Revista Contraste #01

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CON TR A E contraste



Oh, abre os vidros de loção

e abafa

ILUSTRAÇÃO FRANCISCO MARANHÃO

O insuportável mau cheiro da memória


Revista Contraste Publicação estudantil independente

Número 01 - 1º semestre de 2013 Periodicidade: Semestral

Tiragem: 600 exemplares Corpo de texto: Baskerville MT Std Miolo: Pólen Soft 80g; Color Plus Sahara 80g Capa: Supremo Alta Alvura 250g Corpo editorial Caio Henrique Sens Fernando Guerreiro Motta Gabriel Hollaender Vilela Jordana Leite Veríssimo Lopes Léo Schurmann de Azevedo Lígia Ferreira de Araújo Nicolas Le Roux Thais Viyuela de Araujo Ilustrações Caio Righi Francisco Maranhão Jordana Lopes Lúcia Furlan Paulo Caruso Thiago Ribeiro

Colaboradores Andrea Barcelos Arthur Moura Campos Cássia Yebra Frederico A. Hollaender Guilherme Brito Lucas Terra Luiza Gomyde Mariana Teixeira Rafael Shinnok Fotografias Cristiano Mascaro Léo Schurmann Martim Passos Maurício Alcântara Nicolas Le Roux

Agradecimentos Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - USP Diretoria e Comissão de Publicação FAU-USP Funcionários do LPG FAU-USP Agradecimento especial ao José Tadeu de Azevedo Maia Ao apoio da Papelaria Universitária A todos que apoiaram o projeto

ISSN: 2317-2134 Autor Corporativo: Gabriel Hollaender Vilela Rua do Lago, 876 Cidade Universitária Cep: 05508-900 São Paulo SP Telefone: (11) 9-7144-5676 email: contraste.edit@gmail.com

Impressão e montagem LPG - FAU USP Laboratório de Programação Gráfica Rua do Lago, 876 Cidade Universitária Cep: 05508-900 São Paulo SP Fone: (11) 3091-4528 email: lpgfau@usp.br


www.pu.com.br

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7 Editorial

Ensaios 8 Dois Jonas Tadeu Silva Malaco impertinentes sobre memória 10 Reflexões arquitetura e ficção científica José Antonio Vasconcelos Cuba 22 Pá Marina Caraffa Pugna entre el templo y el palacio en 30 La el Perú prehispánico Álvaro F. González Quijano Brasil Arquitetura 41 Entrevista Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci de Lina Bo Bardi pelo território 73 Incursões da memória e possíveis relações com a teoria da restauração Eneida de Almeida Ecanas 82 Memórias Emiliana Pomarico Ribeiro Niemeyer e a forma da liberdade 88 Oscar Rodrigo Queiroz do futuro de uma arte sem 94 Memórias passado Giselle Beiguelman

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Entrevista Caramelo Cristiane Muniz, Fernando Viegas e Fernanda Bárbara



ILUSTRAÇÃO JORDANA LOPES

Esse conjunto de folhas impressas está agora sob o domínio de mais um meio de transformação: você. Ele pode assumir diversos formatos, contudo se coloca aqui, a princípio, como um espaço. Espaço aberto de expressão, de discussão, de ideias; mas acima de tudo, um lugar para onde fugir das amarras do cotidiano e refletir sobre os mais variados assuntos. Ele deve existir a todo o momento e ser reinventado sempre que necessário para que não se torne uma efemeridade, mas um costume. A Revista Contraste surgiu do desejo de buscar novas formas de posicionamento crítico no ambiente universitário. De ampliar o repertório com vertentes de conhecimento que não se restrinjam a nossa área de formação. Da carência de discussões multipolares embasadas em saberes advindos de diferentes indivíduos que contribuam para construir uma reflexão mais completa sobre temas importantes para a sociedade e o ensino. Dessa forma, memória entra nesta edição instigando questões sobre a identidade pessoal e coletiva num passado que ajude a compreender os caminhos de nossa sociedade. Ao mesmo tempo, esse tema surgiu inspirado pela nossa herança de revistas estudantis, que compreendemos como um importante instrumento de expressão e debate. Assim, a memória será destrinchada e construída através de visões diversas, de forma que “contraste” não está entendido aqui como uma oposição de elementos, mas sim como composição deles que contribui para aumentar a percepção de um todo. É ele que compõe imagens mais claras, não apenas pelo confronto, mas pela comparação, combinando o conhecimento de forma positiva. Contudo, esse conjunto de folhas impressas só irá adquirir esse valor se usado com uma atitude crítica que saia do perímetro destas páginas.

Editores


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s sociedades sem cidades aparecem também como sendo sociedades sem escrita. A cidade apresenta-se surgindo com a escrita, desaparecendo com ela. Associam-se intimamente uma à outra. Difícil, no entanto, desvendar os segredos de seus vínculos. Mas como quer que seja, as sociedades que se apresentam negando a si a existência objetiva nos monumentos, edifícios públicos e templos não se mostram também fazendo recurso à escrita, essa forma pela qual se objetivam também as relações sociais. O texto, uma vez escrito, adquire a mesma materialidade de um edifício. Estará sempre lá onde for depositado. Ausentando-se seu autor, nada perde em sua presença. Esta é independente daquele. A escrita é algo material: o texto sob caracteres escritos, um objeto separado de seu autor, existindo para além dele. A escrita pereniza a fala, fixando-a de uma vez por todas. Reduz o peso do suporte de memória pessoal para os pensamentos. Não é necessário guardar na memória quando, para recordar-se, basta recorrer ao texto. Uma vez escrito, o texto dispensa, em maior ou menor medida, seu autor. Essa matéria, a escrita, não a vemos nas sociedades sem cidades. Não mostram edifícios públicos e não mostram registro escrito de suas atividades. Seriam incapazes de fazê-lo? Não teriam tido uma escrita por algum tipo de insuficiência qualquer? Teriam sido pobres demais, com uma vida simples demais, ou com uma cultura simplória demais? Talvez tenha-

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mos que procurar em outra direção, pois há quem se apresente como tendo estado bem junto dessas sociedades sem escrita e estes, o que dizem é que, se nelas os homens não escreveram, não foi porque não puderam: talvez porque não tenham querido escrever, e isto por acreditarem ser mesmo melhor não fazê-lo. De um texto ainda muito próximo de uma cultura não-escrita, quando a escrita foi capaz de pensar seu contrário: “Bem, ouvi dizer que na região de Náucratis, no Egito, havia um dos velhos deuses daquele país, um deus a que também é consagrada a ave chamada Íbis. Quanto ao deus, porém chamava-se Thoth. Foi ele que inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de damas e os dados, e também a escrita. Naquele tempo governava todo o Egito Tamuz (...). Thoth foi ter com ele e mostrou-lhe as suas artes dizendo que elas deviam ser ensinadas aos egípcios. Mas outro quis saber a utilidade de cada uma, e enquanto o inventor explicava, ele censurava ou elogiava, conforme estas artes lhe pareciam boas ou más. Dizem que Tamuz fez a Thoth diversas exposições sobre cada arte, condenações ou louvores cuja menção seria por demais extensa. Quando chegaram à escrita, disse Thoth: “Essa arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fortalecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria” Responde Tamuz: “Grande artista Thoth! Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da utilidade ou prejuízo que


advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequência serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios.”1 A escrita poderia ser um auxiliar valioso para a recordação, mas levaria a um enfraquecimento da memória. Mais: poderia constituir-se em simulacro e propiciar impostura. O discurso objetivado na escrita transforma-se em objeto perene. Perenizado em sua objetividade, não dá, no entanto, permanência automática ao conhecimento que nele se depositou. Para que esse conhecimento efetivamente continue existindo, é necessário que se leia o que foi escrito. Ler, entretanto, não é uma simples atividade do olhar. O ler pressupõe mais do que simplesmente isso. Pressupõe um leitor informado sobre o que foi escrito, um leitor que complete por vezes o texto. O leitor, antes de tudo, precisa conhecer a escrita do texto que tenha em suas mãos.

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Para que um texto possa ser lido, para que possa revelar os conhecimentos que contenha, é necessário que o leitor seja capaz de decifrar sua escrita. O texto permanece mudo quando se é incapaz de decifrar seus sinais. Uma cultura não se mantém pela mera preservação de seus textos. Ela só sobrevive quando continuamente, geração após geração, é capaz de ir formando os leitores para seus textos. Ela precisa manter o leitor bem formado. Quando minguam os leitores, decreta-se a degradação e os fim dos textos; estes são condenados ao desaparecimento pela ação de fungos e vermes; mais rapidamente, às vezes, pelo fogo ou pela fúria humana. Não há como preservar a escrita sem que se mantenham existentes os leitores. A escrita, no entanto, por sua materialidade ostensiva, sugere-nos o contrário. Apresenta-se como mais segura do que a memória que padece de tão constantes falhas. Mero engano. Sem o leitor, de nada servem os livros e condenados estão à destruição. Meramente exibindo-se os volumes de sua escrita, uma sociedade pode acreditar possuidora de uma sabedoria que, na verdade, não possui. Pode enganar-se, a si mesma e aos outros, cuidando mais de seus livros do que de seus leitores. Há pois quem tenha pensado a escrita com grande receio, pois implicaria enfraquecimento e desqualificação pessoais, além de poder vir a constituir-se em simulacro, propiciando a impostura.

Sócrates em PLATÃO, Fredo, 274-275.

