a coisa em si fevereiro.2019
Neto Grous
Neto Grous
a coisa em si
fevereiro 2019 . ano 1 . número 2 . Ponto de Cultura Casa Rosa
Apresentação O suplemento cultural “a coisa em si” é uma publicação independente do Ponto de Cultura Casa Rosa _ Memorial Virginia e Carlos Mattos. Sua finalidade é difundir o conhecimento guardado desde a década de 50 na casa onde residiu a família Mattos. O acervo é formado por livros, cartas, documentos e registros históricos sobre Capivari e suas inúmeras famílias, acontecimentos que marcaram a vida cultural e política do município.
Expediente Coordenação Maria Augusta B. de Mattos João Augusto B. de Mattos Revisão Gloriete Gasparetto Textos e Diagramação Bruno Bossolan O conteúdo do “a coisa em si” é de responsabilidade exclusiva dos que constam no expediente e das pessoas que assinam os artigos.
MEMORIAL VIRTUAL CASA ROSA facebook.com/pontodeculturacasarosa twitter.com/ponto_casarosa instagram.com/memorialvirginiaecarlosmattos pontodeculturacasarosa@gmail.com Apoio Cultural
Quais foram suas vivências na Casa Rosa? Perguntamos em nossa página no Facebook sobre as vivências de infância que os moradores de Capivari tiveram na Casa Rosa. Destacamos alguns comentários: Wagner Busato: “Doces e memoráveis lembranças. Das árvores: goiabeira, jabuticabeira, cajazeiro e dos doces da Dona Virginia. Muitas brincadeiras, fizemos até cirquinho com palha de arroz, trapézio, mágico, bailarina... e muito futebol (todos os dias, até com chuva!).” Silvia Salmazzi Forner: “Ia com minha irmã Silena estudar com a Maria Augusta e seus irmãos, não me recordo muito bem, mas acho que tinha uma biblioteca.” Vornei Boccardo Júnior: “Bati bola na frente da casa...” Merielen Martins Lopes de Souza: “Tenho várias lembranças de infâncias vividas nessa casa de amigos dos meus pais, que sempre nos recebiam com tanto carinho e aconchego. Eu, pequena, caminhava pelo largo e florido jardim até o final e lá estavam as várias e enormes tartarugas da querida Dona Virginia. Sempre amei tartarugas e aquelas eram as maiores que já tinha visto. Na sala grande, de janelas largas e sempre abertas para o jardim, os adultos conversavam sobre ideias, histórias e família, nunca sobre a vida alheia ou fofocas. Sempre havia uma panela no fogo perfumando a casa decorada por livros e móveis antigos. Ali não havia música alta, não me lembro de televisão lá, mas com certeza a informação e conhecimento residiam ali. A anfitriã, que jamais se esquecia do meu aniversário, sempre me contava histórias que prendiam minha atenção. Era sempre muito bom ir com minha mãe à Casa Rosa. Era com certeza uma casa com atmosfera diferenciada e acolhedora. Saudade!” Tânia Pellegrini: “Era a casa do meu Professor de francês, uma casa meio sagrada com camélias no jardim.” Fátima Amâncio: Nós tomávamos banho, colocávamos vestidinhos bonitinhos e íamos assistir o cirquinho que se apresentava no quintal. Muitas vezes ia com minha mãe visitar D. Virginia e eu adorava brincar com as tartarugas no quintal cheio de árvores lindas!” 04
Neto Grous
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[Imagem: Arquivo do site São Paulo Antiga] Sentados no sofá do meio: Amadeu Amaral - poeta, filólogo, folclorista e jornalista -, Júlio Mesquita - proprietário do jornal O Estado de S. Paulo - e Nestor Pestana - diretor chefe -, juntamente com os redatores d’O Estado de S.Paulo, em 1918.
[Imagem: Arquivo do site São Paulo Antiga] Amadeu Amaral, sentado ao centro da foto, na Redação d’O Estado de S. Paulo, em 1918.
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Convite da inauguração da herma de Amadeu Ataliba Arruda Amaral Leite Penteado, o ilustre Amadeu Amaral, em 1949. Na ocasião, os oradores foram: Aldo de Assis Dias (juiz de Direito da Comarca de Capivari e presidente da campanha pró-monumento), Altino Arantes (presidente da Academia Paulista de Letras) e Múcio Leão (representante da Academia Brasileira de Letras). Zizinha do Amaral Pereira, filha de Amadeu, descerrou o monumento. Participaram também poetas, jornalistas e autoridades locais. Houve grande festejo pela cidade de Capivari e desfile pelas ruas do centro. “Amadeu Amaral foi, acima de tudo, um grande poeta, glória da língua portuguesa e do continente americano. Mas foi ilustre também como ensaísta, como folclorista, como filólogo e jornalista. A Academia Brasileira de Letras elegeu-o para a vaga de Olavo Bilac. A Academia Paulista de Letras, que lhe deve seu ressurgimento, fê-lo seu presidente. E, como cidadão, foi um alto exemplo pela elevação do seu pensamento, pela santidade do seu coração, pelo fogo do seu civismo e pela pureza do seu caráter.” (Do projeto que concedeu auxílio para a construção da Herma a Amadeu Amaral, da digna Assembleia Legislativa do Estado). 07
Coincidência, Sincronicidade ou Intuição? * por Bruno Bossolan Amadeu Amaral foi convidado para a Maçonaria em 1920 juntamente com Paulo Duarte. A Loja América onde Amadeu foi orador também ficou famosa por ser frequentada pelos escritores Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa e Luiz Gama. Em discurso comemorativo da qual a data é imprecisa, Amadeu pontificou: “... Se me perguntarem o que quero, diria: quero a renovação dos cinco sentidos da humanidade, quais sejam: luz, amor, vida, liberdade e paz, porque esses cinco sentidos na verdade são só um: decência...”. Um fato curioso é que Aleister Crowley (Edward Alexander Crowley), ocultista britânico e criador do sistema magístico Thelema, publicou em 1919 o “Liber CL - De Lege Libellum” com os quatro pilares que Amadeu citou em seu discurso: Liberdade, Amor, Vida e Luz. Mas e a Paz? Seria ela a última a ser conquistada pela Vontade e denominada de Alta Magia? No livro acima citado, Crowley denomina essas quatro virtudes de “Raios ou Emanações” do Livro da Lei. Compreendemos que, pelas vias absurdas do mistério, Amadeu trilhou as possibilidades como ninguém. Estrela única desperta nas coincidências de Capivari, cremos que o poeta pode expandir os caminhos na completude do contínuo e que suas letras servem de alimento para o nosso futuro: ideação da Verdade. Um autodidata com o destino traçado pela humildade, um coração iluminado que nos liberta da ignorância, Amadeu é o martelo que estilhaça nossa vaidade. Que cada um possa edificar sua Grande Obra no sentido coletivo das vivências. “Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei. Não há nenhuma lei além de ‘faze o que tu queres’. A palavra da lei é Thelema - significa Vontade.”1
‘Amor é a Lei, amor sob vontade’ 1 Aleister Crowley 08
AMADEU AMARAL (do livro: “Perfis”, 2ª série, obra póstuma, 1936) HUMBERTO CAMPOS Capivari, a graciosa cidade paulista,
ternato, Amadeu Amaral Penteado se
era, já, há quarenta anos, um impor-
lembrou do conselho de seu Pai. Na-
tante núcleo de civilização sertaneja.
