8 minute read

ENSAIO FOTOGRÁFICO: PIO GIBSON

ENSAIO FOTOGRÁFICO PIU GIBSON

OS INVISÍVEIS

Advertisement

Textos: CAMILA BARROS

Eles estão por todos os lados, mas há quem não os enxergue no meio da frenética movimentação do comércio de Belém. Para o ensaio desta edição, o fotógrafo Piu Gibson foi convidado a compartilhar imagens e também outras histórias desses personagens invisíveis.

Registrar e ouvir histórias é o que move Piu Gibson, que trabalha há mais de 12 anos com audiovisual. A movimentação das ruas instigou o morador do Centro Histórico e o levou a retratar as histórias das pessoas que trabalham por ali.

“No Comércio, os manequins nas portas das lojas chamam mais a nossa atenção do que as pessoas. Muitas vezes, não enxergamos que elas estão ali. São vendedores, locutores, ambulantes, por quem passamos e não os vemos. Eles são invisíveis aos nossos olhos”, explica o fotógrafo, que escolheu retratar em preto e branco os invisíveis, deixando as cores para os manequins que dividem o espaço das ruas do comércio com os transeuntes.

SEU JURACI OU SEU JURÁ: O ENGRAXATE DOS PREFEITOS

De pequena estatura e corpo franzino, natural de Abaetetuba, seu Jurá diz que já engraxou sapatos de vários políticos paraenses, como Edmilson Rodrigues, Zenaldo Coutinho, Duciomar Costa, Coutinho Jorge, Hélio Gueiros, Sahid Xerfan, Almir Gabriel e até Jader Barbalho. Aos 74 anos, há mais de 50, ele trabalha em frente ao Palácio Antônio Lemos, prédio que já abrigou a sede da Prefeitura de Belém.

“Antes da revolução de 64, eu já engraxava sapato de muito político. Entra prefeito e sai prefeito, entra e sai governador ou presidente e eu continuo por aqui. Chego às 7h da manhã e fico até início da tarde, porque já me aposentei, não tem mais precisão de trabalhar o dia todo. Aqui já chegamos a ter sete engraxates e hoje só restam cinco, porque dois morreram, mas não tem nada a ver com Covid, foi de doença normal mesmo”, conta.

Seu Jurá desembarcou no Centro Histórico ainda jovem, aos 15 anos. “Meu pai era sapateiro e eu aprendi o ofício com ele. Antes de chegar aqui [Belém], eu trabalhava em uma fábrica de sapatos com meus irmãos, lá em Abaeté, mas só o patrão ficava rico e a gente cada vez mais pobre. Então, resolvi vir embora, vim sondar com o que eu poderia trabalhar na cidade e encontrei. Na época, os primeiros engraxates eram italianos, ficavam ali nos ‘clipes’, que eram umas estruturas de concreto onde paravam os ônibus. Naquele tempo, eles usavam tecido de guarda-chuva para lustrar os sapatos e eu ficava prestando atenção como eles faziam, conforme eles foram indo embora, os engraxates paraenses passaram a ocupar o espaço. Comecei como aprendiz e tô até hoje nessa profissão”, relata.

Pai de seis filhos, avô de 12 netos e quatro bisnetos, Seu Jurá diz que não arredou o pé do seu posto de trabalho durante a pandemia. “O trabalho diminuiu, mas não deixei de vir trabalhar. Os outros colegas correram, mas eu estava aqui todos os dias”. Ao final da conversa, quando perguntado qual o seu sobrenome, eis que ele então dispara: “Não, meu nome é Maximiano de Lima Oliveira, mais conhecido como Juraci”.

Segundo ele, o apelido surgiu ainda quando criança, após sua irmã ouvir uma mulher chamar o filho para dentro de casa. “Ela achou bonito e até hoje me chamam de Jurá”, finaliza rindo. Seu Jurá ou Seu Juraci é a forma que seu Maximiano encontrou para se manter anônimo para os muitos clientes que passam por ali e não sabem do seu verdadeiro nome e da sua história de vida.

SEVERINO: O PREGADOR NA PRAÇA DA BANDEIRA

Uma camisa de botão, calça social e uma sandália de dedo. Com uma bíblia debaixo do braço, sob um sol escaldante, um senhor de cabelos brancos grita versículos bíblicos para os que passam apressados por ele. Há 33 anos no Pará, o pernambucano aposentado Severino Lima, 70, tirou o sustento da sua família durante 11 anos trabalhando no Comércio. Hoje, ele distribui santinhos com a “palavra de Deus” pelas ruas do bairro. “Foi um chamado”, diz ele. Severino tira o dinheiro do seu próprio bolso e faz a distribuição em dias marcados: às terças, quintas e sábados. Segundo ele, mais de 200 mil panfletos já foram entregues.

