a coisa em si [Mar.2019]

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a coisa em si r marco.2019


Arquivo Casa Rosa


a coisa em si

março 2019 . ano 1 . número 3 . Ponto de Cultura Casa Rosa

Apresentação O suplemento cultural “a coisa em si” é uma publicação independente do Ponto de Cultura Casa Rosa _ Memorial Virginia e Carlos Mattos. Sua finalidade é difundir o conhecimento guardado desde a década de 50 na casa onde residiu a família Mattos. O acervo é formado por livros, cartas, documentos e registros históricos sobre Capivari e suas inúmeras famílias, acontecimentos que marcaram a vida cultural e política do município.

Expediente Coordenação Maria Augusta B. de Mattos João Augusto B. de Mattos Revisão Gloriete Gasparetto Textos e Diagramação Bruno Bossolan O conteúdo do “a coisa em si” é de responsabilidade exclusiva dos que constam no expediente e das pessoas que assinam os artigos.

MEMORIAL VIRTUAL CASA ROSA facebook.com/pontodeculturacasarosa twitter.com/ponto_casarosa instagram.com/memorialvirginiaecarlosmattos pontodeculturacasarosa@gmail.com Apoio Cultural


De aromas e sabores

O nosso primeiro contato com o mundo vem do alimento: o bebê suga aquilo que é, para ele, o mundo inteiro. As nossas lembranças são salpicadas de picolés, docinhos, pastéis, bombons, pipoca. Na nossa vida adulta, quantas vezes sentimos um sabor e ele nos transporta à nossa infância. O mesmo acontece com os cheiros: de súbito, sentimos um cheiro no ar que nos remete à casa da avó, ao quintal dos primos, a uma caixinha de guardados, à serraria de um tio. Sabores e perfumes são elementos eternamente indissociados de nossa memória afetiva. Baseado nisso é que o ratinho Rémy, personagem do filme de animação Ratatouille, consegue convencer o rígido e arrogante crítico francês de gastronomia; a primeira garfada – odor e sabor – o transporta ao mundo mágico de sua infância: num passe de mágica, ele deixa de ser o temido crítico e volta a ser o menino camponês da Provença alimentado carinhosamente por sua mãe. E então é o afeto, apenas ele, que passa a reger sua avaliação. Aliás, nem se trata mais de avaliação e sim de fruição. A Casa Rosa sempre foi acolhedora, sempre foi uma casa em que os pais transbordavam seu carinho para além do círculo familiar. Talvez sem grande efusividade, mas essencialmente amorosos e atentos. Nada mais esperado do que a Casa Rosa ser hoje lembrada também por sua culinária. Nada de especial, nenhum prato mirabolante; só o comezinho, mas recheado de afeto. Arquivo Casa Rosa


Minha história com a Casa Rosa Gloriete Gasparetto

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Quando a visitei pela primeira vez, em 1974, a casa de Capivari estava pintada de cinza. Eu tinha apenas 20 anos de idade e cheguei com Guta, minha amiga e colega de universidade. O silêncio e o pouco movimento na cidade causaram meu primeiro espanto. O segundo, poder deixar o carro na rua, sem trancar as portas. Na morada dos Mattos tudo era muito surpreendente: jardim bem cuidado, portões abertos e vitrais coloridos em janelas de vidro, que davam pra fora! Paulistana da gema,

fiquei espantada! Não seriam elas – tão ingênuas - um convite às artes da molecada da rua, com seus estilingues? Nem ousei perguntar. Fiz bem! Foi melhor descobrir, aos poucos, que faziam parte de um outro tempo: o da Era da Delicadeza. Ao entrar pela sala, já me senti à vontade, com a acolhida sincera e afetuosa de quem vivia ali. Uma mistura de cheiros receptivos de flores, livros, bolo e café me entronizaram naquela casa antiga e jovial, cheia de peças antigas e queridas. Cada uma 05

com a sua própria biografia. Ser apresentada aos quartos, à cozinha singela, ao poço, às tartarugas e a cada planta do quintal foi um privilégio enorme. Mas entrar no Escritório do Pai, onde o Dr. Carlos trabalhava, abriu para mim um mundo novo, que eu desconhecia. Uma emoção e tanto! Criada numa família de classe média baixa do Ipiranga, só havia visto tamanha quantidade de livros nas bibliotecas públicas. Era um sem-fim de prateleiras! Quanto conhecimento havia arma-


