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Entrevista - Uma reviravolta

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Mirage III

Mirage III

O tom da reviravolta

Por Tenente-Jornalista Luiz Cláudio Ferreira De Brasília (DF) O Suboficial Nicodemus Fernandes tem 25 anos de serviço na Força Aérea Brasileira e fez da vida um exemplo de como é possível superar terríveis adversidadese r

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Ele não lembra exatamente como essa história começou, mas sabe, em lágrimas de felicidade, como terminou. Não recorda do início porque tinha apenas dois anos de idade quando foi abandonado pelos pais. De creche em creche. De escola em escola. Reformatórios que deixaram tanto péssimas como ótimas lembranças. Por 15 anos, Nicodemos Fernandes passou por unidades no interior de Minas Gerais da Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor (FEBEM). Em todo esse tempo, passou por tudo. Foi vítima de muita violência por colegas e instrutores das entidades por onde passou. Viveu a apavorante rotina de ameaças de morte. Rotina de tentar fugir. Rotina de fugir e tentar voltar. Rotina de furtar para viver, de viver em fome. Cheirar cola. Colocar comida dentro da roupa e correr descalço para não ser preso. Correr contra o destino quase certo de ser mais um dos condenados ao pior. Espoliação, marginalidade, crime e morte. Aquela rotina fria e dura de se transformar em estatística e jamais ser lembrado. Exatamente como amigos que ele viu morrer ou desaparecer. Mas, nessa trajetória, o imponderável surgiu em dobrados, acordes, partituras. A música apareceu para Fernandes numa das escolas, na cidade de Antonio Carlos (MG). Incorporou-se à banda e passou a escrever e entoar sua própria poesia. Sem revoltas. Sem revanches. Descobriu um concurso para a Aeronáutica e fez seu voo mais audacioso. Transformou-se em Cabo. Hoje é Suboficial. Reencontrou e perdoou os pais. É pai duas vezes. Não foge mais. Calça sapatos fortes e toca alto o sax, amigo inseparável há 25 anos. De todas as músicas, emocionase mais com a canção “Não chores mais”, de Gilberto Gil. Segue à risca a letra.“Tais recordações,Retratos do mal em si. Melhor é deixar prá trás...”. Não só deixou para trás. Ele sabe a barra de viver. “Mas, se Deus quiser! Tudo, tudo, tudo vai dar pé”. Deu pé, mãos e um coração de guerreiro. Vencedor. Hoje, sob pedidos insistentes de chefes e colegas, faz palestras em Brasília para novos militares que iniciam o serviço militar. Em cada fala, haja emoção e força para recontar a incrível história de reviravolta. Leia abaixo entrevista com o Suboficial da Força Aérea Brasileira Nicodemus Fernandes, 44 anos:

Aerovisão – Como o senhor foi parar na FEBEM?

Suboficial Fernandes – Na verdade, não tenho recordações claras de como fui parar na creche da FEBEM em Belo Horizonte. Sei que pelo meu registro sou nascido em Virgulândia (MG). Aos poucos, fui descobrindo que fui abandonado pelos meus pais, que eu não tinha ninguém. Soube tempos depois que meus outros dois irmãos também foram deixados em Belo Horizonte. Meus pais eram muito pobres e foram tentar a vida em São Paulo. Era só isso que eu sabia. Depois soube mais.

Aerovisão – Quais foram os piores problemas que o senhor passou nesses colégios?

Suboficial Fernandes – Enfrentei várias mudanças de colégios. Com certeza, a mais traumática ocorreu quando fui transferido para a escola na cidade de Muriaé. Tinha oito anos de idade. Lá eu aprendi tudo o que pode haver de pior no mundo.

Aerovisão – O que, por exemplo?

Suboficial Fernandes – Aprendi a furtar para comer. Cheirávamos cola sempre. Tínhamos fome demais. Os rapazes mais velhos ameaçavam os menores para ter a comida. De qualquer jeito apanhávamos. Seja do rapaz mais velho. Seja do instrutor ou vigilante. Aprendi a fumar. Também viciamos nisso. Procurávamos tocos de cigarro no chão para fumar. Não era possível dormir direito. Você fica sempre achando que pode ser morto durante a noite. Periodicamente

O tom da reviravolta xb Suboficial Nicodemos Fernandes, 44 anos, e uma incrível história de superação

também pulávamos o muro para fugir. Passar o final de semana na rua. Entrávamos em supermercados ou lojas... levávamos o que aparecia, principalmente para comer. Quando alguém percebia, corríamos em disparada pela rua. Dentro da escola também vivíamos sob ameaça. Tive alguns colegas que morreram assassinados dentro da unidade. E ficava por isso mesmo. Aí passei a pensar que eu poderia ser o próximo.