GROOVER GUEVARA: O CURANDEIRO NA 13 DE MAIO

Uma dor de cabeça, um resfriado, o estômago reclamando de uma comida que não caiu bem e até aquela indisposição típica de uma ressaca básica... Quem nunca? Mas pra quem trabalha por conta própria no Comércio, de sol a sol, largar sua barraquinha para ir até a farmácia e ainda ter que enfrentar uma fila significa perder tempo, e tempo é dinheiro.

O peruano Groover Guevara, 59, é uma espécie de aviador de receitas do Comércio. “O pessoal [ambulantes] trabalha aqui o dia todo e não tem muito tempo para ir na farmácia aviar o remédio. Esse tempo é precioso e eles podem até perder uma venda. Ajudo eles por aqui indo na farmácia e trazendo o remédio. E foi pelo meu trabalho que criei meus quatro filhos”, relata com um portunhol ainda carregado da sua língua materna. Groover veio do Peru para passear no Brasil, de passagem pelo Pará, conheceu a atual esposa, parou e decidiu ficar.

ALANDA: ESTETICISTA DE CALÇADA NA PADRE EUTÍQUIO

Um espelhinho laranja, um borrifador, uma navalha, pincéis, pinças, curvex, tudo milimetricamente arrumado numa simpática maletinha lilás aberta, dessas que maquiadores profissionais usam, imitando uma penteadeira. É o salão itinerante da esteticista Alanda Ramos, 25, que ficou desempregada e por meio de uma amiga descobriu que era possível continuar trabalhando na sua profissão, mas dessa vez, nas ruas de Belém. Ela monta sua banca na calçada, na esquina da Travessa Padre Eutíquio com a Rua João Alfredo e atende sua clientela.

Alguns já são fiéis e há anos se embelezam com os serviços de Alanda. Elas sentam no banquinho e saem dali com sobrancelhas desenhadas com henna e cílios postiços. Tudo ao ar livre. “Atendo umas dez clientes por dia e ganho muito mais na rua do que trabalhando pra dona do salão. Já recebi proposta de emprego, mas só saio daqui quando for pro meu salão”, diz ela.

NAZARENO: LOCUTOR DAS MULTIDÕES NA PRAÇA DO RELÓGIO

Marchinha no Réveillon, Simone quando é Natal, forró na quadra junina. De Gonzagão a Alok, passando por Nelsinho Rodrigues, a trilha sonora do centro comercial pode variar tanto quanto as promoções nas vozes das caixas amplificadas. Munido apenas de um microfone na mão, Nazareno Cavalcante, 60, é uma dessas vozes, cuidadosamente empostada, para garantir que essas promoções ganhem a disputa do cliente. Locutor profissional há mais de 30 anos no Comércio, vindo de uma família de 11 filhos, veio de Abaetetuba, junto com um irmão, para vender picolé. A profissão como locutor surgiu aos 16 anos, quando deram a ele a missão de entreter as pessoas que circulavam pela loja onde ele trabalhava como faz-tudo. “Num dia faltou luz, botaram pilha no microfone e ligaram num gravadorzinho. Meu chefe disse pra eu ficar falando e interagindo com as pessoas. Deu certo”, conta. Como locutor, ele já passou por lojas de roupas, açougue, farmácia, supermercado e até uma aparelhagem, a Globo de Ouro, no bairro onde mora, o Guamá.

MANOEL BORGES: SONHO DE JOGADOR E SALADA DE FRUTAS NA JOÃO ALFREDO

Leite condensado, creme de leite e frutas variadas, sempre fresquinhas, cortadas em cubinhos, servidas geladas num copo descartável médio, a R$ 4,00; e grande, a R$ 5,00; quem decide é o freguês. Aos 20 anos, Manoel Borges deixou Peixe-Boi, no interior do estado, para fazer uma peneira (teste) no Clube do Remo. Porém, o sonho de ser jogador profissional foi frustrado por causa da sua idade.

“Eu jogava muita bola, colocava esses jogadores de hoje aí no bolso, mas já tava velho para os juniores, eles queriam meninos de 16, 17 anos”. Sonho interrompido. Ele passou a trabalhar como vigilante, nas horas vagas complementava a renda vendendo lanches de rua. Quando se viu desempregado, teve a ideia de vender salada de frutas numa bicicleta cargueira, bem antes da modinha das bikes gourmets. A ideia deu tão certo, que Seu Manoel não parou mais até hoje.

“Tenho clientes até do outro lado do rio, que aporta aí na Pedra e vem direto aqui toda semana”, diz orgulhoso. Todos os dias ele sai pedalando da Terra Firme até o Comércio, onde estaciona sua bicicleta e faz suas vendas. Na volta pra casa, já leva as frutas e insumos necessários para produzir a salada e vendê-la no dia seguinte, afirma que isso garante a boa forma para as peladas de fim de semana, onde faz os gols que não fez como profissional e deixa de ser invisível por alguns momentos.

This article is from: