10 Filmes para gostar (ainda mais) de Biologia
Prefácio
A ciência sempre foi incomoda, pois sua essência pressupõe questionar a realidade e testar hipóteses que muitas vezes negam algumas das verdades há muito tempo estabelecidas. E como tal ela é uma ferramenta capaz de maravilhas, de trazer para o mundo humano a capacidade de tornar os sonhos reais, de explicar o inexplicável. Por outro lado, a ciência também necessita ser constantemente repensada, pois se a humanidade conquistou a possibilidade de entender o mundo natural, também atribuiu para si a responsabilidade de usar essa ferramenta para o bem. Não apenas por depender de indivíduos levantando hipóteses e testando teses, como também deve-se nunca perder de vista a própria humanidade. E se esse campo de conhecimento busca compreender o mundo à nossa volta, temos na arte uma forma da humanidade expressar com mais liberdade seus desejos, sua cultura, histórias e conceitos. Estes, compartilhados por meio do teatro, literatura, cinema, e uma infinidade de outras plataformas que levam tantas #2#
10 Filmes para gostar (ainda mais) de Biologia pessoas a sonhar ainda mais alto. Exercitar possibilidades infinitas, criar realidades, ainda que elas tão pouco possam ser desprendidas do meio em que vive o autor e daqueles que a apreciam. Assim, por mais escapistas que possam ser consideradas as diferentes obras que conquistam tantas pessoas ao longo dos anos, essas produções sempre conversam com o momento de produção e são constantemente ressignificadas pelo público. Dentre os mais diversos filmes que acompanhamos, muitos fundamentam seus enredos em temas científicos, porém poucas pessoas que vibram com dinossauros e tubarões entendem quais elementos foram inspirados na realidade e quais são apenas fruto de muita imaginação. De forma a tentar aproximar o público do cinema aos elementos das Ciências Biológicas que Leandro Pio de Sousa escreveu 10 Coisas para Gostar (mais de) Biologia - ensaios de biologia e cinema. Neste livro, ao longo de oito capítulos, o autor nos convida para um mergulho nesses elementos tão intrigantes no qual descobrimos como micro-organismos podem ganhar uma guerra, porque o King Kong não pode ser tão grande quanto o mostrado em tela e até mesmo como funcionaria a relação parasitária de criaturas que teriam inspirado Alien, o Oitavo Passageiro. Com uma linguagem bastante amigável, Leandro apresenta as complexas questões biológicas de forma mais simples tomando como base essas obras de ficção. Um processo de decodificação da linguagem especializada que tanto afasta os acadêmicos de um público mais amplo, este livro se propõe a estabelecer uma ponte de um conhecimento que deveria ser muito maior e não restrito apenas àqueles que vivem de estudá-lo. Marcelo Gaudio Augusto Doutor em História da Arte
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Sumário Agradecimentos
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Prefácio
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Querida, não dá para esticar o gorila ou Por que King Kong não poderia existir?
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Os pássaros feridos ou Quando um desequilíbrio ambiental bate literalmente na nossa porta
23
Mandíbulas! ou Como eu aprendi a parar de me preocupar e amar os tubarões
29
Guerra dos Micros ou Como vencer uma guerra só espirrando no inimigo
37
Uma estranha numa terra estranha ou Quando a xenofobia é justificável
45
Olha quem veio para nos jantar ou Quando a expressão “lobo em pele de cordeiro” faz todo sentido
55
O morto, o vivo e o quase morto ou Mudando a perspectiva sobre os fósseis
63
Um estranho no peito ou Parasitismo e eussocialidade no Alien
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10 Filmes para gostar (ainda mais) de Biologia
Os pássaros feridos ou Quando um desequilíbrio ambiental bate literalmente na nossa porta
Antes de buscar vingança, cave duas covas Confúcio
Capitola,18 de Agosto de 1961, uma cidade com menos de 10 mil habitantes no litoral da Califórnia amanhece aterrorizada com centenas de gaivotas tomadas de uma loucura coletiva se jogando em carros, casas e regurgitando peixes. Sem explicação e nem aviso prévio do que sucedia-se. A situação era tão inusitada que se não fosse verdade, passaria facilmente por uma história de terror. Curiosamente, numa daquelas coincidências inacreditáveis, na mesma época o roteirista Evan Hunter trabalhava na adaptação do romance The Birds de Daphne du Maurier para o cinema. No livro, uma família inglesa sofria ataques de gaivotas kamikazes durante a II Guerra Mundial. A versão cinematográfica a qual Hunter estava escrevendo seria dirigida pelo celebrado Alfred Hitchcock que vinha do estrondoso sucesso Psicose. A história real de Capitola serviria como material de apoio e inspiração para o desenvolvimento do filme que sairia em março de 63. Desde o lançamento de Os pássaros1 1 A tradução de The Birds para Os pássaros é infeliz. Os animais mostrados no filme, com exceção do corvo comum, não são da ordem Passeriforme. Agapornis
