Seleta de Sins

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POESIA. Não se trata de uma contradição: embora costume passar algum tempo sozinho, Sidney Wanderley está sempre bem acompanhado. Na solitude de seu apartamento, o poeta e revisor desfruta da companhia de escritores como Baudelaire, Proust e Guimarães Rosa e de realizadores como Fellini e Fassbinder, sem falar da música clássica e dos standards do jazz. Com interlocutores assim tão privilegiados, fica mesmo difícil sair de casa. Cada vez mais distante da intelectualidade local, o viçosense de 53 anos acaba de lançar Dias de Sim, seu nono volume de poemas. Num típico fim de tarde de verão, o autor recebeu a Gazeta em seu refúgio para uma entrevista sobre o novo trabalho, ainda que a conversa tenha ido além da pauta. É o que você vai conferir nesta edição. Não perca

RICARDO LÊDO

SELETA DESINS

Sidney em sua biblioteca, com um exemplar de Dias de Sim: “Você ter o prêmio de dez, 15 ou 20 leitores atentos e dedicados à sua obra é um reconhecimento fantástico”

RAMIRO RIBEIRO REPÓRTER

O dia de Sidney Wanderley começa cedo. Por volta das seis da manhã, ele já está a postos para iniciar sua rotina de revisor. Monografias, dissertações, trabalhos acadêmicos. Não raro vê-se espremido pelos prazos, quando estende a atividade durante a tarde. Após o expediente, entram em cena suas boas companhias: discos e filmes. O poeta, nascido em Viçosa há 53 anos, não abre mão dos álbuns de jazz e música clássica, nem de bons DVDs. Na sala de seu apartamento, no bairro do Farol, a coleção de títulos – dos mais diversos países, estilos e diretores – chama a atenção. Atualmente, dedica-se à série Berlin Alexanderplatz, do diretor alemão Rainer Werner Fassbinder, com quase 16 horas de duração. O constante contato com a arte, aliado à rotina de trabalho e de criação literária, tem feito com que ele escolha com apuro as aparições em eventos públicos ou reuniões informais. Fez questão, porém, de comparecer à mesa dedicada ao alagoano Jorge Cooper, influência declarada, na última edição da Bienal Internacional do Livro, em outubro passado. É seguindo o exemplo dado por Cooper que desistiu, há mais de uma década, de realizar lançamentos oficiais dos seus livros. Não será diferente com Dias de Sim, sua mais nova coleção de poemas – permeada pelo bom humor na observação das coisas do mundo. Sobre essa transposição da personalidade de quem escreve para aquilo que é escrito, Sidney é enfático: “Se, com o passar do tem-

po, você não tiver uma dicção própria, então você é nulo, não existe como criador. A questão do humor e da ironia, qualquer pessoa que converse dez minutos comigo percebe. E isso se transfere para a poesia, porque sou eu que estou escrevendo. É Sidney Wanderley, com seu humor e sua ironia, migrando para o texto”. Sua conhecida ironia fala mais alto quando o assunto é a investigação do que o levou ao atual período de reclusão. “Bateu um grande enfado. Estou aqui em casa muito bem acompanhado, como diria Vinicius de Moraes, com meu violão, minha cachaça e minha poesia. Grandes DVDs, a melhor música, os melhores autores; então, não sinto grande necessidade de ir buscar lá fora”, explica. Lá fora significaria se deparar, nas ditas rodas da intelectualidade alagoana, com, entre outras pérolas, “esse nativismo de retardado chamado alagoanidade”. Na entrevista a seguir, além de falar do processo que levou a Dias de Sim, o poeta comenta temas ligados à produção literária e intelectual em Alagoas – tudo com a mordacidade que lhe é peculiar. Confira.

Gazeta. Qual o espaço que Dias de Sim ocupa na sua bibliografia? Sidney Wanderley. Vou contar como começa a história. Aos 17 anos, comecei no curso de Medicina, sem vocação alguma. E ali, quando me descobri, estava lendo muita poesia: Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral. Foi a minha descoberta da poesia. Lembro que saía das aulas de anatomia – que detestava – e me dizia sempre: “Vai tentar escrever um livro de poesia que