riz para o ar, comprido e fino, aspirou,
Possuía vários documentos do pro-
fundo, o ar circunjacente. Em uma das
gresso e, entre estes, um, que era o
ruas do centro, sentiu cheiro de tinta
seu orgulho naquelas terras: a “Gazeta
de impressão. Subiu à casa de onde
de Capivari”, semanário noticioso, po-
vinha o perfume. Era a redação d’A
lítico e literário, dirigido pelo advogado
Plateia.
João de Arruda do Amaral Penteado,
_ Eu queria um lugar de “repórter”
de quem se podia dizer, como se di-
aqui... _ pediu.
zia de Glicério em Campinas, que era
_ Entende do ofício?
o “fogão da cidade”. Ao regressar à casa, o velho João de Arruda tomava
_Eu sou filho do João
o filho nos braços, amimava-o e dizia:
de Arruda, de Capivari.
_ Hás de ser jornalista; sabes? Quando fores homem, hás de fazer da “Gazeta de Capivari” o primeiro jornal da
A recomendação não podia ser melhor.
Província... Prometes?
E um mês depois com a vocação que
Olhos muito azuis, o menino declara-
lhe estava na massa do sangue, era o
va:
“enfant gaté” do jornal onde a facilida-
_ Prometo!
de de escrever, invulgar nos principian-
Aos nove anos de idade, aí por 1884,
tes, lhe deu direitos, logo, a um lugar
acompanhava Amadeu Amaral o pai à
na redação.
redação do semanário, afeiçoando-se
Foi por esse mesmo tempo, com de-
ao cheiro da tinta. E aos doze anos
zessete anos, que o moço de Capivari
seguia para São Paulo, consignado a
começou a sentir umas coceiras mis-
um colégio, com a recomendação de
teriosas no coração. Tinha desejos de
que se apurasse quanto possível a sua
coçar com a pena, e não sabia como
educação literária.
principiar. Imaginou uma nota de polí-
O ano de 1892 corria agitado na capi-
cia. Ideou uma notícia de roubo. Pen-
tal paulista, quando abandonando o in-
sou num comentário político. O segre09
do de sua alma não cabia, porém, em nenhum desses frascos literários. E foi, quando, passando a mão esguia pela testa vasta, exclamou, como Arquimedes no banho: _ Eureka! E decidido: _ Vou escrever um soneto! Os primeiros versos de Amadeu datam, assim, de 1892, isto é, do ano da Carta Constitucional. A sua musa nasceu com o pacto de fevereiro. E daí em diante, não foi mais possível separar o poeta do jornalista, que ficaram ligados para o resto da vida. Um e outro não tinham, entretanto, o nome que usam. Filho de João de Ar-
24 anos, publicou “Urzes”, volume de
ruda do Amaral Penteado, mais conhe-
estreia em que enfeixava todas as ri-
cido em Capivari pela cômoda abre-
mas da mocidade. Saudado com efu-
viação de João de Arruda, Amadeu
são pela crítica, publicou, anos depois,
experimentou chamar-se, a princípio,
a “Névoa”. Em 1905, sendo tauchaua
Amadeu de Arruda.
da sua tribo o índio Tibiriçá, e chefe de
_ A ama deu de arruda? _ estranhou,
Polícia o seu amigo Antônio de Godoi,
num calemburgo horrível, o diretor da
provou, como secretário desse depar-
“Plateia”, a quem entregara o primeiro
tamento, o vinho da burocracia. Não
soneto.
gostou, e tornou à imprensa, onde, em
O poeta ficou muito vermelho, e emen-
1910, dirigia “O Comércio”, quando
dou a assinatura.
rompeu a campanha civilista. Solidário
_ Amadeu Penteado? _ tornou o dire-
com os partidários de Rui, não aceitou
tor. _ Muito bem.
as condições, que lhe foram impostas,
E surgiu para as letras o poeta Amaral
para render-se ao adversário. Abando-
Penteado, da casa do qual devia sair,
nou, por isso, o jornal, indo trabalhar
anos depois, como a borboleta sai da lagarta, o poeta Amadeu Amaral.
no “Estado de São Paulo”, cuja ativida-
Passando de jornal para jornal, traba-
de política se coadunava, no momen-
lhou o moço de Capivari em todos os
to, com as suas ideias.
diários da Pauliceia. Em 1899, com
Em 1917 deu Amadeu Amaral as “Es10
pumas”, livro forte, perfeito, definitivo,
o lugar a ninguém. Se Alexandre lhe
que o colocou entre os maiores poetas
tirasse o sol à entrada do tonel, pre-
nacionais. Vindo ao Rio a passeio, tra-
feriria mudar de pouso a pedir o sol a
vou conhecimento com Bilac, de quem se tornou amigo. A sua modéstia encantadora cativou o poeta da “Via Láctea”, que não cessava de elogiar-lhe a alma, o coração, o caráter, a probidade. _ Bilac, por que você não casa? _ per-
Alexandre. Eleito, na Academia Brasileira, para a vaga de Bilac, é, dos sucessores, o único, talvez, que teria sido conservado no posto se os sucedidos ressuscitassem. Bom e simples, é, na impren-
guntavam-lhe às vezes os amigos.