Aerovisão – E como você escapou?

Suboficial Fernandes – Tem que estar muito atento. Uma vez tive um problema sério. Tinha entre 10, 11 anos. Um rapaz mais velho me abordou e disse que o meu mingau daquele dia deveria ser dado para ele. Pôxa, a hora do mingau era a mais importante do meu dia. Talvez o único bom momento que tinha. Receei, mas não entreguei. Ele apareceu no meu alojamento de madrugada e me cobrou. Disse que estava com fome e por isso eu comi. Nunca apanhei tanto na vida. Levei tapa no rosto, na boca. Pensei que iria morrer. Aí ele parou e avisou que, na próxima, eu não iria escapar. No dia seguinte, estava muito ferido, mas não poderia contar a ninguém. Quem denuncia está com a vida condenada. Disse que havia caído e ficou por isso mesmo.

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Sgt Johnson Barros / FAB

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Arquivo Pessoal

O então cabo Fernandes, no início da carreira militar. Para ele, uma mudança de vida

Aerovisão – Uma convivência realmente muito complicada...

Suboficial Fernandes – Convivíamos com os piores marginais. Assassinos dividiam o espaço com menores abandonados, como eu. Era a lei da selva. Mas sobrevivi.

Aerovisão – E quando a situação começou a mudar?

Suboficial Fernandes – Mudou quando fui transferido para a escola na cidade de Antonio Carlos. Lá era totalmente diferente. A direção era muito rígida. Isso ficou claro desde cedo. Um dia que me marcou foi quando peguei do chão um cigarro para fumar. Fui levado para a inspetoria e fui severamente repreendido. Tinha respeito, mas também muito medo. Foi lá que tive a oportunidade de ter contato com a banda de música. Tinha 11, 12 anos. Foi o que de verdade abriu meus caminhos. Quando tinha 17 anos, eu já tocava bem sax alto e autoridades da Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR), em Barbacena (MG) foram assistir a uma apresentação nossa e divulgaram o concurso para cabo músico. Sempre acreditei que eu podia, apesar da minha infância com tantos problemas. Prestei o concurso e passei. Não acreditava. O que mais senti foi deixar meus amigos na FEBEM, que se tornaram minha família.

eles haviam me abandonado. Na verdade, nem sabia o que dizia direito. Eles me explicaram também chorando que não podiam me criar nem aos meus irmãos. Que eles tentaram me salvar. E é verdade. Eles me salvaram. Foi um dos melhores dias da minha vida (pausa)... Seis meses depois soube que ele havia falecido. Foi a primeira e última vez com o meu pai.

Aerovisão – Logo depois você soube ter passado na Aeronáutica para cabo?

Suboficial Fernandes – Foi uma mudança total na minha vida, marca de minha história. Um dia que compareci a uma das fases do concurso pude almoçar no rancho do quartel. Estava no paraíso. Nunca comi tão bem. Depois voltei para a FEBEM e disse para os meus colegas que nunca tinha visto tanta comida na minha vida. Isso me e deu um fôlego para as fases finais do concurso. Estudava dia, noite e r

a“Um dia que compareci a uma das fases do concurso pude almoçar no rancho do quartel. Estava no paraíso.” Aerovisão – E seus pais? Suboficial Fernandes – É para mim uma lembrança emocionante r o dia que me reencontrei com eles. Não tinha qualquer lembrança física deles. Foi justamente na época da banda que tive uma das maiores emoções de minha vida. Tinha 17 anos de idade e mantínhamos uma rotina de tocar sempre. Eu estava na capela da FEBEM, completamente lotada para a missa. Estávamos nos preparando. Um colega meu me chamou e disse que tinha visita para mim. Para mim? Eu que nunca recebi visita nenhuma. Ele me disse que eram meus pais (pausa)... Meus pais? Foi um momento muito bonito. Minha mãe estava em pé em frente à igreja. Meu pai, rastejava. Ele tinha problemas sérios de saúde. Ele me disse: “só vim aqui para te conhecer”. Nem ouvia direito. Chorava muito (pausa)... Perguntei por que

Arquivo Pessoal Já como sargento, Fernandes sempre teve orgulho de participar de solenidades

madrugada. Não entendia muito bem o que eu iria fazer. Mas tinha certeza que quem trabalhava naquele lugar era tratado bem. Tenho que passar nesse concurso. O dia 7 de agosto de 1984 foi o começo da minha história na FAB.