SIDNEY WANDERLEY POETA

“Eu quero um leitor que me dê atenção proporcional ao esforço que faço de tentar uma obra razoável, digna de atenção”

preste!”. Isso foi em 1975. Então, 37 anos depois, ainda estou na busca desse livro, e não cheguei, tenho plena consciência de que não atingi, não estou satisfeito de jeito nenhum. Dias de Sim é um livro que, digamos, não me desagrada. Considero até um bom livro, não tem poemas comprometedores, penso eu. Mas toda a minha produção, desde o Poemas Post-húmus, de 1991, até hoje, é sempre mirando um livro que eu aprove na íntegra. Que eu possa dizer “este é o livro”. Foi o desafio que me fiz aos 17 anos, no início do curso de Medicina. A cada dez anos, mais ou menos, faço uma espécie de antologia. Fiz isso com o Desde Sempre, em 2000, e fiz com o Chuva e Não, em 2009. Entre as antologias, vou publicando um livro, fazendo um apanhado. Para mim, o que não está ali naquela antologia é como se eu não tivesse escrito. É como se tivesse sacudido no lixo. “Faz de conta que isso não consta, não existiu, não foi escrito”. Essa é a coisa. Mesmo um livro como Dias de Sim, quando termino e leio friamente, quando o tempo passa, vejo que posso tirar dali ‘x’ poemas e descartar ‘y’ poemas. Sempre é assim.

Você declarou que Chuva e Não, de 2009, era o seu primeiro livro que colocava na estante. Foi. O Dias de Sim está sendo o segundo. Queira Deus que eu não tenha que fazer esse juízo. Pretendo, daqui a dez anos, quando estiver chegando aos 50 de exercício poético, ter um livro em que possa dizer “este é o livro”. Aí, pode ser o caso de batalhar uma editora de maior porte, coisa com que não tenho me preocupado. Deixei de procurar em decorrência disso; estou sempre experimentando, fazendo experimentos. Dias de Sim é dedicado “para meus dez leitores”. Você escolhe suas vítimas? Escolho. Como poesia não é uma coisa para dar ibope, eu digo que, se você quer ibope, fama, divulgação e sucesso, tente jogar bola bem, fazer música brasileira de má qualidade (axé, sertanejo); quanto pior fizer, você desfrutará de um grau maior de fama, vai dispor de um público mais amplo. Mas poesia, como alguém já disse, é para a grande minoria, mas uma minoria que importa muito, que faz a diferença. Uma minoria composta de pessoas diferenciadas, que fazem a cabeça das outras. Quando você amadurece, com o passar do tempo e do exercício literário, você vai vendo que não precisa falar para muita gente. Quando dedico a dez leitores, podem ser 15, 20, mas não muitos. Mas leitores que, desde o início, me prestam uma atenção danada: fazem críticas severas, sugestões válidas, observações inteligentes, desafiadoras, mostrando a inadequação de um título, um verso que está truncado e deixou de dar força

ao poema. Aquela leitura atenciosa. Para mim, isso já é uma coisa fantástica. Primeiro, porque faço o que quero, é uma coisa que me dá prazer; no ritmo que quero, não sou obrigado a fazer um poema por dia ou por ano, já passei quatro anos sem escrever nenhum poema, pensei que não voltaria mais. Quatro anos estéreis, de 2004 a 2008. Pensei que tinha acabado, mas depois voltou – e voltou bem. Então, além de tudo isso, você ter o prêmio de dez, 15 ou 20 leitores atentos e dedicados à sua obra acho que é um reconhecimento fantástico. Não troco esses meus 20 por uma multidão de delirantes.

O seu fazer literário está mais voltado ao ato de criação do que à busca de novos leitores? Não tenha dúvida. Vou retomar algo que falei no lançamento do livro do Jorge Cooper, na Bienal do Livro, no ano passado. Foi uma coisa que aprendi com o Cooper, que nunca se empenhou na publicação dos próprios livros, nem se fazia presente no lançamento. É uma espécie de ética. Eu não sou do grupo dos poetas ou dos criadores que adulam o leitor. Não faço nenhuma questão. Isso pode até parecer arrogante, não digo que é. Eu quero um leitor que me dê atenção proporcional ao esforço que faço de tentar uma obra razoável, digna de atenção. Então, quero um leitor que seja digno da minha obra, não quero um número. O que disse na Bienal foi que não sou um poeta-quenga. Quer dizer, um poeta oferecido, que se entrega, que vive se oferecendo nos blogs de todo mundo. Que vai a todos os

Domingo 19/02/2012

SIMONE MARINHO/AGÊNCIA O GLOBO

Sérgio Cabral tem livro sobre a história das escolas de samba do Rio de Janeiro reeditado. B8

lançamentos para que todos vão ao seu. Que vive cavando espaço na imprensa. Não tenho isso. Nunca tive, não é a minha. Gosto de ser reconhecido normalmente, todo mundo gosta, mas uma coisa decorrente do seu trabalho, não uma adulação. Você tem que se afirmar pela qualidade do que você produz, não pelo número de pessoas que você “conquista”.