sa e na vida, um modelo de virtudes
_ Eu? _ estranhava o poeta.
humanas, ou, melhor, aquela graça de
E lembrando-se das almas perfeitas,
Alberto de Oliveira, que atravessava
que o poderiam compreender.
o paul sem trazer, dele, um pingo de
_ Eu só me casaria... se o Amadeu tivesse nascido mulher! Amadeu Amaral é, realmente, uma das expressões mais legítimas da bondade humana. Poeta de grande surto, escritor de estilo cuidado, não tem ambições, não sente inveja, não disputa
lama nas pernas... Hoje, é Amadeu redator-chefe da “Gazeta de Notícias”, no Rio. Tem quarenta e sete anos, e é da Academia. Que orgulho não teria do filho, se voltasse à terra aquele infatigável João de Arruda, da “Gazeta de Capivari”?!...
Primeiras edições de alguns livros de Amadeu Amaral
O Espírito da Poesia “O mistério da morte” é um soneto de Amadeu Amaral psicografado por Francisco Cândido Xavier (Chico Xavier) e publicado em 1932 no livro “Parnaso de Além-Túmulo”, livro que foi o primeiro escrito pelo médium mais conhecido do Brasil. No livro também constam alguns sonetos mediúnicos de outro poeta capivariano, Rodrigues de Abreu. Agora, transeuntes da leitura e críticos - até mesmo céticos do que nos cabe -, onde fica a autoria do texto psicografado? Ou somente vale a mensagem, uma faísca de conhecimento ao leitor, desprovido da técnica, do tácito labor literário, absorver sua elevação e plenitude?
O Mistério da Morte O mistério da morte é o mistério da vida, Que abandona a matéria exânime e cansada; Que traz a treva em si e abre a porta dourada De um mundo que entre nós é a luz desconhecida. Também tive a minh’alma outrora perturbada, De dúvida, incerteza e angústias consumida, Mas a morte sanou-me a última ferida Desfazendo as lições utópicas do Nada. A morte é simplesmente o lúcido processo Desassimilador das formas acessíveis À luz do vosso olhar, empobrecido e incerto. Venho testemunhar a luz de onde regresso, Incitando vossa alma aos planos invisíveis, Onde vive e se expande o Espírito liberto. 12
Semana Amadeu Amaral * por Maria Augusta Bastos de Mattos
Mexendo e remexendo nos papéis da Casa Rosa, nós nos deparamos várias vezes com o anúncio da “1ª Semana Amadeu Amaral”: assim foi em 1967 (com o projeto de lei municipal nº 788), assim foi em 2005 (numa realização conjunta CNEC/ Diretoria de Ensino/Movimento Capivari Solidário/Prefeitura de Rafard – e que persistiu ao menos por três anos cons e c ut ivos), assim foi em outros momentos. O que é que tem esse intelectual que provoca nas pessoas o desejo de homenageá-lo e, ao lado disso, o que ele tem de tão difícil que acaba por trazer um impedimento de continuidade? Sem dúvida há uma limitação nossa de estudá-lo mais a fundo, de perceber o valor de seus versos parnasianos no tempo em que os intelectuais já se embrenhavam numa corrente pré-modernista, de entendê-lo como vanguarda dos estudos linguísticos brasileiros, de avaliar o alcance de sua pesquisa folclórica. Mas é bem verdade também
que nos deliciamos com seus versos, sobretudo os mais singelos, sobretudo os que falam com amor de sua terra natal (“Eis-me na minha velha terreola / tão clara, tão singela, tão pequena! / Revivo a meninice. É a mesma cena: / Minha casa, o jardim, o teatro, a escola.”), do rio que a corta (“Velho Capivari, quanto mudaste!”). É interessante observarmos que ele já deu nome a um campeonato de futebol promovido pelo grêmio estudantil da escola Padre Fabiano, nos idos de 1959. Aliás, ele também deu nome ao próprio grêmio, enquanto este existiu. Docentes e estudantes já fizeram pesquisas sobre Amadeu Amaral, já recitaram suas poesias; alunos e professores da EMEI José Annicchino Fu Paulo, em 2005, já publicaram um jornalzinho com o nome de Pequeno Polegar (uma espécie de cumprimento do desejo do próprio Amadeu, que um dia imaginou esse título para uma revista que nunca foi editada). 13
Conferência sobre Amadeu Amaral que aconteceu na Sociedade de Cultura Artística de Capivari, em 9 julho de 1949. Da esquerda para a direita: Dr. René Thiollier -conferencista- (advogado, escritor e um dos organizadores da Semana de Arte Moderna), Dr. Paulo Duarte (biógrafo, poeta e também um dos apoiadores da Semana de 22) e Dr. Aldo de Assis Dias, Juiz em Capivari. Na foto abaixo podemos ver parte da assistência. Muitos munícipes reconhecidos pela redação deste suplemento cultural, tais como: João Duarte, Antônio Possato, Dirceu Ortolani Stein, José Hipólito de Carvalho, Jamil Anderaus, Rosinha Lembo, Miss Meire, Glaucy Quagliato, Helena Tumas e Luizinho Quagliato. As fotos pertenceram a Eduardo Maluf, poeta conhecido com o pseudônimo de “Homero Dantas”, e contêm anotações feitas pelo próprio Eduardo Maluf.