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10 Filmes para gostar (ainda mais) de Biologia o incidente ficou envolto em mistério (em 1991 voltou a acontecer na mesma área, mas com pelicanos). O que teria causado a loucura coletiva das aves? Por que o incidente ocorrera de maneira súbita e violenta? Em 2012, a pesquisadora da Louisiana State University Sibel Bargu e colaboradores, analisando amostras de 1961 sugeriram que havia uma conexão entre o incidente que inspirou o filme e o de 1991. A vilã da história (a verdadeira neste caso) seria a alga2 diatomácea Pseudo-nitzschia produtora da toxina conhecida como ácido domóico3 . O problema todo teria começado quando a região de Capitola experimentou um boom imobiliário. Com mais famílias vivendo nas proximidades da praia a quantidade de dejetos aumentou, o que estimulou o crescimento das algas (mais matéria orgânica na água serviria de fertilizante para elas) que por sua vez eram alimento dos peixes4 . O súbito aumento de produtores permitiu um rápido crescimento das populações consumidoras, atingindo os níveis mais altos como as gaivotas e os pelicanos. O fenômeno visto é conhecido pela ciência como bioacumulação e biomagnificação. Nada mais é do que o acúmulo sucessivo, que são Psittaciformes, galinhas são Galliformes e gaivotas são Charadriiformes. O purismo biológico me força a dizer que melhor seria a tradução passar para As aves. 2 Alga é um termo genérico para designar uma série de organismos produtores. Podem ser procariotos (por isso chamadas de cianobactérias) fotossintetizantes e eucariotos (aqui entram organismos unicelulares como a Pseudo-nitzschia até multicelulares como o sargaço) também fotossintetizantes. 3 O ácido domóico mimetiza a ação do glutamato no cérebro causando um desbalanço no funcionamento dos seus receptores. O resultado é severo dano na região do hipocampo, causando desorientação, vômito e em casos extremos a morte. 4 Aqui sou obrigado a fazer uma pequena digressão. O senso comum classifica como Peixes (ou Pisces) animais vertebrados com brânquias, nadadeiras e escamas, no entanto eles não formam um grupo coeso aceito pela taxonomia. Isso porque não possuem um ancestral comum exclusivo do qual derivam todos os grupos. A este grupo “artificial” damos o nome de “parafilético”. Em oposição temos um grupo “monofilético” (mamíferos por exemplo) que satisfaz a condição acima. Esse aglomerado de animais hoje são classificados em três grupos: Osteichthyes (do grego “peixes ósseos”) que formam o mais diverso e seria o “peixe” típico; Chondrichthyes (do grego “peixes cartilaginosos”) formados por tubarões e raias; e Agnatha (do grego “sem mandíbula”) formados pelas lampréias e o peixe-bruxa.
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Manchete do jornal local Santa Cruz Sentinel dando ĂŞnfase para o incidente insĂłlito. https://briantissot.com/2015/12/13/return-of-the-birds/
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10 Filmes para gostar (ainda mais) de Biologia pode ser de um isótopo radiativo, metal pesado ou toxina, em diferentes níveis da cadeia alimentar chegando ao máximo nos níveis superiores chamados consumidores. Imaginemos que cada alga (produtor) produza 1 unidade de ácido domóico (uad). Cada zooplâncton (consumidor primário) ingere por dia 100 algas, ou seja 100 uad. Cada peixe pequeno (consumidor secundário) ingere 100 zooplânctons por dia o que daria 10000 de uad. Cada peixe grande ingere 10 peixes pequenos por dia o que daria 1000000 uad. E finalmente cada gaivota ingere 10 peixes por dia o que corresponderia a 100000000 uad. É fácil perceber que a quantidade de ácido domóico aumenta exponencialmente de uma ponta a outra da cadeia alimentar. Dessa forma, o consumidor final (que pode ser a gaivota, o pelicano e mesmo nós humanos) indiretamente consumiu uma quantidade gigantesca de algas produtoras de toxina. O que fica claro é que anterior ao desequilíbrio mental das aves houve um desequilíbrio nas populações produtoras. A melhor analogia que posso fazer para explicar o delicado equilíbrio de ecossistemas é com o castelo de cartas. Todos sabem que a manutenção do castelo depende fundamentalmente de todas as cartas postas em lugares específicos. Se removermos uma carta a estrutura toda pode ruir. Cada carta desempenha uma função estruturante importante e está ligada mesmo que indiretamente uma com a outra. Quero dizer que as primeiras cartas da base, mesmo não tocando as últimas do topo, estão ligadas umas com as outras pela estrutura como um todo. Uma depende da outra para se sustentar. Ora, a manutenção de um ecossistema se comporta de modo semelhante. Cada elemento biológico do sistema se interconecta entre si e com os fatores ambientais. Removendo um destes elementos ou perturbando-o pode-se gerar um efeito cascata que interfere na coesão do sistema. O castelo acabou ruindo para o lado das gaivotas no episódio de Capitola mas, às vezes, pode ruir para o nosso lado.