zenado ali? Há quantos anos aquelas obras acompanhavam o filósofo e professor? Mas, habituada aos excessos de ordem e limpeza dos parentes italianos, só pensava em quem arrumava e limpava tudo aquilo e no trabalho que deram nas mudanças de um estado para o outro. Ideias de quem tinha, ainda, muito a aprender. Nas visitas seguintes, já me sentia com coragem para folhear alguns deles, sempre na companhia de um filho atento, claro! E comecei, aos poucos, a entender as conversas políticas, a genealogia das Almeida de Bananal e as brincadeiras familiares. Numa delas, se perguntava: “O que você levaria, se fizesse uma viagem à Lua?” Guta escolheu geleia, dona Virginia, um vaso e Tónio um til-

bury! Além de demorar pra entender que cada um teria que carregar algo que tivesse a inicial de seu nome, eu não sabia o que era um tílburi. Os dias eram sempre deliciosos. Todas as refeições eram anunciadas com uma antiga sineta, que podia ser ouvida de qualquer parte da casa. E que delícia de comida caseira! Saborosa, farta e sempre contendo verduras e frutas plantadas no quintal. Leituras, jogos, conversas agradáveis e até piadas ocupavam as tardes e noites da casa maravilhosa, que sequer tinha aparelho de TV. Durante anos, fui “arroz de festa” em várias comemorações. Aniversários de pais, filhos e netos... Visitas de amigos famosos e vizinhos da rua. Acompanhei a construção da Domus Piri, do

quarto das crianças do João e do galinheiro. Mais a reforma da garagem, que se tornou necessária quando a cidade cresceu e os roubos a carros passaram a acontecer também em Capivari. Depois fui agregando amigos e parentes à família querida. Meus pais, os irmãos, meu marido e os filhos dele eram recebidos com o mesmo amor e carinho. Exemplo máximo de tolerância! Os Gasparetto e os Lieff não são nada fáceis! Nestes 45 anos de intensa convivência, muitas coisas maravilhosas aconteceram. Algumas perdas tristes e dolorosas também. E tudo isto está impresso nas paredes desta casa que me ensinou a ser uma pessoa melhor! Arquivo Casa Rosa

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As ruas, a ronda

Ler A ronda das ruas não é apenas conhecer as pessoas que foram escolhidas para dar seus nomes às ruas da cidade de Capivari. É mais que isso, é ir tecendo a história dessa cidade, cidade de poetas sim, mas também de políticos, de professores e, acima de tudo, cidade de balconistas, dentistas, benzedeiras, lavradores... A ronda das ruas é o retrato de uma cidade na qual o convívio é que confere notoriedade a uma pessoa: entendemos que as pessoas são reconhecidas como importantes porque ali lutaram por uma vida melhor, ali criaram seus filhos, ali viveram enfim. Caminhar nas memórias que as ruas nos trazem é justamente perpetuar a convivência com essas pessoas. São vendedores, padeiros, costureiras, alfaiates, vereadores, esportistas, ... Caminhar pela leitura do livro é fazer a

ronda das ruas e ir ouvindo os sons, sentindo os cheiros, ir vendo as cenas, ir recompondo os fatos que na cidade vivemos ou que nos foram narrados pelos mais velhos. Gostos, cheiros, sons, tudo o que toca nossos sentidos fica gravado em nossa memória de forma indelével. Não é à toa que, para Guilherme de Almeida em conhecido haikai, a infância é definida por um gosto:

um gosto de amora banhada de sol a vida chamava-se agora Fiz a ronda das ruas e fui sentindo cheiros que me vieram à memória. Os cheiros nos tocam profundamente. Quem um dia não se recordou de um passeio, de uma pessoa, de uma comida – lembranças guardadas no fundo da sua memória e que foram despertadas ao sentir no ar um cheiro perdido da infância? Nestes dias, ao fazer, através da leitura, o percurso pelas ruas de Capivari, senti – ah, como senti! – tantos cheiros característicos. As lembranças vieram, seja pelo passeio guiado, seja pela leitura das biografias sintéticas dos homenageados. Tendo-os conhecido ou não, tendo convivido ou não com cada um 07

