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Luxação recidivante de ATM tratada com hemoterapia e fixação intermaxilar

SAULO CHATEAUBRIAND NASCIMENTO1| MARCELO VINICIUS DE OLIVEIRA1 | GUSTAVO CAVALCANTI ALBUQUERQUE1 | VALBER BARBOSA MARTINS1 | JOEL MOTTA JÚNIOR1

RESUMO

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Introdução: A luxação da ATM ocorre quando o côndilo se move para fora da fossa glenoide, travando anteriormente a eminência articular. Essa condição é denominada de recidivante quando os episódios passam a ser frequentes. Objetivo: O presente trabalho objetiva relatar o caso de uma paciente com luxação recidivante da ATM tratada de forma conservadora, por meio de injeção de sangue autólogo (ISA) intra-articular e nos tecidos pericapsulares, associado à fixação intermaxilar (FIM) por três semanas. Relato de caso: Paciente com 31 anos de idade, sexo feminino, apresentava como queixa principal episódios frequentes de “queda” da mandíbula, iniciados após trauma sofrido dois anos antes da consulta. Constataram-se estalidos e crepitações nos movimentos de abertura e fechamento da boca, luxação da ATM bilateral, dor local, disfonia, disfagia e disartria. Verificou-se, por meio de medição com paquímetro, que o limite de abertura que ocasionava luxação era a partir de 30 mm. Conclusão: A paciente respondeu satisfatoriamente ao tratamento, sem recorrência de episódios de luxação. A ISA associada à FIM mostrou-se um método seguro, simples e econômico para o tratamento de luxação recidivante da ATM, além de ser uma abordagem conservadora e com altos índices de sucesso.

Palavras-chave: Articulação temporomandibular. Luxações articulares. Transtornos da articulação temporomandibular.

1 Universidade do Estado do Amazonas, Serviço de Residência em Cirurgia e Traumatologia

Bucomaxilofacial (Manaus/AM, Brasil).

» Os autores declaram não ter interesses associativos, comerciais, de propriedade ou financeiros, que representem conflito de interesse, nos produtos e companhias descritos nesse artigo.

» O(s) paciente(s) que aparece(m) no presente artigo autorizou(aram) previamente a publicação de suas fotografias faciais e intrabucais, e/ou radiografias. Como citar: Nascimento SC, Oliveira MV, Albuquerque GC, Martins VB, Motta Júnior J. Recurrent luxation of TMJ treated with hemotherapy and intermaxillary fixation. J Braz Coll Oral Maxillofac Surg. 2020 May-Aug;6(2):27-31. DOI: https://doi.org/10.14436/2358-2782.6.2.027-031.oar

Enviado em: 02/07/2018 - Revisado e aceito: 22/09/2018

Endereço para correspondência: Saulo Chateaubriand Nascimento Av. Codajás, 198, Cachoeirinha – Manaus/AM – CEP: 69.065-130 E-mail: saulo.chateaubriand@hotmail.com

INTRODUÇÃO

A articulação temporomandibular (ATM) é formada pela fossa mandibular do osso temporal, côndilo mandibular, disco articular, além de ligamentos e músculos. De particular complexidade, essa articulação é classificada como ginglimoartroidal, devido aos seus movimentos de dobradiça e deslizamento. Em condições de normalidade, há um movimento relativamente suave do côndilo quando esse translada para baixo e além da eminência articular, auxiliado pela rotação posterior do disco sobre o côndilo durante a translação1 .

Na luxação da ATM, o côndilo se desloca para fora da fossa mandibular, com travamento anterior à eminência articular, mantido assim pelo espasmo dos músculos da mastigação. É denominada de habitual, recidivante ou recorrente, quando se torna frequente e progressivamente mais grave, estando associada à hipermobilidade da mandíbula e à inclinação da eminência articular, na maior parte dos casos. Esse tipo de luxação é relatado entre 3 e 7% da população geral2 .

Quanto à patogênese, relacionam-se fatores como frouxidão dos ligamentos da ATM, desarranjos na cápsula articular, eminência articular com tamanho ou projeção anormal, hiperatividade ou espasmo muscular, desordens neurológicas e psiquiátricas3. Os episódios de luxação recorrente crônica acontecem geralmente como resultado de atividades comuns, como bocejos e risos, ou durante abertura bucal prolongada, tornando-se uma condição de considerável impacto negativo na rotina do paciente4 .