A comissão pró-herma Amadeu Amaral tem o prazer de convidar V.Excia. e Exma. Família para assistirem, nesta cidade, no dia 23 de Outubro do corrente ano, às solenidades comemorativas do 20° aniversário do falecimento do imortal e consagrado poeta capivariano Amadeu Amaral. Capivari Outubro de 1949. A Comissão “Eis-me na minha terreola, Tão clara, tão singela, tão pequena! Revivo a meninice. É uma cena: minha casa, o jardim, o teatro, a escola.” Programa 11h - Missa solene na Igreja Matriz; 15h - Desfile; 16h - Inauguração da Herma no Jardim Público; falarão, nessa solenidade, eminentes homens das letras, representantes da Academia Brasileira de Letras e Academia Paulista de Letras. 15
A casa onde morou Amadeu Amaral * por Virginia Bastos de Mattos, anos 90 “Eis-me na minha velha terreola tão clara, tão singela, tão pequena! Revivo a meninice. É a mesma cena: Minha casa, o jardim, o teatro, a escola. Todo o passado se me desenrola em torno, e tudo, como foi, se ordena. Sorrio, infante de rendada gola, de cabelo dourado e alma serena. Mas, quem sabe se o tempo que suponho morto, ainda é presente? se a amargura de o sentir findo não é mais que um sonho? E, absorto, penso ouvir, pela janela, a voz de minha mãe que me procura, para saber se estou bem perto dela.”1
A casa de Amadeu está sendo derrubada. É ali, naquela esquina do Jardim, na confluência das ruas Saldanha Marinho e Fernando de Barros. A casa dobrava a esquina; mais tarde, dividida, funcionou na frente um bar. Mas quando a casa se estendia inteira, era certamente da janela da frente que a mãe procurava o menino. Onde estaria? Com certeza nesse belíssimo jardim antigo (Praça Cesário Motta), onde gerações de capivarianos brincavam, e brincam até hoje, lindas crianças vigiadas por mães, avós e babás. A casa, o jardim... E o teatro a que o poeta se refere é o Íris, o velho Teatro São João na ponta da outra praça que hoje se chama Rodrigues de Abreu e onde está a herma de Amadeu Amaral. E a escola? A escola era o “Coleginho”, prédio construído em 1844 pelo major Bernardino para ser uma escola. Por esse gesto generoso, o major recebeu do Imperador Pedro II o título de Barão de Almeida Lima. Tudo se acabou por lamentável reforma. Só resta a memória dos velhos e a saudade. Ou, o sonhar do poeta: “Quem sabe se o tempo, que suponho morto, ainda é presente?” e “se a amargura de o sentir findo não é mais que um sonho?”. (1Amadeu Amaral In Poesias Completas: Um punhado de sonetos, sendo estes versos de 1921) 16
AMADEU AMARAL Artigo escrito por Cláudio D. Campache em 29 de janeiro de 2010, discursado na Loja Maçônica Integridade, em Capivari. Mesmo sabendo que não sou propriamente a pessoa melhor escolhida para honrar este ilustre escritor, e compreendendo que me falta o perfeito conhecimento dessa grande figura humana, mesmo assim aceitei o convite e o dever de prestar a Amadeu Amaral esta simples homenagem de admiração e estima à memória de seu nome e de suas obras. Poderia fazer minhas as palavras de Amadeu Amaral quando se refere a Olavo Bilac. “Figuras há, que nos assaltam de brusco, suavemente, como sombras, e, ganhando corpo a pouco e pouco acabam por se assenhorear de nós, e caminham conosco, e conosco vivem, e passam a ser mais do que um amigo, um parente, ou um companheiro, porque entram com alguma coisa para a substância do nosso ser, e a sua vida é em parte a nossa vida, e seu espírito é também o nosso espírito. Essa admiração não é puramente intelectual. Eu habituei-me a admirá-lo profundamente”. Amadeu Ataliba Arruda Amaral Leite Penteado nasceu em Capivari no dia 6 de novembro de 1875, na fa-
zenda São Bento. Nasceu no mesmo ano em que se fundou o jornal O Estado de São Paulo, cuja influência em sua vida seria enorme. Eram seus pais João de Arruda Leite Penteado e Dona Maria Carolina de Arruda Leite Penteado. O sobrenome Amaral proveio de suas duas avós, materna e paterna. Viveu toda sua infância em Capivari, onde fez o curso primário e parte do secundário num pequeno colégio que pertencia ao seu pai e a um espanhol de nome Tomás Boada de Tomassini. Sua vocação para o jornalismo talvez tenha nascido por influência do pai, fundador da Gazeta de Capivari. Até os 13 anos viveu em Capivari. O pai mantinha a casa na cidade, conforme o velho costume de fazendeiro de nosso país. Era um ótimo prédio ao lado da atual Praça Cesário Mota, local onde hoje foi construído o Salão Paroquial da Matriz de São João Batista. Aos 13 anos, em 1888 Amadeu vai para São Paulo onde o aguardava um emprego de moço de recados na firma “Leon & Cia”. Logo começou 17
a estudar ao mesmo tempo em que trabalhava. Chegou a frequentar o curso anexo à Faculdade de Direito, que não terminou. Mas tornou-se um autodidata adquirindo sólida cultura literária. Em 1899 já trabalhava no jornal Correio Paulistano onde entrou com 17 anos. Publicava seu primeiro livro de poesias “Urzes” com 24 anos. A 18 de fevereiro de 1902 casava-se com sua prima e companheira de infância Ercília Vaz do Amaral na cidade de São Carlos, da qual era natural. Com a morte do seu pai vitimado pela peste bubônica, Amadeu tomou a seu cargo toda a família. Ainda em São Carlos, penalizado com a sorte dos leprosos que viviam abandonados, foi o idealizador e um dos fundadores da Vila Hansen, destinada a dar assistência aos infelizes doentes. Nesta época Amadeu preparava os alunos para a matrícula aos cursos normal e complementar. Dava as lições em casa ou na dos alunos. No jornal Correio de São Carlos publicou caricaturas, pois Amadeu conservou sempre uma grande inclinação para o desenho e
