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BAR DO SANTIAGO: MEMÓRIA NO BAIRRO DA CAMPINA

Santiago, em frente ao Grêmio Português

DIGA, FREGUÊS!

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CENTENÁRIO, BAR DO SANTIAGO, SITUADO EM PLENO BAIRRO DA CAMPINA/ COMÉRCIO, CARREGA UMA HISTÓRIA VIVA PARA SE GUARDAR NA MEMÓRIA

Por CAMILA BARROS Fotos: CLÁUDIO FERREIRA

Uma foto na tela do celular e a história dela na ponta da língua pra contar. Foi assim que o filho de portugueses, Paulo Garcia, 51, nos recebeu em seu bar, num sábado quente e úmido em Belém. A imagem está salva em uma pasta no aparelho, junto com outras tantas, que ele faz questão de colecionar. Foi no perfil Nostalgia Belém - página nas redes sociais, que mostra, por meio de fotos, os tempos idos da capital paraense - que o empresário encontrou também um pouco da história do estabelecimento da família.

A imagem tão mostrada por Paulo retrata o dia da inauguração do Grêmio Literário Português, há quase 154 anos. Hoje, além da famosa biblioteca e do salão com piso de madeira impecavelmente lustrado no andar superior, o prédio também abriga uma loja de instrumentos musicais no térreo. Na foto que mostra uma Belém nostálgica, aparecem os trilhos do bondinho que cortava a rua. Dessa época, só restaram as pedras portuguesas, que edificam as calçadas por onde pedes-

Este ano, vai fazer 44 anos que meu pai comprou aqui. O primeiro dono passou 18 anos. Só ai, são 62 anos. O Bar do Santiago já tem mais de cem anos”.

— PAULO GARCIA, PROPRIETÁRIO

tres transitam até hoje e o principal: mostra que na esquina da Travessa Frutuoso Guimarães com a Rua Senador Manoel Barata, o Bar do Santiago já estava de portas abertas.

O “bar” no nome é recente, já que na época, ali funcionava, de fato, uma taberna. Era na Casa Santiago que se comprava arroz, açúcar, café, dentre outros produtos alimentícios ‘a retalho’, tudo anotado no caderninho. O bairro da Campina, hoje popularmente conhecido como “Comércio” ou “lá em baixo”, como nossas avós falavam, deixou de ser um ambiente residencial para dar espaço para a frenética movimentação do abrir e fechar das portas das lojas.

Santiago era o nome do antigo dono? Não se sabe ao certo. Dizem que o primeiro dono era um espanhol chamado Lineu Santiago, que ficou por ali uns 18 anos, passando o ponto comercial para o português João Amador Madorra. Esse, por sua vez, resolveu negociar o estabelecimento com Seu João Garcia, compatrício, fornecedor de garapa, e seu cliente fiel, que assumiu o posto de Madorra na administração em 1977.

Conta-se à boca miúda que a motivação do velho português para se desfazer do estabelecimento, foi não suportar mais a boêmia dos filhos, que se ‘encegueiravam’ com os clientes e sumiam no mundo durante dias. Uma curiosidade sobre a transação é revelada pelo unigênito de Seu João. “Na época, meu pai disse que não tinha dinheiro para pagar, mas o português insistiu e disse que facilitaria o pagamento, ‘arranja o sinal como entrada, que eu te passo o ponto’. E assim foi. Com a proposta, o papai juntou umas economias acumuladas em dez anos de trabalho e mais um valor doado pelo tio dele para poder comprar de forma parcelada o bar. Na verdade, podemos dizer que comprou fiado”, conta, bem-humorado, Paulo.

ANTIQUÁRIO NO CENTRO COMERCIAL

A estrutura original do bar sofreu alterações com o passar dos anos. As várias portas centenárias de madeira deram espaço para duas portas de enrolar. As paredes de lá têm muita história. Nelas estão objetos, que mais parecem peças possíveis de serem encontradas em antiquários. Paulo tem de cabeça o ano exato e a quem pertenciam aquelas peças do lugar.

“Este ano, vai fazer 44 anos que meu pai comprou aqui. O primeiro dono passou 18 anos. Só aí, são 62 anos. O Bar do Santiago já tem mais de cem anos”, contabiliza. “E com a mesma calçada”, completa orgulhoso, o ex-estudante de matemática. Sim, Paulo até tentou cursar uma faculdade e não seguir os passos do pai, mas prestes a completar exatas três décadas trabalhando no local, diz que não se arrepende da decisão, na verdade, acha que nem tinha escolha. Foi em meados de outubro de 1991, que ele oficialmente passou a cuidar do bar. Antes, no período das férias escolares, o pai o levava pra lá para ajudar no atendimento. “Quando eu estava de férias, ele me trazia para evitar que eu andasse em má-companhia na rua. Sempre vim pra cá como ‘convidado especial’ e agora vou fazer 30 anos”, diverte-se.

MEMÓRIAS DO PASTOR DE CABRAS

O português João Brito Garcia, 88 anos, chegou ao Brasil em 1959, ainda jovem, com 24 anos. Natural do povoado de Valezim, na Serra da Estrela. Lá, ele trabalhava com vacaria (leite) e recebeu o convite de um tio que já estava estabelecido no Pará, na capital, com quem ele trabalhou durante dez anos e depois montou um quiosque, nos chamados “clipes”, na Praça do Relógio.

Seu João Garcia já não reconhece o lugar. Hoje, ele sofre com os efeitos da idade e da memória, já debilitada pelo seu estado de saúde. “Ele passou 40 anos aqui e não lembra. Já tirei fotos daqui, mostrei, conto as histórias, mas ele não reconhece; diz que nunca foi nesse lugar. Quando eu saio pra trabalhar, ele acha que eu vou pra um lugar chamado Chão do Rêgo, uma cidadezinha em que ele morava lá em Portugal. O pai dele, meu avô, criava cabras e ovelhas. Ele acha que eu trabalho com isso e me pergunta sempre: “vais levar as cabras lá pra cima?”, diz.

Mesmo não lembrando da sua origem, Seu João Garcia fez questão de deixar registrada a memória do lugar onde viveu. Na parede do bar estão dois quadros, com as fotos da cidadezinha de Chão do Rêgo, que ele mesmo fez e mandou ampliar.

No Santiago, até a máquina de café tem história. A primeira máquina foi herdada do Seu Madorra. A segunda foi comprada já usada, de segunda mão. Depois de tanto trabalhar, ela furou. Então, a terceira máquina entrou em cena. Ela era a reserva da antiga, e no auge da movimentação, servia até 12 litros de café quentinho aos fregueses. Hoje, por causa da pandemia, essa quantidade caiu bastante, mas a máquina continua firme e forte. “Tem caras muito conhecidas que frequentam aqui há muitos anos. Com a pandemia, não sei mais se eles estão presos em casa ou se já morreram por causa do vírus”, conclui, num misto de incerteza e reflexão sobre os atuais tempos.

HISTÓRIAS EMBRULHADAS EM PAPEL DE PÃO

Apesar de carregar no nome Bar Santiago, o espaço é voltado para lanches rápidos. Salgados, sucos, café e cervejas estão no cardápio do estabelecimento. O misto-quente é um dos carros-chefe do lugar. Quem pede pra levar, recebe um delicado embrulho de papel, com dobraduras que dão espaço para colocar o lencinho. Tudo feito à mão. Segundo Paulo, desde os tempos de Seu Madorra já se embalava desse jeito e assim ficou. n

CONHEÇA

BAR SANTIAGO Travessa Frutuoso Guimarães, 449, esquina com a Rua Manoel Barata, Campina Funcionamento: horário comercial.

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