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QUINTA-FEIRA, 1º DE JANEIRO DE 2009
ilustrada
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COMIDA
Vocênãosabeoqueestá Chefs contam quais pratos e ingredientes ainda são preteridos nas mesas dos restaurantes da capital paulista
perdendo Alexia Santi/Folha Imagem
Produtos rejeitados pelos clientes incluem vísceras bovinas e suínas, aves de caça, escargot, rã, coelho e frutos como quiabo e jiló ................................................................................................
RENATA DO AMARAL COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O que têm em comum o quiabo, o escargot, a rabada e o coelho? Todos esses ingredientes são considerados tabus gastronômicos, segundo chefs entrevistados pela Folha. Quando aparecem no cardápio de restaurantes, figuram no ranking dos pratos menos pedidos. As receitas, porém, podem esconder boas surpresas: sete de 13 chefs ouvidos dividem suas descobertas com os leitores. Língua de cordeiro com vinho tinto e especiarias, servida na companhia de purê de tomate assado, é o prato menos solicitado no brasileiro Tordesilhas. A chef Mara Salles vai ser obrigada a tirá-lo do menu em breve, por dificuldade de encontrar fornecedor. É uma oportunidade única de conhecer a iguaria, afirma Mara, que só não prova jacaré por morrer de medo do animal. “Falta coragem de assumir o ingrediente, extrair o que ele tem de melhor e colocar uma peça de resistência no cardápio. Tantas coisas boas estão se perdendo!”, diz. “Daqui a pouco, a gente vai viver a ditadura do foie gras, do filé mignon, do robalo. O Brasil tem muito mais diversidade que isso.” O restaurateur Carlos Bettencourt, proprietário do restaurante português A bela Sintra, acha que os brasileiros perdem em não experimentar ingredientes como coelho, pombo e lebre. O arroz de codorniz, que anda raro até em Portugal, é o prato que menos sai na casa. Bettencourt insiste em prepará-lo e sempre oferece a receita aos amigos que vêm visitá-lo. No Lola Bistrot, a rabada é o prato menos pedido. “As pessoas associam a imagem do rabo do boi ao preparo. No entanto, toda carne próxima do osso tem um sabor marcante e pungente”, afirma a chef Daniela França Pinto, que não come dobradinha, sarapatel nem miolo de boi. Na sua opinião, a valorização de produtos europeus faz com que matérias-primas nacionais fiquem restritas a restaurantes regionais. A bochecha de vitela guisada
Tabus mudam ao longo da história, afirma professor
com lula é o prato que sofre mais resistência do público no espanhol eñe. É por isso que o chef Sergio Torres Martinez sempre pergunta ao cliente se ele topa experimentar a criação antes de incluí-la no menu-degustação, em que paga-se um preço fixo para provar uma sequência de receitas. Segundo ele, as pessoas ficam reticentes, mas costumam adorar o prato. No francês Marcel, o jovem chef Raphael Durand Despirite usa truque semelhante: quando quer testar um prato mais ousado, o coloca no menu-degustação para sentir a aprovação dos clientes. É o que tem feito com a rabada servida com feijão-guando. Exotismo valorizado O chef Tsuyoshi Murakami, do japonês Kinoshita, enumera iguarias exóticas que os brasileiros deveriam provar: turu, molusco que cresce em troncos de árvores no Amazonas; shiokara, lula curtida em sal e saquê por uma semana; e nato, pasta de soja fermentada. Murakami faz receitas com ingredientes como barbatana de tubarão e diz que não há prato menos pedido por lá —os que menos saíam eram, ao contrário, os triviais, que foram tirados do cardápio. Além dele, os chefs do franco-italiano La Tambouille, do contemporâneo Cantaloup e do francês La Brasserie Erick Jacquin disseram que não há receitas menos pedidas em seus estabelecimentos. Para a chef do Brasil a Gosto, Ana Luiza Trajano, a carne de bode deveria ser mais bem aproveitada. Ela encontrou uma tática para defendê-la em seu restaurante: indica ao cliente e diz que ele pode escolher outro prato, por conta da casa, se não gostar. “As pessoas estão mais abertas a experimentar coisas diferentes, principalmente quando confiam no restaurante”, afirma. Não é só o público que evita certos ingredientes —os próprios chefs também têm sua lista de itens preteridos. “Já tentei duas vezes, mas não consegui comer andouilette, um embutido feito com intestino grosso de porco”, afirma Benny Novak, chef do restaurante Ici Bistrô, que não encara sarapatel nem buchada. RENATA DO AMARAL participou do 46º programa de treinamento da Folha, que foi patrocinado pela Odebrecht e pela Philip Morris Brasil
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COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O chef Benny Novak, do Ici Bistrô, com sua versão do tutano com salada de salsinha e torradas de brioche
Rins de carneiro com talos de bananeira, macaco refogado com pepinos e fígado de raia frito. Palato de vaca, olhos de vitela e testículos de carneiro. Os pratos soam estranhos hoje em dia, mas foram registrados em dois dos livros pioneiros da literatura culinária brasileira: “Cozinheiro Nacional”, editado entre 1874 e 1888, e “O Cozinheiro Imperial”, de 1840. “A sociedade é dinâmica e as coisas mudam, mas sempre há alguma forma de exclusão vigente. As comidas são culturalmente determinadas”, diz o doutor em sociologia e professor da Unicamp Carlos Alberto Dória. Segundo ele, quando novos hábitos se impõem, os antigos são estigmatizados. A professora de história da gastronomia da Universidade Anhembi Morumbi, Graziela Milanese, concorda que a repugnância é cultural. “Há estranheza em saber que se está comendo um miolo, um rim, mas, se a pessoa não souber o que é, vai achar uma delícia.” Ela própria se viu numa saia justa em uma viagem ao Uruguai, quando o dono de um restaurante lhe ofereceu reto de boi. Provou, mas não gostou. Achou gorduroso demais. O chef e professor de cozinha mediterrânea e européia do Centro Universitário Senac, Alessandro Nicola, observa dois fenômenos paralelos: por um lado, a alta gastronomia vem abrindo portas para novos ingredientes; por outro, a maior parte da população raramente se afasta do prato com bife, arroz, feijão e salada de alface e tomate. “Temos o mau hábito de distinguir entre carne de primeira ou de segunda. Isso não existe: o que existe é carne adequada para uma ou outra preparação”, diz. Para ele, contribui para a simplificação o fato de as pessoas dedicarem menos tempo à preparação de alimentos e preferirem produtos industrializados. Nicola teme que as novas gerações se neguem a comer até cenoura. “Nossos pais e avós tinham muito menos restrições”, afirma.