a coisa em si 2019 . ano 1 . nĂşmero 5 . Ponto de Cultura Casa Rosa
/ EDIÇÃO _ Carlos Lopes
de
Mattos: O Filósofo
entre
Camélias
Capa: Acervo Casa Rosa - Carlos Lopes de Mattos em Bruxelas, 1982.
¨ Sumário \ Expediente * Apoio Cultural * Redes Sociais ......................................... 3 Filosofando entre camélias .................................................................. 4 Excerto de livros lidos ........................................................................ 6 Carlos Mattos, o filósofo de Capivari ..................................................... 8 de Passos, de Dardos ......................................................................... 9 Jogral ............................................................................................. 11 27 de novembro de 1936 ................................................................... 12 Tributo ao filósofo Carlos Lopes de Mattos .......................................... 16 Do Latim ao Popular .......................................................................... 30 Meu auto-retrato filosófico em síntese ............................................... 30
a coisa em si 2019 . ano 1 . número 5 . Ponto de Cultura Casa Rosa
Apresentação
Expediente
Coordenação_ M. Augusta B. de Mattos e João A. Bastos de Mattos Revisão_ M. Augusta B. de Mattos e Gloriete Gasparetto Diagramação_ Bruno Bossolan Colaboradores_ Família Mattos e comunidade capivariana
Acervo Casa Rosa
O suplemento cultural “a coisa em si” é uma publicação independente do Ponto de Cultura Casa Rosa _ Memorial Virginia e Carlos Mattos. Sua finalidade é difundir o conhecimento guardado desde a década de 50 na Apoio Cultural casa onde residiu a família Hamah Restaurante: Capivari (SP) Mattos. O acervo é formado Empório Villa Santo Antônio: Capivari (SP) por livros, cartas, documenEstúdio Absolute Master: Capivari (SP) tos e registros históricos sobre Capivari e suas inúmePonto de Cultura Casa Rosa ras famílias, acontecimentos que marcaram a vida cultural e política do município.
Maria Virginia Bastos de Mattos
Filosofando entre camélias Silvestre Péricles de Góis Monteiro, um violento político de Alagoas, com vários irmãos igualmente violentos e também chefes políticos. Mas Carlos não utilizou essa apresentação. Preferiu esperar, lutar por um trabalho obtido sem o favor de ninguém, muito menos de um “coronel” dos mais autoritários do Nordeste. Quando foi aprovado no concurso para o ensino em escolas estaduais de São Paulo, escolheu Capivari, levado pelo encanto que tinham, ele e Virginia, pelos escritores Amadeu Amaral e Ro-
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Em julho de 1942 o Brasil estava em polvorosa, sofrendo ataques das forças nazistas alemãs a navios brasileiros, o que no mês seguinte resultaria da nossa entrada na Segunda Guerra. Carlos Lopes de Mattos começava sua vida fora dos conventos e precisava de um emprego. A irmã, Flora, valendo-se da amizade com o Dr. Tupy Caldas, conseguiu essa Carta de Apresentação ao governador de Goiás, Pedro Ludovico Teixeira, que erguia a nova capital do Estado: Goiânia. A carta era assinada por
drigues de Abreu. Assim, Goiânia perdeu um pensador que certamente teria brilhado na Universidade Federal de Goiás ou na PUC. Os filhos perderam a chance de participar da construção de uma capital - Goiânia, e talvez também de Brasília, que surgiria tão perto dali. Por outro lado, todos ficaram mais perto do restante da família, das férias com os avós e tios, da chance de sair de casa bem jovens para continuar os estudos. E criaram raízes muito fortes na Terra dos Poetas e numa certa Casa Rosa.
INTRODUÇÃO ANTES DA
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LISTA DOS LIVROS
Carta escrita por Silvério Péricles de Góis Monteiro a Pedro Ludovico Teixeira
Excerto de livros lidos
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Carlos Lopes de Mattos começou a anotar os livros que leu desde março de 1924, isso quando tinha apenas 14 anos. O primeiro livro que
consta na lista é “Honra ao mérito”, de Huberto Rohden (educador e filósofo brasileiro). Na lista, atualizada até 1962 com 719 livros, cons-
tam escritos em diversas línguas, além de 65 opúsculos e 44 leituras parciais (alguns de quando ainda era monge no convento de São Bento).
Lista de livros (completos) 1. Honra ao mérito! (2) Huberto Rohden 2. O signal mysterioso (3) M.F. Waggaman, trad. Huberto Rohden, Petrópolis 1920. 170 pgs. 3. Aventuras de uma abelha 4. Os argonautas (Biblca. Infantil) 5. Saudade (Thales de Andrade) 6. Atravez do Brasil (Olavo Bilac. e M. Bonfim) 7. Fragmentario Classico de Prosadores Quinhentistas (Alvaro Guerra) S. Paulo. 1911. 8. Tobias 9. Filhos de martyres 10. Vida de S. Bento 11. As minhas prisões (Sylvio Pellico) 12. O poço mysterioso (J. B. Figueiredo) 13. Anchieta (Galeria dos Grandes Homens) 14. Gonçalves Dias (Idem) 15. Gregorio de Mattos (Idem) 16. Olavo Bilac (Idem) 17. Casimiro de Abreu (Idem) 18. Basilio da Gama (Idem) 19. Marão e o jovem cristão do Líbano (A. de B.) (De terras longínquas, IV) Herder, 86 pgs. 20. O juramento do chefe dos hurões (Antonio Huonder) (Idem, III) Herder e Cia., 126 pgs.) Livros lidos (parcialmente) AA: lidos em particular / BB: lidos na mesa (do Mosteiro) 1. Uma das fontes da litteratura. 1916. 116 pgs AA 2. Brasileiros, heróes da Fé (Manoel Altenfelder Silva) S. Paulo.1927. BB 3. Oração aos Moços (Ruy Barboza) 1921. AA 4. O Ultimo Vice Rei do Brasil (Rocha Martins) BB 5. Gebt mir meine Wildnis wieder! (Heinrich Federer) 1918, 90 pgs. AA 6. Vida de S. Franc. de Assis (P. Bernardo Christen de Andermatt, O.F.M. (Capuc.) Trad. Mons. José Basílio Pereira. Bahia 1908. 520 pgs. BB 7. Sei fazer versos! (Paulo Miranda) Selbach “Echo” v. V 160 pgs. AA 8. Derniers souvenirs sur Guy de Fontgalland (1913-25) Paris, (Bonne Presse) 128 pgs. (1927 ou 28) AA 9. A vida de Joaquim Nabuco (Por sua filha Carolina Nabuco) BB 10. O Santo Cura d’Ars (João Vianey) BB Opúsculos 1. Vida de S. Bento. 2. Retiro mensal (Elisabeth Lieseur). 3. Tres farças. 4. Onde Ella achou a felicidade (Matteucci) 96 pgs. 5. Contos escolhidos.
Carlos Mattos, o filósofo de Capivari [Transcrição, com ortografia atualizada, do texto publicado em 28/01/1994, Cad.2-D5, no O Estado de S. Paulo, de Sérgio de Carvalho]
Quando busco a imagem modelar do que seria um “saber” sobre a existência, que tornasse mais leve e fluida, plena e livre, me vêm à mente as palavras de Mário de Andrade, colhidas numa de suas belíssimas cartas a um outro poeta: “Eu acho, Drummond, pensando bem, que o que falta pra certos moços de tendência modernista brasileiros é isso: gostarem de verdade da vida. Como não atinaram com o verdadeiro jeito de gostar da vida, cansam-se, ficam tristes ou então fingem alegria, o que ainda é mais idiota do que ser sinceramente triste”. “Gostar de verdade da vida”, ter interesse caloroso pelas suas infinitas manifestações (das mais ridículas às mais sublimes), ter horror a tudo o que lhe é contrário (a fome, a dominação, a violência), são coisas que caracterizam, creio, os “homens de conhecimento”. O professor Carlos
Mattos foi um deles. Não o conheci pessoalmente, mas através dos relatos de alguns que lhe foram próximos. Sei que estudou filosofia com os beneditinos de São Paulo e depois esteve em Louvain, na Bélgica, onde defendeu uma tese, escrita em francês, sobre Teoria do Conhecimento em São Tomás de Aquino. Voltou para o Brasil e passou a lecionar no Mosteiro de São Bento, onde se apaixonou por uma aluna. Abandonou, não sem muitos problemas, a ordem monástica. Casou-se com ela, Virgínia, e após alguns anos no Rio de Janeiro, mudou-se para a cidade paulista de Capivari, situada a hora e meia da Capital. Tinha uma solidíssima formação filosófica. Traduziu Ockham, Spinoza e Leibniz para Os Pensadores da Abril. Como outros filósofos de origem católica, desembocou no “existencialismo” ontológico de Heidegger. O espantoso,
contudo, é que este homem escolheu passar a maior parte de sua vida, desde fins da década de 40 até se aposentar, lecionando francês para adolescentes de um grupo escolar da pequena Capivari. Fez a opção pelo resguardo, pelo recolhimento, pelo anonimato. Restringiu seu universo à família, aos alunos, aos escritos e estudos pessoais. Tinha o apelido na cidade de “Seu Monsieur”. De uma certa forma, foi mesmo um estrangeiro, alguém que longe viajou tendo saído pouco de casa. Um estranho porque nunca deixou de se maravilhar com esta estranha coisa chamada “realidade”. Morreu há três meses. A casa de Capivari, apesar da perda recente, é um espaço de vida numa cidade um tanto quanto amorfa. Como muitos municípios deste Estado, a riqueza arquitetônica do passado foi destruída em nome de um ideal de assepsia
homogeneizante que vicejou nos anos cinquenta. Dona Virginia me mostra a bela casa, os livros do marido, as plantas do jardim, a coleção de pratos na parede. Oferece-me café e compotas. E sobretudo, hospitalidade, bem caríssimo que a humanidade já soube cultivar com maior reverência. Fala do marido Carlos com sóbria emoção. “Não foi só por minha causa que ele preferiu não ficar no mosteiro. Ele queria ser independente.” Filosoficamente independente, a condição essencial de qualquer pensamento. Conta dos dias difíceis. “Tivemos que pedir licença em Roma para poder casar na Igreja”. Só vinte
anos depois do casamento civil, eles seriam autorizados a se unir no religioso. Narra o “divertimento” familiar nos últimos anos, quando o professor Carlos, junto com os oito filhos, se pôs a procurar palavras que a primeira edição do Dicionário Novo Aurélio se esqueceu de registrar. A busca rendeu cerca de 1400 verbetes, reunidos depois num livrinho caseiro de 120 páginas intitulado Falhas do Grande Aurélio. Dona Virgínia, assim como foi Carlos Mattos, pertence àquela espécie de pessoas que têm o gosto pela vida. Por consequência, a vida nunca lhe negou amor. Encantei-me com sua serenidade. Ja-
mais incorre na tentação da nostalgia, ou da idealização valorativa do passado. Sabe que as coisas mudam, porque assim é a ação do tempo. Não deixa, porém, de se comover com o que a memória traz. Foi lhe difícil responder às minhas incômodas perguntas, embora fizesse o máximo para demonstrar o contrário. Dias depois da visita, recebi uma carta em que dizia: “Temo que não lhe tenha podido passar uma imagem fel do meu marido, a gente é traída pela emoção. Há sempre um imponderável e intransmissível e é isso que torna viva a imagem dos que amamos”.