para a pintura. E pensava na criação de um jornal para crianças chamado “O Pequeno Polegar”. Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia em São Paulo as universidades e os cursos especializados. Voltou para São Paulo em 1909 para trabalhar no jornal Comércio de São Paulo, onde defende a criação da Academia Paulista de Letras. Veio a tomar posse no dia 27 de novembro, da cadeira de número 33. Em 1910 ocorrem alguns fatos importantes em sua vida: nasce o último filho, Amadeu Amaral Jr. (os outros foram Maria de Lourdes, Inocência e Iolanda); publica “Névoa” e começa a trabalhar no Jornal O Estado de São Paulo. Teve início o período áureo da vida de Amadeu Amaral. De 1901 até 1929 desenvolveu as seguintes atividades profissionais: Oficial de Gabinete de Chefe de Polícia; Diretor do Colégio Sancarlense; Redator do jornal Correio de São Carlos; Jornalista do Comércio de São Paulo e, depois, da Gazeta de Notícias; Funcionário do Serviço de Imposto de Renda; Redator do jornal O Estado de São Paulo; Fundador da Revista do Brasil (junto com Monteiro Lobato) e da revista infantil Malasartes. Amadeu era nesta época um grande nome não só pela sua
atividade intelectual, mas ainda pela firmeza de caráter. Tímido, modesto, quieto, humilde. E toda esta fisionomia humana refletia na sua produção poética. Segundo testemunho de Paulo Duarte, seu grande amigo, “Amadeu era um homem profundamente sereno. Alto, magro, mas espadaúdo, cabelo e pele claros, herança da mãe, muito loura, descendente de holandeses, denunciava a sua serenidade até no andar. Olhos azuis muito grandes davam a impressão de estar olhando ao longe, mesmo quando fitava alguém. Sua voz era um pouco rouca, sempre baixa e muito calma e tomava uma grande expressividade quando conversava, falava em público ou lia versos ou prosa em voz alta, o que gostava muito de fazer. Durante vários anos usou grandes bigodes como era moda na época. Era proverbial a sua bondade. Não há quem se lembre de haver ele levantado a voz a 18
quem quer que fosse. Nunca falava dos seus desafetos, todos gratuitos, a não ser para ressaltar um traço positivo. Mesmo dos mais rancorosos que os teve inexplicavelmente, ódios que eram sobretudo o reflexo de sua posição em O Estado de São Paulo, e por motivos políticos de que Amadeu foi sempre absolutamente estranho. Os seus escritos em prosa ou em verso ressaltam esse amor pelos homens, pelos animais e pelas coisas, que se estendia até as árvores e as pedras da rua”. A sua bondade era tanta que uma vez estando a almoçar com uns amigos, Paulo Duarte soltou este instantâneo que resume bem a sua personalidade. “É inigualável a sua Capacidade de amor! Ele ama seja o que for Ama as árvores da rua, Ama este mundo e o da lua, Ama, de amor sempre igual, A pedra, a planta, o animal; Ele ama a prosa e a poesia; Mas que é que não amaria Sendo Ama... deu Ama... ral?...” Em 1916 funda a revista do Brasil juntamente com Monteiro Lobato e outros intelectuais paulistas. Em 1917 publica “Espumas”, livro de plenitude em que atinge a sua própria realização poética e em que chega a uma concepção de vida que será a sua para o resto dos
seus dias. Como exemplo o soneto “A um Moço Triste”: “Olha o jovem carvalho, o cedro adolescente, Como arrojam para o alto os troncos ainda lisos, Como recebem rindo os beijos e os sorrisos Da nova madrugada à verdura recente. Só vós, moços, chorais à Vida que alvorece! Só vós pedis à Vida o que ela dar não pode, E só vós recusais os bens que ela oferece!” Em 1919 é eleito para a Academia Brasileira de Letras na vaga de Olavo Bilac, ocupando a cadeira número 15. Em 1920 publica a novela “A Pulseira de Ferro”, “Dialeto Caipira” (folclore), “Um Soneto de Bilac” (conferência) e “Letras Floridas”. Nesta época entra para a Maçonaria juntamente com Paulo Duarte. Juntos, fizeram parte da “Loja União Paulista”, instalada numa espécie de capelinha que não mais existe, misteriosa para todos que passassem ali pela Rua Xavier de Toledo, quase em frente ao obelisco do Piques. Depois para a loja Maçônica América, onde foi orador por muito tempo. Pela Loja América pontificaram vultos como Luiz Gama, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Prudente de Moraes, Bernardino de Campos, Rangel Pestana,
Pinheiro Machado e muitos outros, que ao citá-los, diz Amadeu Amaral numa de suas peças oratórias: “... São marcos resplendentes da trajetória seguida pela Loja América, desde o impulso inicial que lhe foi dado por seus generosos fundadores. Esses nomes resumem os anais desta Oficina. Foi com eles que a Loja, depois de se ter batido pela liberdade de ventre escravo, se bateu pela liberdade do branco, pelas franquias e pelos progressos políticos e sociais conquistados antes e depois da monarquia...” Amadeu Amaral pregava da oratória da Loja América os ensinamentos de amor e con-
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fraternização dos homens. Uma única preocupação dominava-o enquanto pontificava na oratória da Loja, e vemos isto num outro discurso feito em data comemorativa da oficina em que trabalhava como maçom: “... Se me perguntarem o que quero, diria: quero a renovação dos cinco sentidos da humanidade, quais sejam: luz, amor, vida, liberdade e paz, porque esses cinco sentidos na verdade são só um: decência...” “... odeio a ignorância, a traição, a avareza e a divisão dos homens...” No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. Visando a
formação dos jovens incentivou o serviço militar, assim como foi um dos primeiros a divulgar e incentivar o escotismo. Em 1922 candidata-se a Deputado Estadual. Defende o voto secreto e a honestidade eleitoral. Realiza conferências pelo interior paulista, inclusive em Capivari. Publica artigos de propaganda política na Gazeta de Capivari. É derrotado nas apurações. Nesta época ocorreu um fato interessante para Capivari, como muito bem lembrou Padre Eusébio em sua homilia em comemoração ao centenário de nascimento de Amadeu Amaral, em novembro de 1975. “Existe em nossa praça uma palmeira, quase em frente ao platô. Esta palmeira tem uma história que envolveu os nomes de nossos conterrâneos famosos. No dia 7 de setembro de 1922, no primeiro centenário da Independência do Brasil, as crianças do Grupo Escolar plantaram esta palmeira imperial, mas foi Amadeu Amaral quem enviou a muda, e Rodrigues de Abreu quem fez o discurso alusivo”. Atualmente, após o desaparecimento dessa palmeira, o Lions Club de Capivari homenageou com o plantio de outra palmeira no mesmo local, o centenário de nascimento do autor de ‘Casa Destelhada’ – Rodrigues de Abreu. Em 1923 Amadeu Amaral muda-se para o Rio
