Retrospectiva 2018: Revista Mundo do Leite (pág.10 - ed.93)

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É preciso discutir

a relação

Especialistas defendem que garantia de fornecimento constante de leite é responsabilidade mais da indústria do que do produtor

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Tatiana Souto

mbora um dependa totalmente do outro, laticínio e produtor nem sempre têm um casamento, digamos, “estável”. E um dos principais problemas nessa relação é a infidelidade. São recorrentes as reclamações de laticínios abandonados por pecuaristas que argumentam que a indústria não lhes oferece condições adequadas para manter a parceria – principalmente o preço pago pelo leite. Ao menor sinal de um valor maior no laticínio ao lado, é para lá que o produtor corre. Na outra via, há empresas que se comprometem a médio ou longo prazos com seus fornecedores mas, ao menor sinal de oscilação abrupta nos preços de mercado, jogam fora, sem cerimônia, a aliança. O coordenador técnico do Projeto Educampo Sebrae em Minas Gerais e consultor da Labor Rural, de Viçosa, Christiano Nascif, confirma que a agroindústria leiteira sofre com a alta rotatividade dos produtores, “algumas mais, outras menos”, situação que é “muito ruim para toda a cadeia de lácteos”. Outro consultor, Abel Fernandes, da Infinite Consultores, de Juiz de Fora (MG), aponta o fato de o setor ser “muito desconectado” como um dos entraves para a boa relação pecuarista-laticínio. “No segmento de suínos e aves, por exemplo, há uma ligação muito forte entre fazendeiros e indústria, uma via de mão dupla, e isso nem sempre acontece no leite”, observa.

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Logicamente, qualquer relação depende dos dois lados para engrenar. E especialistas ouvidos por Mundo do Leite concordam que sua perenidade está muito mais na mão do laticínio, em criar condições para atrair e fidelizar o produtor, do que o oposto. Embora, ao fim e ao cabo, a agroindústria acabe também se beneficiando das suas próprias iniciativas – captando leite de qualidade em maior volume e a um custo menor. É consenso também que, ao receber estímulos, o pecuarista tira do primeiro plano a questão do valor recebido pelo leite, em função de outros benefícios que consegue agregar. “Nem sempre o preço é o principal ponto a garantir a fidelidade do produtor”, confirma o pesquisador João Cesar Resende, da área de Socioeconomia da Embrapa Gado de Leite, em Juiz de Fora. “Há muitas outras coisas que a indústria pode fazer. A primeira é prestar algum tipo de assistência técnica e gerencial à propriedade leiteira.” Para Resende, esse tipo de atitude cria um vínculo entre ambos. “O produtor sente que o laticínio está preocupado com ele e, assim, o preço pago pela matéria-prima deixa de ser o principal atrativo.” Até porque, bem assessorado, o produtor aprende a buscar lucro em cima de ganhos de produtividade e gestão de custos. “Afinal, não adianta aumentar o preço se o produtor não tem controle sobre os custos”, ensina Resende.


O produtor sente que o laticínio está preocupado com ele e o preço pago deixa de ser o principal”

Se houvesse mais parcerias firmadas com contratos, com certeza a fidelização seria maior”

João Cesar Resende,

Rosana Pithan,

Embrapa Gado de Leite

IEA/Apta

Longo prazo Não que o preço não pese na balança. Ao tratar a propriedade leiteira como negócio, o produtor passa a fazer projeções com objetivos de longo prazo. Para tanto, necessita de um laticínio que sinalize o comportamento da cotação ao longo dos meses, outro fator que contribui para fidelizar a relação, acredita o chefe-adjunto de Transferência de Tecnologia da Embrapa Pecuária Sudeste, André Novo, de São Carlos, SP. “O criador precisa saber com antecedência o que vai acontecer com o preço do leite. Se o laticínio passa essa projeção, é uma forma de estimular um fornecimento regular e fiel, pois o fornecedor se sente mais seguro”, continua o representante da Embrapa, assinalando, porém, que o que predomina ainda é a “falta de comunicação” entre as partes. Nascif, do Educampo Sebrae, complementa, dizendo que o pecuarista de leite valoriza, de fato, uma menor variação de preços entre picos e baixas de produção. “Além disso, a transparência na formação do preço por parte do laticínio.” Sob este aspecto, a pesquisadora Rosana de Oliveira Pithan e Silva, do Instituto de Economia Agrícola (IEA-Apta), elogia a iniciativa do Conselho Paritário Produtores/Indústrias de Leite do Estado do Rio Grande do Sul (Conseleite-RS), que projeta, mensalmente, o valor do litro pago ao produtor. “Eu acredito muito nesse sistema”,

diz Rosana. “A cotação fica transparente pra todo mundo, com planilha, cálculos e um valor de referência que auxilia muito o produtor a se planejar. Esta é a melhor saída, pela previsibilidade que dá a ambas as partes.” Ela lembra, também, que a cadeia leiteira não costuma trabalhar com contratos de longo prazo, “o que poderia ser outra saída para o fornecedor ser menos volúvel”, diz a pesquisadora. “Se houvesse mais parcerias firmadas com contratos, com certeza a fidelização seria maior”, acredita.