O fazer poético em si é algo que se afasta dessa busca pelos holofotes, uma atividade que requer tempo e disponibilidade? Há uma velha teoria, sobre a qual Paulo Leminski já tratou, Manoel de Barros já tratou, que é a teoria do inutensílio. Para que serve o poema? Diria que serve, como qualquer forma de arte, para refinar a sensibilidade do ser humano, para diferenciá-lo do resto do bestiário geral, da animália que está aí. Para refinar alguns espíritos mais sofisticados há o poema, a boa música, uma pintura de qualidade, as artes de forma geral. Nesse aspecto, o poema jamais deve ser comercial, você não escreve pensando em agradar. Quem faz isso já é um espírito degradado. Você escreve primeiro pensando em se agradar, em atender aos seus níveis de autocrítica, para, a partir daí, cair no gosto de alguns. ‡ Leia mais nas págs. B2 e B4

Serviço Título: Dias de Sim Autor: Sidney Wanderley Editora: Cepal Preço: R$ 12 (60 págs.) Onde encontrar: na Nossa Livraria e no Sebo Dialética


B 2 Caderno B

GAZETA DE ALAGOAS, 19 de fevereiro de 2012, Domingo

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Com o ‘modo autocrítica’ sempre ativado, Sidney Wanderley não cede a facilidades e conveniências: exigente com sua produção, ele costuma deixar muita coisa pelo caminho

“É IMPORTANTE PRODUZIR MUITO PARA TER MUITA COISA PARA BOTAR NO LIXO” RICARDO LÊDO

O processo de criação do autor inclui ainda refazer poemas antigos: “Leio e percebo facilmente os erros que cometi em livros passados”, ele afirma RAMIRO RIBEIRO REPÓRTER

Gazeta. Após o lançamento de Chuva e Não, você disse que não tinha nenhum poema guardado. Como os que compõem Dias de Sim surgiram? O processo criativo teve algo de particular ou mesmo de especial? Sidney Wanderley. Sempre que termino um livro, passo pelo menos um semestre de esterilidade; foi um processo que ocorreu em todos. Terminei Chuva e Não no início de 2009, passei uns seis meses sem escrever e voltei. Produzi algo em torno de 100 poemas. Desses, botei 60 no lixo, como sempre faço, e coloquei 40. É o que está lá na segunda orelha do livro: este livro contém 40 poemas e algumas inquietações. Desses 40, há três que pertenceram a livros antigos, mas que refaço. Vou percebendo imperfeições, algumas redundâncias, erros de métrica. Se o poema vale alguma coisa, e vale, é por isso que recoloco, então tem que ser corrigido. Chega a ser até uma mania do revisor; leio e percebo facilmente os erros que cometi em livros passados. Até pela dualidade presente nos títulos, Dias de Sim é uma resposta, ou continuação, de Chuva e Não? Seria as duas coisas. Vamos ser dialéticos: é uma resposta, que funciona como estímulo; e é um contraponto. Chuva remete à ideia de fertilidade, e o não à negação, que é necessária, porque a fertilidade excessiva gera a queda de qualidade. É importante produzir muito para ter muita coisa para botar no lixo. O Dias de Sim é um livro fino; meus livros de poemas normalmente são finos, e são, exatamente, os dias em que choveu, ou pelo menos chuviscou. Os dias em que houve fertilidade, contrapostos ao não do livro anterior.