deles, todos me suscitam recordações, recordações que são minhas, mas podem ser compartilhadas por quem, como eu, aqui nasceu e aqui cresceu. Ah, como senti o cheiro acre do curtume e o cheiro envolvente do pipoqueiro do Jardim! O cheiro da graxa do Sêo Chimbó e o do motorzinho do dentista da escola, Dr. João Galrão. O cheiro da palha de arroz beneficiada no “Ao Mercadinho Central” e que buscávamos para fazer o picadeiro do nosso cirquinho caseiro. Do Ginásio, muitos cheiros gravei: não só o terrível da creolina que desinfetava os sanitários ainda de cimento grosso, mas também o dos produtos do laboratório de ciências, cheiros penetrantes e misteriosos. O pau-de-sebo, o incenso da Semana Santa, as bombinhas de São João, os fósforos-de-cor – tantos cheiros “folclóricos”. Os moinhos do Pavan e do Brugnerotto com seu cheiro das farinhas; e o cheiro do Detefon e das “cobrinhas” que acompanhavam nossas noites na luta contra os pernilongos. O jatobá do Jardim, a dama-da-noite da casa de D. Alice Guedes, o restilo envolvendo e igualando todos os moradores.


Ah, o cheiro dos picolés de fruta do Tempesta, dos doces do Casselhas. O dos móveis velhos na marcenaria do Fausto, na rua Sinharinha Frota, com seu inseparável cachorro, o Fio. E o dos livros da Biblioteca Municipal pelos quais zelava a D. Aládia Duarte. E as comidas? O cheiro do quibe do bar do Albertini, o do café-com-leite na Casa Paroquial no dia da 1ª comunhão, o da pastelaria do Mercado, o do bolinho da festa de Santa Cruz? O cheiro doce e enjoativo do depósito de bebidas do Braggion, o de lança-perfume no carnaval, o de mangas caídas na calçada dos Gudin e na de Dona Cilica. E o dos morangos da Chácara do Canobel, nas frias manhãs cheias de neblina dos meses de inverno? Nos Correios, o cheiro da goma arábica; nas Casas Pernambucanas e na Loja do Lembo, o das “fazendas” (que – disso os mais novos não têm conhecimento – dávamos e recebíamos de presente nos aniversários); no Posto de Puericultura, o cheiro de tantos remédios, desinfetantes e vacinas. O açougue do Bebé, o “martelinho” comprado na porta do cinema; as roupas e objetos usados recolhidos no antigo prédio da creche para o Bazar das Pechinchas. E o perfume de Dona Dirce Kirche, professora de mú-

sica? E o cheiro de gasolina no posto de distribuição dos Fornecedores de Cana? Nas madrugadas, voltando do Jardim – e as “madrugadas” de então eram as 9 e meia da noite, quando tudo ia ficando deserto –, o apetitoso cheiro do pão do Boccardo, comprado na janela da Regente Feijó. Nas portas das casas, o cheiro do transbordar dos litros de leite. Tantas outras lembranças nos trazem nosso olfato: a das “tampas” da laranja que Sr. Zé Datti descascava para os alunos no recreio da escola; o cheiro característico da loja do Elia; do trem; dos cortadores de cana; do açúcar no depósito; da cana queimada; das tampinhas de refrigerante que guardavam o cheiro no seu revestimento de cortiça; do quentão; das cinzas da fogueira de São João; dos animais para leilão no pátio da igreja durante as festas juninas; do cloro da piscina do clube; da chuva; das folhas pisadas na procissão de Corpus Christi; do algodão doce, dos excrementos dos cavalos e burros que puxavam as carroças; do cachimbo de algum velho... O que a leitura da ronda das ruas nos sugere é que do cruzamento do passado com o presente – memória e atualidade – e no entrelaçamento de ruas e pessoas – biografias e casos – é que se constrói 08

uma cidade, a cidade de cada um. Dizendo de outro modo: cada pessoa constrói sua cidade cruzando o passado com o presente, entrelaçando ruas e pessoas. E assim percebemos que recordar não é viver no passado; é perpetuar a convivência caminhando nas memórias que as ruas nos trazem. _ Crônica escrita a partir da leitura de “A ronda das ruas: a história nas ruas de Capivari”, edição coordenada por Virginia Bastos de Mattos, e a partir também das inúmeras contribuições de um grupo denominado “Amigos de Capivari”, que, em 2011, na rede social Facebook, trocava impressões e lembranças da cidade. Abaixo, alguns comentários das pessoas que interagiram com o grupo:

Rose Pacheco

_ Lembrei-me de quatro coisas: o apito do guarda noturno; as cortadoras de cana com suas roupas características (calça comprida debaixo do vestido) e chapéu de palha; os correios elegantes da festa do largo da Santa Cruz e, finalmente, o cheiro das provas mimeografadas.

