaviais, onde se aninha essa linda cidade berço de amor de vates imortais. Tenho saudades da infância vivida entre italianos de olhos cor de anil; “Caminho suave”, aprendendo as letras, tomando a forma o nome de Brasil. A igreja linda de São João Batista, a nobre praça, Rodrigues de Abreu, o Coleginho, a velha Prefeitura, nas belas flores, lembras Amadeu. Oh! Que saudades do ipê amarelo, Mercado velho, do Coreto em cor, onde outrora a banda tão querida tocava valsas cheias de esplendor! Oh! Vila Souza! Oh! Rafard! Oh! Raia! Velhos telhados cheios de pardais... Se tu soubesses como és lembrada, Capivari dos vates imortais! Da rua da Barra, apontando a todos a tão bela curva do rio Santa Cruz, da estação de ferro, construção de sonho, a esperar confiante o trem cheio de luz...

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A COISA EM SI - FILOSOFIA DA SAUDADE

E assim, nesse mesmo caminho, ou melhor, flutuando sobre os redemoinhos da memória, há a tradução do poema “O Rio Capivari”, de Amadeu Amaral, para o francês, por Carlos Lopes de Mattos. Traduzir um texto de outra língua não é tarefa fácil. Traduzir um poema é ainda mais difícil, por suas questões formais e metafóricas. Mais difícil ainda parece ser traduzir um poema do português para o francês, e absorver todo o saudosismo de Amaral para com a terra natal e a meninice que viu passar junto com os anos se torna uma tarefa complicadíssima, porém foi uma travessia na qual Mattos nadou de braçada.

O RIO CAPIVARI Velho Capivari, quanto mudaste! Tinhas outrora tanta força e brio, tão lento agora vais, e tão macio, por entre o mato que te forma engaste. Quem te mudou assim? Que rude estio, que castigo do céu fez o contraste? Parece que em riacho te trocaste, depois de seres caudaloso rio. Mas... tu terás mudado, ou eu me engano? Vi-te com vista de menino outrora; e quanto errava o olhar com que te vi! Se eu olhava o futuro — era um oceano; e o tempo, e tudo que lá vai, agora, inda é menos que tu, Capivari!

28 de Junho 1921. In Amadeu Amaral. Poesias Completas. São Paulo, Hucitec, 1977. p.252.

AU FLEUVE CAPIVARI Mon vieux Capivari que tu es changé! Jadis si orgueilleux et si puissant, Tes eaux s’en vont silentes maintenant Parmi ce bois où tu es chatoné. Quel grand événement est arrivé Un grand êté? Du ciel un châtiment T’ a peut-être rendu en un instant Petit ruisseau, grand fleuve du passé? Mais... changeas-tu vraiment ou moi, mon cher? C’était l’enfant qui te voyait alors, Et si se trompe l’oeil du tout petit! Je regardais alors come une mer L’avenir. Et cela me semble encore Assez moindre que toi, mon vieux ami! Moins, beaucoup moins, Capivari!

Tradução de Carlos Lopes de Mattos, 1950.


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RIO CAPIVARI ALTURA DA FAZENDA ITAPEVA REGIÃO CONHECIDA COMO SANTA RITA FOTO DE NETO GROUS / 2018

MARGENS DO RIO CAPIVARI ALTURA DA FAZENDA ITAPEVA FOTO DE NETO GROUS / 2018


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RIO CAPIVARI ALTURA DA FAZENDA ITAPEVA FOTO DE NETO GROUS / 2018

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RIO CAPIVARI ALTURA DA FAZENDA ITAPEVA REGIÃO CONHECIDA COMO SANTA RITA FOTO DE NETO GROUS / 2018


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RIO CAPIVARI COLUNAS QUE SUSTENTAVAM A LINHA FÉRREA DA SOROCABANA ALTURA DA FAZENDA ITAPEVA FOTO DE BRUNO BOSSOLAN / 2019

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o homem tem que ser pensado como um dardo atirado no Ser Carlos Lopes de Mattos


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