Num exercício de futurologia, seus próximos trabalhos podem, ainda, orbitar por esse campo? Pouco provável. Devo passar um semestre ou um ano sem produzir nada. A gente nunca sabe o que é que vem, é muito difícil. Como é ficar sem produzir nada? E como é voltar a produzir? Você se impõe esses intervalos? Já houve casos de eu me impor determinadas punições. Me lembro perfeitamente de quando meu irmão mais novo morreu, de aneurisma cerebral, em 1983. Lembro que passei dois anos sem escrever nada, quase como uma punição mesmo. No período entre 2004 e 2008, não teve explicação, simplesmente não veio, e eu não ia forçar. Não vinha uma ideia para anotar, o caderno limpo. Foi uma coisa muito desconfortável, um incômodo. Nesse aspecto, me contraponho a um dos poetas que mais leio e admiro, que é o João Cabral. Não tem como negar a inspiração. Todo poeta, inclusive o ‘seu’ João, tinha inspiração. O que não quer dizer que você não vai trabalhar muito esse material proveniente. João Cabral tinha horror àquela ideia romântica da inspiração, aí ele radicalizava. É impossível que não tenha inspiração, sempre tem. E daí tem o trabalho. O problema é que o pessoal morre na inspiração. Fazem poemas pavorosos, mas dizem que foi isso o que veio. E daí? O público tem que aguentar essa besteira que veio? Fundamentalmente, é exercício. Inspiração, mas sob o viés da autocrítica. É possível classificar os poemas do livro entre inspiração, observação e experiência pessoal? É como está no verso de abertura, de Sophia de Mello Breyner Andresen: o meu interior é uma aten-

O poeta não promove lançamentos de seus livros há 13 anos. “Vendia cerca de 100, 120 livros. Mas poucos liam, a maioria era somente vendido. Não tinha feedback algum”, conta

“Todos os meus amigos, o pessoal da esquerda, está entrando ou querendo entrar para a academia. Menos meu grande amigo Marcos de Farias Costa, que é coerente. Sempre fomos poetas antiacadêmicos, da escola do Jorge Cooper. Não queremos nada com o que é formal, academia, instituto, nada. Antiformalismo. Meus amigos estão ficando ridículos, caretas”

ção voltada para fora. Sempre foi assim. Este fora pode ser tanto essa conversa quanto a observação do mundo, estou sempre atentíssimo às coisas. O poema Seis da Manhã sou eu acordando, entre aceitar ou recusar o mundo. Sou eu observando o mundo e a minha reação perante ele. E muito da observação vem da leitura. Sou um cara que, fundamentalmente, lê quase o dia todo. Observo o que o outro escreveu, experienciou e pode compartilhar comigo. Então, é da minha experiência. Tanto intelectual como de vida, existencial. Nisso, a inspiração estaria fora. Ela vem antes, de um jeito ou de outro.

Você trabalha como revisor: é o seu fazer diário, além do exercício poético. É você que não se cansa das palavras ou elas que não se cansam de você? Sou revisor há 12 anos, é um ofício que exerço sem prazer. Como fui bancário durante 15 anos. Não acredito que alguém tenha prazer sendo bancário, não imagino como. Não tive nenhum, era para ganhar a vida. Antes, exerci uma atividade com prazer na minha juventude, que foi ensinar biologia. Depois do banco, fui jornaleiro, dono de revistaria durante 13 anos. De novo para ganhar a vida, prazer nenhum. A mesma coisa acontece na revisão, que, sem dúvida, está mais ligada ao lado intelectual. O início como revisor alterou algo no seu processo de criação literária? Você fica muito mais rigoroso como observador na hora em que vai criar, isso nem sempre é bom. A revisão é um ofício. A criação é um prazer, a revisão é uma maneira de ganhar a vida. Uma não compete com a outra e, a meu ver, não ajuda. O que a revisão alterou muito foi o que eu ouço, a música. Sempre ouvi muita MPB de qualidade, mas, desde que comecei na revisão, passei a ouvir muitíssimo mais música clássica e jazz. Não tenho mais paciência de terminar uma revisão, ir para a rede e ficar prestando atenção ao que as pessoas estão falando. Já a sede de leitura não perdi, preservo

do mesmo jeito. Evidente que é uma leitura viciada, já leio um livro revisando. É um treino, uma doença até. Às vezes tenho que ler de novo, porque fiquei preso aos aspectos gramaticais e não à ideia do texto.