de Janeiro. Em 1924 publica “O Elogio da Mediocridade” e “Lâmpada Antiga”. Este último livro dá bem a ideia de tranquilidade e da visão das grandes alturas por ele atingidos. “Lâmpada Antiga” é o livro que escreveu para si próprio e para os seus. É uma carta de Guia aos filhos. Ele também realizou uma obra de alto valor científico no campo do folclore, com seu livro “Tradições Populares”. Foi o primeiro a falar na fundação em São Paulo de um museu do folclore. Escreveu magníficas conferências sobre Camões, Dante, Machado de Assis, Raimundo Correia. Amadeu Amaral prosador escreveu também o “Memorial de um Passageiro de Bonde”, em que mostra várias das faces de seu espírito: o artista, o jornalista, o crítico, o ensaísta, o romancista e, por fim, o humorista, como nos mostra este trecho da crônica “Palavras Cruzadas”: “O contágio, hoje, envolve tudo. Tudo pode transformar-se repentinamente em mania coletiva. Outrora, havia epidemias de misticismo, de guerra ou de suicídio limitadas a certas regiões. Hoje, toda a vida universal tende a ser uma sucessão de epidemias. Há epidemias universais de dança, epidemias esportivas, epidemias de jogo, epidemias políticas, epidemias artísticas, literá20
rias, epidemias econômicas, epidemias filantrópicas. Se um dia houve a ilusão do que os homens fossem capazes de se deixar guiar pela razão, hoje o mundo inteiro é um vasto campo de experiência a provar todos os dias, que os homens agem sistematicamente à revelia da razão – o que não quer dizer que uma vez por outra, não possam encontrar-se com ela, por acaso. Quanto mais se civilizam, mais imitam e copiam. Quanto mais prezam a individualidade mais a perdem. Quanto mais amam o novo e original mais feitos ‘em série’ parecem. Os motivos de ação vão se tornando, cada vez mais, efeito da sugestão coletiva”. Nas comemorações do sexto centenário da morte de Dante (setembro de 1921), proferiu uma palestra enfatizando justamente os aspectos de Dante que exaltavam a elevação do espírito humano, através da Sabedoria. Alguns trechos dessa palestra: “Sonho e ação! Eis os dois enigmas que a nossa mocidade ainda não decifrou. O sonho para ela, em geral, é contemplação, é misticismo, é andar entre nuvens, é perder tempo. A ação, para ela, em geral, é labutar, é agitar-se, é viver com estrépito. Soluções erradas. Querem acertar? Juntem o sonho à ação, a faculdade de idealizar à faculdade de executar, equilibrem as duas tendências, queiram
sempre o melhor e trabalhem sempre para o melhor. Verão como as duas soluções inconciliáveis se harmonizam, como a dissonância se faz melodia, como a dispersão estéril se transforma em força fecunda. O corcel do sonho terá um freio; o ginete da ação terá asas. É preciso que o sonho tenha um freio, que não perca de vista o terreno das realidades humanas. Suba, suba, mas para recair sobre a terra, como chuva fecundante. É preciso que a ação tenha asas, que
seja capaz de voo onde a marcha não baste. Trabalhe, labute, sue, mas não perca de vista a alta razão do seu labor. Que belo símbolo, que lindo e nobre símbolo, rapazes, - um lavrador com asas, um anjo de enxada nas mãos! Lavrador angélico, - braços hercúleos, asas imaculadas, - Dante soube, como muito poucos unir o senso do ideal ao senso do real”. Amadeu sempre manteve uma grande amizade pelo também poeta Rodrigues de Abreu. Passa os seus últimos
anos de vida em São Paulo, como jornalista e professor do ginásio Moura Santos. Preside a Academia Paulista de Letras. Profere, também nesta época, a sua última conferência: “As Promessas do Escotismo”. Vitimado pela febre tifoide, Amadeu falece a 24 de outubro de 1929.Possuía 54 anos de idade. Faleceu às 11 horas da manhã na residência da família. O enterro realizou-se no dia seguinte, no cemitério São Paulo. Alguns depoimentos sobre Amadeu:
LÉO VAZ “Bom homem, o Amadeu. Bom e inteligente, de uma cultura que impressionava. Tudo quanto escrevia, tudo que trazia a sua marca, a sua rubrica, era de primeira qualidade, de excelente valor. E no entanto, em nenhum momento perdia a sua serenidade, aquela modéstia que era uma das suas mais comovedoras virtudes. Era um simples e era um bom, antes e depois de tudo. Era um homem sério. A sua dignidade pairava acima de qualquer outra coisa. O respeito que devotava à sua personalidade, era uma coisa diferente, excepcional, extremada mesmo. Só tinha igual, no respeito que tinha para com os seus semelhantes. Não conheci em toda a minha longa vida, alguém que possuísse uma sensibilidade mais acurada e mais palpitante, uma suscetibilidade mais à flor da pele. Incapaz de fazer mal ou desagradar a uma mosca, Amadeu sofria com qualquer coisa. A maldade dos homens, a cada passo atacava profundamente a sua alma, marcando terrivelmente os seus dias”.
MONTEIRO LOBATO “Amadeu era um tipo de exceção, que destoava, clamorosamente, no irreverentíssimo clã da inteligência. Levava tudo a sério, nada dizia por amor ao efeito momentâneo. Falar, para Amadeu era o meio de lealmente expor o que ele pensava e sentia. Grave, circunspecto, melancólico, resignado [...]. Fisicamente belo, mas sem dar a impressão de que sabia disso. Aqui em São Paulo, Amadeu marcou época. Fez-se um ponto de referência da sociedade, um desses homens com que, em qualquer setor, a sociedade pode contar. Sua austeridade sem exageros, orgânica, impunha-o. Os inimigos podiam negar-lhe tudo, menos a mais nobre 21
e perfeita verticalidade. Sud Menucci escreveu: Santo Amadeu. E Amadeu era isso: um santo moderno! Quando olho para o passado e relembro as figuras do meu caminho, Amadeu avulta, como um ser à parte, que me bole na corda do respeito venerativo. Os outros formavam um grande grupo. Mas, Amadeu está de lado. Está só! E uma palavra arcaica, morta, extinta, ridícula, proscrita, levanta-se da tumba do esquecimento, como um fantasma: Virtude!”.
