Comunidades Tradicionais - a sabedoria de nossos povos

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COMUNIDADES TRADICIONAIS

a sabedoria de nossos povos

COMUNIDADES TRADICIONAIS

a sabedoria de nossos povos e nós JOÃO RIPPER

Patrocínio Realização
Tacuru-MS | Indígena Guarani-Kaiowá na
Aldeia Jaguapiré
Alcântara-MA | Quilombo São Raimundo

AMIGOS

O Ripper é meu interlocutor, companheiro, amigo de muitas e muitas jornadas. Desculpem a pretensão: não é só meu! É nosso!!! O papo rola solto em qualquer assunto, político ou pessoal. Aliás, qual assunto não é político? Somos viciados em fotografia, é bem verdade! Mas a vida e seus desafios entram pelos sete buracos das nossas cabeças e nosso tempo é sempre curto! – e cada vez mais precioso!!!

Os afagos chegam e se demoram... o carinho e o respeito extrapolam... Mais sintonizados.... às vezes nossos olhares conversam assim... sem palavras e até à distância. Ripper é meu irmão!

Nair Benedicto

O que nos dizem as fotos do Ripper?

À medida em que o nosso olhar vai passeando pelas imagens, cresce a percepção de que, mais além do domínio técnico e da esmerada composição, a questão central reside na profunda interação do fotógrafo com os fotografados, em uma espécie de cumplicidade que se revela no modo como os personagens das comunidades documentadas interagem com o visitante.

É como se as imagens estivessem sendo gentilmente cedidas ao fotógrafo, estabelecendo uma espécie de autoria compartilhada, percebida nos olhares afetuosos com que o fotógrafo costuma ser recebido ou até mesmo na diluição de sua presença na cena, evidenciando uma espécie de pertencimento ao território documentado.

Muitas fotógrafas e fotógrafos foram exemplos para mim, quando ainda não tinha muita consciência sobre a importância da imagem como instrumento pedagógico.

O Ripper, Juca Martins e a querida Nair Benedicto rechearam minha vida de sementes de amor pelas imagens que ajudam a transformar a história.

Meu querido amigo e irmão Ripper leva as imagens como uma inquietação na sociedade que nos levam a refletir sobre as profundas transformações que estamos passando.

O amor do Ripper para com os povos indígenas, quilombolas, seringueiros, sem terra e pela natureza, nos contagia de esperança recheada de UTOPIA.

Viva o João Roberto Ripper o fotógrafo do belo que mostra a realidade triste que nos impulsiona a ter esperança e lutar por um mundo melhor.

Douglas Mansur

PREFÁCIO

Embora a fotografia seja retrato de um momento, a eternização de um singular espaço de tempo, uma imagem é capaz de despertar os mais profundos sentimentos e emoções. É uma imersão que revela não só o que está por fora, o que é visível, mas que também traz à tona o que está por dentro de nós mesmos, nossa relação com o mundo, o cotidiano e a vida.

Na fotografia documental humanística de João Ripper, os indivíduos são mais do que coadjuvantes da arte. Eles se tornam protagonistas de suas próprias histórias. Histórias contadas através de olhares profundos e expressões marcantes, que trazem como pano de fundo os seus fazeres típicos, sagrados, particulares, como o modo de se vestir, o seu jeito de levar a vida e até mesmo o que servem à mesa.

Por meio da interconexão entre costumes, crenças e a busca por um bem maior, percebemos que uma comunidade não compartilha apenas um espaço geográfico e uma época específica. Ela é influenciada por elos invisíveis que resultam de fatos, vivências e experiências em comum que atravessam gerações. De laços que foram construídos por memórias, que reproduzem

histórias e imprimem a sua verdadeira identidade através das fotografias.

Fotografar é também dar voz a essas comunidades. Uma voz que é, sim, de silêncio, mas que se transforma em algo estrondoso, trazendo até nós uma realidade oculta, por vezes até subliminar. Uma beleza ainda disfarçada, despercebida mas que encanta, emociona.

As fotos, as paisagens e os povos registrados aqui são um verdadeiro convite de Ripper a esquecermos as ausências e valorizarmos as presenças. A presença da vida, do que é belo, da sabedoria popular em sua mais profunda essência. Daquilo que transcende o que pode ser visto, tocado, e entrega a capacidade de sentir que há em cada um de nós.

Agora, começa uma verdadeira viagem de descobertas, durante a qual será possível explorar os mais diversos cantos do nosso país. Um Brasil revelado através de lentes sensíveis e de um olhar real, mas que encontra poesia em cada detalhe. Uma rica jornada com sabor de diversidade, que alimenta a alma e vai ao encontro daquilo em que a Sapore mais acredita: fazer diferente para fazer a diferença.

Serra do Espinhaço, Diamantina-MG
Comunidade Vargem do Inhai
Alcântara-MA | Corrida de saco no Quilombo Agrovila Marudá

PALAVRAS DO AUTOR

Este livro, para mim, tem um significado muito especial, fruto de uma experiência adorável.

Em primeiro lugar, porque é sobre as comunidades tradicionais brasileiras, e eu sempre achei fantástico fotografar essas comunidades, escutar as pessoas, entender suas histórias e seus modos de vida, estabelecer laços de afeto com elas e compreender a forte relação que mantêm com suas raízes. Esse é o trabalho que tenho desenvolvido ao longo de toda a minha trajetória profissional. Em segundo lugar, porque o livro foi feito junto com mais sete profissionais por quem eu tenho enorme carinho e a maior admiração pelo trabalho que fazem com populações tradicionais. E isso fez com que esta fosse uma produção coletiva, um livro com grandes amigos.

Além disso, foi dedicado à pessoa cujo trabalho considero um dos mais lindos nesse campo, embora interrompido por forças do destino. Falo da querida e saudosa Valda Nogueira, que me acompanhou durante anos nas andanças pelas comunidades tradicionais, e a quem fiz questão de homenagear. Então, por tudo isso, considero que nosso trabalho é de grande importância na defesa desses povos originários, e espero que ele possa contribuir para que muitos outros conheçam melhor o nosso Brasil e as tantas belezas que pudemos retratar dos habitantes dessas comunidades.

Alcântara-MA | Quilombo Itamatatiua

14 Apanhadores de Flores Sempre-Vivas

Diamantina-MG

28 Caatingueiros

Carnaíba-PE / Floresta-PE / Porteirinha-MG / Taquaritinga-PE

36 Caiçaras

Cananeia-SP / Guaraqueçaba-PR / Paranaguá-PR / Ubatuba-SP

44 Castanheiras

Laranjal do Jari-AP

52 Catadoras de Mangaba

Natal-RN

60 Cipozeiras

Garuva-SC

66 Faxinalenses

Turvo-PR

72 Fundo e Fecho de Pasto

Canudos-BA

78 Geraizeiros

Grão Mogol-MG / Novo Horizonte-MG / Rio Pardo de Minas-MG

86 Indígenas

Antônio João-MS / Arueira-MS / Caarapó-MS / Cacoal-RO / Conceição do Araguaia-PA / Jordão-AC / Manaus-AM / Nioaque-MS / Paranhos-MS / Ponta Porã - MS / SantarémPA / São Félix do Xingú-PA / Senador José Porfírio-PA / Tacuru-MS / Tomé Açu-PA / Viana-MA

108 Marisqueiras

Maragogipe-BA / Maraú-BA

116 Quebradeiras do Coco Babaçu

Lago do Junco-MA / Viana-MA

124 Quilombolas

Alcântara-MA / Cavalcante-GO / Macapá/AP / Matias Cardoso-MG / Pai Pedro-MG / Potengi-CE / Salvaterra-PA / Santo Amaro-BA / Serrano do Maranhão-MA / Ubatuba-SP

140 Ribeirinhos

Afuá-PA / Arroio Grande-RS / Barra-BA / Bom

Jesus-PI / Caseara-TO / Laranjal do Jari-AP / Matias

Cardoso-MG /Miranda-MS / Porto Velho-RO

150 Seringueiros

Xapuri-AC

158 Vazanteiros

Matias Cardoso-MG

164 Veredeiros

Chapada Gaúcha-MG

COMUNIDADES TRADICIONAIS

Comunidades tradicionais são grupos humanos que têm uma relação histórica e duradoura com um território específico, onde compartilham modos de vida, conhecimentos, práticas culturais e valores transmitidos ao longo de gerações.

Essas comunidades costumam viver em áreas rurais, florestas, savanas, litorais ou outros ambientes naturais, e desenvolveram uma profunda interdependência com o meio ambiente em que se encontram.

As comunidades tradicionais brasileiras desempenham um papel fundamental na riqueza cultural e na diversidade do país, sendo representativas de uma multiplicidade de grupos étnicos, culturas e modos de vida. Essas comunidades são um tesouro vivo de conhecimentos, práticas e tradições que enriquecem a identidade nacional e contribuem para a preservação da biodiversidade.

Povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, faxinalenses, entre outros, muitas vezes vivem em áreas de grande valor ambiental, como florestas, rios e litorais. Sua subsistência e sua cultura estão intrinsecamente ligadas a esses ambientes; em seu profundo respeito pela natureza, as comunidades tradicionais adotam práticas sustentáveis de manejo dos recursos naturais.

Outro aspecto notável é a diversidade dessas comunidades, criando um mosaico cultural rico e variado em todo o país, motivo de orgulho e fascínio para todos os brasileiros. Cada uma delas apresenta um modelo próprio de organização social, costumes, rituais religiosos e crenças, entre outras características.

Infelizmente, as comunidades tradicionais também enfrentam desafios significativos, como o aumento do interesse econômico por suas terras e seus recursos naturais, a perda de tradições devido à influência da cultura dominante, e a falta de acesso a serviços básicos como educação e saúde.

É crucial que o Brasil reconheça e respeite os direitos dessas comunidades, garantindo a proteção de suas terras e culturas, bem como conte com apoio

para o desenvolvimento sustentável de suas comunidades.

Em 2007, o Ministério do Meio Ambiente instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT com o objetivo de fortalecer, garantir e reconhecer os direitos desses indivíduos sobre seus territórios e suas culturas.

Apesar de as políticas públicas sociais intervirem de certo modo nas ações externas que afetam a continuidade das comunidades tradicionais, os indivíduos que as integram entenderam que somente com a união entre eles é que poderiam reverter situações ameaçadoras. Por isso, muitas delas constituíram associações, cooperativas e instituições para expor e ter suas necessidades atendidas dentro da legalidade e da legitimidade de suas causas.

Como a extensão territorial brasileira é enorme e as comunidades tradicionais interagem diretamente em seu meio, é notória a existência de muitas delas com grandes diferenças entre si. São mais de 25 comunidades tradicionais organizadas, com diferentes denominações, que lutam pelo direito de preservar seu modo de vida: vazanteiros, isqueiros, apanhadores de sempre-vivas, seringueiros, andirobeiras, retireiros e assim por diante. Essas comunidades são representantes da nossa cultura, das nossas riquezas e dos nossos ecossistemas, ou seja, demonstram toda a mescla que é o povo brasileiro.