MALACO, Jonas Tadeu Silva, Dois Ensaios: Cidade: Ensaio de aproximação conceitual; Espaço, propriedade, liberdade. Editora Alice Foz, São Paulo, 2003. p.12 – 15

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sobre memória, arquitetura e ficção científica

10 ILUSTRAÇÃO THIAGO RIBEIRO


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José Antonio Vasconcelos

1. INTRODUÇÃO “A memória opera de maneira análoga à imaginação”. “Guardar lembranças e recordar acontecimentos vividos nunca é uma atividade puramente individual, sempre implica em experiências socialmente partilhadas: a memória é sempre coletiva”. “História e memória possuem o mesmo referente, ambas dizem respeito ao passado, mas são modos de representação distintos e, em certos aspectos, até mesmo opostos”. “A emergência da História como saber formal sobre o passado torna possível a identificação de lugares da memória”. “Ao nos lembrarmos de vivências passadas nossa consciência tenciona fenomenologicamente objetos passíveis de representação espacial e, portanto, arquitetônica”. Essa série de aforismos demanda, obviamente, explicações e justificativas. Para chegarmos a elas, contudo, proponho antes começarmos com uma metáfora, um conto de 1950 ambientado no futuro – nosso passado – no mês de julho de 2001. 2. A MEMÓRIA COLETIVA As Crônicas Marcianas, do escritor de ficção científica Ray Bradbury, são uma coleção de contos nos quais as histórias são ordenadas cronologicamente e têm como tema a exploração e colonização do Planeta Vermelho. Um desses contos, em particular, remete diretamente à questão da memória social e sua associação ao espaço físico. Em “E a Lua continua brilhando”, depois de três expedições frustradas, os exploradores se dão conta de que os marcianos eram definitivamente um povo hostil e decidem empreender uma quarta expedição esperando um confronto

armado, mas são surpreendidos pelo súbito desaparecimento de todos os habitantes daquele planeta. As expedições anteriores haviam trazido não intencionalmente microrganismos inócuos aos seres humanos, mas fatais aos marcianos, que foram extintos em questão de semanas. Restavam, porém, as cidades, estradas, canais, monumentos e todas as demais mudanças que a civilização marciana havia trazido ao espaço natural de Marte e que então constituíam evidências de sua existência pretérita. Entre os astronautas as reações são diversas. A maioria festeja, bebendo vinho e jogando as garrafas vazias nos

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canais. O arqueólogo Jeff Spender, porém, lamenta esse estado de coisas e confessa ao Capitão Wilder que se sente um usurpador, que aquele espaço de alguma forma não lhes pertence: “Acredito nas coisas que foram feitas, e há evidências de que muitas coisas foram feitas em Marte. Há ruas e casas, há livros, imagino, grandes canais, relógios e estábulos, se não forem para cavalos, bom, então são para algum outro animal, quem sabe com doze patas? Para qualquer lugar que olho vejo que as coisas foram usadas, tocadas e manuseadas durante séculos. Pergunte-me, então, se eu acredito no espírito das coisas pela maneira como foram usadas, e responderei que sim. Estão todas aqui. Todas as coisas que tiveram alguma função. Todas as montanhas que tiveram nomes. E nunca seremos capazes de usá-las sem nos sentirmos desconfortáveis. E, de algum modo, as montanhas nunca vão parecer adequadas para nós; vamos dar-lhes nomes, mas os nomes antigos estão lá, em algum lugar no tempo, e as montanhas foram moldadas e vistas com esses nomes. Os nomes que daremos aos canais, às montanhas e às cidades vão escorrer como água nas costas de patos. Por mais que nos aproximemos de Marte, nunca o tocaremos. E ficaremos bravos por isso, e o senhor sabe o que vamos fazer? Vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo à nossa imagem e semelhança”. (BRADBURY, 2006, p. 97) Incomodado com a indiferença dos demais, e mais do que isso, com a perspectiva de colonização que

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determinaria o ulterior apagamento de todos os vestígios da civilização marciana, Spender se afasta do grupo e passa vários dias desaparecido. Alguns já o tomam como morto, quando ele reaparece e, numa conversa, relata a ouvidos incrédulos o encontro que tivera com um marciano: “– Lá na cidade morta. Não achei que encontraria. Não era minha intenção. Não sei o que ele estava fazendo lá. Estou vivendo em um valezinho faz mais ou menos uma semana, aprendendo a ler os livros antigos e examinando as antigas formas artísticas. E, certo dia, vi aquele marciano. Ele ficou parado um instante e depois foi embora. Demorou um dia inteiro para voltar. Fiquei por lá, aprendendo a ler a antiga escrita, e o marciano voltou, aproximandose pouco a pouco. No dia em que aprendi a decifrar a linguagem marciana, que é bem simples e conta com infográficos para auxiliar, o marciano apareceu na minha frente e disse: “Dê-me suas botas”. Dei-lhe minhas botas e ele continuou: “Dê-me seu uniforme e todo o resto do equipamento”. E eu entreguei tudo e ele ordenou ainda: “Dê-me sua pistola”, e eu a dei. Então, ele disse: “Agora me acompanhe e veja o que vai acontecer”. E o marciano caminhou até o acampamento e aqui está ele agora. – Não estou vendo marciano nenhum – disse Cheroke. – Desculpe. Spender sacou a pistola. Ela zuniu com suavidade. A primeira bala pegou o homem da esquerda; a segunda e a terceira pegaram os homens à direita e no centro da mesa. Cookie virou-se horrorizado do fogo e recebeu a quarta


bala. Caiu de costas e ficou lá, imóvel, enquanto suas roupas se incendiavam”. (BRADBURY, 2006, p. 106.) Esse conto ilustra de maneira bastante clara vários dos sentidos que damos ao conceito de memória. Em primeiro lugar, o ato de reter lembranças e o ato de evocálas possuem, antes de tudo, uma dimensão social. Uma longa tradição filosófica trata a memória como uma atividade primeiramente individual que, somente num segundo momento é socialmente partilhada. Platão, por exemplo, comparava os objetos da memória a pegadas impressas num bloco de cera. Esse bloco seria a alma humana, individual e até certo ponto maleável, pelo menos de modo a permitir que as experiências vividas imprimissem marcas duráveis, ainda que não eternas. No século XX, entretanto, quando o tema da memória se estendeu para o âmbito dos estudos sociológicos com o conceito de memória coletiva ou memória social, a hierarquia é invertida: a memória é primariamente social e secundariamente individual. Maurice Halbwachs, um dos pioneiros nesse campo de estudos, assim explica essa compreensão sociológica da memória: “Não basta reconstituir pedaço a pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando deste para aquele e vice-versa, o que

será possível somente se tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo. Somente assim podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída”. (HALBWACHS, 2006, p. 39) Halbwachs não nega a existência de um “eu” que seja o sujeito das lembranças. Mas trata-se de um sujeito individual que se constitui socialmente. É por meio da memória que tomamos consciência de nossa identidade, mas o fato é algumas lembranças são mais significativas do que outras porque de algum modo são mais relevantes socialmente, porque aprendemos com os outros o que vale a pena reter na memória e o que pode ou deve ser esquecido. Mesmo que fisicamente ausente, uma multidão acompanha cada vivência individual. Halbwachs recorda um passeio solitário em Londres e observa que o modo como via um monumento ou uma ponte era influenciado pelo que havia dito um amigo historiador, outro amigo pintor ou mesmo a leitura de um romance: “muitas impressões”, nos diz Halbwachs, “me faziam lembrar os romances de Dickens lidos na infância: eu passeava pela cidade com Dickens”. (HALBWACHS, 2006, p. 31) Algo semelhante se dá no conto de Bradbury, pois a memória social de Spender se constrói a partir das leituras e da assimilação da cultura marciana que os demais astronautas não conhecem e cuja manutenção, portanto, não consideram

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importante. No conto anterior, sobre a terceira expedição a Marte, Bradbury também nos remete à memória social. Nele os astronautas são ludibriados pelos marcianos, que se apropriam de suas lembranças e recriam o ambiente de suas infâncias na Terra. Emocionalmente arrebatados, os astronautas acabam sendo facilmente eliminados. Como em “E a Lua continua brilhando”, o conto “A terceira expedição” evidencia o caráter social da memória, o fato de que o passado pode ser evocado porque foi socialmente significativo. 3. MEMÓRIA E HISTÓRIA Crônicas marcianas faz referência, assim, a um atributo essencial da memória: é por meio dela que se constitui a identidade, tanto individual como coletiva. John Locke, por exemplo, argumentava que o indivíduo reconhece a si mesmo sob a condição de que exista uma continuidade de sua consciência, ligando o passado ao presente. Em outras palavras, o sujeito individual só existe porque existe a memória. Mas o mesmo se aplica à identidade social, construída com base numa noção de pertencimento a uma coletividade que reconhece a si mesma em função dos laços que a ligam ao passado e que a tornam diferentes de outras, que possuam passados diferentes. Nesse sentido, não importa se um evento significativo para a coletividade foi vivenciado pelo indivíduo. Os curitibanos, por exemplo, se lembram da neve que caiu

