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LEI ALDIR BLANC: OS PROJETOS DE PATRIMÔNIO

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UM ANO DE LEI ALDIR BLANC

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FRUTO DA INTENSA MOBILIZAÇÃO DE ARTISTAS E FAZEDORES DE CULTURA DE TODO O PAÍS, A LEI DE EMERGÊNCIA CULTURAL ALDIR BLANC (N. 14.017) COMPLETOU UM ANO NO MÊS DE JUNHO, COM INVESTIMENTO EM PROJETOS CULTURAIS, MUITOS DE PATRIMÔNIO E CULTURA POPULAR.

No período, isso provocou um impacto positivo na geração de trabalho e renda para os profissionais da área, seriamente atingidos pelas restrições sanitárias com a chegada da pandemia do novo coronavírus. Em 2021, porém, ainda é instável a situação e não há confirmação de que haja uma segunda edição da lei, como vem sendo exigido pelo setor que continua seriamente comprometido.

Ao Pará, segundo Júnior Soares, Diretor de Cultura, da Secretaria de Cultura (Secult) coube um pouco mais de R$ 67 milhões para investir na aplicação do inciso III, voltado para a realização de editais, chamadas públicas e prêmios para artistas, fazedores e fazedoras de cultura.

Para operacionalizar a aplicação dos recursos que, quando liberados pelo governo federal no segundo semestre de 2020, previam ser aplicados em um curto espaço de tempo, a Secult realizou chamadas públicas para organizações da sociedade civil auxiliarem na organização dos editais.

“Desta forma nós conseguimos aplicar 28 editais e como premissa básica nós consolidamos um Comitê de Emergência Cultural formado pela sociedade civil para auxiliar na montagem dessa engrenagem pra chegar até os fazedores”, completa Diretor de Cultura.

Em maio passado, o uso dos recursos por estados e municípios foi prorrogado para até 31 de dezembro deste ano, estendendo também o prazo para a prestação de contas dos projetos selecionados. O que, segundo nos conta Júnior Soares, impossibilita uma análise por parte da Secult sobre o impacto dos recursos nas regiões do estado e da organização futura para novos investimentos no setor.

“Nossa analise ainda está aguardando a recepção desses relatórios para ver para onde apontar novos recursos. Não há ainda uma definição clara de editais nessa área ou outra área agora, imediatamente. Estamos aguardando essa execução para propor junto com esse comitê novos editais para área”, explica.

PATRIMÔNIO CULTURAL E CULTURA POPULAR

O certo é que os editais mobilizaram centenas de artistas e produtores no estado, garantindo recursos para setores que há muito não recebiam investimento do poder público, como é o caso do patrimônio cultural e culturas populares.

“Há um déficit histórico em relação à promoção da cultura popular não só no Pará, mas no Brasil inteiro. Atualmente, o setor vem sofrendo muito mais do que antes, por motivos óbvios. Há um déficit e uma desatenção à cultura popular porque, na verdade, entendeu-se por muito tempo que isso não deveria ser fomentado pelo Estado”, explica Edgar Chagas, coordenador e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura (PPGCLC/UNAMA), que junto à Fundação Instituto para o Desenvolvimento da Amazônia (FIDESA), coordenou os editais nas áreas de “Patrimônio Cultural Imaterial” e “Culturas Populares”. “No primeiro momento, a procura foi tímida. Tivemos que fazer duas prorrogações”. Depois de uma intensa divulgação e busca ativa dos profissionais e mestres de cultura para que as informações sobre como participar pudessem chegar às comunidades mais distantes dos centros urbanos, a Fundação recebeu mais de mil propostas que disputaram 303 prêmios, nos dois editais. Mas a situação demonstrou que, para além da oportunidade de se realizar os editais, há a necessidade de se pensar como se fazer chegar a informação sobre os certames para os municípios do interior do estado.

“Há no estado do Pará uma concentração de projetos na Região Metropolitana de Belém por conta de uma expertise relacionada com a capacidade de informação mais próxima, mas também o acesso à informação para a produção de projetos culturais ainda é uma realidade para poucos”, afirma. “Essa dificuldade, que é histórica, ainda precisa ser mais refinada no que tange a relação do Estado com os fazedores de cultura”, completa.

Criado a partir da preocupação com grande demanda de comunidades em situação de risco e populações tradicionais que não possuem apoio técnico para o seu desenvolvimento sustentável, econômico e igualitário, o Instituto Inã coordena a execução dos editais nos segmentos de “Museus e Memoriais” e “Patrimônio Cultural Material”.