Nesta obra, apresentamos dezessete dessas comunidades, espalhadas por nosso vasto território nacional. Um pequeno recorte da grandeza das tradições culturais de nossa nação.

É respeitando as diferentes formas de viver e pensar e preservando relações sadias entre diversificadas culturas que construiremos, com base no diálogo e na troca de experiências, o país que sonhamos. Que seja bom e justo para todos, para aqueles que já estavam nesta terra, para quem foi trazido à força e para os que aqui aportaram. Afinal, hoje somos todos um só.

Dourados-MS

Serra do Espinhaço, Diamantina-MG | Comunidade Mata dos Crioulos (página anterior)

Serra do Espinhaço, Diamantina-MG | Comunidade Raiz

APANHADORES DE FLORES SEMPRE-VIVAS

Os apanhadores de flores sempre-vivas habitam o sul da Serra do Espinhaço, entre as cidades mineiras de Diamantina, Presidente Kubitschek, Buenópolis, e se estende por mais algumas dezenas de municípios da porção meridional da cadeia montanhosa conhecida pelos habitantes da região como Serra de Minas ou Serra Mineira. O nome “sempre-vivas” faz referência às espécies características do bioma cerrado.

Conhecedores da fauna e da flora locais, os apanhadores de flores sempre-vivas desenvolvem há séculos uma relação com o território que transcende a noção de propriedade à qual estamos habituados. Isso porque essas comunidades tradicionais agroextrativistas, como explica a pesquisadora Fernanda Monteiro, da Universidade de São Paulo – USP, “[...] são descendentes dos indígenas que ocupavam a região, dos africanos que aqui foram escravizados e dos portugueses. Essas comunidades rurais, que se autodenominam ‘apanhadores de flores sempre-vivas’, têm uma identidade territorial e expressam um modo de vida em que combinam esses ambientes”.

Inseridos em um regime agrário de uso comunitário das terras em que o laço de parentesco é a principal referência para o direito de uso, os grupos familiares desenvolvem o plantio e a pecuária de maneira coletiva e organizada, de acordo com as estações do ano. Na época das chuvas, os apanhadores de sempre-vivas fazem a coleta das plantas no pé da serra. Nos meses mais secos, sobem o morro, a mais de mil metros de altitude, para encontrar as flores, e é justamente nesse momento, no alto da serra, que as diferentes comunidades se encontram. Durante esse período, que dura de um a três meses, suas moradias passam a ser as lapas ou os ranchos. Além das flores, são apanhados botões, cipós, folhas, sementes e frutos secos, destinadas ao mercado de plantas ornamentais.

O modo de vida dos apanhadores de flores sempre-vivas foi, em 2020, o

primeiro a ser reconhecido no Brasil como Patrimônio Agrícola Mundial. A candidatura brasileira do Sistema Agrícola Tradicional dos Apanhadores de Flores Sempre-vivas (SAT – Sempre-vivas) ao programa de reconhecimento de Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM) da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO-ONU), ocorreu em junho de 2018, por ocasião do I Festival dos Apanhadores e Apanhadoras de Sempre-vivas, que aconteceu na cidade de Diamantina, organizado pela Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex) e em parceria com diversos núcleos de estudos das universidades públicas do entorno. Esse programa, criado em 2002, nasceu com o intuito principal de fortalecer e preservar patrimônios agrícolas mundiais que combinam a biodiversidade agrícola com um valioso legado cultural e com ecossistemas resistentes.

A garantia do modo de vida e a salvaguarda do SAT Sempre-vivas figuram como a luta primordial dessas comunidades, que esperavam obter maior respaldo dos governos municipais e estaduais após o reconhecimento pela ONU, mas que, além disso, há anos exigem medidas que possibilitem a permanência e a reprodução da vida no território em que nasceram e aprenderam a viver.

Em carta política escrita para apresentar o Festival de 2018, as lideranças explicitaram os desafios enfrentados por essas comunidades após a criação e a implantação ilegal de Unidades de Conservação (UCs) de Proteção Integral, nos âmbitos estadual e federal, cobrindo os territórios das comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas que, como afirmam, acabaram por criar “um mosaico de exclusão social e violação de direitos humanos, gerando conflitos socioambientais sem precedentes na região”.

Além das UCs de Proteção Integral, a implantação do monocultivo de eucalipto e a ação de empresas mineradoras representam graves ameaças à reprodução do modo de vida dessas comunidades.

Serra do Espinhaço, Diamantina-MG
Comunidade Raiz

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Serra do espinhaço, Diamantina-MG
Comunidade Mata dos Crioulos
Serra do espinhaço, Diamantina-MG
Comunidade Vargem do Inhaí (dir)
Serra do Espinhaço, Diamantina-MG | Comunidade Vargem do Inhaí
Serra do Espinhaço, Diamantina-MG |
Comunidade Raiz
Serra do espinhaço, Diamantina-MG |
Comunidade Mata dos Crioulos
Serra do Espinhaço, Diamantina-MG
Comunidade Raiz
Serra do espinhaço, DiamantinaMG | Lapa de abrigo e moradia da Comunidade Mata dos Crioulos
Serra do espinhaço, Diamantina-MG | Comunidade Macacos
Serra do espinhaço, Diamantina-MG |
Comunidade Galheiros
Serra do espinhaço, Diamantina-MG |
Comunidade Macacos

CAATINGUEIROS

As comunidades de caatingueiros são grupos de pessoas que vivem nas áreas áridas e semiáridas do Nordeste do Brasil, conhecidas como caatinga, abrangendo os estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Maranhão, e também a faixa norte de Minas Gerais. Nessa região, desenvolveram modos de vida adaptados às condições climáticas desafiadoras próprias do local, onde a escassez de água é uma característica predominante.

A caatinga, termo indígena que significa “mata ou floresta branca” em tupi, é caracterizada por um clima semiárido com chuvas irregulares e imprevisíveis. A escassez de água é um dos maiores desafios enfrentados por essas comunidades, e a gestão da água é uma parte crucial de suas práticas de sobrevivência, entre elas o uso frequente de cisternas, barragens e outras estruturas para armazenar água da chuva.

Os caatingueiros dependem da agricultura de subsistência, da pecuária, da coleta de recursos naturais, como frutas e plantas, e de técnicas de convivência com o semiárido. Muitas comunidades desenvolveram tecnologias e práticas agrícolas adaptadas ao clima árido, como sistemas de cultivo de sequeiro e o uso de espécies vegetais resistentes à seca, como o xique-xique e o juazeiro, que são usadas tanto para alimentação como para fins medicinais.

Além da escassez de água, as comunidades dos caatingueiros enfrentam desafios como a desertificação, a degradação ambiental, a migração para áreas urbanas devido à falta de oportunidades econômicas e a exposição a eventos climáticos extremos.

O governo brasileiro e organizações não governamentais têm adotado programas para apoiar as comunidades dos caatingueiros, incluindo

Porteirinha-MG | Comunidade Rural Curral Velho (página anterior)

Taquaritinga-PE | Comunidade Sítio Baraúna Furada

projetos de segurança alimentar, fornecimento de água potável e incentivo a práticas de agricultura sustentável.

No Brasil, a Lei 12.288/2010, conhecida como Estatuto da Igualdade Racial, reconhece as comunidades quilombolas, mas não faz menção explícita às comunidades dos caatingueiros. Apesar disso, muitas delas estão buscando o reconhecimento e a proteção de seus territórios e direitos.

Os caatingueiros preservam várias tradições culturais, incluindo música, dança, culinária e práticas religiosas, que refletem a identidade nordestina. Essas tradições são passadas de geração em geração, a exemplo da capoeira, que combina elementos de dança e música, e das festas juninas de São João, Santo Antônio e São Pedro, tradicionais na região nordeste do Brasil.

A literatura de cordel, uma forma popular de poesia e narrativa impressa em folhetos, frequentemente baseada em histórias locais e no folclore, celebra, assim como a música, a resistência à seca, à opressão e à desigualdade social, tornando-se um veículo importante para transmitir a história e os valores dessas comunidades.

A produção de artigos de couro, como sandálias, chapéus e bolsas, é uma atividade econômica que aproveita o couro de animais criados na região; o artesanato de barro também utiliza matéria-prima local para fazer panelas, potes e outros objetos de cerâmica.

Ao logo de gerações, as comunidades dos caatingueiros vivem uma profunda conexão com o ambiente árido e suas práticas de sobrevivência, refletindo sua resiliência e adaptabilidade. A preservação de suas tradições culturais e a promoção de práticas de agricultura sustentável são cruciais para que enfrentem os desafios climáticos e socioeconômicos da região.

Carnaíba-PE | Comunidade Sítio Brejo dos Bezerras
Floresta-PE | Comunidade Roça Velha
Porteirinha-MG | Comunidade Rural Curral Velho

Ilha de Superagui, Guaraqueçaba-PR | Comunidade Caiçara (página anterior)

Ubatuba-SP | Comunidade Caiçara da Praia de Picinguaba

CAIÇARAS

Nas áreas costeiras dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e no norte de Santa Catarina, desenvolve-se a cultura tradicionalmente chamada “caiçara”.

De acordo com o pesquisador Antônio Carlos Diegues, fundador do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade Estadual de São Paulo (Nupaub/USP), “os caiçaras são uma mistura de povos indígenas já extintos, europeus de diversos países e negros, principalmente quilombolas, que, após processos de ocupação do interior devido aos diversos ciclos econômicos do Brasil colonial, ficaram relativamente isolados nessa estreita faixa de terra entre o mar e a serra [...]”.

O termo “caiçara” tem origem no vocábulo tupi-guarani caá-içara usado para fazer referência às estacas colocadas ao redor das tabas ou aldeias, além da armadilha feita de galhos fincados na água para cercar peixes. Com o passar do tempo, de acordo com Cristina Adams, o termo passou a ser o nome dado às palhoças construídas nas praias para abrigar as canoas e as ferramentas dos pescadores e, posteriormente, para identificar o morador de Cananeia. Mais tarde, o termo tornou-se associado a todos os indivíduos e comunidades do litoral dos estados do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro (Diegues, 1988).

A vida dos caiçaras está intimamente ligada ao mar. Tradicionalmente, dedicam-se à pesca e à agricultura, tirando proveito dos recursos naturais disponíveis na costa e suas áreas circundantes. Praticam uma pesca artesanal sustentável, usando técnicas tradicionais transmitidas ao longo das gerações.

A moradia caiçara tradicional, conhecida como “casa de pau-a-pique” ou “casa de taipa”, é construída com materiais naturais da região, como madeira e bambu, e é adaptada para o clima tropical.

A cultura caiçara é rica em festivais e celebrações, muitos dos quais envolvem música, dança e comida tradicional. A tradição oral também desempenha um papel importante na transmissão de lendas e mitos de geração em geração.