PADRE EUSÉBIO VAN DEN AARDWEG “Assim foi Amadeu, antes de tudo um homem, um caráter, um exemplo de honradez, uma palmeira saindo do chão capivariano, subindo para os ares puros da imortalidade. Não ganhou a glória na ociosidade, herdou de seus pais apenas uma herança: uma vontade férrea de trabalhar, de estudar, não para um diploma, pois nunca teve outro do que o da escola primária, mas estudar para saber, e para transmitir em versos e prosa a beleza, a cultura e antes de tudo, a retidão de sua alma. Se não o pudermos seguir na sua poesia, ao menos trilhemos o caminho de sua personalidade”. [Homilia realizada na igreja São João Batista.]
MARIA DE LOURDES Filha de Amadeu Amaral “Não tenho dúvidas de que possuí o mais adorável pai do mundo. Papai era uma maravilha, um homem boníssimo, um santo autêntico. Se era bom para todos, se para todos tinha uma palavra de amizade, de afeição sincera, de bondade, para os familiares, esposa e filhos, era de uma bondade que jamais encontrou limites. É sempre com equívocos que se tem falado sobre ele. Continuam a imaginá-lo um homem triste, carrancudo, extremamente introvertido. Não conheci esse Amadeu Amaral. O que conheci era o papai, alegre, brincalhão mesmo, rindo com qualquer coisa que dizíamos. Era desse pai de deitar-se no chão e servir de montaria para os filhos. Todos nós recebíamos dele as maiores provas de carinho e retribuíamos na mesma moeda. Fala-se muito na sua pobreza, como se ela fosse alguma coisa extraordinária, pobreza franciscana. Não é verdade. Ele era pobre como hoje são pobres as famílias da classe média. Mas não havia nenhuma dramaticidade na sua situação, todos vivíamos bem, o que ele ganhava atendia plenamente às necessidades da família. Tanto é assim que ele quase que mensalmente, enquanto durou a enfermidade do seu grande amigo Rodrigues de Abreu, 22
mandava-lhe duzentos cruzeiros. Rodrigues de Abreu tinha um verdadeiro amor por papai, e este o admirava muito. Papai era um grande sonhador, muito íntegro, de uma honestidade que impressionava. Uma de suas grandes admirações era Altino Arantes. Sempre fazia elogias à inteligência e cultura daquele paulista. Mas quando Altino Arantes foi presidente do Estado e passava quase diariamente em frente a nossa casa, papai evitava ser visto por ele e ter de cumprimentá-lo. Não queria dar a impressão de que pedia alguma coisa, temia que alguém imaginasse que ele estaria bajulando a primeira autoridade do Estado. Foi sempre assim. Outra vez sucedeu o mesmo, quando era presidente da República Artur Bernardes. O presidente quis conhecê-lo, a audiência foi marcada e no dia exato, papai lá não apareceu. Era o antipalaciano por excelência. Não era apenas um homem bom, era muito mais do que isso. Era um santo. A razão estava com seu grande amigo Martins Fontes. Quando o poeta chegava em nossa casa, perguntava sempre pelo ‘santo Amadeu’. Certa vez chegou a passar por maluco por parte de uma faxineira nossa, quando indagou: ‘o santo está em casa?’. Quando encontrava o papai, a sua invariável saudação era: ‘Ave Amadeu’. Sim, a razão estava com ele. Papai foi um santo”.
Amadeu Amaral: Cinquentenário do “Dialeto Caipira” * Anotações manuscritas de Virginia Bastos de Mattos
2ª reunião nacional do projeto NURC (Norma Urbana Culta, pesquisa sobre a língua portuguesa falada nas principais capitais brasileiras) Capivari foi escolhida como uma das sedes desse encontro para homenagear o 50º da publicação do “Dialeto Caipira” de Amadeu Amaral. Essa escolha foi por sugestão do ilustre dialetólogo Dr. Nelson Rossi, da Universidade da Bahia. A reunião foi realizada em Capivari, de 24 a 28 de agosto, e a comissão de estudos compunha-se dos seguintes professores: Prof. Dr. Nelson Rossi (da Universidade da Bahia), Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho (da faculdade de Filosofia de Marília), Prof. Dr. Alfredo Bosi (da Universidade de São Paulo) - (ver Correio de Capivari, de 22-8-1970), Prof. Dr. Isaac Nicolau Salum (da Universidade de São Paulo) e Prof. Dr. Cidmar Teodoro Paes (da Universidade de São Paulo). Os temas abordados, conforme notícia do Correio de Capivari em 22-8-1970, foram os seguintes: “O Dialeto Caipira” pelo prof. Nelson Rossi, “Amadeu Amaral e o folclore” pelo prof. Ataliba de Castilho e “A obra de Rodrigues de Abreu” pelo prof. Alfredo Bosi. As sessões foram realizadas no salão nobre da escola Técnica de Comércio e no salão nobre do Instituto de Educação. O Correio de Capivari de 5-9-1970 traz na sua primeira página a notícia “Homenagem a Amadeu Amaral no 50º da publicação do Dialeto caipira”. Noticiários: Diário de Piracicaba - 25/8/1970, Suplemento Literário de OESP - 24-27/8/1970, Correio de Capivari - 22/8/1970, Correio de Capivari - 5/9/1970. Agradecimentos: ao Prefeito L. Quagliato e ao Pe. Teodulo Taback. Carta de Ataliba Castilho a Dirceu Stein / setembro de 1970. 23
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A herma de Amadeu Amaral * por Virginia Bastos de Mattos
Nossa cidade tem na sua praça Rodrigues de Abreu a herma do poeta Amadeu Amaral, o poeta imortal da Academia Brasileira de Letras. Por ser capivariano que ilustra a sua terra pela inteligência e cultura e por ser um capivariano que se orgulhava da cidade natal e dela não se esquecia envolvendo-a na sua política e no seu interesse pessoal, o povo de Capivari ergueu-lhe uma herma em praça pública. Em outubro de 1949 fez-se a homenagem com a colocação de sua herma no canteiro das rosas. O autor da herma foi o grande escultor Vitor Brecheret, o mesmo escultor do grande monumento das bandeiras no Parque Ibirapuera de São Paulo; o mesmo escultor do mausoléu dos heróis da Revolução Constitucionalista de 1932 e de outras grandes obras que enfeitam a nossa capital. Capivari tem pois uma obra de reconhecido valor homenageando o grande poeta. É um belíssimo e harmonioso trabalho que retrata a serenidade de Amadeu, os seus belos traços, reconhecidamente bonito e elegante de porte, dentro do fardão da Academia de Letras. É preciso olhar com atenção e respeito para aquele bronze que perpetua o homem bom, o imortal poeta, o acadêmico das letras que nos legou uma obra prima, o “Dialeto Caipira” e a beleza dos seus versos. A belíssima obra de arte que está na Praça de Capivari alia a sensível homenagem da cidade ao seu poeta maior à arte do escultor Vitor Brecheret. 25
Apresentação de Carlos Lopes de Mattos à conferência em homenagem ao centenário de Amadeu Amaral - Capivari, Câmara Municipal, 1975 Dentro dos limitados recursos de que dispunha no momento nossa cidade, Capivari festejou o centenário do maior de seus filhos, do nunca assaz enaltecido Amadeu Amaral. Dada a importância do homenageado, deveria ter sido uma comemoração de âmbito nacional.Circunstâncias diversas fizeram com que a data não tivesse a merecida repercussão. Nem sequer “O Estado de S. Paulo” de que Amadeu foi redator e um dos grandes colaboradores fez qualquer referência a ele no próprio dia 6, se bem que haja publicado antes dois suplementos sobre Amadeu como homem, poeta, folclorista, linguista, etc. Apesar de tudo, conquanto não contássemos com um selo especial (que exigiria providências de um ano antes), tivemos aqui no dia 6 o lançamento do carimbo comemorativo, com a presença de vários acadêmicos de Campinas e autoridades locais, solene missa do centenário, assistida pelo conferencista do dia e pela família de Amadeu, e, por último, a bela conferência de Odylo Costa, filho, ocupante na Academia Brasileira de Letras da cadeira a que pertenceu ao poeta. Isso tudo, no meio de uma semana de festas, com pintura, música e poesia. Mais, muito mais, mereceria a figura ímpar de Amadeu Amaral, mas a modéstia da comemoração condizia com a modéstia daquele que foi tão grande, iniciador de vários rumos, mas tão simples: santo na grandeza e santo na despretensiosidade. Ainda dentro dos festejos do centenário, temos hoje a conferência do ilustre homem de letras e jornalista, Hélio Damante, a quem a bondade das autoridades municipais permitiu viesse saudar minha palavra menos abalizada, embora de um grande admirador. Sem querer atingir sua simplicidade, permita-me, prezado Hélio Damante, que cite alguns dos títulos que o adornam. O conferencista de hoje já é notável de família. Seu pai, Francisco Damante, nascido em Piracicaba em 1895, onde se formou em 1914 pela Escola Normal, foi professor em Bom Jesus dos Perdões. Correspondia-se com nosso Rodrigues de Abreu e sobre ele escreveu um artigo no ensejo da publicação de Casa Destelhada. Mas, sobretudo, Francisco Damante foi com Amadeu Amaral um dos iniciadores dos estudos folclóricos, dele recebendo instruções sobre como proceder na coleta de material entre o povo. Seu livro Na Roça foi pioneiro e, a respeito do assunto, o autor manteve correspondência com o nosso homenageado. Há na revista da ABDE (Associação Brasileira de Escritores), págs. 113 a 118, transcrição das cartas de Amadeu a 26
ele. Representante de “O Estado”, primeiramente na cidade onde lecionava e depois em Bragança, colaborou na imprensa e publicou em 1925 o livro importantíssimo O Bom Povo, sobre “festas, costumes e lendas populares”. Espírito promissor, faleceu moço, em 1927, três dias depois do amigo Rodrigues de Abreu. Hélio Damante, nosso ilustre hóspede, teve como o pai a vocação literária. Nasceu na pitoresca Bom Jesus dos Perdões, em 1919. Ficou órfão de pai, como vimos, aos 8 anos. Feitos os preparatórios, ingressou no antigo Instituto de Educação da Universidade de São Paulo, onde se formou em 1937. Desde cedo, colabora em vários jornais de nosso país. É há longos anos redator do “Estado”, publicando semanalmente a seção religiosa, numa linha bem mais avançada que a de outros redatores desse grande órgão da imprensa. Dá a lume também, embora quase sempre sem nome, comentários diversos, principalmente visando o interior. Sua bibliografia abrange trabalhos sobre D. José Gaspar de Afonseca, Itanhaém, Campos do Jordão e o Padre Manuel de Paiva. No Suplemento do Centenário do “Estado de S. Paulo” de 30 de agosto deste ano, estampou o volumoso trabalho “Cem Anos de Religião no Brasil”. Entretanto, mais que tudo, Hélio Damante é pesquisador da vida e obra de Amadeu Amaral, tendo estado já duas vezes entre nós para coligir dados novos. A ele se deve o “Perfil de Amadeu Amaral”, publicado na Revista do Arquivo Municipal, vol. 125, de 1949, págs. 65 a 90, e a “Notícia Biográfica de Amadeu Amaral”, na revista da ABDE, nº 1, págs. 11 a 24. Dia 11 findo, discursou sobre nosso homenageado, com a presença de nossos representantes, na Academia Paulista de Letras. Tornou a falar dia 14, no Rio de Janeiro, quando se lançou o prêmio de 20.000 cruzeiros, instituído pela Defesa do Folclore Brasileiro, do Serviço Público Federal, para galardoar o melhor estudo sobre a contribuição folclórica de Amadeu Amaral. Desse modo, Capivari deve a Hélio Damante a dedicação à memória de seu imortal filho. Ei-lo, numa época em que muitas vezes os verdadeiros valores são obnubilados, lançando-se como arauto do grande capivariano. Ouçamos com reverência as palavras de um dos melhores conhecedores de Amadeu. Capivari sente-se honrada, Hélio Damante, com sua visita e aguarda sua magistral conferência. Fale-nos agora, o senhor que responde pela seção religiosa, do “santo Amadeu Amaral”.
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o homem tem que ser pensado como um dardo atirado no Ser Carlos Lopes de Mattos