Maria Virginia Bastos de Mattos
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de Passos, de Dardos Aqueles sons de passos nas velhas tábuas do piso eram tão familiares que nem me assustaram naquele dia, pelo contrário, deram-me sensação de segurança, de estar, afinal, em casa. Calmamente pensei que éramos só as duas, a Mãe e eu, na casa. Era noite. Por isso os passos suaves, cautelosos? Não, eram sempre assim, mesmo durante o dia: vinham imperceptíveis, iam se tornando nítidos aos poucos, leve ranger de madeira ecoando no corredorzinho onde ficava o armário de roupa de cama,
depois só um pouquinho mais fortes, compassados, certamente acompanhando o ritmo de alguma frase latina. Semper propter quodem... O cheiro do cigarro era por vezes mais forte que o barulho da caminhada. Chegando à cozinha, durante o dia, a voz soava nítida, alta: “Virgínia Santa Lana!” O que era isso? Era isso? Sempre poucas palavras, mas nada que causasse insegurança. O olhar era generoso, o sorriso fácil quando nos via a brincar, a ler, a correr pela casa. Sunt pueri pueri... Molhar as plantas, colher cajus, tirar um mamão quase maduro, riscá-lo e colocá-lo ao sol, bombear água para a caixa, encher as moringas. Em que momento idealizou o homem como dardo atirado no ser? Bater bolo, bater manteiga. Tudo com discrição, sem alarde, sem barulho. Onde encontrar, de novo, essa paz? A vida da cidade vinha até a casa, batiam palmas, era o leiteiro, a mulher do bucho, a dos ovos. O homem com uma centelha divina, dardo que pode mudar sua direção? Dardo livre, atirado como ser Deus não quis realizar um ser ou seres possíveis; ele os projeta, sem que haja sentido na pergunta sobre outra possibilidade CLM
consciente? As visitas chegavam, contavam casos, faziam comentários, falavam dos problemas da cidade. Quanquam sunt sub aqua... Aos domingos um pouco de ruído – o futebol no rádio, em meio aos chiados. Às vezes um grito: Gol! Mas nada de exageros. In media virtus. Aquele som do jogo no domingo à tarde, sonolência resultante da macarronada suculenta, do refrigerante, da sobremesa... Das janelas do escritório, a vista da mangueira plena de vida, passarinhos piando, chegando e partindo, festa da natureza. Dardo que participa do poder atirante, atirando outros dardos que dele dependem na sua projeção? Muitas vezes a máquina de escrever fazia dueto com as aves, numa estranha harmonia. Quando chegava visita, a máquina ainda soava um pouco, depois os passos suaves, os cumprimentos. Mais ouvia que falava; com o Poeta, assuntos de literatura, trechos de poemas, a vida dos autores. Às vezes o assunto morria, um silêncio pairava, logo interrompido pelo visitante, falando compassado: Doutor Carlos Lopes de Mattos! Ele olhava tímido – menino de sete anos, interno no colégio do interior, longe dos pais – nada falava, ou encetava outro assunto. Modéstia. Justus sufert in vita! Na Páscoa nunca falhava o coelhinho com ovos de cho-
O humilde não se deixará surpreender, porque aceita as condições de sua peregrinação terrestre em direção ao desconhecido, que nunca será verdadeiramente hostil, porque sempre será seu irmão na carne da realidade CLM
colate, no Natal e nos aniversários os presentes, a mesa farta. Para isso, tantas aulas, tantas traduções, noites de pouco descanso, muita economia sempre. Segurança com simplicidade. Vivere parvo. Voltava a ser menino soltando balão – lanterninha – acendendo fogos coloridos em junho, ou nas férias, em Santos, na praia. Em casa, lendo livrinhos para os pequenos, será que vão dar comida pra nós? perguntava o macaquinho da arca; ou na cama, contando histórias antes de dormir, Zadig, fábulas de Esopo, Pedro Malasartes... O bulício infantil, o barulho do pingue-pongue na sala, dos patins no terraço, da bola na rua, das altercações pueris, nada afetou a criação, a produção filosófica? Não, ele tinha que projetar sua filosofia, a mais humana das inutilidades e a mais indispensável das projeções humanas... Que passos marcaram essa reflexão profunda? Os passos são serenos, mansos, tranquilos. Segurança. Paz.
[Trecho extraído do jogral escrito pelo João Augusto Bastos de Mattos para o centenário de CLM (26/9/2010)]
J O G R A L Carlitos: [Ivan] Bem, minha vida em Capivari era muito tranquila: [Aline] acordar as crianças pela manhã [João Pedro] almoçar rápido para voltar ao Ginásio [Daniela] preparar o Vocabulário Filosófico [Leo] acender o lampião quando falhava a Companhia San Juan [Anna] levar as crianças para ver a malhação de Judas [Tatiana] traduzir do holandês a Psicologia do futebol [Ivan] trocar o gás [Aline] viajar para o Rio, buscando dados sobre Farias Brito [João Pedro] completar a água das moringas [Daniela] entrevistar Dona Cota Ché sobre Rodrigues de Abreu [Leo] fazer uma excursão para comprar morangos no Kanobel [Anna] ser mesário nas eleições [Tatiana] traduzir o Espinosa [Ivan] mostrar as constelações para as crianças [Aline] encher as garrafas de óleo [João Pedro] escrever um artigo para a Revista Brasileira de Filosofia.
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CLM com a família na varanda da Casa Rosa, década de 80
27 de novembro de 1936 Louvain, aos binte e sete deste mez do anno próximo.
Q
Pax in Xº!
uerida Flora,
Viva! Precisamente hoje que eu havia decidido escrever esta cartinhazinhinha, chegou-me ás patinhas tua mensagem aerea; excusavas de fazer tantos gastos por mim, mas não imaginas a satisfação que tive em receber as primeiras noticias da família (inclusive dos japonezes e do bate bocca, despertador, advocacial – dispersado pelos bombeiros, que certamente intervieram para aplacar o fogo). Espero agora a chegada da carta de mamãe. As cartas abrandam um pouco as saudades, que nos primeiros dias foram muito grandes, justamente por não ter ainda noticia alguma. De minha parte penso que as noticias nunca se farão esperar demasiado, tanto mais que minhas cartas não são de direitos reservados, valendo os de casa também para você e vire o verso. Como ia dizendo, já deve ter notado que preciso economizar muito o papel, com receio de despachar fardos de muitas toneladas: conversa fiada é que não falta. Mas quanto á 2ª serie da minha narrativa devo prevenir que o filme pegou fogo e cahiu nagua; esqueci-me do ponto em que interrompi a falação! Logo; por falta de ponto de partida não posso iniciar a 2ª metade e muito menos a 3ª... O que me falta alem disso é o tempo. Alem dos estudos – que são, numa universidade, como leite condensado -, devo escrever a um mundo de gente; não é de admirar também se repito a mesma noticia algumas vezes, pensando tel-a escripto a outros. Campos, iniciativa que foi, na época, o grande passo para os áureos tempos de prestígio dos mestres e consequente aperfeiçoamento e democratização do ensino público. Dou agora começo ao noticiário lovaniense. Mas antes dir-te-ia, como de facto
digo-to-lo, que é inútil mimeographar minha correspondência para fazer dinheiro; já arranjei muitas patacas com as malas, durante a viagem. Foi assim; ellas tinham rótulos em que diziam que eu partira do Brasil. Ora, nas estações intermediarias do raid trans-europeu eu largava-as na plataforma e esperava; pouco a pouco, o pessoal curioso ia juntando, e quando menos esperavam, lá me apresentava eu para cobrar de cada um uma pataca e meia pela vista... Assim se viaja quase de graça. – A viagem teria ainda que ser descripta com muito mais minúcias: p. ex. que em Napoles os gatos vão com a família á igreja e rezam também muito piedosamente; que na Suissa se podem ver homens que usam brincos; que atravessei a França das 20 horas á meia noite discutindo politica-geografia-historia-commercio com dois engenheiros luxemburguezes e um suisso-romanico, ora em francez, ora em allemão, até que os vizinhos (os trens são todos divididos em compartimentos) reclamaram que era hora de dormir, etc. etc.; mas é necessário deixar alguma coisa para a volta. Considerando, pois, unicamente Lovaina, divido esta communicação em 3 pontos: 1º) Ambiente geographico.