As comunidades caiçaras em geral enfrentam dois principais problemas, ambos relacionados ao cercamento de suas terras: o primeiro está ligado à

especulação imobiliária criminosa e à industrialização de áreas pesqueiras. O segundo, embora tenha surgido na década de 1950 para amenizar o primeiro, acabou privando os nativos do acesso ao território. Trata-se da criação das chamadas Unidades de Conservação, que não levam em conta o fator humano em sua relação de dependência com a natureza. “Essas Unidades [referindo-se ao Parque Nacional da Serra da Bocaina e à Área de Proteção Ambiental do Cairuçu] não me reconhecem como parte do ambiente”, diz Robson Possidonio, liderança de Trindade, em entrevista ao Repórter Brasil. “Não posso fazer roça, não posso retirar madeira para a canoa, não posso pescar.”

Diegues questiona o objetivo e a função de tais Unidades ao perceber que as populações nativas, que extraem todo o sustento da natureza, são prejudicadas ao serem retiradas do território em que mantinham inclusive uma relação de interdependência, com baixíssimo impacto ecológico: “Além de tirar os caiçaras de suas terras para a criação de condomínios, é preciso expulsá-los das reservas também, em nome do mito da natureza intocada?”.

Em 2007, com a criação do Fórum de Comunidades Tradicionais Angra–Parati–Ubatuba, surge a principal ferramenta de luta das comunidades caiçaras. A organização foi um marco porque, pela primeira vez, os caiçaras se uniram aos povos indígenas e aos quilombolas em um esforço conjunto pela garantia de seu território.

Em 2014, o segundo passo consistiu em ampliar em âmbito nacional a organização das comunidades tradicionais caiçaras, com o surgimento da Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras, reunindo representantes do litoral do Paraná ao Rio de Janeiro. A busca da população é por soluções viáveis que garantam a possibilidade de reprodução cultural dos modos de vida das pessoas do mar.

Nos dias atuais, em algumas áreas, o turismo sustentável se tornou uma fonte adicional de renda para as comunidades caiçaras. Visitantes podem aprender sobre a cultura e o estilo de vida caiçara enquanto contribuem para a economia local.

Cananéia-SP | Cerco artesanal em Comunidade Caiçara
Ubatuba-SP | Comunidade Caiçara da Praia de Picinguaba
Ilha de Superagui, Guaraqueçaba-PR |
Comunidade Caiçara
Ilha do Mel, Paranaguá-PR | Pesca da tainha em Comunidade Caiçara

Laranjal do Jari-AP | Castanheiras do Rio Iratapuru

CASTANHEIRAS

A Comunidade Tradicional Castanheira é identificada por suas ações na atividade de extração de castanha-do-brasil. Essa população é responsável por manter a floresta amazônica intacta, pois, sem os castanhais e todo o ecossistema que os sustentam, seu modo e seu meio de vida serão extintos. Seus integrantes são apelidados de “guardiões da mata”. Seus conhecimentos, não só em relação aos castanhais, mas também à interatividade e ao respeito pela floresta, são passados de geração em geração. Grande parte das pessoas que deram origem a essa atividade chegou aqui na década de 1960, para trabalhar na extração do látex, por meio de um programa do governo federal que incentivava a vinda, principalmente, de maranhenses e cearenses.

Entre os meses de março e julho, os castanheiros embarcam em canoas ou em embarcações maiores – os batelões –, levando equipamentos para a captura do fruto, sacas de mantimentos, como açúcar, óleo, arroz, manteiga, cebola, alho e sal, além de combustível e espingardas para caça para consumo próprio, que, no caso, é permitida nesse período, mas somente para os castanheiros. O destino: a região dos castanhais. Os rios, caminhos naturais da floresta, apresentam suas dificuldades e causam certa tensão, mesmo entre os mais experientes, pois corredeiras, cachoeiras e pedras são fáceis de serem encontradas, representando um grande risco. Dependendo de onde está localizada a comunidade e a distância até os castanhais, a viagem pode demorar dias. Quando chegam, desembarcam e acampam na floresta para pernoitar e descansar. Alcançado o destino final, passam em média três meses trabalhando em condições improváveis, em meio aos igarapés. Não podemos esquecer que estão em plena floresta tropical, forrada de insetos e animais peçonhentos; portanto, o conhecimento dessas pessoas sobre o ambiente é imprescindível para a sobrevivência do grupo.

A produção de castanha-do-brasil é alta e responde por 31% do total mundial, ou seja, somos o segundo país que mais exporta esse item, com milhares de toneladas. Mesmo com todo esse volume, a legislação para o comércio ainda é escassa e, por vezes, confusa, causando enormes problemas quando há uma quebra na safra por questões climáticas, como a de 2017, que sofreu interferência do fenômeno La Niña. Nesse caso, sem a regulação de estoques, a escassez fez os preços se elevarem de maneira significativa, afastando os consumidores. Com

isso, o ano seguinte ainda sofreu consequências desse evento. Os estados do Amazonas, do Pará e do Acre detêm mais de 90% de toda a produção nacional, seguidos por Mato Grosso, Rondônia e Amapá.

A queda dos frutos das castanheiras se dá entre os meses de fevereiro e março, porém os catadores vão depois desse período para ter certeza de que todos os “ouriços” de castanha tenham caído, evitando assim acidentes, muitas vezes fatais, pois a média da altura da queda desses ouriços, que pesam dois quilos, é de 60 metros.

As comunidades castanheiras estão organizadas em associações e cooperativas, como a Cooperativa Mista dos Produtores e Extrativistas do Rio Iratapuru – Comaru, que, desde 1997, busca avanços e fomentos junto a instâncias governamentais, além de defender pautas sociais.

A comercialização das castanhas-do-brasil aumentou quando fabricantes de cosméticos comprovaram a eficácia desse óleo em seus produtos. Com isso, foi organizada uma cooperativa de beneficiamento que absorveu mão de obra dos próprios castanheiros e seus familiares para trabalhos durante a entressafra, o que alimenta de modo satisfatório o ciclo da castanha, pois, com parte do dinheiro da cooperativa, é possível financiar a empreitada do ano seguinte, com melhorias no período de catação.

As ameaças externas para essas comunidades estão nos caçadores, no garimpo ilegal e na extração de madeira. Para deter o avanço dessas atividades predatórias e ilegais, o governo estadual criou uma legislação específica para proteção de algumas áreas, devido à pressão das várias comunidades envolvidas no extrativismo da castanha-do-brasil e de outros recursos naturais, como os seringais. Porém, nem tudo está resolvido; não basta ter leis de preservação sem pessoal para a fiscalização, o que não é uma tarefa fácil devido à vastidão do território a ser protegido. Em 2006, foi proibida a derrubada das castanheiras em florestas primitivas, regeneradas e naturais. Em 2012, ficou liberada a derrubada dessas árvores, porém apenas originárias de reflorestamento e devidamente cadastradas. Em 2014, a castanheira passou a fazer parte da Lista Nacional Oficial de Espécies da Flora Ameaçadas de Extinção, com status de vulnerável.

Laranjal do Jari-AP | Castanheiras do Rio Iratapuru
Laranjal do Jari -AP | Castanheiras do Rio Iratapuru

Natal-RN | Comunidade da Vila de Ponta Negra

CATADORAS DE MANGABA

“Coisa boa de comer”: esse é o significado do nome da fruta que, nas últimas duas décadas, passou a correr o mundo, integrando o rol de frutos considerados exóticos na cena internacional.

A mangaba, típica do cerrado, da caatinga e do litoral do Nordeste brasileiro, assim como o mamão, a manga e o melão, conquistou espaço no mercado mundial. Presentes em supermercados da Europa, do Japão e dos Estados Unidos, essas frutas são associadas a regiões distantes, com climas e sistemas produtivos completamente distintos daqueles nos quais esses consumidores vivem.

A fama recente e a crescente procura regional e internacional pela fruta, no entanto, escondem uma contradição quanto ao processo de produção da mangaba, tradicionalmente extraída no litoral nordestino há séculos. Afinal, as populações tradicionais que trabalham e vivem do extrativismo são praticamente desconhecidas e são raras as ações que contribuem para a melhoria de sua condição de vida.

Embora presente em muitos estados da região Nordeste, é no sul do estado de Sergipe, o maior produtor de mangaba do país, que encontramos o maior número de comunidades dependentes da produção e da extração da fruta: são 61, distribuídas em 56 povoados. Segundo a Embrapa, em 2007, aproximadamente 7.500 pessoas dependiam diretamente da atividade, que compõe cerca de 60% de toda a renda familiar. As mulheres catadoras representam mais de 70% desse total.

A predominância de mulheres é atribuída por pesquisadores ao caráter

sazonal da coleta das frutas e ao fato de ser um trabalho leve, em um universo de referências em que o trabalho considerado pesado é destinado aos homens.

Além da especulação imobiliária, os viveiros de camarão, a agricultura e o turismo são as atividades que mais têm atingido e ameaçado a permanência do modo de vida das catadoras de mangaba que residem na região.

Historicamente, embora não possuam legalmente a terra, as catadoras de mangaba têm acesso às árvores para a prática do extrativismo. Por meio de uma tradição repassada de geração em geração, impera o entendimento de que as terras têm proprietários, mas as frutas, não. No entanto, esse entendimento tem sido questionado pelos donos de terras, diante da crescente valorização da fruta e da possibilidade de dispor de tecnologias para exploração do produto em larga escala.

Face a esse cenário, em 2007 foi fundado, no seio dessas comunidades, o Movimento das Catadoras de Mangaba (MCM), que passou a ser a principal organização representativa das catadoras no estado e na região. No mesmo ano, ocorreu em Sergipe, na cidade de Aracaju, o I Encontro das Catadoras de Mangaba de Sergipe, quando, pela primeira vez na história desse grupo tradicional, foram discutidos os seus problemas e delineadas ações para uma mobilização em defesa do seu modo de vida e de seus saberes e, consequentemente, a conservação das mangabeiras e a biodiversidade. Organizadas, desde então, essas comunidades buscam alternativas para a reprodução, a permanência e a sobrevivência de um modo de habitar, cultivar e extrair a mangaba, e também de existirem como uma comunidade tradicional.

Natal-RN | Comunidade da Vila de Ponta Negra
Natal-RN | Comunidade da Vila de Ponta Negra

CIPOZEIRAS

Na porção norte do estado de Santa Catarina e no sul do Paraná, vivem as populações cipozeiras que, desde o início do século XX, mantêm como atividade principal a extração e o beneficiamento de diferentes espécies de cipó, em especial o cipó-imbé. Além disso, essas comunidades vivem da agricultura de subsistência, da caça, da pesca e do trabalho assalariado ou informal. Para elas, portanto, a terra e o território têm importância vital.

Descendentes de europeus e indígenas, os povos cipozeiros guardam há gerações os segredos da arte de extrair e tecer o cipó, e reconhecem essa atividade como fator determinante de pertencimento social e cultural, lutando para que as condições de trabalho e de mercado melhorem e lhes permitam ter maior qualidade de vida. Em 2019, aproximadamente 10 mil pessoas se reconheciam como cipozeiros. O município de Garuva, em Santa Catarina, é atualmente a região onde se concentra a maior parte dessa população.

O modo de vida de cipozeiros e cipozeiras está diretamente relacionado com o mundo natural, especialmente com o bioma da Mata Atlântica, de onde retiram os cipós para a produção de peças de artesanato. De acordo com Grava, Florit e Antunes (2019), a maior parte da subsistência das populações cipozeiras é baseada em atividades extrativistas, que são realizadas segundo um manejo sustentável, não comprometendo a dinâmica dos sistemas regenerativos da Mata Atlântica, ambiente ao qual essas comunidades estão adaptadas há muitas décadas.

Observadoras atentas dos ciclos naturais, as comunidades cipozeiras não

fazem uso predatório dos recursos naturais; ao contrário, repudiam a destruição da natureza e procuram garantir a regeneração dos recursos, desde a extração dos cipós até a prática da caça, já que dependem dos animais abatidos para a manutenção de seu modo de vida.

A problemática que as populações cipozeiras enfrentam não difere, em muitos aspectos, das questões que pressionam a maioria das comunidades e povos reconhecidamente tradicionais, que convivem com a constante ameaça da perda de seus territórios ou com a escassez dos recursos que figuram como principal componente para subsistência do grupo e, em muitos casos, a ameaça é dupla.

No caso dos cipozeiros, o avanço da urbanização, a construção de rodovias, o desmatamento e a especulação imobiliária se apresentam como os principais fatores de risco e ameaça aos seus territórios tradicionais. Como resposta, esses grupos têm se organizado em movimentos e redes para lutar pela garantia de acesso à terra e de manutenção de seu modo de vida.

Atualmente, segundo Florit e Grava (2020), as comunidades cipozeiras fazem parte do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), instituído pelo Decreto 8.750, de 9 de maio de 2016, que garante aos cipozeiros direito à representação. Já em âmbito local, a Lei Municipal 1.981, de 28 de abril de 2017, em processo de implantação, reconhece, inclusive através de certificação, a existência social dos grupos denominados Povos e Comunidades Tradicionais no município de Garuva (Garuva, 2017).

Garuva-SC | Comunidade Cipozeira

FAXINALENSES

O território dos faxinais é um espaço cujo uso comunitário de terras e recursos florestais e hídricos se constitui como principal característica de seu povo. O faxinal é uma paisagem específica do Sul do país, marcada pela presença de campos e gramados, cercados por florestas de araucárias. Assim, o termo “faxinal”, além de designar um tipo de vegetação e de paisagem, também se refere à forma de organização própria dos camponeses da região. As comunidades faxinalenses habitam especificamente a região centro-sul e sudeste do estado do Paraná.

No sistema faxinal, cada um é dono de seus animais; a terra, porém, é de uso comum e todos os animais vivem à solta. Nas terras de plantar, a agricultura praticada pelos faxinalenses é uma agricultura de subsistência, pautada justamente no sustento da família, e o excedente é comercializado. Da floresta são extraídos o pinhão e a erva-mate. O modo de vida característico das comunidades faxinalenses é baseado nos laços de solidariedade e compadrio.

De acordo com a pesquisadora Mayra Bertussi, além da forma tradicional de ocupação do território, os povos dos faxinais são também importantes sujeitos da preservação ambiental do bioma floresta de araucária, no estado do Paraná, porque, diferentemente do modelo de uma agricultura moderna que incentiva o uso individual da terra e preza o acúmulo de capital, representado principalmente pelo avanço das monoculturas, os povos dos faxinais valorizam o uso coletivo do criadouro comunitário e visam a continuidade de práticas e acordos grupais.

Além disso, no que se refere ao aspecto ecológico, a biodiversidade que se pode encontrar nos territórios faxinais é uma de suas principais características. A

variedade de espécies presentes em áreas faxinais é de suma importância para a sustentabilidade e a segurança alimentar dos moradores.

Em 2005, após o I Encontro dos Povos Faxinalenses, evento que reuniu cerca de 200 faxinalenses na cidade de Irati, surgiu a Articulação Puxirão dos Povos de Faxinais, uma associação que se vale das prerrogativas dos novos movimentos sociais, como a reivindicação de direitos étnicos e coletivos, e propõe o papel de representação política dos faxinalenses junto aos governos. O contexto de seu surgimento foi justamente a ameaça aos territórios faxinais e, portanto, ao seu modo de vida.

A partir de então, a Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses tornou-se o principal meio de pressão dessas comunidades sobre o poder público. Em 2006, inclusive, conseguiram garantir perante o governo do estado do Paraná seu reconhecimento oficial como comunidade tradicional.

Segundo Bertussi, a manutenção do território representa para os povos tradicionais sua condição de existência e continuidade: “Sua garantia está atinada a direitos territoriais, ou seja, aqueles que possibilitem toda significação sociocultural imersa nas formas de se relacionar com a terra e com o território que produzem materialidades no cotidiano desses povos”.

Nesse sentido, a luta travada pelos faxinalenses é também a luta enfrentada pelas muitas comunidades tradicionais brasileiras, que buscam desde há muito garantir e dar continuidade à cultura, às tradições e ao modo de vida próprios de seus povos.

Turvo-PR | Faxinal Saudade Santa Anita
Turvo-PR | Faxinal Saudade Santa Anita

Canudos-BA | Comunidade do Raso no Povoado de Rosário

FUNDO E FECHO DE PASTO

O termo “fundo de pasto”, criado por técnicos na história recente, nasce para designar as comunidades tradicionais que, ao menos há dois séculos, habitam parte do território nordestino, principalmente o sertão baiano. Antes disso, essas populações autodenominavam-se “terras soltas”. Como argumentam os pesquisadores Denilson Moreira de Alcântara e Guiomar Inez Germani, tal transformação na nomenclatura acompanha e reflete um longo processo histórico que teve início durante o período colonial, mas que ganhou visibilidade a partir da relação de conflito gerada pelo processo mais recente de grilagem de terra.

E por que “fundo de pasto”? Um membro da comunidade explica: “[...] No sertão da gente, as famílias têm uma tendência de morarem juntas. Os membros da mesma família constroem suas casas perto uns dos outros. Podem ser aglomerados de três, quatro casas ou até fazer um povoadozinho no local, enquanto as terras atrás das casas, as terras mais distantes, soltas, são as terras da pastagem e do emprego. Daí são os fundos. Daí surge essa terminologia ‘fundo de pasto’. Atrás das casas, atrás das partes habitadas pelo povo, atrás das roças, tem área livre para as pastagens que estão nos fundos”.

As terras apropriadas por essas comunidades são parte de um território que foi considerado devoluto após o desmembramento das grandes fazendas produtoras de cana-de-açúcar, mesmo tendo sido habitadas por moradores locais. De terras “sem dono”, porque sem documentação, passaram a ser terras do Estado, com a instauração da primeira Constituição do país, em 1891. Nesse contexto, segundo Alcântara e Germani, é que surgem as “terras soltas”, apropriadas pelas comunidades rurais do semiárido.

Portanto, essas comunidades desenvolvem há séculos um modo de viver na terra que acompanha o bioma e é regido por ele: “O nosso jeito de viver no sertão é simples. Sabemos conviver com a caatinga, que nos fornece frutas, lenha, pasto para animais e remédios naturais. A caça é controlada. As aguadas são usadas pelos animais, os olhos d’água abastecem nossas cacimbas, riachos, e as águas são gostosas de beber. Ainda construímos barreiros, cisternas, poços tubulares e pequenas barragens que nos abastecem nos meses de seca. [...] Os animais vivem soltos e os roçados e quintais é que estão cercados. Temos áreas

individuais e coletivas. O fundo de pasto é formado pelas terras coletivas e pelas áreas individuais não cercadas”.

Partilhando a terra, que é de uso comum e da qual tiram seu sustento, essas populações criam animais de pequeno porte e praticam culturas de subsistência, complementadas com a caça e a pesca.

Desde a década de 1980, com o recrudescimento e a expansão de monoculturas agrícolas, a grilagem de terras, o desvio da água dos rios e as reservas ambientais de fazendas distantes, essas populações têm enfrentado dificuldades para garantir a produção e a reprodução de seu modo de vida e sobretudo de sua própria existência: “Com a barragem de Sobradinho, o interesse pelas nossas terras aumentou muito. Primeiro, os fazendeiros que apareciam se instalavam, comprando pequenas posses por um preço muito pequeno e depois cercando áreas comuns, áreas que eram de todos. Até áreas individuais foram tomadas. Tentamos conversar, nada adiantou. Trouxeram pistoleiros, ameaçaram muitas famílias. Nós não desistimos. A polícia, o juiz, o prefeito, tudo do lado dos fazendeiros. Até lei inventaram para acabar com a nossa criação miúda de caprinos, ovinos e porcos, a conhecida ‘lei do pé alto’, ou ‘lei dos quatro fios de arame’. Mas nós resistimos. Depois, vieram os projetos de irrigação e as mineradoras, incutindo no povo que trariam novos empregos, que a vida ia melhorar. Tomaram algumas terras, quase de graça, e avançaram a cerca. Trouxeram poluição, trouxeram gente de fora para trabalhar, ficando para a gente da terra só o serviço mais pesado. Agora, chegaram as carvoarias, desmatando a caatinga, acabando com o pasto de nossos animais, com as flores para as abelhas. E os fazendeiros sempre tentando mudar a cerca. Ainda bem que na natureza, volta e meia, bate um vento forte, que derruba as cercas do latifúndio”.

Assim como os territórios estão ameaçados, ameaçadas estão essas comunidades tradicionais, que chamam atenção para a boa relação que têm com o bioma e a biodiversidade. Como diz Domingos S. Costa, de Sobradinho, “[...] será que não percebem que esta região está preservada, pois as comunidades lá existentes cuidam para que a caatinga não se degrade?”. E é nesse sentido que as diversas comunidades de fundo e fecho de pasto tentam se organizar para garantir a permanência e a reprodução de sua cultura.

Canudos-BA | Comunidade do Raso no Povoado de Rosário

GERAIZEIROS

Os geraizeiros são descendentes de povos indígenas, quilombolas e europeus que se estabeleceram na região dos Gerais no norte de Minas Gerais, no sul e no oeste da Bahia, em uma área semiárida caracterizada por longos períodos de seca e escassez de água. Sua história remonta a séculos, quando esses grupos étnicos se misturaram e desenvolveram uma cultura singular, adaptada às duras condições do sertão.

A região dos Gerais é uma vasta extensão de terras baixas, onde predominam cerrados e caatingas, ecossistemas altamente adaptados à escassez de água. Os geraizeiros aprenderam a tirar proveito dessas paisagens áridas, desenvolvendo técnicas de agricultura e manejo de recursos naturais que lhes permitiram sobreviver e prosperar nesse ambiente desafiador.

Sua subsistência depende da agricultura de sequeiro, na qual cultivam culturas resistentes à seca, como o milho, o feijão e o mandioca. Além disso, criam gado, cabras e ovelhas, adaptando-se à escassez de pastagens durante os períodos de seca.

A comunidade geraizeira também é conhecida por suas práticas de medicina tradicional, transmitidas de geração em geração, na qual utilizam ervas medicinais e conhecimentos ancestrais para tratar uma variedade de doenças e lesões, mantendo viva uma rica tradição de cura natural. Muitos seguem uma fé sincrética, misturando elementos do catolicismo, do espiritismo e das religiões indígenas, em rituais que celebram a conexão entre a terra, os ancestrais e o divino.

Dados de 2015, coletados pelas próprias comunidades, apontam que 1.800 famílias de geraizeiros viviam espalhadas por 73 comunidades no território localizado entre os municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis.

O termo “Gerais”, segundo a antropóloga Mônica Nogueira, pode ser entendido como sinônimo de cerrado, bioma que teve parte expressiva de sua extensão convertida em maciços de eucalipto, a partir da década de 1970.

Segundo Nogueira, “o plantio empresarial de eucalipto implicou em expropriação, grilagem de terras comunais e grande impacto ambiental, com redução da oferta

de água, frutos nativos, ervas medicinais e madeira – recursos estratégicos para a reprodução física e social dos geraizeiros”.

Em 2015, como passo importante no enfrentamento do processo de expropriação do território, os próprios geraizeiros demarcaram o Território Tradicional Geraizeiro de Vale das Cancelas, composto de 73 comunidades espalhadas em uma extensão de 228 hectares, divididos em três núcleos territoriais: Lamarão, Tingui e Josenópolis.

Em 2018, os geraizeiros foram reconhecidos como Comunidade Tradicional, no âmbito da Lei Estadual 21.147, e obtiveram a Certidão de Autodefinição, emitida pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (Cepct – MG).

Segundo matéria publicada no site do jornal Brasil de Fato, até dezembro de 2020, no entanto, não ocorreram avanços nesse processo. Em nota, a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) afirmou que os processos de regularização “têm sido permanentemente discutidos com a participação direta dos representantes das comunidades integrantes dos núcleos Josenópolis, Tingui e Lamarão”.

Além das comunidades já citadas, em importante pesquisa de doutorado, ao estabelecer contato com três comunidades, que, segundo a antropóloga, representam certa vanguarda no movimento e foram paradigmáticas na utilização de estratégias de reterritorialização experimentadas pelos geraizeiros, Mônica Nogueira desenvolveu um estudo que é considerado um marco na produção acadêmica para a compreensão dos processos vividos pelos povos da comunidade tradicional geraizeira e para a própria construção de uma identidade vinculada à terra.

Na contramão do avanço do monocultivo de gêneros por grandes empresas, a identidade dessas comunidades se afirma justamente na existência de um modo de vida que alia sustentabilidade e tradição, cultivado há mais de 150 anos, ou sete gerações.

Rio Pardo de Minas-MG | Comunidade Vereda Funda
Rio Pardo de Minas-MG | Comunidade Vereda Funda
Grão Mogol-MG | Vale das Cancelas
Novo Horizonte-MG | Comunidade Jacú
Novo Horizonte-MG | Comunidade de Cabeceira de Macaúba
Grão Mogol-MG | Vale das Cancelas

INDÍGENAS

Mais do que comunidades tradicionais brasileiras, os indígenas são os povos originários deste território. Aqui habitavam muito antes da invasão dos europeus e conviviam em meio a diversificadas etnias, línguas e tradições culturais. Suas relações variavam de harmoniosas a conflituosas, dependendo da região, da etnia e das particularidades dos períodos históricos.

Apesar da enorme diversidade cultural indígena, consequência de suas histórias e das características geográficas de seus habitats, muitas aldeias compartilham modos de vidas, rituais e organização social semelhantes.

A relação milenar destes povos com o meio ambiente onde vivem se traduz em um profundo conhecimento das leis naturais do universo e uma forma admirável de se relacionar com a natureza.

Relações humanas complexas se estabeleceram com a vinda dos europeus, e posteriormente dos africanos, para estas terras. O fato é que, seja qual for a perspectiva histórica e cultural que se assuma, a chegada dos exploradores ocasionou um forçoso intercâmbio cultural entre os povos que aqui viviam, os próprios europeus e os escravizados trazidos de diferentes regiões do continente africano.

Esse período histórico, denominado colonização, causou profundos impactos nas populações indígenas, incluindo conflitos, as doenças introduzidas pelos europeus e deslocamento de suas terras.

Porém, é muito triste constatar que, apesar da riqueza cultural gerada pela interação entre diferentes povos, ainda nos dias atuais faltam a uma larga parcela da sociedade brasileira compreensão e respeito pelas tradições culturais dos que aqui habitavam e pelas trazidas do continente africano.

Devido à pressão da sociedade majoritária, muitas línguas e culturas indígenas estão ameaçadas de extinção. O governo federal tem trabalhado para reconhecêlas e preservá-las por meio de políticas de educação bilíngue e de apoio às comunidades indígenas em seus esforços para manter as tradições.

Conceição do Araguaia-PA | Índio Xerente/Xavante (página anterior)

Uma das questões centrais nas lutas indígenas no Brasil é a demarcação de terras. Muitas comunidades indígenas buscam o reconhecimento e a delimitação de suas terras tradicionais para proteger seu modo de vida, preservar a biodiversidade e garantir sua sobrevivência cultural. No entanto, o processo de demarcação muitas vezes enfrenta resistência política e pressões de setores econômicos, como a agricultura e a mineração.

Outro fato é que as terras indígenas muitas vezes abrigam ecossistemas valiosos e biodiversos, sendo fundamental para a mitigação das mudanças climáticas e a conservação da natureza. Mesmo assim, frequentemente surgem conflitos com invasores ilegais, grileiros de terras e empresas que buscam explorar recursos naturais, conflitos que são acompanhados de violência e ameaças, colocando em risco a segurança e os direitos do povo indígena.

Não obstante, a pressão das comunidades indígenas e de seus aliados muitas vezes resulta em mudanças na legislação e nas políticas públicas. Na Constituição de 1988, o Brasil reconheceu os direitos indígenas e estabeleceu o processo de demarcação de terras. No entanto, a implementação dessas políticas nem sempre é efetiva.

O país abriga hoje mais de 300 etnias indígenas reconhecidas e um número estimado de 180 a 270 línguas indígenas diferentes. Segundo dados do último Censo, realizado em 2022, a população indígena chegou a 1.693.535 pessoas, o que representa 0,83% do total de habitantes. Pouco mais da metade da população indígena está concentrada na Amazônia.

Todos nós brasileiros, mesmo os que não descendam dos povos originários, herdamos das etnias indígenas muitos de nossos hábitos, crenças e costumes, seja na alimentação, na linguagem, nas técnicas de artesanato, no uso de ervas medicinais incorporadas à medicina popular brasileira, na forma de interagirmos com o meio ambiente e em nossas festas e celebrações, assim como em diversas maneiras de pensar e agir.

São Félix do Xingú-PA | Índio Korotire, nação Kaiapó
Tomé Açú-PA | Índios da etnia Tembé da aldeia Turé Mariquita
Jordão-AC | índios Huni Kuin, na Aldeia Boa Esperança, terra indígena Kaxinawá
Santarém-PA | Etnias Borari e Arapium na Terra indígena Maró
Nioaque-MS | Aldeia em Nioaque, índia Terena
Jordão-AC | índios Huni Kuin, na Aldeia Boa Esperança, terra indígena Kaxinawá (dir)
Cacoal-RO | Paiter-Suruí, Terra Indígena Sete de Setembro
Caarapó-MS | Índios Guarani-Kaiowá
na Aldeia Takuára
(Noroeste do Estado)-MA | Terra Indígena Alto Turiaçu, povo Ka`apor
Viana-MA | Povo Akroá-Gamella
Ponta Porã-MS | Índio Guarani-Kaiowá na Aldeia Lima Campo (esq)
Antônio João-MS | Índios GuaraniKaiowá na Aldeia de Cerro Marangatu
Jordão-AC | Índios Huni Kuin na Aldeia Boa Esperança, terra indígina Kaxinawá.
Senador José Porfírio-PA | Indígenas da etnia Kaiapó/Korotire
Paranhos-MS | Índios Guarani-Kaiowá
na Aldeia de Paraguaçu
Tomé Açú-PA | Índio Tembé da Aldeia
Turé Mariquita
Manaus-AM | Comunidade indígena Dessana Tukana
Cacoal-RO | Paiter-Suruí, Terra
Indígena Sete de Setembro
Arueira-MS | Povo indígena Guarani-Kaiowá

MARISQUEIRAS

As comunidades de marisqueiras são grupos de pessoas que vivem em regiões costeiras ou estuarinas, incluindo áreas litorâneas, manguezais e deltas de rios, e dependem da coleta de mariscos e outros frutos do mar para sua subsistência e economia. Essas comunidades são encontradas em várias zonas costeiras ao redor do mundo, incluindo o Brasil.

Elas dependem dos recursos marinhos, como mariscos, caranguejos, ostras e peixes, que são abundantes nessas áreas. A arte da coleta é frequentemente transmitida de mãe para filha, tornando-se uma tradição que se estende ao longo de várias gerações. Elas geralmente usam técnicas tradicionais de coleta, como catar mariscos nas praias, explorar manguezais e usar armadilhas para capturar caranguejos. Desenvolveram um profundo conhecimento do ambiente costeiro, incluindo os ciclos das marés, os padrões climáticos e a biologia e a ecologia dos mariscos.

A coleta de mariscos muitas vezes envolve trabalho em grupo, com várias marisqueiras colaborando para coletar mariscos em áreas específicas, utilizando ferramentas tradicionais, como enxadas ou rastelos de madeira, para escavar os mariscos na areia ou no lodo.

Muitas comunidades de marisqueiras têm práticas de coleta sustentável, garantindo que os recursos naturais sejam utilizados de maneira que permita sua renovação. Contudo, a pesca excessiva e a degradação do habitat costeiro podem

Maragogipe-BA | Comunidade Ponta do Souza (página anterior)

representar ameaças à sustentabilidade dessas atividades.

As marisqueiras possuem culturas e tradições únicas, relacionadas ao meio em que vivem. Isso inclui música, dança, culinária e festivais que celebram a relação com o mar.

As comunidades de marisqueiras enfrentam desafios como a poluição costeira, a degradação do manguezal, a urbanização costeira e a mudança climática, que podem afetar negativamente seus meios de subsistência e suas tradições culturais.

No Brasil, existe legislação que reconhece os direitos das comunidades tradicionais de marisqueiras e busca proteger suas áreas de coleta. Isso inclui a Lei 11.959/2009, que trata da regularização fundiária de áreas ocupadas por essas comunidades.

As comunidades de marisqueiras desempenham um papel importante na preservação dos ecossistemas costeiros e na promoção da cultura e da tradição ligadas ao mar. Elas atuam como guardiãs locais, monitorando o estado dos mangues e alertando para quaisquer atividades de degradação, como a poluição ou a extração ilegal de recursos. Frequentemente participam de esforços de restauração de mangues, ajudando a replantar mudas e a recuperar áreas degradadas, o que contribui para aumentar a área de mangue saudável e a biodiversidade local.