Mirella Guida

_ O cheiro do pasto dos Colnaghi, do adubo, das manhãs ensolaradas mas frias, o cheiro de férias, os sorvetes do bar do Mano, o barulho ensurde-


cedor dos trens, e que nós sa- biquinha e depois “bardeava” íamos correndo de dentro de pra casa. casa para dar tchau aos passageiros, cheiro de restilo, a Dio Ferraz queimada da cana... _ Nesse quesito cheiro, sou um pouco melhor: o cheiro João Mattos das partituras e das teclas do _ Em 1959, quando fiz o curso piano quando ele era aberto, de catecismo na Matriz de São muitas vezes depois de anos, João Batista, as aulas das ca- na casa da minha avô Dionitequistas terminavam quando na. Era pura euforia! E o cheia noite caía. E aí, com a igreja ro da nossa lancheira... quase às escuras, havia uma atmosfera diferente: um cheiRaquel Brug ro bom que talvez viesse da _ Eu poderia acrescentar o madeira dos bancos e das flocheiro do sorvete de palito do res dos altares, tudo aliado ao “Zico”, do brigadeiro da bomsilêncio e aos últimos clarões boniere da dona “Zezé”, dos do dia. Será apenas minha sanduíches do “Barrigudão” essa sensação? com todos os temperinhos... Ah! Tem também as jabutiTeresa Colaneri Stahl cabas e mangas que chupá_ Lembro-me do cheiro de vamos nas caminhadas até o maravilha, uma flor que co- Clube de Campo quando não bria o barranco do campinho conseguíamos carona pra volao lado da minha casa. A gentar pra casa. te apanhava uma porção de flores, passava por um capim Luzia Feliciano Prata ou uma linha, e fazia colar. O _ Já senti tudo isso e é maraaroma ficou gravado na mente. Outro cheiro que me trans- vilhoso recordar o cheirinho porta à terrinha (e à infância) do sagu que a mãe de Marusa é o de terra úmida, como a fazia na escola Augusto Casda horta do Mercadinho (que tanho, que saudades! também era rica em aromas Teresinha Juliani de cheiro-verde). O cheiro de _ Inesquecível também o cheipiche sempre me faz lembrar da época em que a rua de ro do material escolar (pelo casa foi asfaltada, quando eu menos no início do ano). Aviera bem pequena. E também so aos mais novos: o antepaso cheiro (ou o sabor) da água sado da mochila era a maleta, salobra da biquinha (Rua geralmente de couro e, por ser João Vaz perto da Tiraden- durável, era passada para uso tes); sempre que faltava água de irmãos mais novos. Bom, “da rua”, a vizinhança toda ia isso está parecendo história buscar e encher os baldes na do tio Janjão... 09

Derli Costa

_ O cheiro delicioso do doce de abóbora caseiro quando estava fervendo e formando as bolhas que estouravam na panela exalando o aroma por toda a casa.

Ronaldo Lima

_ O cheiro das madeiras das marcenarias, cabreúva, peroba, cedro, cedrinho...do verniz. Do couro e da cola de sapateiros da Cidade. Cheiro da fumaça das queimadas de cana, das cinzas que cobriam a Cidade. E de longe, o cheiro das moendas, da guarapa, açúcar queimado, de melaço e de melado. E também da pinga, cachaça, manguaça... E o cheiro ácido do restilo do Rio Capivari contrastava com o cheiro de barro da represa Santa Rita. O mesmo barro que margeava o Pontiãozinho misturado com a fumaça que saía das chaminés das máquinas dos trens com caldeiras à lenha, as Maria Fumaça. E certa época, para o combate aos pernilongos, o cheiro do veneno, forte em BHC (conhecido como “pó de broca”), fumigado nas margens do Rio Capivari.

Margens do Rio Capivari


Os sons que vêm da cozinha

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Escreve a poeta mineira Adélia Prado:

[5 bifes batidos]

Minha mãe cozinhava exatamente: Arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava.

Um pobre mascate que em noites de lua Cantava modinhas, lundus magoados Amou a faceira dos olhos rasgados E ousou confessar-lhe com voz timorata Amaste-o, mulata, e o pobre feitor Chorava na sombra perdido de amor.