Louvain é uma cidade medie-
val; redonda O; rodeada por um ameno “boulevard” – a antiga muralha; atravessada por um ribeirão – o Dyle, do qual eu desconfio que se tira sem mais esta nem aquella a afamada cerveja de Louvain (a cor é a mesma). Na peripheria, numa collina sobranceira á cidade, está a abbadia benedictina de Mont-César, antigamente a residencia dos duques de Brabante. Toda a região é levemente ondulada, sendo que para o norte principia a grande planície que se estende até a Hollanda. A cidade orça uns 50.000 habitantes (ainda não contei nem a metade), edifícios de todas as epochas, ruas na maioria estreitas, bondes, uns 20 km ate Bruxellas. Inumeráveis são as igrejas e conventos: há mais padres aqui do que em todo o Est. de S. Paulo. O clima é humido; muita chuva miúda, de que os indígenas cá da terra pouco se lhes dá; a temperatura média varia de anno para anno: prediz-se um inverno muito rigoroso pra este anno; de facto já baixou uns dias até zero, mas já me premuni de roupa apropriada, e nada tenho soffrido; alem disso tive a sorte de vir exactamente no anno em que acabam de installar o aquecimento a vapor, em todo o seminário, o que é muito mais pratico e efficaz do que o archaico systema de estufa a carvão. Passo muito naturalmente para o ponto 2º) O seminário. Construído em partes,
e em diversas datas, resente-se da falta dum plano unico. Consta de dois grandes edifícios: um, o seminário propriamente dito, com uma bastante linda capella, - o outro, a chamada “Extension”, destinado aos professores e alumnos padres (sou o único actualmente). O defeito é que os dois prédios são separados, devendo-se sempre passar ao ar livre para ir á capella e ao refeitorio. No emtanto, estou muito contente com o regime que vigora aqui. Acho-me installado com toda a commodidade num amplo quarto: cama, radiadores de aquecimento, estufa a carvão, mesa, um enorme armario, 4 cadeiras de todos os portes e... 2 vasos nocturnos! – Mas o mais importante é que o seminario fica mesmo pegado ao Instituto de Philosophia, onde tenho a maioria das aulas. Alem disso estamos quase no centro de Louvain, não sendo porisso preciso andar muito para ir ás aulas em outras faculdades. Se eu estivesse na abbadia de Mont-César, a meia hora daqui, teria que andar o dia inteiro num corre-corre doido, sem tempo para estudar. Por ultimo, estamos a dois passos da grande bibliotheca da universidade, construida pelos norte-americanos, depois da guerra, em substituição á antiga, incendiada no anno 14; tenho 800.000 volumes a ler nestes tres annos...
28-XI 3º) Vida universitária. Penso já ter escripto que este anno farei o bacharelado em philosophia, que deveria ser feito em dois annos, mas dispensaram-me de quase todas as matérias do 1º anno. Assim posso passar em 1937-38 o licenciado, para chegar em 1938-39 ao doutorado: em princípios de Julho de 39 estaria portanto a correr pé-afóra: faltam só 32 meses! E por um triz não me teriam mesmo exigido nenhum anno de bacharelado, ficando o curso reduzido a dois annos, mas isso não foi possível infelizmente, ou talvez, felizmente, porque nessa hypothese a accumulação de trabalho seria exagerada. O programma destes dois primeiros semestres (Outubro a Fev,
e Fev. a Julho) é de 18 cursos, com 20 aulas por semana ao todo. As matérias, que são bem immateriais, comprehendem: as diversas partes da philosophia (metaphysica, cosmologia, psychologia, critica das sciencias, moral, historia da philosophia, critica historica etc.), sociologia (theoria do estado, hist. das doutrinas sociaes, economia) e 2 cursos de philologia neo-latina (introducção á philologia neo-latina, e curso aprofundado da litteratura italiana: Dante), alem dum curso de philosophia da religião e cursos de explicação de philosophos antigos e modernos. As faculdades estão espalhadas pela cidade em diversos edifícios; perde-se muito tempo em ire e bire de uma aula a outra; desvantagem que resulta da antiguidade da Univ., constituida aos poucos no correr dos seculos; por sorte a cidade não é muito grande, e, ainda por cima, é circular, os estudantes, em numero superior a 4.000, não se parecem com os nossos acadêmicos de direito: são muito calmos, nunca há forrobodó. O que não sei é se D. Abbade me irá deixar proseguir o curso até o doutorado. Escrevi-lhe que as despezas annuaes são aqui de quase 10.000 francos (7 contos), enquanto que elle pensava ser apenas a metade. É que o seminario se parece mais com um hotel; cama e comida; correndo tudo o mais por conta própria. E essas despezas meudas são bastantes: consomme-se enormemente material
escolar (p. ex. gasto diariamente 2 litros e meio de tinta, por dia; na porta do seminario há uma bomba, como as de gazolina, onde se enche a caneta-tinteiro – a encantada – antes de ir ás aulas); precisa-se de livros, roupa, graxa, sello, penna, lapis, regoa, colla, pincel, phosphoro, sabão, papel hygienico, sapato, gillete, gomma-arabica, botão, espanador, pente, escova de dente, pincel de barba, navalha, vassoura, escova de roupa, enveloppe, tintura de iodo, afiador, percevejo, papel de carta, borracha, escova de sapato, sabão de barba, espelho e...e... Juquery. Em todo caso, não sei se elle vae achar a pílula amarga demais, ou se vae engulil-a. Sem falar ainda nas despezas durante as ferias, inevitaveis, pois mesmo ficando no seminario deveria pagar mais 1.500 francos. O que vale é que aqui há bazares japonezes, onde se vende tudo por preços irrisórios: senão, pobre de D. Abbade! É em vistas disso que sigo o curso de Economia Politica. Tenho andado ás voltas com a policia de Louvain. Todos os estrangeiros que se fixam na Belgica devem obter uma carteira de identidada para provar que o dito cujo é elle mesmo e não um outro dito cujo, que aliás seria também elle mesmo identico a si proprio, ainda mesmo na hypothese delle ser um outro. Pelejei por demonstrar essa verdade tão simples e que torna inútil toda identificação, mas nada consegui; ao contrario, devo renovar a caderneta (com photographias e impressão do dedo indicador) de 6 em 6 mezes. Por ter falado em photographia, não penses que lhes irei mandar aqui alguma, pois as que usei eram ainda do Brasil. Demais não vale a pena tirar tão cedo retratos; é melhor esperar maior mudança de apparencia, p. ex. quando eu tiver só cabellos brancos, com um ar doutoral, forte, robusto, incorpado. Porque não vens tu também fazer qualquer curso, como seja, frequentar a “École de Brasserie”, o que seria muito util para a Antarctica? O elemento feminino entre os estudantes é de 13%; não serias pois a unica. Mas não! É mesmo melhor ficares ahi e pas-
seares uma vez ou outra á “Cidadjí maravilhosa”; nossa terra tem mais vida, nossa vida mais amores, sem mencionar as palmeiras onde nunca se viu o sabiá cantar. Aqui o sol parece-se com o nosso luar do sertão; está sempre baixo no horizonte; esconde-se agora já pelas 3 h. da tarde. Não se sente a natureza; parece tudo producto da actividade humana, porque mesmo o campo não tem nada de natural: todo revolvido e aproveitado pela cultura, atravessado por estradas de rodagem e de ferro, cercado em pequenas fracções... Mas deixemos de philosophia de impressões! Vae annexa á esta carta uma folha que, por favor, deverás fazer chegar ao conhecimento do nosso irmão macacão. Não escrevo directamente a elle, porque seria muito provavel que se esquecesse de responder-me. Assim, ao contrario, podes vigiar a resposta, pedindo-lhe que te entregue para enviar-ma. É para a revista que sae no começo de Fevereiro. No referente ao elephante de Alger o negocio não é tão simples. Comprei um elephante de verdade por 10 liras; achei-o muito barato; mas quando fui embarcar não havia meio delle subir a bordo. Que fazer? tive que pagar ainda 5 liras, para que alguem ficasse com elle. – Para consolar-me desse fiasco, procurei um em miniatura; comprei-o de um bonito-bonito mouro, depois de muito pechinchar. Mas acho que ainda não está em condições de o usares como mascote: elle mede 2 cm. de ponta da tromba á do rabinho, e 12 mm. de altura, emquanto a moda é de 24 por 14 mm. No emtanto vou-lhe dando de comer batatas a vêr se engorda e cresce; tu irás fazendo o mesmo com os taes sapos que me prometteste; vamos
ver o que cresce mais depressa. Mas cuidado, que os sapos rebentam. Sapo jururú, na beira do rio; quando o sapo grita, maninha, diz que tá com frio. Vou agora escrever uma carta aos primos. Quanto ao Agostinho, não escrevo já, porque talvez a carta chegasse justamente quando elle estivesse em casa. Estou satisfeito em saber que todos os meus cartões chegaram. É que eu não estava seguro se o portador do navio os tinha levado ao correio, nos portos, ou esquecido. – Escreve-me sempre de todos e de tudo; os jornaes daqui são atrazadissimos quanto ao noticiario telegraphico, comparados com os nossos diarios. A situação interna da Bélgica não inspira receios. “Lembranças e mais lembranças” a todos, e diga especialmente á mamãe que não chore por estes 32 meses, ou 144 semanas, ou menos de 1000 dias ou... não sei quantas horas. Mando, dentro do enveloppe, um enoooorme abraço ao cunhado. Recebam desde já meus votos de um feliz anno novo e de um abençoado Natal, que peço a Deus lhes conceda.