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em 1975, mesmo aqueles nascidos após essa data. Filhos de refugiados vietnamitas nos Estados Unidos lembram seus “Pais Fundadores” e comemoram o aniversário da vinda do Mayflower. Spender, ao decifrar a escrita marciana e se apaixonar pela civilização desaparecida torna-se ele próprio um marciano. Mas há algo estranho no conto de Bradbury, uma peça aparentemente fora de lugar. Spender é um cientista, um arqueólogo, alguém que supostamente deveria controlar suas emoções de modo a alcançar resultados imparciais e, portanto, objetivos. Como explicar então seu comportamento passional e desarrazoado? Para responder essa questão é necessário compreender as afinidades e as diferenças entre a Memória e a História, a primeira pertencente ao âmbito da cultura e a segunda uma disciplina acadêmica com pretensão de cientificidade. Pelo fato de que tanto a História quanto a Memória representam o passado, existe uma tendência a confundi-las, ou de considerar a História como uma espécie particular de Memória. Segundo o historiador americano Allan Megill, “Muitas pessoas simplesmente aceitam que a História deva ser uma forma de Memória. Elas acreditam que a tarefa central da escrita da História ¬ talvez a tarefa ¬ seja a de preservar e levar adiante a Memória.” (MEGILL, 2007, p. 17) O historiador britânico Peter Burke também critica essa concepção de que “A função do

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historiador é ser o guardião da memória dos acontecimentos públicos”. (BURKE, 2000, p. 69) Halbwachs igualmente rejeita uma identificação entre esses dois domínios, apresentando-os como opostos. A memória seria, para esse autor, uma força viva, enquanto a História só entraria em cena quando a primeira tivesse perdido o vigor: “Enquanto uma lembrança subsiste é inútil fixá-la por escrito, nem mesmo fixá-la, pura e simplesmente. Assim, a necessidade de escrever a história de um período, de uma sociedade, e mesmo de uma pessoa desperta somente quando eles já estão muito distantes no passado, para que se tivesse a oportunidade de encontrar por muito tempo ainda em torno de si muitas testemunhas que dela conservem alguma lembrança. Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais suporte de um grupo, aquele mesmo em que esteve engajada ou que dela suportou as consequências, que lhe assistiu ou que dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores e espectadores, quando ela se dispersa por entre alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades para os quais esses fatos não interessam mais porque lhes são decididamente exteriores, então o único meio de salvar tais lembranças, é fixá-las por escrito em uma narrativa seguida, uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem”. (HALBWACHS, 2006, p. 101) Apesar da imensa importância de Halbwachs para os estudos sobre

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a memória social, sua caracterização da relação entre Memória e História é inaceitável. Eventos ainda muito presentes na memória, como as eleições presidenciais de 2002, a crise econômica de 2008 ou a vitória da Portuguesa no campeonato brasileiro da série B em 2011, não deixam de ser genuínos objetos de estudo do historiador. O inverso não é menos verdadeiro: a coleta de fontes, por exemplo, pode ter uma dimensão ritual, como é o caso de entrevistas de sobreviventes do Holocausto que, embora constituindo primariamente uma operação historiográfica, são também expressão da memória social. Além disso, há equívocos na crença de que os objetos da memória vão perdendo intensidade com o passar do tempo, tornando-se assim objetos históricos. As lembranças podem permanecer, enfraquecer-se, revigorarse ou até mesmo ser completamente reinventadas. De outro modo, como compreender o vigor atual de objetos tão distantes no tempo, como é o caso do legado de Abraão para o Estado de Israel ou do Império Otomano para as Guerras Balcânicas? O paradoxo do cientista assassino, movido pela paixão pelo passado marciano, tal como caracterizado por Bradbury, nos lembra que a vida não está ausente da História. Mesmo que o historiador tenha a pretensão de objetividade – uma pretensão que não está de todo ausente da memória –, não podemos acreditar numa objetividade absoluta, como um olhar neutro ou divino


sobre o mundo. Impulsos éticos e estéticos, que só podem ser expressos por juízos de valor – e, portanto, subjetivos – não podem ser suprimidos ou neutralizados da pesquisa historiográfica, pois são eles que lhe dão sentido, são eles que tornam o saber historiográfico existencialmente significativo. Nesse sentido o historiador pode e deve emitir juízos morais. “A história jamais perdoará Cortez”, afirma Spender ao tentar justificar suas ações no derradeiro diálogo com o capitão Wilder. (BRADBURY, 2006, p. 113) Mas se não podemos aceitar a oposição radical entre Memória e História tal como concebe Halbwachs, se há tanta afinidade entre ambas, de que modo podemos conceber a relação entre esses dois domínios? Memória e História se distinguem em diversos aspectos, dos quais destaco um como o mais relevante para minha argumentação: diferente da Memória, a História é crítica de si mesma. Tomemos um exemplo: a historiadora canadense Natalie Davis realizou uma pesquisa tendo por objeto um processo jurídico do século XVI e interpretando o papel de uma personagem histórica de um ponto de vista inequivocamente feminista. Por seu comprometimento ideológico, sua interpretação do passado francês sofreu duras críticas, mas a historiadora soube respondê-las. Em outras palavras, a História não é neutra, mas para ela o que conta não é a autoridade daquele que lembra, como na memória social, e sim a fundamentação teórico-metodológica e a consistência da argumentação.

4. LUGARES DA MEMÓRIA O Historiador francês Pierre Nora concebe a relação entre Memória e História em termos muito próximos ao de Halbwachs, mas num sentido específico o entendimento desse autor consegue superar as contradições e insuficiências de uma oposição muito rígida e apressadamente estabelecida: para Nora a História, e particularmente a História nacional francesa, constitui uma forma particular de memória e cumpre, portanto, muitas de suas funções, principalmente a de estimular a formação e permanência de uma identidade coletiva. Assim, o saber acadêmico, científico, se articula com o saber escolar, o conhecimento histórico produzido na universidade é transmitido aos jovens, cumprindo assim uma função pedagógica e fomentando o reconhecimento de uma identidade nacional francesa. Nesse sentido, o historiador não é um cientista indiferente àquilo que pesquisa, mas pelo contrário, um apaixonado, pois ele é parte de seu objeto de estudo. Como Spender se debruça sobre a cultura marciana tornando-se também marciano, o historiador na concepção de Nora estuda a França, tornando-se ainda mais francês ao longo desse processo. Contudo, ainda segundo Nora, no século XX intensificaram-se os estudos de História da Historiografia, tornando o conhecimento histórico cada vez mais crítico de si mesmo. Isso teria produzido um afastamento entre a Memória e a

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História e um consequente enfraquecimento da primeira em favor da segunda. “Interrogar uma tradição, por mais venerável que seja, é não mais passá-la adiante intacta”. (NORA, 1989, p. 10) Isso teria favorecido a cristalização de lugares específicos da memória, lugares ainda não completamente dominados pela História. “Existem lieux de mémoire, lugares da memória, porque não existem mais milieux de mémoire, ambientes reais da memória”, nos diz Nora. (NORA, 1989, p. 7) Ou seja, no passado não havia lugares da memória porque “tudo” era memória, mas num presente dominado por uma cultura histórica despontam lugares que remetem ao passado de uma maneira particular, que dizem respeito à lembrança, veneração e comemoração de valores socialmente partilhados. Também nesse ponto a metáfora que nos oferece Bradbury nas Crônicas Marcianas é pertinente. A civilização marciana, tal como caracterizada no conto sobre a quarta expedição, vivia um ambiente de memória, ainda havia cidades construídas por civilizações marcianas desaparecidas há milênios porque os marcianos não possuíam o ímpeto iconoclasta dos terráqueos. Mas com a extinção da raça marciana Spender via-se na obrigação de preservar lugares específicos que remetiam ao passado marciano. Lugares da memória. O conceito de “lugares da memória” em Nora é extremamente refinado e não se confunde com e nem se

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limita a elementos específicos da paisagem. Objetos bastante abstratos, como o calendário da Revolução Francesa ou até mesmo a “interioridade” do Historiador podem ser compreendidos como lieux de mémoire. Mesmo assim, não há como negar que a compreensão desse conceito visa primariamente objetos materiais, os “lugares” são em geral referências espaciais: “os arquivos tanto quanto a bandeira tricolor; bibliotecas, dicionários e museus tanto quanto comemorações, celebrações, o Panteão, o Arco do Triunfo; o dicionário Larousse tanto quanto o Muro dos Federados, onde os últimos defensores da Comuna de Paris foram massacrados em 1870.” (NORA, 1989, p. 12) Devemos lembrar, é claro, que esses objetos dizem respeito à memória não somente por sua materialidade, mas também por seu aspecto simbólico e por sua função: “Lieux de Mémoire são simples e ambíguos, naturais e artificiais, imediatamente disponíveis na experiência concreta sensível e suscetíveis da elaboração mais abstrata. Na verdade são lieux em três sentidos da palavra – material, simbólico e funcional. Mesmo um lugar aparentemente puramente material, como um arquivo, torna-se um lieux de mémoire somente se a imaginação o investe com uma aura simbólica. Um lugar puramente funcional, como um manual de sala de aula, um testamento, ou uma reunião de veteranos, pertence à categoria somente na medida em que é também o objeto de um ritual. E a comemoração de um minuto de silêncio, um exemplo extremo de uma ação estritamente


simbólica, serve como um apelo concentrado à memória ao quebrar literalmente a continuidade temporal”. (NORA, 1989, p. 19) É precisamente nesse entrelaçamento dos aspectos materiais, simbólicos e funcionais dos lieux de mémoire que a questão da memória vai ao encontro de uma teoria da arquitetura. Para tanto assumo o entendimento de Shelley Hornstein, para quem a arquitetura “é o ambiente construído, – seja com materiais naturais, manufaturados ou imaginados – que demarcam o espaço. Desse modo a arquitetura é o mapeamento do espaço – físico, mental ou emocional”. (HORNSTEIN, 2011, p. 4) Nesse sentido o espaço marciano imaginado por Bradbury – e devemos lembrar com o filósofo Paul Ricoeur que há um íntimo parentesco entre memória e imaginação enquanto faculdades da alma (RICOEUR, 2007, pp. 25-70) – é um espaço construído (pois mesmo as montanhas de Marte, ao receberem nomes próprios, são construídas como objetos simbólicos) e ao mesmo tempo um espaço da memória. Ainda segundo Hornstein:

ILUSTRAÇÃO THIAGO RIBEIRO

“Nosso relacionamento com o ambiente construído, com os objetos no meio cotidiano, com edificações e lugares que tomam, envolvem e afetam o espaço de nossas vidas, deve, de algum modo importante, nos dizer algo mais que simplesmente as características físicas de onde estamos. Nós nos lembramos melhor quando associamos a experiência de um evento a um lugar”. (HORNSTEIN, 2011, p. 2)


E mais: “Mesmo aparentando ser sólida e permanente, a arquitetura é somente uma casca vazia ¬– uma ilusão de proteção contra a destruição dentro da qual habitamos e construímos nossas memórias”. (HORNSTEIN, 2011, p. 2) Assim, Hornstein nos relembra que os objetos da experiência sensível, e os objetos arquitetônicos em particular, por mais duradouros que sejam, não são eternos. Desse modo, a ambição de Spender, de preservação de lugares da memória, parece vã. Por mais que ele mate todos os seus companheiros, outros virão. E por mais que ele continue eliminandoos um a um, Spender também não viveria para sempre, eventualmente envelheceria e morreria, e com seu desaparecimento, a supressão do único obstáculo à colonização de Marte, a destruição do espaço construído marciano seria inevitável. E mesmo que os terráqueos desistissem de viver em Marte, de que adiantariam os monumentos da civilização marciana sem ninguém para admirá-los? O impulso moral e estético relativo ao espaço arquitetônico e aos lugares da memória só faz sentido se há alguém para sentir esse impulso. Desprovidos dos aspectos simbólicos e funcionais a que se referia Nora, indissociáveis da existência de sujeitos dotados de consciência, a materialidade do espaço cultural marciano não se distingue da materialidade de seu espaço natural.

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Monumentos ou rochas, qual a diferença? Mas se a mera existência de objetos arquitetônicos não constitui a possibilidade de lugares da memória, como o exemplo de Bradbury tão bem ilustra, o oposto não é menos verdadeiro: um lugar de memória pode perfeitamente existir mesmo na ausência de qualquer vestígio do espaço construído. No filme Shoah, de Claude Lanzmann, por exemplo, podemos acompanhar a angústia de Simon Schebnik, um ex-prisioneiro do campo de concentração de Chelmno, ao voltar ao lugar e encontrar um campo aberto onde mal se podem perceber os alicerces dos prédios onde se matavam pessoas durante a Guerra. O espaço construído não existe mais, não obstante aquele continua sendo um lugar de memória porque há alguém que ali reatualiza o passado, conferindo a determinado espaço ¬– mesmo que vazio – um significado simbólico. Esse exemplo é sugerido pelo filósofo Dylan Trigg ao tratar da questão do trauma e da temporalidade das ruínas. “Se um lugar é imbuído com a textura de um passado que lhe é particular”, indaga Trigg, “e se, além do mais, se diz que a habitação da memória envolve a superfície do espaço arquitetural, então como, dada sua fragmentação e incompletude, as ruínas do desastre podem testemunhar os eventos que tiveram lugar ali?” (TRIGG, 2009, p. 87) A resposta que ele mesmo dá é que a ruína é polimorfa e temporalmente dinâmica.


5. CONCLUSÃO Outro conto das Crônicas Marcianas pode servir para ilustrar a questão da ruína e, ao mesmo tempo, encaminhar uma conclusão para as reflexões que procurei desenvolver nesse artigo. Em “Encontro noturno” um viajante chamado Tomás Gomez se encontra com um Muhe Ca, um marciano de outra época. Ambos olham para uma mesma paisagem, mas enquanto o primeiro não vê mais que ruínas, o segundo observa uma cidade vibrante. Será que Tomás olha o passado e o marciano o futuro? Ou seria a cidade marciana algo que ainda estaria para vir em relação ao presente de Tomás? Não importa. A distância é incomensurável e um não pode alcançar o outro, um não pode ver o que o outro vê porque não há memória que torne o passado vivo uma vez mais. “... as pilastras ruíram, foi o que você disse?”, pergunta Muhe Ca. “E o mar esvaziou, os canais secaram, as moças morreram, as flores secaram? – Mas lá estão elas. Estou vendo. Será que isto não basta para mim?” (BRADBURY, 2006, p. 145) É esse presente socialmente partilhado, existencialmente significativo, que se tornará memória no futuro do interlocutor marciano. Para um dia, num futuro ainda mais distante – no presente de Tomás? – não ser mais coisa alguma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRADBURY, Ray. As crônicas marcianas. São Paulo : Globo, 2006. BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo : Centauro, 2006. HORNSTEIN, Shelley. Losing site: architecture, memory and place. Burlington : Ashgate, 2011. MEGILL, Allan. Historical Knowledge, historical error: a contemporary guide to practice. Chicago : Chicago University Press, 2007. NORA, Pierre. “Between Memory and History: Les Lieux de Mémoire”. Representations. n. 26, Spring 1989, pp. 7-24. RICOEUR, PAUL. A memória, a história, o esquecimento. Campinas : Editora da UNICAMP, 2007. TRIGG, Dylan. “The place of trauma: memory, hautings and the temporality of ruins”. Memory Studies. Vol 2(1), 2009, pp. 87-101.

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Marina Caraffa

Em maio de 2012 estive em Cuba. Uma viagem que ficou marcada em uma das gavetas da memória – acho que numa daquelas que fica meio aberta, cheia de coisas saindo. O objetivo era participar de um congresso internacional e apresentar um artigo que escrevi como resultado parcial da minha pesquisa de mestrado. Por isso, as semanas que antecederam a viagem serviram bem mais para finalizar a apresentação do artigo, entre outras atividades do mestrado, do que me informar sobre a cultura ou o que fazer na cidade. Assim, fui cheia de expectativas e interrogações sobre Havana. Para embalar a memória e resgatar um pouco a experiência dessa viagem, o ritmo da música cubana remete ao calor úmido. Para amenizá-lo, os cubanos recebem os turistas com os mojitos e isopores de cerveja supergelada disponíveis em frente a pontos turísticos e praças. Experimentamos dois tipos de cerveja cubana: Cristal, la preferida de

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Cuba, e a Bucanero, fuerte. Outra opção disponível para o calor cubano são os daiquiris (bebida frozen). Podem ser os do Floridita, bar e restaurante conhecido por seu ilustre frequentador Ernest Hemingway, escritor norte americano que esteve na ilha em 1930. O voo para a ilha partiu de São Paulo com destino à cidade do Panamá e, de lá, para Havana. Em um aeroporto construído por peças metálicas vermelhas e chinesas, a passagem pela imigração foi um dos momentos tensos, assim como na volta: as divisórias que separavam o desembarque do acesso ao saguão do aeroporto eram opacas, como aquelas de escritório que não deixam ver o outro lado. Além disso, o rigor da conferência do passaporte e do visto é acompanhado por uma câmera da qual é sacada uma foto na entrada e outra na saída. As imagens são usadas para comparar, durante um par de minutos, a foto do passaporte, a foto da entrada e a sua cara naquela hora.


abertas para ventilar. Nas ruas, os carros e as pessoas andam juntos em certa harmonia; mesmo em locais sem sinalização havia certa ordem no caos. Passeando por Havana Vieja por la noche, foi possível notar os reflexos da situação política e econômica da ilha. A iluminação pública e a manutenção dos edifícios (com exceção de alguns edifícios importantes para o turismo no centro histórico) são muito precárias. Durante o dia e boa parte da noite, as pessoas ficam fora das casas. A impressão era de que a cidade havia sido atacada e bombardeada havia poucos minutos. A escuridão das ruas de Havana Vieja para quem vem de São Paulo é um pouco assustadora. Durante o dia, no centro histórico da cidade, foi possível caminhar entre cubanos e turistas do mundo inteiro, principalmente holandeses. Nas ruas estreitas de Havana Vieja os carros circulam entre os pedestres que não podem contar com as calçadas, que são estreitas e muitas vezes tomadas por moradores sentados com suas cadeiras. Os carros em Cuba, além de ícones, indicam através da cor das placas uma categoria: azul – governo; vermelha – tu-