Como ela, digo de Dona Virginia: Minha mãe batia bife. E cantava.

Um dia encontraram na escura senzala O catre de bela mucama vazio Embalde percorrem pirogas o rio Embalde a procuram no escuro da mata Fugira a mulata e o pobre feitor Se foi definhando perdido de amor.

Cantava muito Mucama (antiga poesia de Gonçalves Crespo), talvez se lembrando da interpretação de Inezita Barroso ainda menina, sua vizinha em São Paulo, no bairro da Barra Funda:

[E eis 10 bifes batidos e temperados]

Mostraram-me um dia na roça dançando Mestiça formosa de olhar azougado Um lenço de cores nos seios cruzado Nos lobos da orelha pingente de prata Que viva mulata, por quem o feitor Diziam que andava perdido de amor.

Outras músicas temperaram o feijão com arroz da Casa Rosa: Na Serra da Mantiqueira de Ari Kerner Veiga de Castro Gastão (1933); História Triste de Uma Praieira de Stefana de Macedo (1929) e As Carvoeiras de Maria das Neves. 10


Recordar pelo paladar Arquivo Casa Rosa

Sempre tive a convicção de que momentos memoráveis de nossa vida se ligam principalmente a cheiros e a sabores. A propósito dos cheiros, até rascunhei uma crônica (“As ruas, a ronda”), que acabou ganhando a contribuição de muitos amigos de Capivari. Das comidas, vamos falar agora. Creio que cada família recebe, como herança cultural, sua culinária própria, seja em forma de saberes que passam pela experiência de geração a geração, seja através livros de receitas, de cadernos manuscritos, de fichas catalogadas, de recortes de revista. As receitas, os pratos, os jantares, os petiscos dão uma aparência àquela família, passam a ser a marca de uma casa, reforçam o vínculo entre os parentes, con-

tam um aspecto da história de uma família, compõem uma emoção comum àquele universo familiar. E as pessoas que convivem com essa família passam a perceber esse aspecto como uma peculiaridade, uma expressão cultural. Longe de ser algo desprezível, pormenor sem importância, o fato de ser o café coado no pano ou no filtro de papel, ser já adoçado na água quente pela mãe, ou colocado amargo no bule para que as pessoas voluntariamente o adocem a seu gosto; a mesa ser posta para que todos comam juntos ou, ao contrário, a comida ficar sobre o fogão para que cada pessoa da família se sirva em diferentes momentos e coma em diferentes lugares da casa; haver uma diversidade de doces 11

e biscoitos comprados na padaria ou ser apresentado à família regularmente um biscoito proveniente de uma receita da avó; esperar, em datas marcadas, um prato que se repete naquela ocasião (Natal, dia das mães, aniversários) ou, diversamente, aventurar-se a novas e desconhecidas receitas – tudo isso, e muito mais – são símbolos de um grupo, o grupo familiar. Pela receita se produz o alimento, mas ele não será apenas o alimento do corpo: ele alimentará a nossa memória. Será uma memória doce (sem querer fazer trocadilho), que nos falará de infância, de amigos, de tradição, de avós. Através de uma receita, cria-se um prato que evocará necessariamente um passado (vivido ou contado).


Receitas

Vamos fazer a receita de suflê? Antes de tudo, devemos comprar um pão de 400 réis. Onde encontrá-lo: na Padaria de Pedra, no Boccardo? Talvez no Bresciani. Ou, quem sabe, no Casselhas? Provavelmente no Lucianinho. Ou na Panificadora Moderna?

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Se encontrar só pão de 200 réis, esta receita vem a calhar. Ainda bem que temos máquina de moer carne, tão útil em vários momentos, sobretudo no aproveitamento de carne cozida para fazer croquetes. E na Semana Santa, para fazer a paçoca de amendoim que se come com banana maçã, tradição vinda através dos avós do Vale do Paraíba. 12


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Comida tem tradição sim! E segue moda, e vira febre, e sai da moda, cai no esquecimento. A moda dos pavês de pêssego, do rocambole de goiabada, da carne louca, do mosaico de gelatina, do molho madeira, do salpicão, da maionese. E alguns pratos de festa: espetinhos de picles+queijo+salsicha fincados num melão, sanduíche de camarão fingido, sanduíche de mortadela moída, torta paulista com amendoim, servida em quadradinhos. Há receitas que revelam tempos passados: pela quantidade de ovos – o que depois passou a ser impensável; pela indicação de réis, caixas, tabletes, onças – medidas com significado datado; pelo tempo de preparo (como o doce de laranja azeda), hábito que foi ficando cada vez mais distante de nós com a busca pela facilidade na cozinha e pela rapidez no preparo dos alimentos. 13