Maragogipe-BA | Comunidade Ponta do Souza
Maraú-BA | Comunidade em Barra Grande, Península de Maraú
Maragogipe-BA | Comunidade Ponta do Souza
Maraú-BA | Comunidade em Barra Grande, Península de Maraú

Lago do Junco-MA | Comunidade Quebradeiras de coco babaçu

QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU

No coração do Brasil, nas vastas extensões de Tocantins, Maranhão, Piauí e Pará, existe uma comunidade de mulheres que há gerações desafia as adversidades da vida em uma região marcada pela seca, pela pobreza e pela desigualdade social. Elas são conhecidas como quebradeiras de coco babaçu, um grupo de mulheres fortes e resilientes que desempenham um papel fundamental na preservação do meio ambiente e na luta por seus direitos.

A palavra “quebradeira” faz referência ao ato de quebrar o coco do babaçu, que é uma palmeira nativa da região e desempenha um papel fundamental na vida dessas mulheres. O babaçu fornece uma gama de recursos essenciais para a subsistência das comunidades locais, incluindo óleo, amêndoas, fibras e palha. Porém, a coleta desses recursos é uma tarefa árdua e trabalhosa que requer habilidade e força física.

As quebradeiras enfrentam diariamente desafios que vão desde a escassez de água até a falta de acesso a serviços básicos de saúde e educação. Todavia, essas mulheres não apenas sobrevivem, mas também prosperam por meio de um profundo conhecimento da natureza e da solidariedade comunitária.

Além de conhecer as épocas certas de coletar o babaçu, garantindo que a planta seja preservada e continue a fornecer recursos no futuro, organizam-se em grupos para coletar, processar e comercializar os produtos derivados do babaçu. Nos últimos anos, têm se mobilizado para defender seu território e seus direitos, exigindo o reconhecimento de suas terras como territórios tradicionais e a proteção do babaçu contra a degradação ambiental.

Na busca por melhores condições de vida e de trabalho, estão estruturando cooperativas e associações para aprimorar suas condições de trabalho, obter preços justos para seus produtos e acessar programas de apoio do governo.

A luta das quebradeiras de coco babaçu também é uma luta pela igualdade de gênero, já que essas mulheres desafiam estereótipos de gênero ao ocupar espaços tradicionalmente dominados por homens. Elas são líderes em suas comunidades, defendem seus direitos e promovem a autonomia das mulheres.

Com o avanço das demarcações de fazendas e a instalação de cercas, as quebradeiras tiveram seu acesso aos babaçuais reduzido; consequentemente, seu sustento ficou inviável, em várias regiões. Depois de muita luta e discussões, por iniciativa das Quebradeiras do município maranhense de Lago do Junco, a “Lei do Babaçu Livre” foi promulgada e está valendo em alguns municípios dos estados do Maranhão, Piauí, Pará, Tocantins, Mato Grosso e Goiás, mas ainda encontra resistência por parte de alguns fazendeiros que cobram taxas para a retirada dos cocos ou até mesmo proíbem a entrada das Quebradeiras. Essa lei foi aprovada pela Comissão do Meio Ambiente da Câmara, em 2007, na qual fica proibida a derrubada de babaçus, dá livre acesso às Quebradeiras aos babaçuais, mesmo em áreas privadas, e especifica regras para seu manejo.

A Articulação de Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu – AMQCB, criada em 1995, é atualmente denominada Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB, e foi reconhecido em 2002. O MIQCB é uma rede que envolve várias cooperativas, associações e clubes que lutam pela preservação de suas comunidades e dos babaçuais. Entre suas bandeiras estão saúde, educação e demarcação de territórios, entre outras causas.

As quebradeiras de coco babaçu não estão sozinhas em sua luta. Movimentos sociais, organizações não governamentais e defensores dos direitos humanos têm apoiado suas demandas e amplificado suas vozes. A solidariedade nacional e internacional desempenha um papel crucial na pressão por mudanças significativas.

Uma das frases mais ditas nos movimentos é “Não existe babaçu livre com terra presa”.

Lago do Junco-MA | Comunidade Quebradeiras de coco babaçu
Viana-MA | Comunidade quebradeiras de coco babaçu no território Akroá Gamella (esq)
Lago do Junco-MA | Comunidade quebradeiras de coco babaçu

Salvaterra-PA | Quilombo São Benedito da Ponta, Ilha de Marajó (página anterior)

Salvaterra-PA | Quilombo Boa Vista, Ilha de Marajó

QUILOMBOLAS

As comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil estão entre as maiores representações da história da formação do nosso país. Constituem um dos três pilares étnicos, com africanos que começaram a chegar no século XVI e que, juntamente com os indígenas e os europeus, moldaram as características do que hoje chamamos de povo brasileiro.

Muitos africanos trazidos para o Brasil como escravizados eram oriundos de diversas culturas, etnias e regiões do continente africano, e trouxeram consigo conhecimentos, tradições e línguas diferentes. Algumas dessas tradições africanas contribuíram para a formação dos quilombos, que surgem como resultado da resistência à escravização e à opressão racial.

A escravidão no Brasil foi brutal, e os escravizados frequentemente viviam em condições desumanas, sofrendo abusos físicos e psicológicos. Em resposta a essa violência, muitos escravizados fugiam das fazendas e senzalas em busca de liberdade. Com o tempo, formaram comunidades autônomas nas áreas rurais, muitas vezes em regiões remotas, como florestas, montanhas e locais de difícil acesso.

Os quilombos tinham sua própria organização social, com líderes e normas comunitárias, e desenvolviam sistemas de subsistência baseados na agricultura, na caça e na pesca, bem como na produção de artesanato. Muitos quilombos também eram conhecidos por sua resistência armada contra as tentativas de recaptura por parte dos proprietários de escravos e das autoridades coloniais. Alguns quilombos se tornaram verdadeiras fortalezas, como o famoso Quilombo dos Palmares, símbolo da resistência e fonte de inspiração.

O aprimoramento que contribuiu para a reparação histórica com os descendentes dos povos escravizados aconteceu gradativamente, com leis e normas como o Decreto 4.887 de 2003, que teve como objetivo melhorar a qualidade de vida nos quilombos. Esse decreto visa o acesso a saúde, saneamento e educação, e esclarece a questão da titularização das terras quilombolas. Após

muita discussão entre os poderes legislativo e judiciário, somente em 2018 o decreto foi considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Mesmo com garantias legais, as comunidades quilombolas ainda têm de lutar para garantir seus direitos, tanto pela terra como pela vida. Para isso, foram criadas inúmeras associações que reivindicam esses direitos. Um exemplo é a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais – Conaq; outro é a Fundação Cultural Palmares. Considerando a quantidade de comunidades quilombolas distribuídas pelo país, muitas de difícil acesso, há de se entender que as lutas se dão em maior quantidade em nível regional. Por isso, foram instalados muitos programas como a “Agenda Social Quilombola”, o Comitê Técnico de Povos e Comunidades Tradicionais, o “Programa Brasil Quilombola”, entre outros, todos tendo como objetivo a melhora na qualidade de vida dessas comunidades, por meio de acesso aos serviços públicos e aos direitos civis.

Em levantamento recente pela Fundação Cultural Palmares, foi constatado que existem cerca de 3.500 comunidades quilombolas, porém esse número pode estar subestimado e pode chegar até a 19 mil. A Fundação Palmares certificou cerca de 2.400, o que constitui a primeira etapa do processo de titularização. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, que tem a função de identificar, delimitar e fornecer títulos de terras aos quilombolas, promovendo a regularização fundiária, concedeu títulos territoriais para 200 dessas comunidades, ou seja, menos de 10% das comunidades quilombolas possuem territórios legalizados.

As comunidades quilombolas também são reconhecidas internacionalmente por suas contribuições à diversidade cultural e pelo papel que desempenham na promoção dos direitos humanos e na luta contra o racismo. São uma parte importante da história e da cultura do Brasil, e sua preservação e reconhecimento são fundamentais para a promoção da igualdade racial e para a valorização da herança afro-brasileira.

Serrano do Maranhão-MA | Quilombo Nazaré
Alcântara-MA | Comunidade Quilombola
Salvaterra-PA | Quilombo Boa Vista, Ilha de Marajó
Macapá-AP | Quilombo Curiaú
Potengi-CE | Cirandeiras do Toré no Quilombo Carcará
Cavalcante-GO | Quilombo Kalunga
Alcântara-MA | Comunidade
Quilombola São Raimundo
Matias Cardoso-MG | Comunidade
Quilombola da Lapinha
Ubatuba-SP | Quilombo da Fazenda
Pai Pedro-MG | Quilombo Gurutuba (dir)
Santo Amaro-BA | Manisfestação cultural do Nego Fugido no Quilombo do Distrito de Acupe

RIBEIRINHOS

O ditado paranaense “Este rio é a minha rua” traduz um aspecto elementar do significado e da importância do rio para as comunidades ribeirinhas, cujo modo de viver está profundamente integrado aos ciclos do rio. Diversas e espalhadas pelo território nacional, essas populações mantêm uma característica comum: toda a estrutura e a dinâmica sociais, tais como alimentação, trabalho e interações entre seus integrantes, são reguladas pelos períodos de cheia e seca dos rios.

Assim, habitando às margens dos rios, igarapés, igapós e lagos da floresta, e incorporando a variação sazonal das águas como uma característica fundamental na constituição de sua rotina, estes “homens, mulheres, jovens e crianças que nascem, vivem, convivem e se criam, existem e resistem às margens dos rios”.

A pesca artesanal e a caça são as principais atividades das populações ribeirinhas. Além disso, cultivam roçados para consumo próprio e também podem praticar algumas atividades extrativistas e de subsistência.

Para as pesquisadoras Talita de Melo Lira e Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves, “as comunidades ribeirinhas apresentam, ainda, um modo particular de vida em vários aspectos, tais como o uso do território, e o uso e o manejo coletivo dos recursos locais, orientados por seus saberes e em bases comunicativas e cooperativas; no estabelecimento das relações sociais de trabalho, bem como nas relações de compadrio e parentesco”.

Ainda segundo as autoras, essas comunidades frequentemente ignoram a estrutura agrária brasileira, “utilizando a terra de forma coletiva, na qual o controle dos recursos básicos não é realizado individualmente por um determinado grupo doméstico ou pequenos produtores, mas coletivamente”.

Barra-BA | Ribeirinho observando o encontro do Rio São Francisco e Rio Grande (página anterior)

Matias Cardoso-MG | Ribeirinho

Em 2007, a partir do Decreto Presidencial 6.040, o governo federal reconheceu a existência formal das chamadas “populações tradicionais”. O decreto instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), em que se ampliou o reconhecimento dado parcialmente, através da Constituição de 1988, aos povos indígenas e aos quilombolas.

As políticas públicas decorrentes da PNPCT objetivavam beneficiar oficialmente o conjunto das populações tradicionais, incluindo ainda faxinalenses, comunidades de fundo de pasto, pantaneiros, caiçaras, ribeirinhos, seringueiros, castanheiros e quebradeiras de coco de babaçu, dos quais temos tratado nesta sequência de textos.

A infraestrutura em terra firme é bastante precária e, por vezes, inexistente.