Carlos, Gonçalo, ou o que quizer. Carta transcrita preservando a ortografia original. Flora era irmã de Carlos.
Tributo ao filósofo CLM Texto de Jayme Vita Roso publicado no site migalhas.com.br, em 29 de março de 2005. Jayme é um advogado que ficou conhecido por plantar mais de 800 mil árvores na cidade de São Paulo
Tão grande importância representou Carlos Lopes de Mattos que a consagrada obra de Antonio Paim, “História das Ideias Filosóficas no Brasil” (3ª ed., Instituto Nacional do Livro, 1984, Rio de Janeiro, p. 216) menciona-o, como valioso crítico e comentador da presença dos beneditinos brasileiros nos séculos XVII e XVIII para formação de uma certa tradição platônica. I - Introdução
Tempos atrás, mais de um ano, vim a conhecer o personagem Carlos Lopes de Mattos, o qual não foi, nada mais, nada menos, do que avô do migalheiro-mor Miguel Matos. Investiguei sua vida. Surpreendi-me. E não é que Carlos Lopes de Mattos foi amigo pessoal de meu saudoso primo, também filósofo e também companheiro do Instituto Brasileiro de Filosofia; Luiz Washington Vita. Ambos são figuras iconográficas na historiografia dos pensantes brasileiros, no século passado. Quero pagar, literalmente, o tributo a Carlos Lopes de Mattos de respeito, de sentimento e de reconhecimento pelo que fez em prol das idéias filosóficas brasileiras. De outra parte, figurativamente, com este modesto escrito, faço-lhe homenagem, dou-lhe um preito, pretendo oferecer-lhe o que posso e o que sinto em louvor às suas qualidades e à primazia de seus atos. Esse é o registro da razão e causa do que passo a desenvolver aos migalheiros, com o vivo interesse de que tomem conhecimento de um homem singular, pois sair do Brasil para estudar filosofia na famosa e tradicional Universidade de Louvenne na Bélgica já era uma empreita digna de encômios, mais ainda lendo-se suas obras, onde expressa, sobretudo sobre Raimundo Farias Brito uma gama de tão grande interesse que chega a ser comovente. De outra banda, consul-
tando a sua bibliografia, impressiona-nos as suas valiosas traduções de filósofos impenetráveis como Leibntz, que trouxe ao grande público na sempre lembrada Coleção de Pensadores, anos atrás editada e publicada. Abro as cortinas do meu intelecto para representar, neste palco virtual, o que apreendi da valiosa contribuição de Carlos Lopes de Mattos para a inteligência brasileira e, sobretudo, para as idéias filosóficas no Brasil. Não tenho luzes filosóficas para oferecer-lhes mais do que pude neste escrito ex corde. Tão grande importância representou Carlos Lopes de Mattos que a consagrada obra de Antonio Paim, “História das Idéias Filosóficas no Brasil” (3ª ed., Instituto Nacional do Livro, 1984, Rio de Janeiro, p. 216 ) menciona-o, como valioso crítico e comentador da presença dos beneditinos brasileiros nos séculos XVII e XVIII para formação de uma certa tradição platônica, enquanto que os jesuítas defendiam o aristotelismo e, tomando de Mattos, a unidade em torno ao saber de salvação parece entretanto incontestável; já sobre a obra que adiante faremos algumas observações, Paim diz que Mattos, sobre o primeiro volume da finalidade do mundo de Farias Brito, conserva ela seu caráter naturalista da sua teleologia e “certo desligamento do seu naturalismo inicial, enquanto o espiritualismo caminha para uma afirmação mais decidida” (p. 419) e, ainda, na mesma senda, sempre britiana, a menção de que o surto tomista foi desencadeado por
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Carlos Lopes de Mattos na Casa Rosa
amoroso Lima e a reinterpretação de Farias Brito voltou a ser objeto de interesse e especulação filosófica no pós guerra (p. 424). ao derradeiro, Paim mostra a presença contemporânea do tomismo como meditação filosófica, lembrando em São Paulo, dentre outros, Carlos Lopes de Mattos (p. 574). Acrescento. Nem poderia ser de menos e muito menos por menos uma vez que a sólida formação filosófica do homenageado, construída em Louve, reforçara o alicerce de suas convicções neotomistas, como espelho de uma corrente que, apesar de tudo, sobretudo do superado positivismo e do transposto marxismo por outras correntes, ainda têm importantes arautos no mundo do pensamento brasileiro. II - Quando Carlos Lopes de Mattos escreveu sobre Raimundo Farias Brito
Significativa a contribuição de Mattos para descortinar o pensamento insula-
do, dito contraditório de Brito. Não é propósito deste escriba perscrutar o que Brito legou ao pensamento brasileiro, verdadeiro marco na história das ideias, durante o século XIX e nos alvores do que nos antecede, quando teve como preceptor o não menos hermético Tobias Barreto. Pois bem, Mattos escreveu uma obra transcendental sobre o filósofo cearense, que porta o título de “O Pensamento de Farias Brito”1, abrangendo o período que medeia o último lustro do século XIX e se encerra com o início da Primeira Conflagração Mundial. Estruturado para ser evocativo e crítico, como evoca o autor, o livro não tem o caráter singular de dissertação, como, à primeira vista, pareceu-me ser. Diria, com uma ponta de surpresa, que a intenção foi conduzir o leitor a percorrer o intrincado pensamento britiano, sobre a sua concepção do mundo, enquanto problema de ideias. Sendo essa primeira parte evocativa, como disse, a exposição de Mattos centrou-se em duas fases, para, na primeira, “a fixação do desenvolvimento das ideias de Farias Brito, pelo estudo apurado e compreensivo dos seus livros - estudo totalmente interno, numa verdadeira comunhão de pensamento - a fim de seguir passo a passo o vir-a-ser de seu mundo interior. A segunda seria a pesquisa das fontes em que se inspirou, desde o ambiente de sua formação principalmente na Faculdade de Recife, até à bibliografia de que dispunha e que tão grande papel representava nesse filósofo que sempre expunha suas doutrinas a partir da crítica dos outros pensadores” (pp. 11/12). Já, desde logo, Mattos coloca e situa o pensamento britiano dentro de uma linha de pensamento que me parece assaz curiosa, porque construía suas idéias e a fortiori suas doutrinas, “a partir da crítica de outros autores”. Isso, pelo menos para mim, tem um grande valor metodológico e mostra que Brito evoluía e mudava à medida que
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CLM com o neto Henrique na Casa Rosa
avançavam suas pesquisas, não limitadas e muito esclerosadas. E Mattos, agudamente, e repete várias vezes que o fluía in fieri2, que Clóvis Beviláqua e Nestor Vítor, em 1917, chamaram do naturalismo ao espiritualismo. Mattos extrai da Finalidade do Mundo britiano a ideia de que, nela, o autor confessara ser adepto do naturalismo teleológico¾ e, fundando-a, a teoria da evolução, muito em voga, no sentido puro, seria claudicante se não se lhe acrescentasse a teoria da finalidade (evolução e finalidade). Dela Brito assimilaria os fundamentos que a Escola de Recife propunha ou dava as tendências (Tobias Barreto, Silvio Romero, Fausto Cardoso e Graça Aranha). Concretamente perfilava-se com maior proximidade a Tobias Barreto, muito embora e com propriedade, Mattos sustente que ele tinha superioridade especulativa
àqueles antes mencionados. Farias Brito aliava à sua tarefa no mundo das ideias o seu espírito inovador que provinha, sem dúvida, daquele adorno criativo, evolutivo de sistemas predominantes à época, o que ocorria com seus coevos. O primeiro volume da trilogia que é titulada “A Finalidade do Mundo”, aparece em 1895, como “A Filosofia como atividade permanente do espírito humano”. É um escorço do monismo5 naturalista que reduz a ideia de um Deus - equivale à luz - que “não se concebe sem o mundo” (p. 22). Mas a ideia de que Deus é algo material, por ser luz, concreto, portanto, parece-me contraditória quando Brito, sempre lembrado por Mattos, aponta Deus como substância infinita (p. 22). Com a vista, percebemos a luz, ou a enxergamos, da mesma forma e pela mesma via, vemos as coisas que nos circundam. Assim o fazendo,
a concepção do mundo leva a uma religião naturalista, arrematando Mattos que: “E assim fica assentado, também o naturalismo teleológico, porque, sendo Deus a luz, luz externa e luz interna, a natureza tende ao esclarecimento, pela luz no mundo físico, e pelo conhecimento da verdade na consciência. A busca da verdade, sempre perfectível, jamais acabada, ou, numa só palavra, a filosofia, é, portanto, do ponto de vista humano, o fim de toda a evolução do mundo” (p. 22). A busca da verdade é perene, é um processo que se constrói nessa tarefa incessante, mas que pode se desconstruir ou evoluir, como se deu com Farias Brito, em períodos distintos, dependendo do que a busca. E acrescento, essa dependência é intrínseca, personalíssima, condicionada a muitos fatores do próprio interessado, que pode querê-la ou não; pode estar aberto ou não aos progressos e às decepções; mas pode sujeitar-se a preconceitos ou ideias estratificadas que a personalidade e a psiquê do pesquisador o levam à humildade da aceitação, superior à vaidade da blindagem que construiu para si mesmo. Brito, contudo, embora não apresentando sinais visíveis, deu pistas seguras de que seu pensamento não era estanque, como muitos pretensiosos o almejaram: Mattos foi ímpar nessa percepção, tanto que estruturou a obra em comento com esse objetivo, já o dizendo, no introito, belamente intitulado de “Duas Palavras”: “Reúnem-se aqui dois estudos sobre a evolução do pensamento de Farias Brito. O primeiro, terminado já há muito tempo, consiste em uma exposição sumária das ideias centrais do filósofo, obra por obra, com o intuito de distinguir as fases por que passou sua concepção do mundo. O segundo representa um pequeno trabalho monográfico em que sigo, passo a passo, o conceito da filosofia e a concessão do mundo, para verificar até onde concordam, em cada uma das obras