O diagnóstico é realizado por meio de análise da amplitude excessiva de mobilidade, identificando a impossibilidade de fechamento da mandíbula, devido à frouxidão ligamentar, além da presença de dor durante e após o episódio. Diferentemente da subluxação, na luxação recorrente crônica o paciente não consegue reduzir o côndilo de volta à posição normal sem a ajuda de um profissional. Exames de imagens, como tomografias e radiografias panorâmicas, são utilizados para avaliar as estruturas ósseas e identificar lesões5 .

Muitos tratamentos cirúrgicos e não cirúrgicos são descritos nos casos de luxação recorrente crônica. As abordagens cirúrgicas envolvem os ligamentos capsulares ou a estrutura óssea, entre elas: eminectomia, escarificação do tendão do músculo temporal, aumento da eminência articular pelo uso de enxerto aloplástico, plicatura da cápsula articular e uso de miniplacas na eminência articular. Já as técnicas não cirúrgicas correspondem à injeção de agentes esclerosantes na ATM (como sangue autólogo e tetradecilsulfato de sódio 3%), bloqueio maxilomandibular e exercícios musculares2,6 .

A injeção de sangue autólogo (ISA) corresponde a sangue injetado nos tecidos pericapsulares (TC) e no espaço articular superior (EAS), formando adesões intercompartimentais, através de tecido fibroso. Trata-se de uma abordagem segura, com mínimas complicações, podendo ser usada repetidamente. No entanto, deve-se ter atenção quanto ao desenvolvimento de anquilose fibrosa ou óssea e degeneração da cartilagem articular. Levando em consideração o fato de que para se obter sucesso no tratamento é necessária restrição do movimento mandibular, tem-se demonstrado que, combinando a fixação intermaxilar (FIM) à injeção de sangue autólogo, obtém-se um resultado consideravelmente mais eficiente, ajudando no desenvolvimento da fibrose dentro da cápsula articular7 .

Assim, a finalidade do presente trabalho é descrever a abordagem terapêutica utilizada em um caso de luxação recidivante de ATM, com associação de injeção de sangue autólogo e fixação intermaxilar.

RELATO DE CASO

Paciente com 31 anos de idade, sexo feminino, em concordância com um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), apresentou relato de episódios frequentes de “queda” de mandíbula como queixa principal, iniciados após trauma sofrido dois anos antes da consulta. Declarou ter iniciado o uso de mentoneira por recomendação profissional há nove meses, uma vez que os episódios eram frequentes e ocorriam a partir de determinado grau de abertura bucal e, até mesmo, se a paciente falasse por um período mais prolongado.

Constataram-se estalidos e crepitações nos movimentos de abertura e fechamento da boca, luxação da ATM bilateral, dor local, disfonia, disfagia e disartria. Verificou-se, através de medida com paquímetro, que o limite de abertura que ocasionava luxação era a partir dos 30 mm.

O exame de ressonância nuclear magnética mostrou redução dos espaços articulares, alterações degenerativas das ATMs, com deslocamentos anterolaterais dos discos articulares e ruptura dos mesmos, além de hipoexcursão condilar bilateral. A estrutura óssea foi analisada por meio de tomografia computadorizada de feixe cônico (TCFC), com reconstrução panorâmica, observando-se o côndilo mandibular posicionado à frente da eminência articular do osso temporal (Fig. 1).

A abordagem terapêutica escolhida foi por meio da associação de injeção de sangue autólogo e bloqueio maxilomandibular (BMM), a fim de favorecer o desenvolvimento de tecido fibroso em um ambiente com movimentação restrita.

O procedimento cirúrgico de artrocentese foi realizado sob anestesia geral. Delimitou-se uma linha de referência do tragus ao canto do olho, marcando um ponto 10mm anteriormente ao tragus e 2mm abaixo da linha de referência, no qual foi inserida uma agulha descartável estéril 40/12. O segundo ponto foi marcado a 20mm do tragus e a 10mm abaixo da linha de referência, no qual foi inserida a segunda agulha. A manipulação mandibular confirmou a correta localização das agulhas no espaço articular.