Caminhão da coleta faz a ponte entre o produtor e a indústria

Mais Leite Saudável Um programa que surgiu há três anos no Ministério da Agricultura, ainda sob o governo de Dilma Rousseff, começa a dar bons frutos para fomentar a cadeia láctea do País. O Mais Leite Saudável foi elaborado justamente para contornar a tão propalada falta de recursos para investimentos no fomento da cadeia – sem usar, diretamente, verba de orçamento do ministério. Rodrigo Moreira Dantas, coordenador de Boas Práticas e Bem-Estar Animal do Ministério da Agricultura, explica que o laticínio que aderir ao programa obtém verba de créditos presumidos – um dinheiro que ele tem a receber do Fisco. A agroindústria participante tem direito a resgatar 50% dos créditos, sendo obrigada a

destinar 5% deste valor a programas de assistência técnica e gerencial ao pecuarista de leite. Até o momento, 491 projetos apresentados pelos laticínios foram aprovados, num valor de R$ 173 milhões. “Até agora, 60 mil produtores foram ou estão sendo beneficiados”, diz Moreira Dantas. A assistência técnica se dá tanto nas práticas agronômicas, zootécnicas e genéticas da propriedade quanto nas ligadas à administração e gestão. O coordenador calcula que, de 1.200 laticínios sob inspeção federal no Brasil, cerca de 10% já aderiram ao Mais Leite Saudável. A contrapartida exigida é que a agroindústria deve estar com sua situação regularizada no Fisco.

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Capa Produtor como parceiro da indústria A principal entidade que representa os laticínios no País, a Viva Lácteos, com 34 empresas associadas, responsáveis por 70% da produção brasileira de leite e derivados, acredita que a indústria tenha “um papel importante para ajudar a alavancar a produção nas propriedades leiteiras”, diz o diretor executivo, Marcelo Costa Martins. “Não diria, entretanto, que isso seja uma obrigação da indústria; pensamos mais sob o aspecto de parceria, pois o leite é um negócio tanto para produtor quanto para a indústria”, ressalta. “Se o produtor ganha dinheiro com a atividade, isso garante a sustentabilidade da cadeia.” Martins cita iniciativas dos laticínios, como programas de assistência técnica, projetos do Sistema S e também escolas de capacitação para os funcionários das propriedades leiteiras, entre vários outros. Ele também elogia a iniciativa do Ministério da Agricultura, o Programa Leite Mais Saudável, que estimulou laticínios a investirem no fomento à cadeia. “Este programa mantém uma dotação orçamentária significativa e que, em virtude do benefício fiscal, muitos laticínios passaram a desenvolver programas voltados ao pecuarista”, comenta. “Praticamente todo dia, no Diário Oficial da União, há projetos aprovados”, diz. “Há, enfim, um conjunto de iniciativas no País que visam melhorar a situação do produtor. Basta ele querer participar.”

Ainda em relação ao preço, um fator importante mencionado pelos especialistas é o pagamento por qualidade do leite, motivo que suscita reclamações tanto da indústria quanto do pecuarista. “O laticínio reclama da falta de qualidade e da heterogeneidade do volume entregue”, diz Nascif, do Educampo Sebrae. Já Rosana Pithan, do IEA-Apta, alerta que produtores ficam insatisfeitos porque a maior parte dos laticínios não paga bonificação por um leite de melhor padrão. “Aí, quando ele encontra quem lhe ofereça um pouco mais, corre pra lá”, relata. A pesquisadora inclui, nesta questão, um outro elo da cadeia: o consumidor. “Para ele, leite é leite. Ele não exige qualidade e isso se reflete negativamente na produção.” Resende, da Embrapa Gado de Leite, lembra que se um laticínio dá bônus por um leite melhor, além de ser um incentivo para fidelizar o produtor, também conse-

MUITO MAIS LEITE. COM MAIS QUALIDADE.

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gue maior rendimento da matéria-prima na indústria e, consequentemente, menor custo de produção. “Isso só se reverte em benefícios para a empresa”, garante o pesquisador, que reconhece ser mais frequente o pagamento extra por quantidade de leite, não por qualidade. Outros fatores que contribuem para fomentar a cadeia leiteira também passam pela iniciativa dos laticínios – queira ou não, o elo mais forte. “A indústria pode estimular, por exemplo, produtores de uma mesma região a formarem grupos de consumo para adquirir insumos como ração, fertilizantes e medicamentos veterinários”, sugere Resende, da Embrapa Gado de Leite. “Comprando em grande volume, o produtor consegue descontos maiores”, diz. Outra sugestão é o próprio laticínio montar uma estratégia de fazer compras no mercado futuro de milho e soja, travando preços para reduzir custos. Estimular a associação de produtores também permitiria o fornecimento de leite em larga escala, o que é benéfico para ambas as partes – e estimularia a fidelidade recíproca. O pesquisador cita outros itens: fomento genético, agrupar produtores especializados em recria, e um relacionamento transparente. André Novo, da Embrapa Sudeste, ressalta, além disso, que é necessário acabar com a cultura de alguns laticínios de ir buscar leite no “exterior”. “Não só o produtor é infiel; muitas vezes a indústria, para atender a necessidades imediatas, prefere ir buscar leite mais longe do que estimular os pecuaristas do seu entorno”, explica ele. “Isso funciona como um desestímulo à fidelização.” Para Novo, o que seria importante é a empresa conquistar a confiança do produtor “naquilo que é mais importante para ele”, define. “De que tipo de produtor a empresa precisa?”, questiona. “Se a necessidade for de um leite de altíssima qualidade, então cabe à indústria auxiliar seu fornecedor a chegar lá”, explica André Novo, “seja por políticas de bonificação, com assistência técnica ou o que for necessário”. Bem assistido, Novo adverte porém que o produtor também tem de “cumprir a sua parte no acordo” e não “ficar pulando de galho em galho”.