estudadas, as modificações que vão sofrendo suas ideias” (p.7). O segundo volume, “A Filosofia Moderna”, publicado em 1899, foi construído por Mattos, com o intuito de mostrar a evolução modificativa do plano inicial de Brito (pp. 23/28), pois, nesse, procurou esboçar a sua concepção de filosofia dogmática, a da associação e a crítica, esta postergada para outro volume. Esse fato, na minha ótica, mostra um pesquisador insatisfeito com que o atingia, no laborioso e intrincado mundo das ideias, aliás, período de muita tristeza, pela morte do seu primogênito e de sua esposa. Isso o atingira duramente, abrandando o entusiasmo “que demonstrara desde o começo quanto às possibilidades renovadoras do seu empreendimento” (p. 23). Partindo de que, estudando filosofia, o correto é iniciar com os fatos e almejar diuturnamente o concreto, Mattos dá-nos a síntese de um momento de Brito, com uma visão que impressiona pela clareza com que nos aponta os dias atuais, trazendo a visão hodierna da realidade: “Assim é que, diante do ceticismo, a que conduz o espírito moderno, temos que partir do reconhecimento da existência do mundo como um fato irrecusável, para depois indagar qual a sua finalidade (pp. 49-50). Atinge-se desse modo a realidade concreta que é a natureza (p. 162). Mas temos ainda consciência dos fatos internos, das ações e desejos (sendo esse - o cogito cartesiano - o fato fundamental: pp. 179, 259-261), encontrando-se aí outra realidade concreta, o “que há de mais concreto na existência (p. 74). Chega-se depois a um ponto que é o `o objeto principal da filosofia`, ou seja, a determinação das verdades fundamentais (p. 265), sem cujo reconhecimento nenhum pensar é possível. Farias Brito estabelece os seguintes princípios, que promete explicar mais tarde (p. 258): ‘1) A existência do espírito como elemento subjetivo e a existência da matéria como elemento objetivo do conhecimento; 2) A lei
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da causalidade como princípio motor das transformações da matéria e causa determinante das evoluções do espírito; 3) O espaço e o tempo como condições formais de todas as transformações da matéria; a motivação e a finalidade como condições formais de todas as evoluções do espírito” (pp. 27/28). Partindo das ideias, que relacionam o objeto principal da filosofia à existência do espírito como elemento subjetivo e a existência da matéria como elemento objetivo do conhecimento, intersecionadas com a lei da causalidade e aguda percepção da relação espaço e tempo “como condições formais de todas as transformações da matéria”, e, como corolário, “a motivação e a finalidade como condições formais de todas as evoluções do espírito”, Mattos ingressa no terceiro volume da “Finalidade do Mundo”, provocando seus acendrados leitores com um título inquietador para qualquer homem de ideias: “O Mundo como Atividade Intelectual” e “A Verdade como Regra das Ações” (pp. 28/47). Faço uma pausa. Busco o laço entre o que acima foi recordado da relação que Brito faz dos fatos com o concreto, para com esse título e encontro que, superada a febre que apavorou o mundo com a entrada do século XX, mediando os dois livros o intervalo de dois anos, ele não escapou, porque ínsito ao seu método e ao próprio construir de ideias, impressionou-lhe o homem voar (Santos Dumont contornou a Torre Eiffel em 1901), leva-o a descobrir as duas doutrinas que estavam em voga, como “nouvelle vague”: o positivismo e o marxismo. E, de pronto, rechaçou-as, porque “não conseguiriam resolver a crise moral” (p. 29). E se vivo hoje estivesse, como se desenlaçaria desse cipoal em que a contemporaneidade nos dá (= realidade)? E se fora a realidade total? Mattos, como sempre esquemático, virtude que adquiriu em Louvain, pois todos os demais que conheci, anteriores a ele,
o foram (Van Acker, Monselhor Francisco Bastos e Monsenhor João Pedro Fusenic), dá a evolução de Farias Brito, permitindo-se sintetizar, com suas palavras, essa gloriosa evolução: “Nos dois primeiros volumes da Finalidade do Mundo, um naturalismo teleológico, equivalendo a um monismo em que a realidade única (a substância infinita da natureza) se manifesta sob duas faces, a física e a psíquica. Julgava assim superar as antíteses espiritualismo-materialismo, realismo- idealismo. Em 1905 mostra-se partidário do monismo espiritualista no sentido mais próprio, em que o pensamento é a realidade fundamental: o mundo como atividade intelectual. Até aqui, portanto, vemos, no máximo, um naturalismo deísta e intelectualista, visceralmente monístico”. “Em A base física do espírito, acentua o espiritualismo, mas não trata ainda do problema metafísico da realidade fundamental, que apenas já se sabe (desde as duas obras anteriores) dever ser de natureza espiritual”. “Em o Mundo Interior, afinal, é francamente teísta e opõe-se ao monismo, não abandonando, contudo, jamais, o naturalismo no segundo sentido”. Conclui, com Clóvis Beviláqua e Nestor Vítor, que: “Razão têm, entretanto, os dois autores citados quando asseguram que a evolução das ideias de Farias Brito nunca foi brusca, não se havendo processado com rupturas violentas. Para ele, sempre havia uma parte de verdade, até naquilo que já superara. E seu sistema era reelaborado aos poucos, de acordo, aliás, com sua ideia de um indefinido esforço pela verdade. Isso é justamente o que constitui o valor de nosso filósofo : ele pensou e repensou insistentemente sua filosofia, em uma busca incessante e sincera, jamais acabada, porque filosófica” (pp. 45/47). “Evolução do pensamento de Farias
Brito quanto ao conceito da Filosofia e concepção do mundo” (pp. 51/121). Mattos, metodicamente, cuida nessas páginas os mesmos temas abordados antes, sempre a finalidade do mundo como tentativa de encontrar finalidade na vida humana (três volumes), balizando a pesquisa no conceito da filosofia e no uso da concepção do mundo, segundo a obra britiana. Mas, questionando, não me pareceu que Farias Brito tenha prevalência a ter concepção do mundo, como prévia ao conceito da filosofia. E, ainda em visão do escriba, não enfrentou, para colocar-se, entre conceito e concepção, com a importância da liberdade para optar, embora tivesse a sua escalada uns retoques do monismo espiritualista de Baruch Spinoza, que nega a liberdade humana6. Mattos, sem fadiga, aborda, ainda, a problemática verdade como regra das ações, enquanto a base física do espírito, pode ter sua causa no mundo interior elaborado, binariamente, nestas três sustentações, para o conceito de filosofia e para a concepção do mundo. Um necessário parênteses antes de levar à baila as conclusões de Mattos, sobre esta segunda parte da obra de Farias Brito. Socorro-me d’uma obra que, pelo valor intrínseco de ferramenta de trabalho, tem me auxiliado a percorrer os temas que abordo em “Migalhas”, os quais, pela sua multiplicidade, propositadamente eleita, exigem, como esteve a exigir, reflexão acurada. Assim é que, para Hongue, Forest e Baritaud, conceito é uma idéia, uma abstração chave, “que permite aprofundar as noções, de diferenciá-los, classificá-los e organizá-los entre si e, a talho, “em regra geral, é melhor não usar da palavra conceito que não o fizermos para noções de uma determinada amplitude, servindo realmente como ferramentas do pensamento. O trabalho dos cientistas, dos filósofos, dos artistas
consiste frequentemente em conceitualizar suas intuições ou suas experiências, dar-lhes uma forma clara e rigorosa, para torná-las utilizáveis por outros espíritos”7. Concepção é uma palavra que, no mundo das ideias, precisa ter cuidado quando se usa, aliás, como Mattos, excelente latinista, o fizera. De origem latina, conceptio, conceptionis, como substantivo feminino, já em Cícero era empregada no sentido estrito, ou seja, concepção do feito no ventre da mãe, como em Vitrúvio, arquiteto, no sentido sempre tendente a explicar a mesma coisa, para outro fim, análogo, não semelhante; “Conceptio summa rerum omnium est mundus”; o mundo é o agregado de todas as coisas. No vernáculo dos clássicos portugueses, a palavra era empregada também como faculdade de entender, de compreender, de perceber. Foi como Farias Frito e Mattos a usaram, de modo que é confortador empregar uma palavra, num texto de alto nível intelectual, conhecendo-se que se faz com propriedade. Mattos elaborou um apanhado geral do pensamento britiano, com a metodologia que o acompanhou nos percursos anteriores. Disse-o, porque de valia repeti-lo: Quanto ao primeiro volume: “Relacionando a filosofia com a metafísica, depois de haver equiparado a metafísica à psicologia, dirá que esta é ainda filosófica, mas deverá tornar-se um dia ciência. Entretanto, dá a entender que se chamaria também “metafísica” toda concepção do mundo. Quanto à poesia: é a criadora do ideal, concepção que transfigura o mundo através do sentimento do belo. Por último, a religião é a filosofia exercendo a função prática, realizando a moral, de forma a atingir o povo” (pp. 116/117). Quanto ao segundo volume:
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Carlos Lopes de Mattos e Virginia Bastos de Mattos na Praça dos Aliados, 04/09/1982.