Primeiro, por meio da primeira agulha, usou-se 20 ml de soro fisiológico 0,9% para lavagem da ATM. A segunda agulha foi retirada e, em seguida, 5 ml de sangue foram coletados da fossa cubital, dos quais 4 ml foram injetados no espaço articular superior e 1 ml no tecido pericapsular de ambas as articulações (Fig. 2), seguido de fixação intermaxilar utilizando parafusos de IMF com elástico ortodôntico pesado (Fig. 3).

O bloqueio foi retirado na consulta de pós-operatório de três semanas, com retorno da paciente após um, três, seis, nove e dezesseis meses, apresentando movimentos mandibulares sem restrições, com abertura bucal de 35mm, sem sintomatologia dolorosa e sem episódios de luxação da ATM, além de radiografias panorâmicas digitais apresentando normalidade das estruturas.

Figura 1: Reconstrução panorâmica de TCFC.

Figura 2: Injeção de sangue autólogo no espaço articular superior e tecidos pericapsulares.

Figura 3: Parafusos IMF para bloqueio maxilomandibular.

DISCUSSÃO

Em uma revisão sistemática da literatura, foi observado que a principal etiologia das luxações de ATM é o trauma, correspondendo a cerca de 60% dos casos, podendo também ser decorrentes de abertura excessiva da boca devido ao bocejo, riso, canto, abertura prolongada da boca devido a procedimentos orais e otorrinolaringológicos, e abertura vigorosa da boca devido a procedimentos anestésicos e endoscópicos8 .

Diz-se que a luxação é denominada recidivante quando os episódios passam a ser frequentes, piorando progressivamente. Quanto à prevalência, é relatado que cerca de 3 a 7% da população apresentam esse tipo de luxação2,5. Nesse trabalho, foi apresentada a conduta de tratamento de uma paciente com episódios frequentes de deslocamento condilar há cerca de dois anos, os quais ocorriam ao menor esforço e a partir de determinado grau de abertura bucal, tendo por diagnóstico luxação recorrente crônica de ATM.

A escolha pelo tratamento depende da análise de fatores predisponentes e da morfologia da ATM, bem como dos riscos e benefícios entre as técnicas, classificadas em cirúrgicas e não cirúrgicas. Cirurgicamente, são usados materiais de fixação interna ou enxertos, a fim de criar uma barreira mecânica que impeça a excursão do côndilo anteriormente à eminência articular. Outra medida é eliminar o fator que gera o travamento, como nos casos de eminência articular inferiormente estendida. No entanto, as técnicas cirúrgicas requerem internação hospitalar, anestesia geral e dissecção de tecidos para acesso à ATM. Portanto, envolvem riscos de complicações e de ocorrências pós-operatórias, como parestesia do nervo facial, edema, dor e infecção3 .

As luxações recorrentes crônicas respondem melhor às abordagens conservadoras quando estão relacionadas à distonia oromandibular. Métodos cirúrgicos não necessariamente oferecem os melhores resultados de tratamento. Deve-se, antes disso, optar por técnicas mais conservadoras, que devem ser realizadas após avaliação detalhada e planejamento do tratamento8 . A partir do diagnóstico, foi elaborado um plano de tratamento baseado em dados da literatura que incentivam nas primeiras abordagens as técnicas conservadoras, optando-se pela injeção de sangue autólogo e fixação intermaxilar.

A injeção de sangue autólogo para tratamento de luxação condilar recorrente foi relatada primeiramente por Schulz, em 1973. É uma técnica conservadora que pode ser executada tanto sob anestesia local quanto por anestesia local combinada com sedação ou anestesia geral6,7 .

O mecanismo fisiopatológico é similar ao de outras articulações quando sofrem sangramento. Primeiramente, a cápsula articular e os tecidos periarticulares são distendidos pela injeção de sangue, a qual promove uma reação inflamatória através da liberação de mediadores pelas plaquetas e células mortas ou lesionadas, provocando alteração na microcirculação local, com exsudação plasmática pela vasodilatação, ocasionando edema, dificultando, assim, a movimentação da articulação. Posteriormente, há formação de coágulo sanguíneo que, associado a formas de tecido fibroso solto, mantém a rigidez articular. Quando esse tecido amadurece, há limitação permanente da movimentação da articulação4 .