Produtores e laticínios fiéis

O

pecuarista de leite Amauri Pinto Costa, da Fazenda Bom Retiro, de Pouso Alto (MG), é categórico ao afirmar que, se não fosse o incentivo técnico e de gestão que obteve ao longo dos anos da indústria, não teria chegado aonde chegou. Desde 1997, quando iniciou na atividade e entregava 400 litros de leite/dia para a Parmalat, vem se beneficiando da assistência técnica prestada por laticínios. “Tive conhecimento do pastejo rotacionado por meio da Parmalat”, comenta. Com a assistência técnica, a fazenda evoluiu muito rápido, conta. “Sou grato à Parmalat e até hoje aplico os ensinamentos daquela época.” Hoje, Costa produz 19 mil litros por dia, que entrega para a Danone, da qual também recebe assistência técnica, mas mais especializada, voltada ao aumento do teor de sólidos do leite e à redução da contagem de células somáticas. Também fez um curso, pelo Educampo Sebrae em parceria com a Danone, de controle e gestão de custos, que o auxiliou a gerenciar melhor a propriedade, conta. Contrato O produtor conta com mais benefícios, como um contrato de leite que tem duração mínima de dois anos e é vinculado ao indicador de preço do Cepea. “Por isso tudo, sou um produtor fiel”, garante. “Há cinco anos eu forneço só para a Danone”, orgulha-se. “Eles me pagam um preço justo, por qualidade, tenho assistência técnica e apoio. A fidelidade também me garante um bônus anual.” Outra vantagem oferecida pelo laticínio, diz, é a central de compras, da qual ele, porém, como grande produtor – e com condições de comprar bons volumes por conta própria – não precisa lançar mão. “Mas para pequenos e médios produtores é um programa essencial.” A Danone também premia aqueles que entregam volumes maiores de leite. Atingindo-se determinadas

metas, eleva-se a escala de pagamentos. Por isso, Costa – com auxílio do laticínio parceiro – pretende alcançar no ano que vem a marca de 30 mil litros por dia. O pecuarista relata que, para ele, o mais importante é “estar em uma empresa que trata os produtores com respeito, enxergando o que é fundamental desenvolver na cadeia”. Também no sul de Minas Gerais, no município de Lavras, outra empresa percebeu todas as vantagens de tratar os pecuaristas como parceiros. O Laticínio Verde Campo, adquirido há dois anos pela Coca-Cola e que capta leite de cerca de 200 produtores, mantém 10 técnicos para atendê-los rotineiramente. “Nosso trabalho de assistência é muito forte”, garante o engenheiro agrônomo Sávio Santiago, gerente de Matérias-Primas Lácteas. “Com esse trabalho próximo ao produtor, garantimos um leite de excelente qualidade. Captamos 200 mil litros por dia, com contagem bacteriana total (CBT) na média de 11.000 e CCS na média de 240.000”, diz o agrônomo. O Verde Campo mantém política de preços diferenciada: o produtor sabe antes quanto vai ganhar pela matéria-prima. Santiago acrescenta que há, ainda, programas de melhoramento genético, de doação de embriões, de assistência veterinária, de inseminação artificial e de auxílio na compra de insumos. Todas essas medidas acabam por manter o produtor ligado à indústria. “Nosso índice de cancelamento de entregas é muito baixo. É raro o produtor deixar de fornecer pra gente.” O que não é pouca coisa, em se tratando da região em que o Verde Campo está situado, uma das maiores bacias leiteiras do Estado. Santiago não vê essas iniciativas como “custo” para a empresa. “Nós estimulamos procedimentos nas propriedades que vão nos trazer o leite do qual precisamos”, explica. “Nosso padrão de qualidade é altíssimo porque os produtos são premium e precisamos de um leite de qualidade. Por isso estimulamos o produtor a alcançar esse objetivo.”

Se não fosse o incentivo técnico e de gestão que recebi da indústria, não chegaria onde cheguei”

Com esse trabalho próximo ao produtor, garantimos um leite de excelente qualidade. Nossos fornecedores são fieis”

Amauri Costa

Savio Santiago,

Produtor

Verde Campo

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