Aerovisão – E como foi o começo da carreira?

Suboficial Fernandes – Para se ter uma ideia, quando cheguei ao quartel (na Escola Preparatória de Cadetes do Ar, em Barbacena) para o meu período de quarentena (fase de adaptação à vida militar), perguntaram: “cadê a sua mala?”. Eu respondi que minha roupa era a que eu trazia no corpo. De novo, apenas o chinelo que eu calçava. Esse começo de carreira era totalmente novo para mim. Já cheguei como cabo. O Soldado me prestava continência, me chamava de senhor. Fui entender aos poucos aquela nova vida. Tanto respeito por mim. Naquele estágio probatório, na primeira oportunidade, todos os meus colegas queriam sair para conhecer a cidade, se divertir. Eu não. Tinha tudo no quartel. Comida, atenção, amigos... Na primeira vez que calcei o coturno, não tirei do pé durante a noite. Fiquei olhando a madrugada inteira para o calçado. Não acreditava. Na primeira oportunidade de ir para a FEBEM rever meus amigos foi quando recebi o meu primeiro salário. Levei todos para uma cantina e disse a eles que poderiam comer o que quisessem. Tinham achado que eu tinha ficado rico. Fui lá fardado e acho que isso fez bem a todos os meus colegas. Era uma maravilha. Ao mesmo tempo, nesse começo, tive alguns pesadelos bem ruins. Acordava assustado à noite. Pesadelo de ser expulso da FAB. Por isso, sempre andei muito na linha. Sei como a coisa é complicada lá fora.

Aerovisão – Voltou a encontrar sua mãe?

Suboficial Fernandes – Depois de um ano na FAB, guardei dinheiro e fui para São Paulo saber onde ela morava. Disse que era da Aeronáutica. Ela não entendia nada daquilo. Morava em Itaim Paulista (zona leste da capital). Era um único cômodo bem humilde com meus seis irmãos. Sem televisão. Todos dormiam juntos no chão. Fiquei muito triste. Saí de lá e fui alugar uma casa próxima de três dormitórios, comprei televisão, rádio, geladeira... Ela me dizia que não merecia tudo aquilo. Ela se culpava de ter me abandonado. Eu disse a minha mãe que devia muito a ela. E que não tinha nenhuma mágoa. Vi a dificuldade dela. Ela era gari da prefeitura de São Paulo. Meu pai pedia dinheiro na rua até pouco antes de falecer. Por isso, não tinha o direito de ser revoltado. Vivi um dia de cada vez. Depois de dois anos, consegui comprar uma casa para ela em Ferraz de Vasconcelos (SP). Nos vemos sempre e nossa relação é ótima.

Aerovisão – Sua vida daria alguma música?

Suboficial Fernandes – Acho

que sim. Sempre admirei muito os dobrados. Da música brasileira, sou fã dos grandes mestres da MPB. Mas a música que me emociona muito é Não chore mais, do Gilberto Gil. Acho que tem muito a ver com a minha trajetória e a dos meus companheiros.

Aerovisão – E hoje?

Suboficial Fernandes – Bom, eu tenho uma filha de 16 anos e minha esposa está grávida. Espero passar ideias de valorização de tudo o que temos. Respeito a tudo. Perguntam por que vivo sorrindo. Explico que é porque dou valor. Foi a música e a Aeronáutica que me ensinaram a ser sensível. E foi isso o que mudou tudo. Vi as piores violências. Sobrevivi. Conquistei. Tive apoio na vida, no trabalho. Amigos fazem a diferença. Explico isso em palestras para militares que entram na FAB. Em geral, ficam impressionados. Mas não fiz nada demais. Acreditei na vida. Tenho 25 anos de serviço. Estou mais perto de me aposentar. Espero só passar ideias boas para outras pessoas. Era o que gostaria que fizessem comigo. Além disso, essa farda, todos os dias que saio para o trabalho, me emociona muito. y x Cb Júnior / FAB O militar emocionou-se diversas vezes durante a entrevista. Quando falou do passado, lembrou que as pessoas devem valorizar tudo o que têm. Hoje, promove palestras para militares em começo de carreira. “Foi a música e a Aeronáutica que me ensinaram a ser sensível” y q

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