FOTOGRAFIA MARTIM PASSOS

Já no desembarque, do lado de fora do aeroporto, foi possível notar a precariedade das construções. Um aglomerado de taxistas oferecia serviço de traslado para a cidade em carros coloridos e bem mais velhos do que eu. O trajeto do aeroporto até o hotel foi feito ao som de Queen com direito a canja do motorista – a distância entre o aeroporto e a cidade é de aproximadamente trinta minutos. Por um tempo, a paisagem rural era comum; as árvores até que eram conhecidas: flamboyants, palmeiras, além de algumas plantações que posteriormente descobri serem tabaco intercalado com outros tubérculos. Além das plantações, as casas rurais em madeira diferenciavam as condições construtivas locais. Entrando na cidade, a percepção do lugar se transformou. Bem diferentemente do que já havia visto, o traçado regular das ruas - nem sempre sinalizadas com semáforos - fazia o arranjo das casas e de alguns “predinhos” com até cinco andares, a maioria em estilo art deco construído com portas generosas e venezianas de madeira sem vidro com aletas que ficavam


rista; amarela – privado; laranja – investidores; preta – embaixada; verde – exército. Até 1959, Cuba foi importadora de carros americanos produzidos entre 1920 e 1950. Depois do embargo americano ocorrido em decorrência da revolução comandada por Fidel Castro, chegaram na ilha, entre 1970 e 1980, carros da União Soviética que completaram a frota de relíquias. A precariedade do sistema de transporte público cubano é explícita. Por isso, além dos carros, é possível andar de coco-táxi: como um triciclo com dois lugares atrás e um na frente. É uma aventura que vale a experiência! Nas ruas da cidade podem ser vistos outros dois modos de transporte: a bike-taxi e a charrete. Como a estadia em Cuba era de onze dias para fazer uma apresentação

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de dez minutos, decidi fazer uma viagem para o interior. Tendo em vista que a temática da pesquisa de mestrado era o habitat rural com ênfase na questão da moradia, fui visitar Viñales, uma cidade cubana pertencente à província de Pinar del Río. Localizada a aproximadamente três horas de Havana, o vale é caracterizado por cavernas e alguns pontos de escalada. Em 1999 foi considerado pela UNESCO como patrimônio mundial pela natureza e arquitetura vernacular. Nessa oportunidade, visitei um produtor rural. Foi possível perceber que a principal diferença que permite a manutenção da população residente na área rural é o fato do governo cubano garantir a aquisição de 80% a 90% da produção (no caso, de tabaco). O lote abriga e provê o sustento de duas famílias há pelo menos quatro


FOTOGRAFIA MAURÍCIO ALCÂNTARA FOTOGRAFIA MAURÍCIO ALCÂNTARA

gerações. No lote também são produzidos intercalados com o tabaco: milho, mandioca e malanga (raiz da família da mandioca presente nos pratos típicos cubanos). O excedente da produção é vendido no mercado local ou trocado com outros produtores. Não é possível fazer uma comparação direta com os pequenos produtores rurais brasileiros devido às condições política e econômica dos dois países, mas é possível perceber que aqui no Brasil, mais precisamente no estado de São Paulo, a pressão do mercado (de terras/ comodities) inviabiliza ou dificulta muito a permanência dos agricultores familiares no meio rural. Além disso, os programas de aquisição de alimentos não garantem a compra da maior parte da produção. Estão vinculados a um valor máximo por família que o governo paga.

A viagem foi repleta de descobrimentos. A simpatia do povo cubano envolve o turista, que se sente à vontade para circular na cidade. Na saída do bairro chino, conhecido por ser o único bairro chinês do mundo onde não vivem chineses, fomos surpreendidos por um casal de jovens cubanos. De maneira sutil e alegre, nos convidaram para participar de uma festa que seria realizada em um bar próximo. O motivo era o aniversário de gravação do documentário sobre o Buena Vista Social Clube, em 1999. Empolgada, convenci meus amigos e seguimos o casal até o bar. O jovem nos convidou para um drink especial da casa, que era uma mistura de daikirí com mojito. Não estava muito bom, por isso tomamos umas cervejas. O rapaz nos ofereceu de presente um charuto e uma moeda

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FOTOGRAFIA MARTIM PASSOS


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comemorativa com a imagem de Che Guevara. Demoramos um certo tempo para perceber que não havia nada de comemoração e que ali não era o lugar onde havia sido gravado o filme. Quando já estávamos de saída, o rapaz comentou que tinham uma filha pequena e se a gente poderia ajudar a comprar o leite. Sem perceber, caímos em uma das estratégias usadas pelos cubanos para com os turistas a fim de conseguir dinheiro. Ainda assim, escapamos do golpe do charuto. Nas proximidades da fábrica de charutos Patargás, localizada atrás do Capitólio, fomos abordados por cubanos oferecendo charutos a preços muito reduzidos; a justificativa era que o governo liberava parte da produção do mês para que fossem vendidos através das cooperativas. Esses charutos são falsificados, e a forma de falsificação foi objeto de longa e intensa discussão do grupo mesmo depois do final da viagem. Não conseguíamos entender como, diante daquela precariedade, as “cooperativas” conseguiriam máquinas e material para falsificar os charutos. Considerando a situação econômica cubana e as dificuldades geradas pelo embargo, a moeda corrente em Cuba, para os turistas, é o CUC . Para fazer o câmbio, a melhor opção é levar euro - ao contrário do que se pensa em relação ao dólar que segue desvalorizado e circula no que chamam “vermelho” como se fosse um câmbio negro. Assim, nos registros da memória, conhecer Cuba e poder estar alguns dias em Havana foi suficiente para perceber o impacto do isolamento que se vive. Dos onze dias em que estive lá, tive acesso a apenas duas horas de internet (16 CUC/ hora) e não tive coragem de fazer ligações telefônicas (8,16 CUC/min).


“Era essa tarde, já descaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a

tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o

contrário: a manhã é que cai por um cansaço de luz, um suicídio

da sombra. Lhe explico. São três os bichos que o tempo tem:

manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas

de avestruz. Porque a noite as usa fechadas, ao serviço de

nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa,

inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol,

em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-

se vagarosa. E tomba, no desamparo do meio-dia”

“A Despedideira” em “O fio das missangas”, Mia Couto. Companhia das Letras, 2009, pp41,42.


ILUSTRAÇÃO LÚCIA FURLAN


La pugna entre el templo y el palacio en el Perú pre-hispánico Álvaro F. González Quijano

1 - Bauman, Z. (2002). Modernidad líquida. Buenos Aires: Fondo de cultura económica.

Los objetos durables se acercan a la encamación de la eternidad. Mientras que los objetos transitorios1 están destinados a ser consumidos y a desaparecer en el transcurso de su consumo. Es difícil concebir una cultura indiferente a la eternidad, que rechace lo durable. La memoria del pasado y la confianza en el futuro son los pilares sobre los que se asientan los puentes entre lo transitorio y lo duradero. Pero hoy vivimos un tiempo de fracturas, de heterogeneidad, de segmentaciones.

2 - González Quijano, A. (2010). La identidad como acción. En Boletín ICOMOS No. 8. Lima: Comité Peruano del Consejo Internacional de Monumentos y Sitios.

Sin embargo, en medio de esta heterogeneidad encontramos códigos que nos unifican o al menos permiten que nos entendamos. Lo esencial de la identidad es el sentido de pertenencia. La pertenencia viene unida a la dinámica de la participación. La participación asegura la vitalidad de la pertenencia y el enriquecimiento permanente de la identidad: a identidad como acción2. Al igual que cualquier otro objeto, los de la cultura ocupan también un lugar en el espacio y en el tiempo. Pero la manifestación de un sentido - que no puede desglosarse de lo físico - constituye la característica común de los objetos culturales.

3 - Cassirer, E. (1955). Las ciencias de Ia cultura. México: Fondo de cultura económica

Un objeto cultural3 requiere un sustrato físico material. Pero, para ser comprendido, es necesario que lo situemos en el tiempo. Y es necesario, también, que sepamos interpretarlo. Ahora bien, esta formulación no toma suficientemente en cuenta los fenómenos de poder que invariablemente sirven de contexto a la cultura. Los hechos culturales son, ciertamente, construcciones simbólicas, pero también son manifestaciones de relaciones de poder.

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A disputa entre o templo e o palácio no Peru pré-hispânico Tradução: Nicolas Le Roux

Os objetos duráveis se aproximam da encarnação da eternidade. Ao mesmo tempo, os objetos transitórios1 estão destinados a serem consumidos e desaparecer no transcurso de seu consumo. É difícil conceber uma cultura indiferente à eternidade, que refaz o durável. A memória do passado e a crença no futuro são os pilares sobre os quais se assentam as pontes entre o transitório e o durável. Mas hoje, vivemos um tempo de fraturas, de heterogeneidade, de segmentação. Apesar disso, em meio a essa heterogeneidade encontramos códigos que nos unificam ou ao menos permitem que nos entendamos. O essencial da identidade é o sentido de pertencimento. O pertencimento vem unido da dinâmica de participação. A participação assegura a vitalidade e o pertencimento e o enriquecimento permanente da identidade: a identidade como ação2. Da mesma forma que qualquer outro objeto, os da cultura ocupam também um lugar no espaço e no tempo. Mas a manifestação de um sentido – que não pode desprender-se do físico – constitui a característica comum dos objetos culturais.

FOTOGRAFIA NICOLAS LE ROUX

Um objeto cultural3 requer um substrato físico material. Mas para ser compreendido, é necessário situá-lo no tempo. E se necessário, também podemos interpretá-lo. Portanto, esta formulação não leva suficientemente em conta os fenômenos de poder que invariavelmente servem de contexto para a cultura. Os feitos culturais são certamente construções simbólicas, mas também são manifestações de relações de poder.

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4 - Jiménez, G. (1994). La teoría y el análisis de Ia cultura. Problemas teóricos y metodológicos. En Metodología y Cultura. México: Consejo Nacional de Ia Cultura y Ias Artes.

5 - Shady, R. (2003). La ciudad sagrada de Caral - Supe. Los orígenes de Ia civilización andina y la formación del Estado prístino en el Antiguo Perú. Lima: Proyecto Especial Arqueológico Caral Supe 6 - Morales Chocano, D. (1993). Historia arqueológica del Perú (del Paleolítico al Imperio Inca). En Compendio Histórico del Perú, tomo I. Lima: Milla Satres.