“... repete a ideia da filosofia como concepção do mundo, em certo sentido “metafísica”, não-científica, e como atividade sem fim do espírito humano. Como princípio gerador do conhecimento, a filosofia produz a física e a metafísica. Esta abrange a psicologia e a moral, sendo que a segunda seria considerada filosofia do ponto de vista prático. Na função teórica, a metafísica seria só a psicologia, mas agora a psicologia continua a ser considerada filosófica, chegando assim a ser quase sinônimas a filosofia quando estuda os fatos subjetivos, a metafísica e a psicologia” (p. 117). Na concepção do mundo, Farias Brito parte do monismo naturalista dos mais vagos (embora, entendo que o monismo é sempre vago), para, em 1899, parecer adotar um espiritualismo com traços fenomenistas que começa a surgir e, em 1905, defende um espiritualismo bem definido, para, no Mundo Interior, renegar “frontalmente todo monismo e chega à doutrina de
uma causa criadora de todas as coisas. Deu é o número por excelência, e nosso espírito seria a realidade secundária, criada, só produtora de ideias mortas” (p. 119). Mattos é um purificador de Brito, sobretudo da sua obra, do seu itinerário, que, como nenhum outro crítico, soube avaliar, por isso, perorando, o valiosíssimo ensaio sobre os momentos culminantes do evolver britiano, no mundo das ideias. E escreve, para isso: “Seria preciso estudá-lo com todo o cuidado, em meticulosas monografias, a fim de sairmos da fase de apreciações sem alicerces, ditadas por tendências subjetivas, tais como as de muitos que superestimaram ou menosprezaram a obra do filósofo cearense, emitindo dogmaticamente pretensos juízos definitivos. Um homem que dedicou seriamente toda a sua existência à busca da verdade, merece mais do que meia dúzia de críticas improvisadas” (p. 121). Se gabasse conhecer Brito, pela bei-
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mente alcunhado de “compilação”, é um trabalho artesanal, produzido por quem foi vocacionado a cogitar, a apartar-se do tempo para pesquisar, a curiosar, a organizar um calidoscópio com a transposição das figuras geométricas ou não a uma ordem preestabelecida. A tarefa foi cometida a Mattos, em 1962, na cidade de Fortaleza (Ceará), local em que se reuniu o IV Congresso Nacional de Filosofia, com epicentro no centenário do nascimento de Brito. Em apenas quatro anos, Mattos teve o fôlego de reunir desde escritos de interesse biográfico (pp. 9/22), as polêmicas em que se envolveu (poucas), o controvertido pensador cearense (pp. 123/222), os perfis que ele esboçou de homens da terra (pp. 223/266), a uma pequena história que esboçou sobre os fenícios e hebreus (pp. 270/303), aos seus estudos de filosofia (pp. CLM e VBM na Biblioteca de Louvain (Bélgica)
III - Ainda Carlos Mattos Lopes escrutina a obra e a vida de Raimundo Farias Brito: Os “Inéditos e Dispersos” em questão8
Esse tratado de Mattos, modesta-
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rada, como ocorreu com tantos outros, teríamos o ápodo de Mattos, como ele o fez, em a Nota Final da obra em comentário, quando elogia a tese do Professor Laerte Ramos de Carvalho, “A Formação Filosófica de Farias Brito” (São Paulo, 1951), mas, doutra parte, encerra: “Temos aí um trabalho verdadeiramente especializado, de nível universitário, que já nos transpõe para uma nova era das pesquisas sobre Farias Brito, bem distante daquela em que pontificavam a respeito do filósofo até filólogos e sociólogos oniscientes e carentes de assunto” (p. 135). E, lendo Mattos, ele foi inflexível quanto aos injustos críticos de Brito, como o jesuíta Leonel Franca (p. 128, dentre outros).
CLM e VBM em Assis
305/434), ao que escreveu o bacharel formado na celebérrima Faculdade de Direito do Recife, à estética (pp. 459/542) e à portentosa bibliografia do cearense, abrangendo sessenta e cinco trabalhos, inclusive vários póstumos (pp. 545/548). Não nos dispusemos a tecer boas de Mattos, mas confessamos que a obra em consideração é fruto de um amor à sabedoria acrisolado em forte vocação, desprendimento, integral dedicação, paciência e, sobretudo, bagagem cultural que adveio de longo peregrinar no mundo das ideias. O escriba que lhes comunica encontra muitos traços de comportamento de Mattos com Luís Washington Vita, como ele infatigável no lavor científico. E Mattos, no Prefácio (fls. 8), menciona-o, depois de outros homens de saber, dentre eles Van Acker e Miguel Reale, com espontâneas palavras: “Nosso reconhecimento também ao Dr. Luiz Washington Vita pelo apoio e sugestões que sempre nos tem dado”. Minha geração, subsequente à de Mattos, embora valorosa, nunca produziu personagens dessa estirpe, porque eles aliavam e combinavam e mesclavam tantas e tantas qualidades, que nos dá uma ponta de inveja. Aquela inveja tão verberada, que o gênio do Padre Manuel Bernardes, dito êmulo de Vieira, a considera desta maneira, tomando do Evangelho de São Mateus (VI, 23): “A virtude está no dano e a inveja no escuro”, emendando com Santo Agostinho: “... que os fariseus êmulos de Cristo sentiram tanto o milagre do cego de nascença, porque a luz, que este tinha já nos olhos, lhes faltava a eles nos corações: cor eorum frangebatur, quia non habebant in corde quod jam ille habebat in facie”9. Num voo de pássaro, nos “Escritos”, Brito debuxa várias facetas da sua personalidade frente a fatos e eventos ocorridos em sua vida, em manifestações que abarcam o álbum de sua família, à sua auto-exposição e à sua biografia, a sua indignidade ao Mare-
chal Hermes da Fonseca, ao momento mais feliz de sua vida e culmina com as cartas dirigidas a amigos, parentes, companheiros e colegas. Nas “Polêmicas”, desanca o positivismo do “sr. Major Gomes de Castro”, até sustentar “a teoria da evolução como forma moderna de materialismo”. Sustenta Antonio Paim10 que Farias Brito teria dado margem à formação da Escola Católica do Século XX, desviando-se da sua autêntica doutrina, na crítica que lhe apodou o Padre Leonel Franca. Tentando uma nova via de evolução para o espiritualismo e, para isso, houve uma evolução para uma síntese, ousadamente, - opinião própria -, encontramos parelha a resistência a Brito, no mesmo diapasão da que foi assentada à obra e ao pensamento de Teillhard de Chardin, também colocado o ostracismo por um representante da mesma ordem religiosa que o estigmatizara: os jesuítas (o Padre Leonel Franca o era). Pesquisa, em “Perfis”, homens do seu Ceará, sobretudo e, na “História”, revisita povos da antiguidade, como suso lembro. Em “Estudo de Filosofia”, Farias Brito, em doze ensaios, dá ênfase ao psíquico, à moral, ao pensamento de Herbert Spencer (então em voga), à teoria do conhecimento, com um provocante e provocativo trabalho intitulado “O suicídio como consequência da falta de convicção” (p. 344). Em dezessete páginas, desenvolve seu tema, sem nunca lhe ter passado na ideia de cometê-lo, como alertado por Mattos (p. idem). Movido, sim, por um sentido altruístico, confortador, tanto que, no exórdio, já espanca qualquer dúvida: “Pensamentos desta maneira: em condições normais só há duas espécies possíveis de suicídio: - o suicídio do homem sem religião e o suicídio do homem de bem que, por condições excepcionais, se tornou criminoso”. Esta é a tese ou a teoria que desenvolveu, para, genialmente, concluir: “A única dedução a tirar-se daí é a necessidade