Por quer a opção de não fazer o lançamento do livro? Nos meus primeiros três ou quatro livros, fiz lançamentos, que é quando você de fato vende os livros. Um poeta municipal ou estadual, digamos, vende mesmo no lançamento. Depois, pinga um ou outro. Eu fazia não uma conferência, mas uma falação, que era sempre muito divertida, as pessoas iam para ouvir, curtir essa fala. Vendia cerca de 100, 120 livros, o que é um número bom para um estado de analfabetos. Mas poucos liam, a maioria era somente vendido. Não tinha feedback algum. Aí você vai ficando mais velho e mais vivido... resolvi inverter. Já que são tão poucos os leitores, vou tentar escolhêlos. Eventualmente, um leitor diferenciado desses me leva a outro. Tenho, seguramente, mais leitores em outros estados do que aqui, onde digo que não tenho dez. Em outros estados, é possível eu ter uns 20. Meu último lançamento foi há 13 anos. E não farei mais. Não sinto nenhuma falta. Meu prazer é escrever e botar no correio para as pessoas que eu quero que leiam. Outra coisa que tem acontecido é que todos os meus amigos, o pessoal da esquerda, está entrando ou querendo entrar para a academia. Menos meu grande amigo Marcos de Farias Costa, que é coerente. Sempre fomos poetas antiacadêmicos, da escola do Jorge Cooper. Não queremos nada com o que é formal, academia, instituto, nada. Antiformalismo. Meus amigos estão ficando ridículos, caretas. E você nunca pensou em entrar para a Academia Alagoana de Letras, por exemplo? Não. Não costumo cultivar ideias melancólicas. São essas coisas que o levaram a um maior recolhimento nos últimos tempos? A coisa aqui em Alagoas é

um espaço muito apertado. Você é da esquerda, mas não é da esquerda convencional, quadrada, aí já vai sofrer um tipo de discriminação. Você não se enquadra em nenhum movimento formal, instituto, academia, e vê isso pelo lado do ridículo, do risível dessa pomposidade, dessa morte. Uma coisa necrosada. Outro ponto: minha poesia não é a do tipo que celebra as belezas de Alagoas. As belezas que reconheço nas praias de Alagoas também reconheço nos deputados de Alagoas, nos vereadores, na canalhada toda. Então, não compartilhar essa bobagem, não celebrar esse nativismo de retardado chamado alagoanidade, vai afastar você de uma rede de integração que diz que isso aqui é a coisa mais linda e mais fofa que existe. Tem muita coisa que gosto aqui, sobretudo os amigos, e é por isso que eu fico. Não me sinto mal, vivo muito bem aqui. Já tive minha fase de ir aos barzinhos, de ter uma turma. Até os 30 e poucos anos. Depois, bateu um grande enfado. Estou aqui em casa muito bem acompanhado, como diria Vinicius de Moraes, com meu violão, minha cachaça e minha poesia. Grandes DVDs, a melhor música, os melhores autores; então, não sinto grande necessidade de ir buscar lá fora. Tanto é que o meu dia de sair, invariavelmente, é às segundas-feiras, porque os bares estão praticamente desertos. Assim, ninguém é obrigado a ouvir minha conversa e eu não sou obrigado a engolir a imbecilidade circundante. Aqui é uma terra em que as pessoas estão satisfeitas. Oras, satisfeitas com o quê?

A que você atribui essa mudança brusca de posição por parte daqueles que um dia renegaram o formalismo acadêmico? À vaidade bronca. A vaidade inteligente faz você rir das coisas ridículas. Todos nós somos vaidosos; se não formos, seremos doentes, depressivos ou sorumbáticos. A vaidade bronca faz você se acumpliciar às coisas ridículas. É querer dar um valor às coisas que elas, efetivamente, não têm. ‡


B 4 Caderno B

GAZETA DE ALAGOAS, 19 de fevereiro de 2012, Domingo

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Da solidez da obra de Bandeira, Drummond e João Cabral à produção contemporânea de nomes como Ferreira Gullar e Wislawa Szymborska, Sidney Wanderley revela o que habita sua cabeça

“Dos nossos daqui, evidentemente, os dois grandes são os Jorges: Jorge de Lima e Jorge Cooper”, diz o poeta RAMIRO RIBEIRO REPÓRTER

Gazeta. Voltando à literatura, qual o melhor poeta brasileiro vivo? Sidney Wanderley. Dos poetas vivos, para mim, o melhor é o Ferreira Gullar. Mas claro que ele está num nível muito longe do patamar que já desfrutamos: Bandeira, Drummond, João Cabral. Bem, depois do Gullar, um poeta que teve uma fase interessante, a partir do nono livro em diante acertou a mão, mas depois começou a se repetir, é o Manoel de Barros. Absolutamente previsível, enrijecido.