O acesso a serviços públicos essenciais, como eletricidade, saúde, educação, saneamento e internet, também é prejudicado, fato que pode ser encarado como reflexo e consequência de um distanciamento dos centros de poder e de tomada de decisões políticas.

À medida que as áreas ribeirinhas são cada vez mais afetadas pela modernização e pelo desenvolvimento, essas comunidades podem enfrentar ameaças como desmatamento, poluição da água e perda de território devido à construção de barragens e infraestrutura.

As comunidades ribeirinhas frequentemente preservam culturas e tradições únicas, muitas vezes relacionadas a música, dança, artesanato e culinária regionais. Elas também mantêm sistemas de conhecimento tradicional sobre plantas medicinais e práticas agrícolas.

Caseara-TO | Comunidade Ribeirinha do Parque Estadual do Cantão.
Miranda-MS | Comunidade Ribeirinha do Rio Salobra
Afuá-PA | Comunidade Ribeirinha
Afuá-PA | Comunidade Ribeirinha da Vila Tessalônica
Laranjal do Jari-AP | Ribeirinhos do Rio Jari (esq)
Bom Jesus-PI | Comunidade Brejo do Miguel
Arroio Grande-RS | Comunidade de Santa Isabel
Porto Velho-RO | Cachoeira de Teotônio

SERINGUEIROS

As Comunidades Tradicionais de Seringueiros estão espalhadas principalmente onde a Floresta Amazônica se estende. Os estados do Acre, do Amazonas e de Rondônia merecem destaque por serem os que mais abrigam essas comunidades. Os seringueiros trabalham na extração do látex, obtido da seringueira, e que é a matéria-prima para a produção da borracha natural.

A seringueira ou árvore-da-borracha (Hevea brasiliensis) é originária da Bacia Amazônica e dela aproveitam-se também seus frutos para a fabricação de óleo para verniz, resinas e tintas.

A extração do látex teve grande importância econômica no período denominado Ciclo da Borracha, entre 1827 e 1875. A borracha natural foi a mola propulsora do desenvolvimento da região Norte brasileira, principalmente após Charles Goodyear criar a vulcanização, processo para fabricação de pneus, substitutos da tração animal. Com a invenção do automóvel por Henry Ford, mais os pneus de Goodyear, a borracha tornou-se indispensável na indústria automobilística. Com isso, o mercado americana e mundial voltou seus olhos para a riqueza da Amazônia. Em 1875, o botânico Henry Wickham levou algumas sementes da seringueira para Londres e as entregou ao diretor dos Reais Jardins Botânicos de Kew, sir Joseph Dalton Hooker, que as estudou e introduziu nas colônias britânicas, principalmente na Malásia, onde passaram a produzir a borracha natural com mais volume que o Brasil.

Um fato relevante foi a fundação de Fordlândia, distrito do município de Aveiro, no estado do Pará. Fordlândia foi um projeto de Henry Ford, iniciado em 1927, para a produção de látex, especialmente para suas indústrias que importavam a borracha natural da Malásia. O contrato estabelecido entre Ford e o governo do Pará permitia uma ampla utilização da extração não só do látex, mas também do petróleo, da madeira, do couro etc. Porém, a região era hostil, com solo pedregoso e havia falta de conhecimento por parte dos americanos sobre como manejar a flora local. O que deveria ser um sucesso tornou-se um grande pesadelo. Os trabalhadores sofreram, pois além de não terem uma produtividade alta, eram alimentados com culinária típica norte-americana,

Xapuri-AC | Comunidade de Seringueiros

como hambúrgueres. Por todas as desventuras vividas por esses homens, muitos se revoltaram. A fúria dos revoltosos foi tanta que o Exército Brasileiro foi acionado. Essa revolta foi chamada de “Quebra-Panelas”. Quando Ford morreu, Fordlândia também acabou, mesmo porque, com a fabricação de pneus feitos a partir do petróleo, não tinha mais sentido o dispêndio que a produção de borracha natural causava. Assim, em 1945, o governo federal negocia os ativos da Companhia Ford do Brasil.

Curiosidades à parte, a década de 1980 foi de extrema importância para a causa dos seringueiros, quando Chico Mendes ganhou projeção internacional com sua luta pela preservação da Floresta Amazônica. Consequentemente, nos anos 1990, o governo federal iniciou a regulamentação de áreas extrativistas, o que beneficiou não só os seringueiros, mas também outras comunidades que vivem de extrações.

Francisco Alves Mendes Filho, Chico Mendes, nasceu em Xapuri, no estado do Acre, em 1944. Antes de tudo foi um seringueiro, depois sindicalista e ativista político e ambiental, premiado internacionalmente. Morreu assassinado em 1988, a mando dos fazendeiros locais que insistiam no desmatamento da Floresta Amazônica e, portanto, dos seringais. Falar dos seringueiros é falar de Chico Mendes, tamanha sua importância. Tanto é que o órgão governamental responsável pela maior parte da manutenção e de pesquisas e estudos das áreas protegidas em todo o território brasileiro recebe seu nome: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio.

A interação dos seringueiros com a floresta vem de conhecimentos ancestrais dos nativos e dos que aqui se estabeleceram, seja pela colonização, seja por projetos governamentais de envio de mão de obra para trabalhos extrativistas ou não. Na floresta, eles conseguiam sobreviver de produtos extraídos, como palmito, frutas e castanhas; de pequenas lavouras (batata-doce, feijão, cará, amendoim, mandioca, abóbora e milho); da caça; da pesca, e da criação de animais de pequeno porte, como galinhas e porcos. Esses saberes foram transmitidos para as gerações futuras, que ainda hoje sobrevivem da mesma forma.

Xapuri-AC | Comunidade de Seringueiros

VAZANTEIROS

Às margens e nas ilhas do rio São Francisco, ao norte do estado de Minas Gerais, habitam as populações ribeirinhas chamadas vazanteiras: “[...] E vazanteiro é aquele que trabalha nas vazantes da beira do rio, nos lameiros; nós só plantamos em água molhada pelo rio. Por isso chama vazanteiro, porque aproveita que o rio vazou, tomba a terra e planta. Quando o rio vai descendo, a gente vai aproveitando e plantando alguma coisa”. [Entrevista concedida por vazanteiro da comunidade tradicional de Pau de Légua a Araújo (2009)].

Vivendo nas áreas inundáveis das margens do São Francisco, essas comunidades são identificadas historicamente por diversos pesquisadores como lameiras, varjeiras/varzeiras, ilheiras ou barranqueiras. É diversificada e complexa a relação de apropriação que estabelecem com o ambiente de terras firmes (matas secas), dos rios, das lagoas e das vazantes (lameiros). A cada nova cheia e a cada nova baixa do rio, as ilhas onde vivem se remodelam, fato que levou os vazanteiros à autodenominação de “povos das águas e terras crescentes”.

Os vazanteiros adotam técnicas e tipos de agricultura diferenciados para cada período do ciclo das águas, plantando abóbora, mandioca, feijão, cana, frutas (acerola, mamão, melancia, limão etc.), pimenta, milho, batata-doce, cenoura, hortaliças, quiabo, entre outros cultivos. Também fazem parte da alimentação do vazanteiro as carnes de gado, porco, peixe e galinha, leite e ovos.

Ao compartilhar um território comum, e desta maneira desvinculados da ideia da posse individual da terra, esses povos atribuem sentidos ao ambiente que traduzem um tipo de relação capaz de expressar o lugar onde vivem, a natureza, a cultura e a identidade que os constituem.

Desde a década de 1970, as comunidades vazanteiras de Pau Preto, Pau de Légua e Quilombo da Lapinha enfrentam dois problemas principais: a expropriação de suas terras por fazendeiros locais, e mais tarde, a partir dos anos 1990, a criação pelo estado de Unidades de Proteção Integral (UPIs) que, por não levarem em conta o fator humano de intervenção no território, acabaram por criar conflitos ao vetar o uso das terras pelas comunidades tradicionais. Segundo a pesquisado-

ra Felisa Ayana, esse processo histórico de expropriação territorial culminou no “encurralamento” desses grupos sociais.

A organização desses grupos entre si e com a sociedade civil do entorno é uma ferramenta-chave para a mobilização política nas lutas por reconhecimento e reapropriação territorial. Ayana argumenta que “a situação social de ‘encurralamento’ unificou esses grupos sociais distintos, com territorialidades e histórias específicas, na luta pela reapropriação de seus territórios ancestrais, utilizando-se do arcabouço jurídico da ‘tradição’ como meio de assegurarem a realização de suas reivindicações no campo ambiental”.

O movimento social e político de reivindicação territorial específico no norte de Minas, denominado por seus atores de “Vazanteiros em Movimento”, nasce então desses processos, com o intuito de defender os territórios das comunidades tradicionais por meio da mobilização e da articulação política: “A maioria de nós, vazanteiros, fomos expulsos pelos fazendeiros. A maioria dos tradicionais aqui tem o problema de ficar na cidade e na ilha. Quase todos têm casinha na cidade porque não podem mais ficar na beira do rio, que o fazendeiro cria problema. Mas quando o rio baixa, a gente volta. Esse é o sistema vazanteiro” (depoimento de vazanteiro na ilha de Jenipapo no V Encontro “Vazanteiros em Movimento”, Itacarambi, 2010).

Ativo, consistente, coletivo e vital: esse pode ser um bom conjunto de adjetivos para definir o modo de resistência da comunidade tradicional vazanteira. Um marco desse movimento foi a escrita e o envio de uma carta da Associação dos Vazanteiros e Vazanteiras da Ilha de Pau de Légua, em maio de 2008, às promotorias públicas e prefeituras de Manga e Matias Cardoso, à Assembleia Legislativa de Minas Gerais, a órgãos ambientais e ao Conselho Nacional de Povos e Populações Tradicionais, com cópias para entidades da sociedade civil organizada. Nessa carta, os vazanteiros deixam claro que as 56 famílias (à época) vinham sendo expropriadas, ameaçadas e oprimidas pelo poder público e pelos fazendeiros locais, apesar de sempre terem vivido e herdado seus territórios de maneira comunal e artesanal.

Matias Cardoso-MG | Comunidade Ilha
Pau Preto
Matias Cardoso-MG | Comunidade da Lapinha
Matias Cardoso-MG | Comunidade Comunidade Ilha Pau Preto

VEREDEIROS

Os veredeiros são grupos de pessoas que vivem em áreas próximas a veredas, que são ecossistemas típicos de certas regiões do Brasil, especialmente no cerrado e em outras áreas de planícies inundáveis. As veredas são caracterizadas por uma vegetação específica, incluindo palmeiras como o buriti, e muitas vezes estão associadas a cursos d’água permanentes ou temporários. As comunidades dos veredeiros têm uma relação profunda com esse ambiente e dependem dele para sua subsistência.

As principais atividades desenvolvidas por esses grupos são o cultivo de alimentos, a criação solta de gado e a extração de frutos do cerrado, tais como o buriti, o pequi, cocos e sementes de mamona e plantas medicinais.