De allí la revisión de la concepción simbólica de la cultura4. El análisis se define como el estudio de las formaciones simbólicas en relación con contextos y procesos históricamente específicos y socialmente estructurados. El Perú prehispánico es un espejo de etnias y naciones andinas: quebrado, compuesto, vuelto a quebrar y vuelto a componer. Dos fuerzas compiten, pero deben también complementarse la una a la otra: los humanos y las divinidades (representadas por la casta sacerdotal). Arquitectónicamente, la pugna está entre el palacio, de una parte, y el templo, de otra. Excavaciones arqueológicas efectuadas en el sitio de Caral, en la costa norcentral de nuestro país, revelan la existencia de una antigua ciudad (3 000 a. C. - 1 500 a. C.). Las investigaciones de Ruth Shady5 permiten contrastar hipótesis acerca del rol de la arquitectura y del recurso marino en los orígenes de la civilización en los Andes Centrales, las bases que sustentan el desarrollo del urbanismo, la complejización de la organización social y la formación del estado. Según Daniel Morales Chocano6 existen dos tradiciones de centros ceremoniales en el Perú: una en la costa (plataformas con pozos circulares hundidos en la costa norcentral y pirámides en forma de U en la costa central); y otra en la sierra (templos cuadrados con homacinas, piso a doble nivel y fogón al centro). La dinámica de integración regional provoca un intercambio de patrones costeños y serranos. Aparecen sitios que comparten ambas tradiciones. Centro ceremonial de primer orden, ubicado estratégicamente, Chavín de Huantar es punto de convergencia y foco de difusión. A lo largo de mil años - entre el 1 200 a. C. y el 200 a. C. - se afirma la supremacía de la cultura Chavín. Bajo una organización teocrática: el gobierno de dioses de naturaleza antropomorfa a través de mediadores (chamanes, sacerdotes) que ejercen control ideológico en la sociedad. Se construye el templo con sólidas estructuras de piedra y se le decora con delicadas lajas pulidas y complicadas incisiones. Aquí se adora al lanzón. Después se consagran al culto de un nuevo y curioso dios que aparece en la llamada Estela Raimondi. Con este emblema el fenómeno Chavín penetra culturalmente por montañas y llanuras. Alrededor del año 200 a. C. arrecian los hechos. La unidad se quiebra en numerosos fragmentos y se originan las

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Daí a revisão da concepção simbólica da cultura4. A análise se define como o estudo das formações simbólicas em relação a contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados. O Peru pré-hispânico é um espelho de etnias e nações andinas: quebrado, composto, quebrado de novo e composto mais uma vez. Duas forças competem, mas também devem se complementar: os humanos e as divindades (representadas pela casta sacerdotal). Arquitetonicamente, a disputa está entre o palácio, de um lado, e o templo, de outro. Escavações arqueológicas efetuadas em Caral, na costa centro-norte de nosso país [Peru], revelam a existência de uma antiga cidade (3000 a.C. – 1500 a.C.). As investigações de Ruth Schady5 permitem contrastar hipóteses sobre o papel da arquitetura e do recurso marinho nas origens da civilização dos Andes Centrais, as bases que sustentam o desenvolvimento do urbanismo, a complexificação da organização social e a formação do Estado. Segundo Daniel Morales Chocano6, existem duas tradições de centros cerimoniais no Peru: uma na costa (plataformas com poços circulares afundados na costa centro-norte e pirâmides em forma de U na costa central); e outra na serra (templos quadrados com nichos, piso duplo e fogão ao centro). A dinâmica de integração regional provoca um intercâmbio de padrões costeiros e serranos. Surgem lugares que compartilham ambas as tradições. Centro cerimonial de primeira ordem, localizado estrategicamente, Chavín de Huantar é um ponto de convergência e foco de difusão. Ao longo de mil anos – em 1200 a.C. e 200 d.C. – se afirma a supremacia da cultura Chavín. Sob uma organização teocrática: o governo de deuses de natureza antropomorfa através de mediadores (xamãs, sacerdotes) que exercem o controle da sociedade. Se constrói o templo com sólidas estruturas de pedra e se decora com delicadas lajes polidas e complicadas incisões. Aqui se adora o lanzón. Depois, se dedicam ao culto de um novo e curioso deus que aparece na chamada Estela Raimondi. Com este emblema, o fenômeno Chavín penetra culturalmente por montanhas e planaltos. Por volta do ano 200 a.C. aceleram-se os fatos. A unidade é quebrada em numerosos fragmentos e se originam as grandes nações andinas. A cultura Chavín dá lugar à Rucuay. Um de seus vasos representa um edifício com funções religiosas vinculadas ao poder. Na serra, está o estilo mais notório por sua plasticidade escultórica.

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FOTOGRAFIA NICOLAS LE ROUX



grandes naciones andinas. Chavín da paso a la cultura Recuay. Uno de sus huacos representa un edificio con funciones religiosas vinculadas al poder. En la sierra es el estilo más notorio por su plasticidad escultórica. 7- Uceda, s. (2007). Relaciones sociales, políticas y económicas entre el templo y los habitantes en el núcleo urbano en Ias huacas de Moche. En Mapa cultural y educación en el Perú. Lima: ANR.

En la Costa, destaca el centro urbano teocrático de Moche7. Las Huacas del Sol y de la Luna delimitan un amplio llano, donde se asienta la población. La Pirámide del Sol corresponde al lugar central de las actividades ceremoniales. La Pirámide de la Luna responde a funciones de tipo político administrativo y quizá también residencial, por parte de la más alta jerarquía de la sociedad Moche. No es exagerado afirmar que hacia el año 800 d. C. un grupo humano avanza decididamente en todas direcciones, quiebra moldes regionales y ejerce control absoluto en el territorio andino. Este fenómeno manifiesta el surgimiento de un estado que conocemos como Wari. Se inaugura así una nueva época de corte más civil.

8 - Canzíant, J. (2009). Ciudad y territorio en los andes. Lima: PUCP.

José Canziani8 afirma que el peso que antes ha tenido la religión y la arquitectura pública ceremonial va dando paso a un eficiente aparato político administrativo. Estas nuevas formaciones económicas sociales se ven expresadas en ciudades o asentamientos urbanos, donde lo central ya no es el templo, sino los complejos palaciegos de carácter administrativo. Los Wari impulsan de modo relevante la arquitectura y el urbanismo. Se manejan con fluidez en el planeamiento de ciudades. Con calles rectilíneas, manzaneo regular, zonificación y modulación erigen sus ciudades. Piquillacta en el Cusco y Viracochapampa en Huamachuco son dos notables ejemplos. Una vez más, hacia el año 1 100 d. C. se quiebra la unidad. Aparece otra generación de estados regionales, sobresaliendo el reino de Chimor, la patria de los chimús. Chan-chán, la gran ciudad de erguido adobe, se construye para los señores de su estirpe. Finalmente, todo lo que lleva la impronta inca, desde el sur de Colombia hasta el norte de Argentina, se ejecuta en ochenta años por cinco personajes: Pachacutec, Tupac Yupanqui, Huayna Capac, Huascar y Atahualpa.

9 - Williams, C. (1991). Pachacutec y la arquitectura. Lima: Universidad Nacional de Ingeniería.

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Son numerosas las referencias a la obra de Pachacutec. Cartos Williams9 sigue principalmente a Juan de Betanzos, autor del documento titulado Suma y narración de los Incas fechado en 1551. La reconstrucción del Cusco es el objetivo que la crónica recoge: el Cuzco reconstruido es la expresión visible del poder y de


Na costa, destaca-se o centro urbano teocrático Moche7. As Huacas del Sol e de la Luna delimitam uma grande planície onde se assenta a população. A Pirâmide do Sol corresponde ao lugar central das atividades cerimoniais. A Pirâmide da Lua possui funções de caráter político-administrativo e quiçá residencial, por parte da mais alta hierarquia da sociedade Moche. Não é exagerado afirmar que, por volta dos anos 800 d.C., um grupo humano avança decididamente em todas as direções, quebra padrões regionais e exerce controle absoluto no território andino. Este fenômeno manifesta o surgimento de um Estado que conhecemos como Wari. Assim, uma nova época de perfil mais civil é inaugurada. Jasé Canziani8 afirma que o peso que teve a região e a arquitetura pública cerimonial vai abrindo espaço para um eficiente aparato político-administrativo. Estas novas formações econômico-sociais se vêm expressadas em cidades e assentamentos urbanos, onde o principal já não é o templo, senão os complexos palacianos de caráter administrativo. Os Wari impulsionam de modo relevante a arquitetura e o urbanismo. Eles têm facilidade para o planejamento de cidades. Erguem suas cidades com ruas retilíneas, distribuição regular de quadras, zoneamento e modulação. Piquillacta, em Cusco, e Viracochapampa, em Huamachuco, são dois notáveis exemplos. Mais uma vez, por volta do ano 1100 d.C. a unidade é quebrada. Surge outra geração de Estados regionais, sobressaindo-se o reino de Chimor, a pátria dos Chimús. Chan-chán, a grande cidade de adobe, é construída para os senhores da sua estirpe. Finalmente, tudo o que leva a marca inca, desde o sul da Colômbia até o norte da Argentina, é executado em oitenta anos por cinco personagens: Pachacutec, Tupac Yupanqui, Huayna Capac, Huascar e Atahualpa. São numerosas as referências sobre a obra de Pachacutec. Carlos Williams9 segue principalmente Juan de Betanzos, autor do documento Suma y narración de los Incas, datado de 1551. A reconstrução de Cusco é o objetivo que a crônica retrata: Cusco reconstruída é a expressão visível do poder e da grandeza cusquenha; é o projeto imperial de Pachacutect. Mais do que erguer Cusco e construir seus alicerces com exatidão milimétrica, os incas sabem recompor o espelho de nações e