As receitas têm elementos diferentes das de hoje não apenas porque algumas saíram da moda, mas porque eram outros os recursos: era a época do moedor manual de carne, do batedor de claras, do ralador de queijo de manivela; era época anterior ao freezer caseiro, anterior ao forno de microondas, ao grill elétrico, à sanduicheira. Ah, como nos deliciávamos então com sanduíches preparados no tostex! Arquivo Casa Rosa

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Comer juntos

O comércio de frutas e verduras era muito restrito na cidade de Capivari, inclusive quanto a horários. O leite era levado às casas pelo leiteiro; na Casa Rosa, era o Sr. Luiz Agostinho da Costa que deixava em nossa porta, diariamente, três litros de leite, religiosamente fervido e que descansava até o dia seguinte para “criar nata”, com a qual se fazia a manteiga. Bater a manteiga, debulhar as ervilhas, ralar a casquinha das laranjas azedas para fazer doce, limpar o espinafre, quebrar o coco jogando-o no chão do terraço eram ações pitorescas ligadas à alimentação, e que uniam a família. Cumprindo a função de unir as pessoas, havia comidas que uniam os vizinhos: ora era o “pão de Jesus” a partir de um fermento, ora era coalhada também a partir de uma semente. Um recebia,

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preparava o alimento e passava a “semente” para um vizinho, sem perda de tempo, sem interromper a sequência. E mesmo outros salgados e doces iam e vinham, pratiArquivo Casa Rosa

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nhos eram trocados, jamais entregues vazios, conforme mandava a boa educação. Essa vocação da comida, de unir, de agregar, já está na própria palavra da nossa língua. A etimologia do verbo comer é elucidativa: o prefxo com (que aparece no latim comedere e se mantém em português) tem exatamente o sentido de companhia, contiguidade, sociedade. As comidas, sabemos, unem quando as comemos juntos, mas unem também quando as preparamos em conjunto. Na Casa Rosa, alguns pratos que nos pareciam complicados talvez fossem preparados justamente com essa fun-


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ção: unir a família em torno de uma atividade prazerosa. Talvez o que sempre mais nos empenhou foi a preparação dos canudinhos, massa frita enrolada em cones feitos em folha-de-flandres ainda no entre-séculos (e estamos falando da passagem do XIX para o XX). Mas também cabe aqui a recordação da limpeza, com sal e limão, do grande tacho de cobre para o preparo, no fogão a lenha, do doce de laranja ou de pera, ou de cidra ou de goiaba. Sendo uma casa do interior, com muitas crianças, a Casa Rosa sempre recebia amigos. Em geral, as pessoas se lembram das visitas que faziam à casa. E não há visita sem um cafezinho ao menos. Sem suco de frutas do quintal. E os acompanhamentos: sequilhos de araruta, biscoitinhos de nata, biscoito em forma de 8, uma feta de bolo. Houve época em que às 10 horas da manhã, Monsieur e alguns colegas, aproveitavam o intervalo de vinte minutos

e vinham do Ginásio Padre Fabiano até a Casa Rosa para tomar um café recém-coado. Outros eram habitués, em alguma época, no almoço cotidiano: a professora de música Dirce Guerreiro Kirche, a de ginástica, Éris Brocchi Mafia, Margarida Campo Dall’Orto e Norman Kerr Jorge, ambos de Geografia , Dr. Flávio de Toledo Pacheco, professor de História (antes de seu casamento com a também professora Fernanda Sacramento Perpétuo), Rosita Lima Delben, professora de Ciências. Singeleza nos pratos era marca registrada: na década de 50, nos almoços de domingo, houve a moda da pizza de massa de pão, acompanhada de arroz; de sobremesa, gelatina. Para esse “lauto almoço”, concorriam as alunas do Curso Normal: Edith Biazio e Maria Tereza Janotta , a demonstrar que a amizade e o prazer da convivência se colocam acima da sofisticação. Em outra época, o almoço de domingo era uma inde16

fectível combinação de arroz-de-forno com carne de panela. Nos últimos tempos de vida do Padre Eusébio van den Aardweg, no almoço, servido pontualmente ao toque das 12 horas, não faltava um suflê. As visitas apreciavam o delicioso doce de leite (“rapadurinha de leite”, se dizia em Capivari), que minha mãe fazia muito bem, embora sentindo não fazê-lo tão branquinho quanto o de D. Alcinda e nem tão bom quanto o de Sara Galrão. Ela batia muito bem o doce, apurando-o no ponto certo e depois esparramava a massa para secar sobre a pedra mármore de um dos criados-mudos, que para isso era levada cuidadosamente à cozinha. As visitas provavam as geleias das frutas do quintal: amora, laranja, uvaia, pitanga, jabuticaba (“geleia de barro”, segundo Hugo Franchi) e geleia de rosas. Receitas que se repetiam ou que eram temíveis experiências... Os sucos de caju, de limão de três qualidades, de carambola, de uvaia. Aliás, a safra de uvaia era tamanha que fornecíamos vários quilos ao bar do Sr. Chico Tempesta, que com a fruta fazia picolés. E havia, para deleite de todos, muito abacate. Goiaba, nêspera, amora, jabuticaba eram frutas devoradas no alto das árvores. Por isso nos soava tão familiar este trecho das Reinações de Narizinho:


“No sítio de Dona Benta havia vários pés, mas bastava um para que todos se regalassem até enjoar. Justamente naquela semana as jabuticabas tinham chegado “no ponto” e a menina não fazia outra coisa senão chupar jabuticabas. Volta e meia trepava à árvore, que nem uma macaquinha. Escolhia as mais bonitas, punha-as entre os dentes e tloc! E depois do tloc, uma engolidinha de caldo e pluf! – caroço fora. E tloc, pluf, tloc, pluf, lá passava o dia inteiro na árvore.” Alguns amigos recordam-se de Sêo Carlos oferecendo, como aperitivo, uma pinga que ele deixava curtir com folhas de guaco do quintal. Recordam-se, não sei se pelo sabor, se pelo inesperado de ver o professor tomar sua aguardente. E ele ainda preparava os licores, sempre com as frutas do quintal, sendo o suprassumo o licor maraschino, um maraschino à moda da casa, já que não de cereja da Dalmácia, a ginja (Prunus cerasus), mas de

caroços de nêspera, a “ameixa amarela” (Eriobotrya japônica) deixados por meses em infusão no álcool de cereais com açúcar e depois cuidadosamente filtrado. No entanto, nem tudo são flores, nem tudo são doces: havia algum sacrifício (de um ou de outro filho, a depender do prato) em comer bucho a cada quinze dias, camarãozinho seco com chuchu, bife de fígado, miolo à milanesa; o mamão de nosso quintal, presença quase obrigatória

como sobremesa do almoço, tão sem graça e, ao mesmo tempo, tão amargo que sobre ele púnhamos açúcar. Quando estávamos com qualquer dor de barriga, lá vinha o chá preto com torrada (e cama...). Já convalescendo, nossa mãe nos preparava um arroz mole cozido com batata inglesa, ou então um mingau de maisena polvilhado com canela: momento sublime, êxtase! O sacrifício de passar a chá-preto-com-torrada tinha sido recompensado!

Lanches, bolos e guloseimas

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De cada um dos filhos, vamos pensar em 18 comemorações de aniversário. Somemos a elas, os aniversários dos netos, dos próprios pais, as formaturas e outros acontecimentos familiares e teremos bem uns 400 bolos enfeitados, uns tantos docinhos, sanduíches, guaraná caçulinha e uma flor enfeitando a mesa. Na Páscoa, o carneirinho de cocada e o manjar branco em forma de peixe; no Natal, o galo feito de bolo, receita alemã. Em festas, ou para dar de presente a alguma criança amiga, o porquinho feito de doce de leite, o coelho de maria-mole e a galinha de gelatina. Os bolos traziam enfeites caseiros, originais, ousados para a época. Só com material reaproveitado: os buxinhos do jardim, fitas de presente, um pouco de anilina, miniaturas de animais, bonequinhos, papéis de várias texturas e vários tons, papelão, habilidade manual e... imaginação. Assim foram feitos os bolos em forma de relógio, de palhaço, de coelho, de Papai Noel, de borboleta; bolo imitando uma caixa de bombons, bolo reproduzindo um campo de futebol; as casas dos 3 porquinhos. O primeiro dos bolos enfeitados, feito com todo o carinho e muita dificuldade pelos pais para os primeiros filhos, ainda bem pequenos, tinha o formato da arca de Noé, sendo o patriarca e