Um estudo realizado com 30 pacientes, divididos aleatoriamente em dois grupos, nos quais um recebeu injeção de sangue autólogo apenas em espaço articular superior e o outro recebeu tanto no EAS quanto nos tecidos periarticulares (TP), mostrou através de radiografia digital dos pacientes do segundo grupo a presença da cabeça condilar posterior à eminência articular, em posição aberta, em vez de ser anterior a ela antes da injeção. Esse achado foi ausente no primeiro grupo, que recebeu injeção de sangue autólogo apenas no EAS9. Carneiro Jr et al.10 relataram um caso em que, com auxílio de um artroscópio, realizaram a aplicação de sangue autólogo no EAS e TP, cujo acompanhamento de dois anos demonstrou a resolução do quadro de luxação recidivante da ATM. A técnica executada no presente trabalho utilizou injeção de 4 ml de sangue no EAS e 1 ml nos TP em ambas as articulações da paciente. A fixação intermaxilar utilizada como tratamento isolado é recomendada por um período de três a seis semanas e pode ser usada como complemento para outros métodos de tratamento, como o uso de agentes esclerosantes. As desvantagens dessa técnica incluem o requisito para a adesão do paciente e a sua falta de utilidade em pacientes edêntulos7. Utilizando parafusos IMF e elástico ortodôntico pesado, a fixação intermaxilar foi mantida por um período de três semanas.

Em ensaio clínico prospectivo, randomizado e controlado realizado em 2013, foi avaliada a eficácia do tratamento da luxação recorrente crônica com inje-

ção de sangue autólogo isolada, FIM isolada e a técnica de ISA e FIM combinadas. Os resultados demonstraram que o uso da FIM isolada alcançou melhores resultados do que a ISA isolada. A técnica combinada não apresentou recorrência de deslocamento em nenhum caso do estudo. Foi comprovada significativa diferença nos resultados entre o grupo combinado e as técnicas isoladas; no entanto, não houve considerável diferença entre os grupos de ISA e FIM individualizados, ainda que essa última técnica tenha sido considerada melhor diante da primeira7. Corroborando com esses dados, obteve-se resultado efetivo utilizando as técnicas associadas, conseguindo as vantagens da formação de adesões fibrosas intercompartimentais criadas pela injeção de sangue na ATM, favorecida pela imobilização oferecida pela fixação intermaxilar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A luxação recorrente crônica abordada com associação de injeção de sangue autólogo e fixação intermaxilar apresenta resultados consistentes como tratamento conservador. Apesar da não visualização direta das estruturas da ATM, trata-se de uma técnica de simples execução quando planejada adequadamente, com baixo índice de complicações e recuperação pós-operatória com baixa morbidade, quando comparada à cirurgia aberta.

ABSTRACT Recurrent luxation of TMJ treated with hemotherapy and intermaxillary fixation

Introduction: Dislocation of TMJ occurs when the condyle moves out of the glenoid fossa, previously locking the joint eminence. This condition is called recurrent when episodes become frequent. Objective: The aim of this work is to report a case of a patient with recurrent

TMJ treated conservatively, through intra-articular autologous blood injection (ISA) and pericapsular tissue, associated with intermaxillary fixation (FIM) for three weeks. Case report: A 31-year-old female patient with main complaint of frequent episodes of mandibular “fall”, initiated after trauma two years before the consultation. Click and crackling were observed in the opening and closing movements of the mouth, bilateral TMJ dislocation, local pain, dysphonia, dysphagia, and dysarthria. It was verified, by means of a caliper, that the degree of opening that caused dislocation was from 30 mm. Conclusion: The patient responded satisfactorily to the treatment, without recurrent episodes of dislocation. The ISA associated with FIM has been shown to be a safe, simple and economical method for the treatment of recurrent TMJ dislocation, being a conservative approach with high success rates. Keywords: Temporomandibular joint. Joint dislocations.

Temporomandibular joint disorders.

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