que temos de trabalhar. Hoje mais do que nunca esta necessidade patenteia o seu grande poder. As relações sociais se definem de uma maneira precisa e os diversos ramos da atividade humana giram dentro de uma esfera especial traçada pela natureza das coisas”. ... O trabalho torna-se, pois, uma força consciente e regeneradora; o quadro das aspirações do espírito humano se alarga; e o que sobretudo releva notar é que a aplicação perseverante dos meios destinados a alargar o círculo da atividade, é o meio mais eficaz para a conservação do equilíbrio moral. É daí que vem a verdadeira fonte da felicidade” (p. 360). Em tema do “Direito”, escreveu: “Sobre o valor dos estudos jurídicos” e “Programas de direito”. Ambos breves, porém, de interesse para os Migalheiros, que somos coparticipes nessa história. Detenhamo-nos. O primeiro é um discurso pronunciado no dia 11 de agosto de 1904, no salão nobre da Faculdade de Direito do Pará, onde residia (em sessão magna). Exalta o valor e a importância do estudo do direito e da concreção na vida diária e, como já se tornou usual, destacamos a conclusão: “O direito é uma ciência viva, porque é a ciência da ação; e é uma ciência sagrada, porque é uma ciência de amor e de justiça. Além disto o direito é em certo sentido a síntese da vida espiritual. Efetivamente nós encontramos aí todos os elementos constitutivos da ideia salvadora, da ideia que nos convence da verdade de um princípio indestrutível no fundo de nossa existência; de um princípio que nos coloca acima da ação consumidora do tempo. Efetivamente na natureza a harmonia, no mundo moral a virtude, no mundo social a justiça, - tal é o tríplice aspecto dessa força misteriosa e estranha que se manifesta na ordem do sentimento como amor é a poesia da vida, e na ordem do conheci-
mento como verdade, é o ideal supremo do espírito humano. Pois bem: a justiça por si só encerra todos estes elementos: a justiça é harmonia porque representa o acordo das vontades e a paz das consciências; a justiça é amor, porque significa a organização da sociedade pela confraternização dos interesses, o que quer dizer: pela lei de harmonia e pela lei de reciprocidade; e a justiça é verdade, porque é legítima compreensão da organização social e a consagração dos direitos do homem” (p. 449). Embora longa a citação, digna de ser meditada. Na oportunidade, lecionava, na mesma Faculdade, a cadeira de Filosofia do Direito, no 1° ano. É preferível que não se dê nada do Programa ministrado aos calouros, porque muitos dos leitores não acreditarão como se estudava no 1° ano do bacharelado de Direito, nos primórdios do século passado e, como corolário, para estudar aquele programa que era ministrado, que base humanística tinham os calouros. Lamentável o que ocorreu com a cultura jurídica e a cultura nestas Terras Brasis. Em a “Estética”, Mattos nos trouxe os “Contos Modernos” (poesias), marcados por evocações da terra de Iracema e de José de Alencar, além de outros, ex corde. Valho-me de Luiz Washington Vita, que foi um esteta e, sobre o nosso filósofo cearense, reportou um tema discutido, em 1962, no IV Congresso Brasileiro de Filosofia, em Fortaleza, intitulado “Contribuição de Farias Brito para a História das Ideias Estéticas no Brasil”11. Sem comentários valorativos sobre o que Vita escreve: “Farias Brito não vacila em afirmar que a finalidade da arte é proporcionar o homem uma certa ‘ideia do mundo’, sendo, portanto, uma ‘necessidade’ humana ao exercer uma ‘função particular’ que se poderia chama de ‘contemplativa’. Ou, nas palavras do próprio filósofo: “a arte (é) uma como visão inconsciente, mas profética de uma própria realidade” (p. 133). E Vita, apaixonado como
Mattos pela contribuição de personagens que filosofaram contra a maré, lembrou que a pequena contribuição de Faria às ideias estéticas no Brasil “tem importância histórica” (p. 134). IV – Depoimento do Professor Irineu Strenger, companheiro de Mattos no Instituto Brasileiro de Filosofia [São Paulo, 22 de março de 2005]
Ao caro amigo Vita Roso: Agradeço ao seu amável telefonema relativamente ao artigo que você irá escrever em homenagem a Carlos Lopes de Mattos. Graças a sua iniciativa de homenagear o nosso amigo Carlos Lopes de Mattos estará registrada sua inteligência e compreensão especialmente dos problemas relativos à filosofia por ele cultivada.
JVR: Quando e onde conheceu Carlos Lo-
pes de Mattos? IS: Não sei exatamente quando conheci Carlos Lopes de Mattos, mas tivemos nosso primeiro encontro no Instituto Brasileiro de Filosofia em trabalhos literários promovidos por força do professor Miguel Reale em seminários mensais do I.B.F.
JVR: Qual era a participação de Carlos
Lopes de Mattos no Instituto Brasileiro de Filosofia e sobretudo em que áreas ele era mais interessado? IS: O querido Carlos Lopes de Mattos vivia frequentemente no Instituto Brasileiro de Filosofia, dedicado à elaboração de livros e artigos sobre os mais variados temas de filosofia. Suas ideias lançaram raízes que se aprofundaram no plano da filosofia. Por exemplo, lembramos de seu artigo “Na objetividade ou subjetividade da filosofia” a luz de sua própria concepção, em 1961, quando dizia o seguinte: “Aqui surge uma ideia inte-
ressante a ser melhor explorada: a do estudo da história da filosofia como trabalho filosófico. Não é meu intuído desenvolver por ora esta ideia, mas me parece que há duas coisas que se confundem no debate entre os partidários da história da filosofia ‘histórica’ ou filosófica’: a história da filosofia e a compreensão filosófica do pensamento na história”.
JVR: Tanto você como ele estiveram no IV
Congresso Internacional de Filosofia, realizado em Fortaleza, e lá ele demonstrou, consolidando depois em várias obras o seu interesse por Raimundo Farias Brito. Pergunto-lhe: a que você atribui esse interesse de Mattos por Farias Brito? IS: Realmente estivemos tanto eu como Carlos Lopes de Mattos no IV Congresso Internacional de Filosofia, realizado em Fortaleza, mas, tivemos outros encontros, pois, verdadeiramente estávamos dedicados aos assuntos da história da filosofia do Brasil, entre os quais com muito interesse por Farias Brito. Carlos Lopes de Mattos tinha vocação para história, porquanto a razão escolhida, por exemplo, pelo seu interesse na vida e pensamento de Farias Brito procurando metódica e minuciosamente rastrear a curva daquele filosofo, no tocante a certos assuntos foi de importância fundamental. Este é o motivo pelo qual o próprio Carlos Lopes de Mattos declara: “Todo pensamento filosófico pode situar-se, para fins de uma classificação esquemática, entre os limites extremos do logicismo mais racionalizante e do pragmatismo da filosofia ‘com se’ ou de misticismo”. Um livro básico de Carlos Lopes de Mattos foi: “O pensamento de Farias Brito – Sua evolução de 1895 a 1914”, São Paulo, Herder, 1962, 135 p. A propósito é fundamental a opinião de L. Van Acker, um grande filosofo, que era nosso colega, e que assim se expressou: “Por nossa vez dizemos
que o opúsculo do Prof. Carlos Lopes de Mattos é trabalho de alta qualidade, feito por um mestre formado no mister. Tudo aí é exarado com muita precisão, concisão e objetividade científica. Nem faltam os pormenores típicos, que evocam um Farias Brito bem concreto e vivo, cearense até nas suas imagens estilísticas (por ex.: a sede do saber) genuinamente brasileiro no seu modo pouco sistemático de pensar e redigir”.