Os veredeiros mantêm uma relação de interdependência com a terra; no caso desta comunidade específica, com as veredas, que é o elemento crucial para a construção de sua identidade. Cada comunidade é reconhecida e nomeada pelo rio ou vereda a que pertence, dado que reforça o fator identitário da relação que estabelecem com o território.

A década de 1970 representou para as comunidades tradicionais do norte de Minas Gerais um momento de inflexão e aceleração de processos que trouxe uma série de conflitos relacionados à expropriação de terras e ameaças aos modos de vida tradicionais.

A comunidade veredeira enfrenta e vivencia atualmente, entre outros embates, segundo o pesquisador Breno Silva, “o limite às áreas de uso comum e a degradação das microbacias pelos maciços de eucalipto que acabam por secar as veredas, espaços fundamentais para a existência dessas comunidades”. Segundo o autor, a organização política, o cultivo e a troca de sementes crioulas,

Chapada Gaúcha-MG | Comunidade da Prata, distrito Serra das Araras

fomentados por projetos que buscam a manutenção da agrobiodiversidade face às monoculturas empresariais desenvolvidas na região, e ações de retomada, figuram entre as principais estratégias de resposta dessa população.

Para fazer valer seus direitos como povos tradicionais, as comunidades veredeiras criaram em agosto de 2019 a Associação Central das Comunidades Veredeiras (Acever), mas já vinham se organizando há muito tempo, uma vez que a ameaça cada vez mais latente ao seu modo de vida pode ser observada desde os anos 1970. Em 2014, realizaram a retomada da Fazenda Alegre, área reivindicada, e que, até abril de 2020, estava em trâmite no Ministério Público Estadual (MPE-MG).

A partir da organização política, as Comunidades Tradicionais Veredeiras do Norte de Minas reivindicam seus direitos, visando o reconhecimento do território e a proteção e a recuperação das veredas e das águas. Nessa toada, conquistaram espaços importantes de visibilidade e articulação política, como uma cadeira no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e na Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais. Além disso, realizaram grandes encontros de Comunidades Tradicionais Veredeiras do Norte de Minas.

Assim como outras comunidades tradicionais, os veredeiros enfrentam desafios como acesso limitado a serviços básicos, falta de oportunidades econômicas e ameaças à degradação ambiental. A expansão agrícola, a urbanização e a exploração de recursos naturais também podem afetar essas comunidades.

Os veredeiros possuem culturas e tradições únicas, que incluem danças, músicas, artesanato e crenças espirituais relacionadas às veredas. Essas tradições são transmitidas de geração em geração.

Chapada Gaúcha-MG | Comunidade da Prata, distrito Serra das Araras
Chapada Gaúcha-MG | Comunidade da Prata, distrito Serra das Araras

Ana Mendes - @anamendes_anamendes

Artista, fotojornalista/documentarista e mestre em ciências sociais. Trabalha e vive há 7 anos na Amazônia brasileira realizando projetos multimídia (fotografia, vídeo e texto) que interseccionam arte, jornalismo e antropologia.

Chris Laurito - @chris.laurito

Psicóloga, apaixonada pela fotografia desde sempre, encantou-se com a possibilidade de conhecer, escutar suas histórias e retratar as pessoas que vivem nas comunidades tradicionais desse nosso Brasil.

Márcio Masulino - @marciomasulino

Jornalista, fotógrafo, cineasta e produtor cultural tem se dedicado, nos últimos anos, a resgatar o patrimônio histórico cultural brasileiro e apresentálo de diversas formas: documentários, livros de fineart, portais e outros.

Mari Mendes - @marimendes.foto

Repórter fotográfica e advogada que se converteu à arte de fotografar. Maravilhada com o trabalho de Ripper, tornou-se discípula inveterada da fotografia documental retratando principalmente o cotidiano e as histórias de pessoas e comunidades tradicionais.

Mariella Paulino - @maripaulinofotos

Publicitária e fotógrafa documental. O início foi fotografando a beleza do cotidiano das ruas de Uberlândia – MG, sua cidade natal. Depois conheceu a magia do Projeto Bem Querer na prática, documentando as comunidades tradicionais do Norte de Minas e Piauí.

Vanessa Soares - @vanessasoares_photografer

Fotógrafa e ativista do Coletivo Fotógrafas e Fotógrafos pela Democracia, atua há mais de 10 anos na área da Palhaçaria. Abraçou a pedagogia do Bem Querer, de João Ripper, para documentar a beleza dos fazeres das comunidades tradicionais do nosso Brasil.

Yara Falconi - @yarafalconi

Jornalista, fotógrafa documental e autoral. Seus registros se equilibram entre o fascínio pelo modo de viver, pela cultura e religiosidade desses muitos “Brasis” e em seus estudos e investigações sobre a complexidade da natureza humana.

nós

Nosso primeiro contato com João Ripper foi arrebatador.

Com olhar terno e a fala comedidamente apaixonada, nos ensinou o valor e a importância da fotografia humanista.

A fotografia humanista busca retratar a essência humana em suas mais diversas vivências. Um retrato da realidade concebido de forma poética pelas nuances da luz, a escolha dos ângulos, profundidade, e a sensibilidade na busca do melhor momento.

No caso de Ripper, é isso e mais. É conversar sobre os perigos de uma fotografia que conta uma história única – aquela que considera apenas um dos lados, sem a possibilidade de uma compreensão ampla dos fatos – e nos mostrar outras maneiras de enxergar: olhar mais de perto, escutar as versões daqueles que são desfavorecidos, negligenciados, oprimidos e, principalmente, encontrar maneiras de dignificar esses sujeitos, verdadeiros protagonistas de suas imagens. É chegar ao lugar, ambientarse, compreender a realidade do outro e tomá-la como sua, tornar-se parte dela. É dar lugar de importância para a trajetória de vida daquele que se pretende fotografar, acolher suas alegrias e suas dores. E só depois de angariar a cumplicidade reservada aos bons amigos, tomar a liberdade de começar a fotografar. É nesse momento que Ripper constrói seus poemas fotográficos. E é assim que ele segue seu caminho, abrindo as portas e as janelas das almas de todos ao seu redor.

Nas oportunidades de fotografarmos ao seu lado, tamanha a sua generosidade em partilhar seus saberes, pudemos experimentar esse fazer fotográfico de modo orgânico. Estávamos experimentando o Brasil profundo e, na medida em que o observávamos e aprendíamos, também nos tornamos um pouco ele. A intensidade de seu estilo fotográfico possui a força de encantar, emocionar, indignar, revoltar, fazer questionar, refletir e mudar. Mudar. É assim que nós nos sentimos: mudados, transformados pela fotografia de Ripper.

Deixamos aqui nosso agradecimento por estarmos ao seu lado nestas páginas e na vida, firmando o compromisso de seguirmos seus passos nessa potente trajetória de afeto e tanta beleza.

Ana, Chris, Márcio, Mari, Mariella, Vanessa e Yara

Ripper

Nascido em 1953, no Rio de Janeiro, João Roberto Ripper é formado em jornalismo, e trabalhou como repórter fotográfico em diversos jornais e agências fotográficas: Luta Democrática, Diário de Notícias, Última Hora e O Globo. No início dos anos 1990, criou a ONG Imagens da Terra, cuja proposta era colocar a fotografia a serviço dos direitos humanos, luta que se tornou a principal marca do seu trabalho. Seja nas isoladas comunidades tradicionais no interior e nas fronteiras do Brasil, ou nos morros das favelas cariocas, Ripper dispõe seu ofício a serviço da dignificação dos sujeitos, revelando belezas ou denunciando as opressões sofridas. Foi idealizador do projeto “Imagens do Povo”, uma agência-escola de fotógrafos populares do Observatório de Favelas, localizado no complexo de favelas da Maré. Hoje, fotógrafos oriundos de espaços populares estão vivendo de fotografia a partir desse projeto, coordenando, eles próprios, a escola e aprimorando cada vez mais esse trabalho, tanto no aspecto técnico como no político. Desde 2011, Ripper desenvolve a “Oficina Bem-Querer” onde analisa o trabalho de fotógrafos humanistas e o uso da fotografia como ferramenta de transformação social, dando também oportunidade para que grupos minoritários (como os oriundos de comunidades tradicionais, além de mulheres negras e LGBTQIA+) mostrem o que vêm desenvolvendo no campo da fotografia.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

R i p p e r , J o ã o C o m u n i d a d e s t r a d i c i o n a i s : a s a b e d o r i

n o s s o s

S P : K m M a r k e t i n g C u l t u r a l , 2 0 2 3 .

I S B N 9 7 8 - 6 5 - 9 9 8 9 1 9 - 4 - 6

1 C o m u n i d a d e s t r a d i c i o n a i s 2 F o t o g r a f i a -

B r a s i l 3 . P o v o s i n d í g e n a s I . T í t u l o .

Índices para catálogo sistemático:

1 S a b e r e s t r a d i c i o n a i s : A s p e c t o s s o c i a i s 3 0 6 . 0 9 8 1 3 4

T á b a t a A l v e s d a S il v a - B i b l i o t e c á r i a - C R B - 8 / 9 2 5 3

CRÉDITOS DAS FOTOS

JOÃO RIPPER - Todas as imagens em preto e branco

ANA MENDES - Páginas 92, 93, 98, 99, 122, 128

CHRIS LAURITO - Páginas 19, 23, 25, 112, 114, 115, 131, 144 (I), 145(I)

MÁRCIO MASULINO - Páginas 36, 39, 40, 41, 42, 43, 47, 50, 51, 66, 69, 70, 71, 96, 104, 105 116, 119, 120, 121, 123, 127, 129, 136, 144(II), 146, 150, 156, 157

MARI MENDES - Páginas 26, 27, 134, 135

MARIELLA PAULINO - Páginas 22, 84, 147

VANESSA SOARES - Páginas 60, 63, 64, 65

YARA FALCONI - Páginas 17, 18, 72, 75, 76, 77, 124, 130, 138, 139, 145(II)

Referências bibliográficas e conteúdos adicionais no portal:

www.comunidadestradicionais.com.br

Patrocínio Realização

Editora

KM MARKETING CULTURAL

Edição

ANA LÚCIA F. DOS SANTOS

MÁRCIO MASULINO

THABATA DE ANDRADE ALVES

Autor

JOÃO ROBERTO RIPPER

Textos RENATA WEBER

VITORIA NOVAIS

Fotografia ANA MENDES

CHRIS LAURITO

JOÃO ROBERTO RIPPER

MÁRCIO MASULINO

MARI MENDES

MARIELLA PAULINO

VANESSA SOARES

YARA FALCONI

Coordenação de Produção

EDU HENTSCHEL

Assistente de Jornalismo RICARDO VILLELA

Revisão SILVIA MOURÃO

Impressão MAISTYPE

Apoio de Comunicação

Alcântara-MA | Quilombo Itamatatiua

Em meu jardim

há flores que permanecerão sempre vivas, eternas, como o abraço apertado de almas.

Nogueira, 1985 - 2019

Valda

ANA MENDES

CHRIS LAURITO

MÁRCIO MASULINO

MARI MENDES

MARIELLA PAULINO

VANESSA SOARES

YARA FALCONI

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