Procurado pela Revista Circular, o Instituto preferiu se manifestar respondendo às perguntas de nossa equipe por escrito em nome da sua presidente, Ana Patrícia Reis. Ela explica que “a maioria dos projetos aprovados tratam da garantia de continuidade da memória dos espaços culturais e educacionais que já existiam, através de ações de formação, lives, oficinas e até mesmo pequenas reformas dos espaços”.

Questionada sobre a importância da chegada de editais para as áreas como patrimônio e museus, Ana Patrícia Reis concorda que os recursos não são tão costumeiros e acredita “que vai depender muito da organização dos coletivos, artistas e pesquisadores que trabalham com patrimônio para que haja uma continuidade”.

Ela lembra que a Lei demonstrou ser possível e necessário fazer o financiamento e que alguns setores necessitam de mais recursos, como o de museus, por exemplo. “O museu não é simplesmente você fazer um espaço e colocar peças, tem toda uma preparação tem que ter pesquisas, reserva técnica, então, isso demanda um certo recurso para a efetivação de um trabalho mais amplo e efetivo”. Há no estado do Pará uma concentração de projetos na Região Metropolitana de Belém, por conta de uma expertise relacionada com a capacidade de informação mais próxima, mas também o acesso à informação para a produção de projetos culturais ainda é uma realidade para poucos”

— EDGAR CHAGAS, COORDENADOR DOS EDITAIS NAS ÁREAS DE PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL E CULTURAS POPULARES.

PARA CONHECER O CENTRO HISTÓRICO

Conversamos com alguns proponentes de projetos aprovados. A maioria ainda está no período de preparação das atividades, à espera de uma melhoria no quadro de restrição sanitária por conta da pandemia. A situação fez com que muitos deles fossem organizados no formato de transmissão on-line, mas também há projetos presenciais, como as exposições.

Nabila Pereira é mestre em Geografia e, atualmente, trabalha como professora do Ensino Básico para escolas particulares, em Belém. A partir de sua experiência com a disciplina Estudos Amazônicos, surgiu a ideia do projeto “Oficina de Educação Patrimonial - Memória, Patrimônio e Geografia no Centro Histórico de Belém”.

“Nas aulas, tem o tema transversal que é patrimônio. E nessas aulas, a gente percebe que os alunos estão muito distantes, sobretudo, como eu trabalho na periferia, eles são muito distantes da realidade patrimonial, do que é tombado”, completa.

A experiência dos alunos é também parte da história da professora. Moradora da periferia, ela conta que só passou a gostar do Centro Histórico de Belém quando começou a pesquisá-lo.

“Para mim não significava quase nada. Eu mal sabia onde ficava. E em resumo, é você conhecer um pouco mais, mas também conhecer a importância não só histórica, não só memorial. Mas, sobretudo, também enquanto cidadão saber o que é bem tombado, saber que tem instituto que protege. Também como uma organização cidadã, para além de memória e identidade”.

No momento, o projeto está na fase de organização do roteiro da oficina, com previsão de gravação da oficina no mês de julho para apresentação nas redes sociais em outubro.

Segundo a geógrafa, o projeto vai investir na simplicidade do discurso para envolver os participantes na importância do Centro Histórico para seus moradores, do centro e da periferia.

“Às vezes acho que é meio que uma imposição do pessoal que mora no centro que a gente tem que amar o patrimônio. Todas as vezes que eu penso no Centro Histórico eu penso assim: toma as informações, aí a pessoa vê o que faz com isso, se tu vai te apaixonar ou não, porque eu me apaixonei. Sou da Cabanagem e me apaixonei”.