JVR: Como você, encerrando, situa-o den-
tro da História das Ideias brasileira? IS: A atividade filosófica no Brasil de hoje começa a ter o caráter de exigência interna de unidade e de tomada de consciência por parte de uma cultura orgânica, exprimindo, a mais alta manifestação dessa cultura. Não se trata mais de iniciativa de isoladas manifestações tipicamente marginais da vida cultural. Isto se deve à criação de instituições culturais representativas como as Faculdades de Filosofia e o Instituto Brasileiro de Filosofia aos sentimentos de uma cultura que se vincula às condições sociais e ao contorno histórico. O que importa, agora, é almejar e, principalmente lutar – para que, no tempo futuro, não seja o Brasil alheio a esse movimento, mais significativo e mais conspícuo da filosofia, no qual Carlos Lopes de Mattos ocupa lugar de destaque fruto de seu profícuo pensamento de vocação filosófica. Abraços, Irineu Strenger Professor Titular de Direito Internacional Privado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, aposentado. V - Conclusão
Havia de concluir. Chegou a hora de encerrar o trabalho. Modesta, modestíssima, ínfima e perfunctória fotografia de
Carlos Lopes de Mattos, que, bem analisado por Irineu Strenger, que brindou aos leitores com a carta de caráter pessoal que teve a gentileza de atribuir ao escriba-migalheiro, que faz este arremate: Carlos Lopes de Mattos, você deixou saudades, muitas saudades, infinitas saudades, mas legou-nos uma família forte, decidida e competente para conduzir o significado mais importante da tradição, que é a entrega de algo valioso às gerações póstumas. Como nos escritos romanos, que seria a introdução, à inversa, escrevo: Vale (eu te saúdo). Notas bibliográficas 1MATTOS, Carlos Lopes de. O pensamento de Farias Brito: Sua evolução de 1895 a 1914. São Paulo: Editora Herder, 1962. 133 p. 2A locução latina in fieri tem várias interpretações, dependendo do campo onde se coloca o observador ou no campo de sua pesquisa. Geralmente, no jargão jurídico, in fieri, significa um processo que está ocorrendo, v.g., uma lei tramitando no Congresso pode ser uma lei in fieri. 3Naturalismo. “Considera-se como naturalismo as direções de pensamento que se atribuem à natureza (em uma de suas várias acepções) um papel decisivo ou talvez exclusive nele entram em conta sobretudo a oposição ao espírito e ao que é o sobrenatural. Verbete naturalismo, in DICIONÁRIO de Filosofia Walter Brugger, S.J., 9ª ed., Barcelona: Editorial Erder, 1978. p. 366. 4Teleológico. “Advém de teleologia. A ciência (logos) ou estudo dos fins (telos, plural de tele) ou da finalidade. Por extensão: a finalidade, ou seja, a ação diretriz que o fim exerce sobre os meios”. Teleológico é “o relativo a, supõe ou afirma a teleologia, isto é, a existência da finalidade, argumento, princípio teleológico. Se opõe ao mecânico ou mecanicista. Verbetes teleologia e teleológico, in DICIONÁRIO da Linguagem Filosófica, dirigido por Paul Foulquié, Barce-
lona: Editora Labor, 1967. p. 1.007. 5Monismo. Do grego monos num significado de um ou único. “Em geral: doutrina que não admite mais do que um único princípio constitutivo de onde outras doutrinas admitem duas (dualismo ou mais) (pluralismo). O materialismo, o idealismo e o panteísmo constituem diversas formas de monismo”. Verbete monismo, in DICIONÁRIO da Linguagem Filosófica, dirigido por Paul Foulquié, Barcelona: Editora Labor, 1967. p. 662. 6TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do Direito. 2ª ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004. pp. 27-37. 7HONGUE, B., FOREST P. e BARITAUD, B.. Verbete concept. In GRAND DICTIONNAIRE de Culture Générale. AlAcervo Casa Rosa
lem/Bélgica: Marabout, 1996. p. 85. 8FARIAS BRITO, Raimundo. MATTOS, Carlos Lopes de (comp.). Inéditos e dispersos: Notas e variações sobre assuntos diversos, São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda., 1966. 550 p. 9BERNARDES, Padre Manuel. A nova floresta. Tomo Quinto. Lisboa: Livraria Lello, 1949. pp. 414-415. 10PAIM, Paim. História das ideias filosóficas no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1984. 615 p. 11Congresso Brasileiro de Filosofia, iv,1962, fortaleza. Anais. (Suplemento da Revista Brasileira de Filosofia). Essa contribuição de Vita foi reproduzida no seu Tríptico de ideias. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda., 1967. 181 p.
CLM e VBM em um parque de Louvain (Bélgica)
Do latim ao popular Carlos Lopes de Mattos costumava dizer alguns provérbios em latim, dos quais seus filhos chamavam de “latinório”. Quando ele via sua filha Guta (Maria Augusta), logo vinha o “Gutta cavat lapidem non vi sed semper cadendo” (água mole em pedra dura tanto bate até que fura - uma correlação ao pé da letra, porém o sentido mais próximo é que a água escava a pedra não pela força, mas pela persistência). Outros provérbios ditos no cotidiano da Casa Rosa também exaltavam a sabedoria de Carlos: “Homo sum, hu-
mani nihil a me alienum puto” (Sou um homem, então nada do que é humano me é estranho); “Sunt pueri pueri puerilia tractant” (crianças são crianças e agem como crianças - largamente conhecida quando algum dos oito filhos se atrevia em peraltagens); “Quanquam sunt sub aqua, sub aqua maledicere tentant” (embora eles estejam debaixo da água, debaixo da água tentam amaldiçoar ou seja, não importa o lugar em que a maldade esteja, ela sempre tentará prosperar); Seu senso de humor era bastante aguçado, quando al-
guém perguntava se conhecia algo que não fazia parte de seus interesses, a resposta era muito sutil - “audivi” (conheço porque ouvi alguém dizer). O famoso palíndromo (frase que pode ser lida da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda) “Signa te signa, temere me tangis et angis” também fazia parte do latinório popular de Carlos, o monsieur, poliglota que escolheu Capivari para compartilhar uma vida de conhecimentos e lutas pelos direitos sociais.
Meu auto-retrato filosófico em síntese I. DADOS BIOGRÁFICOS
II. PENSAMENTO FILOSÓFICO
Nasci em 26-9-1910, em São Paulo. Fiz o curso secundário em Sorocaba (1923-28) e três anos de Filosofia (1930-32) na Capital, com os beneditinos. Continuei os estudos filosóficos de 1936 a 39, na Universidade de Lovaina, doutorando-me em fevereiro de 1940, com a tese: Recherches sur la Théorie de la Connaissance dans le <<Scriptum super Setentiis>> de Saint Thomas d’Aquin. De maio de 1940 a junho de 1942 lecionei Filosofia Social e História da Filosofia Moderna na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras <<S. Paulo>>. Desde então, fui professor secundário, a princípio no Rio e nos últimos vinte anos no nosso Estado. Sou membro do Instituto Brasileiro de Filosofia. (Escrevo este auto-retrato em 1967.)
Minha iniciação filosófica obedeceu ao tomismo interpretado por João de S. Tomás e foi feita no mais rigoroso método eclesiástico. Cursando o <<Institut Supérieur de Philosophie>>, de Lovaina, alargou-se-me a visão, permanecendo ainda tomista, mas sem a estreiteza da ortodoxia tradicional. Deu-me aquela escola a abertura para o pensamento moderno, apreciado com toda a simpatia. Além disso, minha especialização na História da Filosofia levou-me a encarar as ideias dos outros sem preconceitos, com uma atitude que permite descobrir o valor em todo sistema autenticamente filosófico. Liberto, assim, de muitos preconceitos, cheguei à convicção de que era preciso filosofar com inteira liberdade, por conta
própria, embora sem a intenção preconcebida de originalidade. Pensando devagar, sem ter pressa em chegar a resultados positivos, e sim aguardando que <<a verdade do ser me fale>>, como diria Heidegger, elaboro há anos minha <<filosofia da projeção>>. Nela parto da realidade problemática, do ser como <<problema>>, como dardo atirado na realidade. Esse ser só se compreenderá enquanto lançado pelo aproblemático. Por se tratar de um dardo, o ser problemático está, necessariamente, sempre em evolução, entrechocando-se com os outros dardos e tendendo a um alvo, que só pode ser o próprio aproblemático. O homem é um dardo consciente, atirado e auto-atirante, capaz, portanto, de orientar-se a si mesmo em sua trajetória. Consciência ligada a um foguete portador (de tipo particular, porque se trata de uma parte consubstancial do dardo consciente), que é o corpo, o homem, após a morte, continuará sua projeção sem fim em outro plano, sempre mais próximo do projetante aproblemático, mas sempre em evolução aperfeiçoadora. O dardo humano, porém, é sobretudo componente de um feixe de dardos, essencialmente social, só se compreendendo sua projeção como sendo coletiva. Por ser consciente, esse dardo é ciente <<consigo mesmo>>, individual, pessoal e ciente <<com os outros>> ou social, projetado em si e co-projetado com os outros. Com essa ideia fundamental procuro chegar à explicitação dos vários problemas filosóficos. A própria Filosofia, por exemplo, será problema do problema, a conscientização daquilo que o problemático é intrinsecamente, identificando-se no fundo com a própria evolução do projetado e, por isso, forçosamente dinâmica e perfectível sem fim. Deus será o projetante aproblemático, inquestionável em si, mas continuamente questionado pelo dardo consciente, aparecendo nessa perspectiva o ateísmo como solução invertida do problema, pois reco-
nhece que Deus não é problemático, mas faz do atirado o aproblemático, ao contrário de toda a filosofia da projeção. A solução de problemas sociais deverá deduzir-se da noção do dardo consciente, projetante com o aprojetado, que tem de visar o alvo para o qual foi atirado, sempre numa posição progressista, mas sempre dependendo da trajetória anterior. Em suma, trata-se de uma Filosofia dialética, na qual o ser é dado, mas sempre por fazer, dirigido, mas capaz de opções livres, destinado a um fim, mas sempre a caminho, harmonizado, apesar de todos os conflitos e entrechoques passageiros. É uma filosofia tranquilizadora e, ao mesmo tempo, sumamente inquietante, visto que o problemático jamais poderá transformar-se em aproblemático, deixando de ser o problema em si. III. OBRAS PUBLICADAS 1. Heidegger e o Problema da Filosofia, Limeira, <Letras da Província>, 1954, 55 págs. 2. Vocabulário filosófico, São Paulo, <Leia>, 1957, 387 págs. 3. Um Capítulo da História do Tomismo. A Teoria do Conhecimento de Tomás de Aquino e Sua Fonte Imediata, São Paulo, Coleção da <Revista de História>, vol. XVII, 1959, 105 págs. 4. O Pensamento de Farias Brito (Sua evolução de 1895 a 1914), São Paulo, Herder, 1962, 135 págs. 5. Compilação, introdução e comentários dos Inéditos e Dispersos de Farias Brito, São Paulo, Grijalbo, 1966, 550 págs. INÉDITOS: 1. Filosofia da Realidade; 2. História da Filosofia Antiga e Medieval (curso radio-fônico); 3. Descartes; 4. Espinoza. [Excerto do auto-retrato escrito por CLM em 1967 e publicado no livreto Rumos da Filosofia atual no Brasil, de organização do Prof. Dr. Stanislavs Ladusãns]
o homem tem que ser pensado como um dardo atirado no Ser Carlos Lopes de Mattos