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la grandeza cuzqueña; es el proyecto imperial de Pachacutec. Más que erigir el Cusco o labrar sus sillares con exactitud milimétrica, los incas saben recomponer el espejo de etnias y naciones andinas, quebrado, compuesto y vuelto a quebrar. En el decurso de este artículo, consagrado menos a revelar que a rever, hemos revisitado plazas, ruinas y paisajes, hemos reconocido antiguas y entrañables ciudades del Perú, y hemos repensado acerca de nuestra tierra. Sus ciudades, urdidas con espléndida destreza, y regidas por azares y por leyes, vuelven a despertar resonancias históricas y artísticas. Al cabo de esta aproximación a la estructura original de sus asentamientos humanos, constatamos que sus arquitecturas alcanzaron el éxito, comprobamos que no les fue vedado ensayar obras de largo aliento sabiamente gobernadas, y reconocemos un hilo conductor al través de sus producciones urbanísticas. Aquel preciso orden de concertadas y queridas cosas pone de manifiesto que el primer afán de un país debe ser el de existir sustentado en el antiguo fondo de su tradición. Eclipsando todas las expectativas, en el Perú se ha propiciado el desdén hacia su espesa sabiduría. Afortunadamente, otra conciencia parece anunciar hoy el reconocimiento de nosotros mismos como el país plural, plurirracial, pluricultural. Es clara la presencia de esta conciencia entre quienes se preguntan cuál debe ser la relación posible y deseable entere pasado y presente, entre quienes sostienen que debemos aceptamos como país antiguo y moderno, vario y uno.

Álvaro F. González Quijano es maestro en restauración de monumentos (UNI). Diplomado en conservación urbana por la Unión Europea - IPN México. Profesor investigador UNI y Universidad Científica del Sur.


etnias andinas, quebrado, recomposto e novamente quebrado. No transcorrer deste artigo, dedicado mais a revelar que a rever, visitamos praças, ruínas e paisagens, reconhecemos antigas e peculiares cidades do Peru, e repensamos aspectos de nossa terra. Suas cidades, tecidas com esplêndida destreza, e regidas pelo acaso e por leis, voltam a despertar ressonâncias históricas e artísticas. No fim dessa aproximação da estrutura original dos seus assentamentos humanos, constatamos que suas arquiteturas alcançaram o êxito, comprovamos que não lhes foi vetado construir obras de grande porte, administradas sabiamente, e reconhecemos um fio condutor através de suas produções urbanísticas.

FOTOGRAFIA NICOLAS LE ROUX

Aquela ordem precisa de coisas planejadas e desejadas tornam evidente que o primeiro afã de um país deve ser o de existir sustentado no antigo fundo de sua tradição. Desmentindo todas as expectativas, no Peru, foi propiciado o desdém à sua grande sabedoria. Felizmente, outra consciência parece anunciar hoje o reconhecimento de nós mesmo como o país plural, plurirracial, pluricultural. É clara a presença desta consciência entre aqueles que se perguntam qual deve ser a relação possível e desejada entre passado e presente, entre aqueles que sustentam que devemos nos aceitar como país antigo e moderno, diversificado e único.



brasil arquitetura Entrevista com Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci


“A ação arquitetônica resultante se quer plural, tolerante, diversa, adaptada ao sítio, promovendo a convivência de diferentes momentos históricos tratados no presente. No centro dessa arquitetura está o homem, homem brasileiro, sua vida e sua cultura, porque o interesse primeiro é a vida que se desenrola nos espaços desenhados e lhes confere sentido. Se o resultado é arquitetura, para além da construção, é porque se caminha ao encontro da escala humana e do preenchimento dos volumes de tijolo e pedra com intenções e significados. A arquitetura é sim questão de metodologia compositiva, de estética, de programa, de função e tecnologia. Mas sobretudo, ou antes de tudo, arquitetura é uma questão cultural”.1 Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, ambos de origem mineira e formados pela FAU-USP na década de 1970, fundaram o escritório Brasil Arquitetura em 1979 e possuem a maior parte de suas obras espalhadas por todo o país. Trabalham nas mais diferentes escalas, do mobiliário ao urbano, e mantém desde 1986 a Marcenaria Baraúna no piso térreo do escritório. Eles buscam se aprofundar em cada um de seus projetos através da assimilação do significado e da identidade do lugar em que estes estão inseridos. Além disso, o escritório é alimentado, desde sua formação, por elementos que não fazem parte apenas do repertório formal da arquitetura. A cultura, de uma forma geral, e diversas áreas do conhecimento são influências diretas à forma de pensar, agir e projetar da equipe. O nome “Brasil Arquitetura” é inspirado no álbum “Brasil”, de João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia. Nesta entrevista, realizada em dezembro de 2012 a Revista Contraste conversou com Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci sobre suas obras e buscou conhecer melhor o raciocínio de projeto e a trajetória do escritório. O encontro se desenvolveu através de perguntas pré-formuladas que foram levadas apenas como guias para uma conversa, registrada nas páginas a seguir.

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Croqui para o projeto do Bairro Amarelo

1 SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Arquitetura do Brasil: Brasil Arquitetura. ln: Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz: Brasil Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2005.


MARCELO FERRAZ

Acho que desde sempre. Nós viemos como estudantes do interior, de Minas para São Paulo, em um momento em que era super importante entender o Brasil, na época da ditadura. Havia essa gana de querer conhecer não só a metrópole, mas sair para conhecer o país. Acho que isso sempre foi muito forte, mais forte no tempo que a gente estudava do que eu vejo hoje, com a geração de vocês. Vocês viajam muito, hoje isso é mais simples. Mas nós tínhamos que fazer um grande esforço para pegar um ônibus e cruzar três dias até o Ceará. Essa vontade de ver o Brasil era política, era um tema importante, nós estávamos o tempo inteiro engajados contra a ditadura no movimento estudantil e, para se contrapor, você tinha que tomar o país na mão. Os exilados eram nossos heróis, a gente era jovem quando Gil e Caetano foram exilados e éramos fanáticos pelo movimento tropicalista que cantava o Brasil em transformação, então acho que isso nos contaminou nesse sentido. A vontade de conhecer o Brasil para projetar, isso não era uma decisão de repertório, isso acontece até hoje naturalmente e acaba contaminando nosso trabalho de uma maneira muito forte.

FRANCISCO FANUCCI

Primeiramente, nós gostaríamos de saber em que momento da carreira de vocês surgiu essa inquietação de conhecer melhor o Brasil e o brasileiro para incorporar isso nos seus projetos?

E o Brasil é um país com uma diversidade incrível, com diferenças e singularidades em cada lugar para onde se vá. Talvez a origem de uma possível identificação da arquitetura que a gente faz com essa atmosfera brasileira seja muito mais a ligação forte que buscamos nas coisas de cada lugar em que vamos trabalhar. Nós temos tido oportunidade de trabalhar em diferentes lugares do país e cada um deles é um universo riquíssimo de situações, de formas de habitar. Cada projeto é uma oportunidade de um mergulho no lugar, não só o lugar físico, mas histórico, geográfico e cultural principalmente. É sempre o primeiro ponto de cada projeto, é daí que saem todas as decisões e o encaminhamento do trabalho. Quando fomos pra Alemanha, no projeto do Bairro Amarelo, foi um pouco diferente, porque lá nós nos sentimos pela primeira vez portadores da incumbência da colocação de uma estética latino-americana, era quase uma encomenda nesse sentido. Havia sido feita uma pesquisa com a população local e a ideia de multiculturalidade era um tema fortíssimo na Berlim dos tempos pós-muro. Nessa pesquisa a latinoamérica se revelou uma imagem simpática aos moradores. Por isso chamaram arquitetos da America Latina e até do sul dos Estados Unidos pro concurso. Nós fomos colocados pela primeira vez na situação de trazer no bojo da nossa proposta alguma coisa identitária singular do nosso país e continente.

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M A R C E L O

Foi o primeiro momento de fazer um balanço de nosso trabalho naquelas circunstâncias. Era um concurso fechado e eles escolheram arquitetos da America Latina pra participar. Pela primeira vez, em vinte anos de profissão, tivemos que enfrentar formalmente e decididamente essa questão: “quem somos nós; o que sabemos fazer e como podemos fazer”. Foi interessante, pois a gente viu que já tinha feito bastante coisa e tinha também o nome do escritório – Brasil; então já tínhamos esse rótulo, mas queríamos também contrariá-lo, mostrar que o que fazemos é internacional, porque se a gente faz uma arquitetura pensada nas necessidades humanas, nos sofrimentos e prazeres, se buscamos o conforto das pessoas, nós somos universais, o que muda é o jeito de fazer. FRANCISCO

Nas primeiras aproximações que a gente fez nesse trabalho de Berlim, estávamos tentando fazer uma coisa de lá, meio “Mondrian”. Até que nos demos conta, em uma conversa, que não era por aí, “Mondrian” é o que eles fazem, nós tínhamos que fazer outra coisa. Então nós estávamos indo com uma abertura para beber das coisas do lugar e acabamos indo na direção contrária. O Lelé faz uma apresentação no livro de vocês falando que a globalização vem, de forma geral, destruindo as referências culturais, enquanto vocês como escritório nos oferecem o resgate dessas referências. Isso está muito presente na obra de vocês. Como vocês enxergam a importância disso? M A R C E L O

O que nós tentamos é ter uma aproximação do lugar, tentando fazer o projeto com esse enfoque, fazendo disso a solução do problema. Isso a gente poderia dizer que é um método, é procurar entender o lugar para tirar daí a solução dos problemas. Talvez isso seja uma fraqueza nossa. Achamos muito difícil projetar no “papel branco”, nós precisamos de muletas e elas vêm da demanda, do programa, do lugar, das pessoas. É um jeito de projetar. Acho que essa é uma característica de todos os projetos daqui, a necessidade de trabalhar com a ajuda do lugar.