os casais de bichos recortados em papelão. [Como era a vocação da arca, os animais se reproduziram... e os bolos decorados também]. Com generosidade, poderíamos dizer que a casa do General Osório era um bufê de Festas Infantis avant la lettre. Na escola, o recreio era uma extensão da casa. Nas lancheiras ou até mesmo dentro da maleta, junto com o material escolar, o lanche bem embrulhado em guardanapo de pano: pão com doce de abóbora, pão com goiabada, pão com açúcar, pão com manteiga; pão com “carne de domingo” (lagarto assado); limonada na garrafinha; pão com queijo (não muito, porque “queijo emburrece” dizia providencialmente o Pai para economizar o queijo do reino de que tanto gostava). Comia-se bem na casa porque se comia com alegria, com devoção até. Às vezes havia algum exagero, e então o pai da casa exclamava, aludindo a seu tempo no mosteiro: “Comi feito um abade!” e ecoava depois, em latim: “Sicut abas”. Ele também empregava o latim para responder, alto e bom som, ao toque do cincerro trazido do Ceará, quando ele lá esteve num Congresso de Filosofia e que era usado para chamar a família para as refeições: “Audivi!” Falando de lanches e outros petiscos: Se alguma criança tivesse no bolso algum dinheirinho, poderia ir à cantina da escola, regida pela famosa Dona Maria da Cantina, e comprar um dos famosos “doces da Bepa”. A Bepa, Dona Josefa Kobal Armelin, fabricava, ali perto do Pátio de Santa Cruz, seus doces que fizeram a alegria de várias gerações de capivarianos: doces de batata branca, de batata roxa, de abóbora. Ainda que a alimentação básica das famílias se desse basicamente nas próprias casas – a não ser para os raros viajantes, como os professores, que poderiam fazer refeições na Pensão de Dona Loca (casada com o Sr. Edgar Duarte Nunes, funcionário do Giná-

cincerro de 1962

CINCERRO

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sio) ou no Bar da Marina (Marina Ustulin Rossi), havia sempre a oportunidade para comprar doces fora de casa. Cada um deve ter sua memória de balas, pirulitos e outras guloseimas. Lembrando apenas alguns, as famosas balas de café de D. Maria Sampaio e os bichinhos de açúcar de Ângelo Illipronti. E ainda falando de lanche: Minha avó materna, Dona Aliza, dizia que a hora do lanche era “a hora mais feliz”. E, para ela, o suprassumo da felicidade era ter no lanche mandioca cozida, que comia com bastante manteiga. Acompanhada de um café ou de um mate queimado. Mais antigamente, antes da comercialização do mate em suas várias formas, ela mesmo queimava o mate: jogava uma brasa nas folhas verdes, depois

colocava na água quente. Tínhamos também o bolo de fubá da Vó Aliza, que ela fazia e era consumido ainda quente, em geral acompanhado de café. Ela apreciava o fubá mimoso, bem fininho, produzido por um comércio com moinho de arroz e milho, antigamente localizado em frente à antiga cadeia. Tanto que na véspera de voltar para São Paulo ela ia lá comprar alguns quilos do precioso fubá. Ainda no assunto doces, comprava-se em grandes dias o “fio-de-ovo” da dona Arminda. Interessante o método de aquisição dessa delícia: ela fazia a quantidade de dúzias de ovos desejada, e o pagamento era misto: pagava-se um valor em dinheiro, e forneciam-se os ovos necessários.

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Por se tratar de uma edição mais familiar, intimista e pessoal, se observarmos de maneira a arrepiar também nossas vivências e singularidades, os textos desta edição foram escritos como os anti-

gos hábitos que permeiam a Casa Rosa, coletivamente e com muita generosidade. Os irmãos Mattos: Guta, João, Gia, Otávio e Maria Luiza, além da colaboração da Gloriete Gasparetto, a Glô, foram 19

os responsáveis por tecer esses singelos relatos e inesquecíveis lembranças. A cidade de Capivari, de tantos causos e lendas, ainda pulsa firmemente no rosa de uma casa aclarada pelo acolhimento.


“

o homem tem que ser pensado como um dardo atirado no Ser Carlos Lopes de Mattos


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