MESTRES DA FÉ

“A Marujada pra mim é uma coisa inexplicável. Sempre digo que a Marujada é no meu sangue. Gosto muito da Marujada. Nesse ano que não teve foi muita tristeza pra mim”. O depoimento de Maria de Jesus, 63, capitoa da manifestação, diz muito sobre como as festas de santo no país extrapolam a condição de culto, alcançando um significado cultural mais amplo para quem o vivencia no cotidiano. Maria de Jesus é uma das mestras que integram o projeto “As danças, indumentárias e saberes da marujada de Bragança como ações educativas” que busca a salvaguarda da memória coletiva da Irmandade do Glorioso São Benedito. O projeto prevê a realização, nos meses de agosto e setembro, de conversas a serem realizadas no auditório da Casa de Cultura, de Bragança, com transmissão pelas redes sociais do projeto e a participação de mestres e mestras e suas narrativas sobre a Festividade de Glorioso São Benedito, que acontece neste período, no município da Região do Salgado Paraense.A Marujada pra mim é uma Há sete anos sendo a capitoa da Marujada, coisa inexplicável. Sempre Maria de Jesus comemora a possibilidade de se apresentar no projeto, mesmo que ainda digo que a Marujada está viva a incerteza se a manifestação ocorrerá este ano. “Eu achei uma coisa muito boa, no meu sangue. Gosto esse projeto, muito importante. Porque é um ano que a gente tá parado. Com isso a gente muito da Marujada. Nesse vai tá se apresentando, a gente vai tá falando sobre a Marujada, sobre os mestres, sobre as ano que não teve foi muita marujas. Achei muito importante”. tristeza pra mim”. Lilian Cristina Souza, proponente do projeto em nome da Irmandade, conta que a participação no edital de Patrimônio Mate— MARIA DE JESUS, 63, CAPITOA DA MANIFESTAÇÃO. rial se deu por meio de seu crescente envolvimento com a manifestação cultural. “Eu conheci a Marujada em 2004, no mesmo período que entrei no Arraial do Pavulagem, em Belém. Então, pelo Arraial, eu conseguia a visualizar as outras manifestações. E toda vez que a Marujada vinha eu falava com eles, e a gente acaba se encantando pela manifestação”, afirma. Em 2010, o encantamento se fortaleceu na fé em São Benedito. Participando da festividade, foi à igreja do “santo preto” fazer um pedido: queria trabalhar com patrimônio cultural. Passados mais de dez anos, hoje ela integra a direção da Irmandade e construiu a programação das lives, juntamente com os mestres e mestras. “Para produzir a programação fui estudando, indo na fonte e chamando essas pessoas para construir junto. Falar do patrimônio, falar da memória e principalmente do imaterial neste momento. Eu acredito que é relevante para cena lá, até porque estão em processo de reconhecimento institucional como patrimônio imaterial pelo IPHAN”, lembra a maruja ao falar da construção do Inventário de Referências Culturais, cujo levantamento preliminar está sendo realizado pelo IPHAN em parceria com a Universidade Federal do Pará, por meio da Faculdade de História do Campus Bragança.

COMIDA E PATRIMÔNIO

“Papa Xibé: Dos Sentidos aos Sabores” é projeto selecionado no Edital de Patrimônio Material que surgiu a partir do trabalho de conclusão de curso (TCC) em Museologia, da Universidade Federal do Pará, da graduanda Mailane Sampaio.

Em sua pesquisa, ela investigou a musealização da cultura alimentar, em quais instituições museais a alimentação estava presente. E identificou no Museu do Círio um rico acervo que serviu de base para a exposição.

“O projeto tem dois pilares. Um é a pesquisa e, a partir dela, a comunicação da pesquisa. Dentre as maneiras desta comunicação que eu encontrei foi fazer a exposição. A ideia é que a pesquisa chegue de outras formas e então vamos produzir pequenos vídeos e vai ser feito um catálogo com esta temática da cultura alimentar”, explica.

A primeira temporada da exposição aconteceu no Solar da Beira, no Complexo do Ver-o-Peso, e deve seguir para outros locais, como Icoaraci e Ananindeua. Os vídeos serão publicados no perfil do Instagram @expo.papaxibe (https://www.instagram.com/expo.papaxibe/). O catálogo ainda está em preparação e será postado nas redes sociais e distribuído para escolas e bibliotecas.

“O cheiro de tucupi me relembra o Círio, o afeto e o aconchego que os paraenses exalam! Eu amo ser paraense e ter essa cultura rica em volta de mim.”

“Comida é também afeto e me recordo feliz da primeira maniçoba que comi no Círio, ainda criança quando acompanhava com meu pai. Parabéns por trazer memória, afeto e cultura. O que seria Belém, se não isso?”

As mensagens deixadas pelos visitantes da exposição no Solar da Beira demonstram a importância da alimentação como representação de nossa cultura. Mas apesar desse valor, a pesquisa de Mailane identificou esta contradição com a falta de espaços que destaquem esse aspecto de nossa cultural, fora dos locais de comer.