Wislawa Szymborska. Uma mulher fantástica. A dicção, a maneira de perceber e de dizer o mundo em versos é parecidíssima com aquilo que eu sempre persegui. É uma figura fantástica, foi a grande descoberta. Aqui no Brasil, outra figura que descobri e li, há dez anos, foi Orides Fontela. Foi uma sugestão da Susana Souto, pud e c o n f i rm a r a grandeza de s u a

Alguma descoberta literária recente? A maior descoberta que fiz de poesia, nos últimos dez anos, foi uma polonesa, que inclusive morreu no início do mês, aos 88 anos,

FOTOS: REPRODUÇÃO

PREFERÊNCIAS, REFERÊNCIAS E DESCOBERTAS poesia. Dos nossos daqui, evidentemente, os dois grandes são os Jorges: Jorge de Lima e Jorge Cooper. Esses são os grandes poetas de Alagoas. Os dois Jorges. O meu azar foi não ter nascido Jorge. Era bem melhor se tivesse nascido Jorge, teria dado mais sorte.

Seus poemas possuem várias referências da prosa, mais do que propriamente da poesia. Leio muita poesia, claro. Mas a coisa que eu mais leio é prosa. A quantidade de livros de história e de biologia que leio também é uma coisa monstruosa.

Há, além de referências científicas, muitas imagens bíblicas. Ótimo que tenha percebido isso. Muitos não percebem. A leitura da Bíblia é a de um ateu. Estou interessado, digamos, no texto literário, na história. Tem muita disputa de poder. É a visão ateia da Bíblia, uma leitura recorrente e que tem uma influência danada nos meus poemas. Às vezes, escrevem longos textos sobre o que escrevo e não mencionam essa leitura bíblica. Acabo de ter 11 leitores, e não mais 10. E, vamos dizer, um crescimento de 10% numa tarde é muito significativo! ‡

Dias de Sim: uma seleção “A maior descoberta que fiz de poesia, nos últimos dez anos, foi uma polonesa, que inclusive morreu no início do mês, Wislawa Szymborska”

TEMPO Por levar a vida a ler História e Biologia (nas horas vagas, romances; nas horas plenas, poesia), restei repleto de séculos, versos, Flaubert, catedrais, runas, ruínas, reis mortos, fungos e melancolia. Por isso meus gestos lentos, sem ânsia ou arrebatamento, pois sei que a vida se mede – se desfaz, se reinventa – pela trena dos milênios, sob os humores dos ventos.

UMA LIÇÃO Não tornes a mirar o que passou – ensinam Orfeu, a mulher de Lot, e Admeto, um dileto amigo meu, que em lágrimas danou-se a contemplar nossa cidade em chamas e desconsolo. Um trem rubro e raivoso o alcançou. Saudade é para dentro, não para trás. Não tornes a mirar o que passou. O que passou, passou e não há mais.

A PAZ Para o meu sossego, eis que enfim repousas. Nossa vida juntos, um inferno só. Agora teremos nossa lua de mel: eu – ainda carne; tu – já puro pó.

ENTERRO Na hora em que o caixão solenemente baixava à cova, em gritante desrespeito o celular tocou por oito vezes seguidas à cata do seu senhor. Ignora-se se o defunto respondeu à ligação.

QUE FAZER? Exigem-me os conterrâneos e o senhor Liev Tolstói que eu cante a minha aldeia (mais ainda: que a celebre) - para ser universal. Poeta municipal, atraem-me mais os ventos e os pré-socráticos, as brumas que a tudo devoram, a inquietude das moscas, o protesto dos trovões e a serenidade dos cactos. Descompasso e desconforto. Que a Terra me seja breve, porquanto leve não foi.

SEIS DA MANHÃ Pulsação incessante, esse abrir e fechar de indecisas cortinas. Pálpebras ao amanhecer, recebendo e recusando o mundo.

A MULHER DE LOT Nem sequer um nome me deram. Pouco importa, não é hora para queixumes. Numa estátua de sal me converteram por uma simples olhadela para trás: é que me bateu, doída, uma baita saudade de Sodoma. Melhor que olhar para frente e avistar o degenerado do Lot, sob a esfarrapada desculpa do vinho, a emprenhar as meninas que amamentei.

A QUEDA Palavras têm cascos e patas e fúria. Galopá-las é tão só uma remota possibilidade. No mais das vezes, desprezam-nos. No mais das vezes, despenham-nos. Lançados ao solo, frustros e febris, sonhamos montá-las em dias de sim.


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