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10 Filmes para gostar (ainda mais) de Biologia O exemplo mais famoso talvez seja o desastre de Minamata no Japão. Durante mais de quarenta anos a corporação Chisso (empresa química bastante importante) derramou dejetos ricos em mercúrio na baía de Minamata no sul do Japão. Na década de 50 começaram a surgir vários casos de envenenamento cujos sintomas variavam de fraqueza muscular, perda da visão periférica e danos na fala e audição até insanidade, coma e morte vitimando em sua maioria pescadores. Além da contaminação direta através da água, o consumo de peixes também contribuiu para o desastre que ainda hoje mostra efeitos com o aparecimento de doenças congênitas. O incidente gerou uma profunda mudança na legislação ambiental no Japão, com o endurecimento das leis e o surgimento de sistema de tratamento e pagamento de indenização para as vitimas. Mais do que isso, o desastre de Minamata serviu de alerta para o problema do despejo indevido de lixo em áreas naturais. É difícil não antropomorfizar a questão, mas a Natureza de certa forma “se vinga” uma hora ou outra quando sofre qualquer perturbação. Infelizmente os efeitos devastadores dessa força normalmente vitimam pessoas menos favorecidas. Vingança. A meu ver o filme aqui tratado é em última análise sobre a vingança da Natureza sobre o Homem. Sobre Os pássaros, Hitchcock disse em entrevista concedida a Maurice Seveno: “Os pássaros estão cansados de serem mortos, depenados e comidos pelos homens. Então eles decidem se vingar”. Não creio que o cineasta inglês tenha tido a intenção de transformar seu filme num libelo contra as constantes agressões ao meio ambiente. Mesmo assim, conhecendo a história por trás desde seu começo, não dá para não pensar que a obra possa servir para tal. Nada melhor para demonstrar esta tese do que a tomada final quando os protagonistas fogem numa caminhonete enquanto a propriedade e onde mais pudesse chegar os olhos estão tomados pelas gaivotas. É a Natureza novamente expulsando o Homem do Paraíso.
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Leitura complementar Relato de Evan sobre o processo de criação de Os pássaros: Hunter, Evan (1997a). Me and Hitch. London: Faber and Faber. ISBN 0-571-19306-4 Trabalho que lançou luz à origem dos eventos de 1961: Bargu, S., Silver, M. W., Ohman, M. D., Benitez-Nelson, C. R., & Garrison, D. L. (2012). Mystery behind Hitchcock's birds. Nature Geoscience, 5(1), 2-3. # 10 #
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Como os micro-organismos podem ganhar uma guerra? Por que o King Kong não conseguiria ser tão grande quanto o mostrado em tela? Como funciona a relação parasitária de criaturas que inspiraram Alien, o Oitavo Passageiro? Essas e outras perguntas são respondidas por Leandro Pio de Sousa em 10 Coisas para Gostar (mais de) Biologia - ensaios de biologia e cinema. Com objetivo de aproximar o público do cinema aos elementos das Ciências Biológicas, ao longo de oito capítulos, o Leandro nos convida para um mergulho em intrigantes elementos da biologia explorados pelas lentes das grandes produções do cinema. Apresentando uma linguagem bastante amigável, o autor discorre sobre complexas questões biológicas de forma mais simples tomando como base renomadas obras de ficção. Durante a leitura identificamos um processo de decodificação da linguagem especializada que tanto afasta os acadêmicos do público mais amplo,. Assim, este livro se propõe a estabelecer uma ponte para qualquer pessoa ter contato com o conhecimento acadêmico que deveria ser mais difundido e não restrito apenas àqueles que vivem de estudá-lo.
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