“É uma contradição inclusive se pensares que Belém tem o selo da Cidade Criativa da Gastronomia, que é fornecido pela Unesco”, lembra. “Até mesmo nas instituições museais, nos pontos de cultura ou ponto de memória é bem escasso, por exemplo. Tu vais ter o ponto de cultura Iacitatá. Fora isso, só algumas exposições pontuais”.

A graduanda ainda faz uma crítica para o uso político da nossa alimentação, uma vez que o caruru, o vatapá, a maniçoba, o pato no tucupi, o tacacá e o xibé são pratos que têm o reconhecimento estadual como patrimônio cultural imaterial. Mas o título perde o sentido, uma vez que não há uma política patrimonial que preveja sua preservação.

“Não existe nenhuma política para a maniçoba, por exemplo. Algo que promova a pesquisa. Alguma lei que não permita que se aumente demais o preço do pato no almoço do Círio para que realmente esse prato continue na nossa mesa. Esta é minha crítica, que você tem uma patrimonialização vazia mesmo.”

A gente quer fazer um museu não só dos pertences, mas da fala também das pessoas. Os mais velhos têm a história do Seu Américo, o primeiro morador daqui. Muitos já faleceram e estão levando essa história junto”.

MEMÓRIA E RESISTÊNCIA QUILOMBOLAS

Na comunidade quilombola de América, localizada a 07 km do município de Bragança, no Nordeste do Pará, vivem cerca de 500 pessoas. Ali, uma inquietação sobre a história da criação do lugar motivou a Associação da Comunidade Remanescente Quilombola do América (ARQUIA), formada em sua maioria por mulheres, a produzir o projeto “Guarda o que foi da minha Vó”, aprovado no Edital de Multilinguagens, no segmento Patrimônio Cultural Material.

A intenção é criar um pequeno museu na sede da Associação com materiais antigos, como vasos de cerâmica, pilão de madeira ou outros utensílios domésticos para guardar as memórias da comunidade. Mas a principal questão é registrar o que se sabe sobre o Seu Américo, que deu nome à comunidade.

“O projeto foi feito porque a gente quer retratar as coisas antigas do quilombo. A gente quer fazer um museu não só dos pertences, mas da fala também das pessoas. Os mais velhos têm a história do Seu Américo, o primeiro morador daqui. Muitos já faleceram e estão levando essa história junto”, explica Roseti Araújo, da Arquia. “A gente quer fazer igual um documentário, com cada um falando do Seu Américo da forma que os antigos contaram pra eles”, diz.

A intenção é ouvir os mais velhos, mas também os mais novos, registrando em vídeos e fotos um levantamento etnográfico da comunidade. “A gente quer ter isso na Associação. As crianças que moram no quilombo não têm onde pesquisar, ver, saber como se deu. Se não registrar os mais velhos, nós vamos perder”, explica Roseti.

Segundo a história oral da comunidade, Américo Pinheiro de Brito, ao lado de outros negros escravizados, veio fugido do Maranhão pelo mar. Mas a barca em que vinham naufragou próximo a Ajuruteua. Eles, então, se fixaram nas matas da região. Sendo que Américo foi o responsável em povoar o território da comunidade. Os antigos resolveram nomear o lugar com o nome do seu primeiro morador. De Américo, mais tarde, passou a se chamar América.

Com mais de 200 anos de história, a comunidade só foi reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como remanescente quilombola em 2015.

“A energia foi conseguida por eles mesmos que puxaram os cabos e puxaram os postes de energia e depois que a companhia de energia fez algumas ligações, mas até uma parte. Na parte final da comunidade ainda tem os postes de varas que eles colocaram. A água foram eles que fizeram. Colocaram o poço, conseguiram a caixa d’água e fizeram a distribuição da água”, conta Pedro Olaia.

Olaia, que conduziu junto a Roseti o processo de submissão do projeto, acredita que a pesquisa e a preservação da memória local ajude no fortalecimento comunitário, principalmente no que se refere às políticas públicas. Como exemplo, cita o fato de que até hoje a escola da comunidade não é reconhecida como quilombola, mesmo que a definição já tenha sido aprovada no Conselho Escolar do município.

“Esse trabalho de levantamento histórico, de registro etnográfico vai fortalecer esse material teórico. Para que a gente aproxime mais essas políticas públicas e para que elas efetivamente aconteçam, também na prática”, finaliza Pedro. n

Associação da Comunidade Remanescente Quilombola do

América (Arquia), formada em sua maioria por mulheres.

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