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FRANCISCO

É essencial buscarmos apoio nas referências de cada lugar. Estamos fazendo o Cais do Sertão Luiz Gonzaga, lá em Pernambuco, e uma das coisas que nós pensamos foi levar um juazeiro do sertão. O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão, não é? E os caras trouxeram um juazeiro imenso e plantaram ontem, na beira do mar. Recebemos as fotos do transporte e do plantio da árvore na beira do mar. É emocionante. Nós pusemos o Juazeiro na marquise de acesso ao museu, de uns trinta metros, em um buraco redondo com uns bancos em volta, e ele quase fecha o buraco. E como o juazeiro tem mais ou menos folhas, em cada estação do ano, vai deixar entrar mais ou menos sol e de alguma maneira reproduzir a luz e o calor, com mais ou menos sombra, que é o que ele faz. Serão as mesmas sensações de estar embaixo de um juazeiro no sertão, de que a música do Luiz Gonzaga nos fala e que vai estar naquele lugar, ao longo do ano, como uma medição do tempo. Isso é como trazer alguma coisa do sertão de uma forma muito mais rica. Nós poderíamos ter o juazeiro simplesmente como lembrança, uma foto, e pronto, tava feito. Não tava feito...

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Croqui para o projeto do Cais do Sertão Luiz Gonzaga


“Muitas vezes uma decisão de programa que não aparece no projeto ou na foto, que é para se vivenciar, é muita arquitetura.”

M A R C E L O

Para nós, isso é arquitetura. Às vezes isso é muito mais arquitetura que a própria marquise, que a sala, a luz, a instalação. Esse gesto faz parte do nosso projeto de arquitetura, de trazer simbolicamente, através do Luiz Gonzaga e da sombra do juazeiro, o sertão. Muitas vezes uma decisão de programa que não aparece no projeto ou na foto, que é para se vivenciar, e é muita arquitetura. Por isso no SESC Pompéia é tão difícil de dizer o que é o projeto: os galpões são antigos, o telhado e a rua estavam lá, aparentemente não tem quase nada novo. Demos uma limpada aqui, ajeitamos umas coisas, tiramos um pouco e colocamos um pouco, e deixamos tudo funcionando. Isso é interessante para nossa discussão. A Lina tinha razão quando dizia: “não mexemos em nada, mas mexemos em tudo”. Qual é o sucesso da arquitetura - como a do SESC Pompeia - que pode escapar da questão meramente formal explícita e escancarada, da “arquitetura show”? É aquilo que acontece ali. É a oferta de uma situação que valoriza a vida e o convívio das pessoas, que possibilita encontros. Pode ser uma coisa estranha para um arquiteto que parte de uma folha branca. A gente tem que pensar arquitetura assim, porque já chega de formalismo – a forma acima e antes de tudo. No entanto, fomos formados assim, infelizmente. É difícil se libertar da forma. Vocês estão na FAU, vocês sabem disso. Claro que não abdicamos da nossa formação na FAU, que nos deu a tal da régua e compasso e dali um modo de fazer arquitetura pautado no rigor da estrutura, sem excesso, com a linguagem de alguns materiais que usamos mais do que outros. Essa é nossa base sólida e não é aí (nesses quesitos) que a gente sai fora em nossos projetos. Seja na Alemanha, em Pernambuco ou no Pampa, esses princípios estão presentes, tem uma linguagem. O desafio é ir além, pensar o espaço enquanto uso, ou quando usado no futuro. Então talvez nossa ferramenta de fazer arquitetura seja tentar criar ao máximo conexão com os lugares – físicos e humanos. O legal nesse projeto que vocês citaram é o juazeiro como sendo elemento central da arquitetura. Sendo o museu do Luiz Gonzaga isso tem um significado simbólico muito grande. Em projetos que vocês fazem nas metrópoles como São Paulo isso é mais difícil? M A R C E L O

Acho que não. Recife também é uma metrópole. As situações às vezes se oferecem muito evidentes, às vezes não. A Praça das Artes é um projeto que nasce daquela situação muito intrincada, quase um desacerto da própria urbanização de São Paulo: é sobra do lote, o que não vingou, ou ficou obsoleto com as mudanças da vida urbana através dos anos.

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Croqui para o projeto da Praça das Artes

Neste caso a arquitetura foi se amoldando, colocando o conservatório como uma estrela, patrimônio - uma riqueza de quase cem anos atrás, branquinho e cercado de um concreto quase terra. Mas, se vocês olharem a estrutura do conjunto, verão que procuramos faze-la “desaparecer”, pouco evidente, sempre pelas beiradas junto aos vizinhos. Vocês não vão encontrar lá uma série de colunas com uma composição qualquer. Não, é um negativo, não tem proporção, é resultante do lugar. E isso é proposital. O vazio que existia antes continua lá, como passagem. O projeto denuncia o tal urbanismo fracassado que falei. FRANCISCO

Ele é provocador também. Muita coisa ali foi isso mesmo, uma arquitetura intestina que vai entrando pelas entranhas e se apropria. Tem situações que nem eram uma realidade ainda, eram uma possibilidade que as construções locais insinuavam e a gente tentou prever na proposta. Tem um local, por exemplo, onde propusemos desde o início um grande vão num braço de edifício em frente a uma divisa com vários terrenos que dão pra Avenida São João. Um vão de trinta e poucos metros, um grande esforço, mas esse vazio antevia uma possibilidade para o futuro, para uma possível expansão do espaço livre naquela direção. E hoje já é quase uma realidade, já fizemos um projeto de expansão para aquele lugar: aquele vão que nós deixamos lá valeu. A Praça das Artes foi isso, uma apropriação de um lugar como ele estava e se ofereceu, mas ao mesmo tempo foi uma provocação de novas situações urbanas, uma preparação para futuras transformações naquele espaço urbano. M A R C E L O

Não existe uma decisão de embelezar a quadra, existe uma decisão de deixar uma passagem pra trazer as pessoas pra dentro e fazê-las se encontrarem. O texto que a gente

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Croqui para o projeto do Memorial da Democracia

fez quando começamos o projeto se chamava “Adentrando entranhas”, então era como um projeto que nasce de dentro pra fora, não de fora pra dentro - como quase tudo -, tanto é que ele cresceu na medida em que fomos trabalhando, ganhando uma frente a mais na Conselheiro Crispiniano, depois a frente do Anhangabaú. Esse outro [Memorial da Democracia] é um projeto totalmente livre, ocupa duas quadras vazias, mas nem por isso deixa de ter suas muletas. As muletas dele são justamente esse urbanismo, essa grelha que tem no Bairro da Luz, e quando chega na rua Mauá deixa terrenos triangulares, “sobras”; você sabe que aqui é uma urbanização e ali é outra. E dessas formas de terreno é que surgiu a forma do nosso conjunto - ninguém pensou em fazer um triângulo ou um trapézio, não é assim, essas dicas vêm da rua, tentando deixar uma calçada grande; um recuo maior aqui, menor ali, o espaço público e livre penetrando o térreo... É um conjunto de dois prédios que vem de uma situação física muito estreita e vai se abrindo, crescendo na medida que chega na borda; uma grande cunha. Essas coisas vêm daquele urbanismo. Essas duas obras que vocês acabaram de comentar, a Praça das Artes e o Memorial da Democracia, estão inseridas num contexto de revitalização do centro que a prefeitura está tentando implementar. Quais as dificuldades de fazer um projeto em um ambiente tão complexo como o centro de São Paulo? O que vocês esperam desses projetos de grande porte nessa área? M A R C E L O

Eu espero que eles ajudem a regenerar e revitalizar, é nisso que nós acreditamos mesmo. A gente acha que projetos pontuais contagiam, irradiam efeitos na vizinhança, que po-

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dem ser bons ou ruins. Está cheio de exemplos por aí. Uma obra dessas pode dialogar e transformar bastante a cidade, interferir, criar encontros, trazer pessoas... ou expulsá-las. É complexo, não sabemos o que vai ser feito nesse meio, na chamada “Cracolândia” pode ser um desastre. Mas estamos ancorando nosso projeto pra que ele seja o contaminador do bairro, ou um dos contaminadores. FRANCISCO

Com uma boa dose de otimismo, também. Renzo Piano falou que o arquiteto tem que ser fundamentalmente otimista, e é claro que nesses projetos tem sempre uma boa dose de acreditar. Nesse caso, nós sabemos que o bairro da Luz está em vias de um processo profundo de transformação, seja pelo projeto Nova Luz - que vai ser revisto agora (parece que tem uma série de problemas) - ou não, mas é uma área preparada pra sofrer uma grande mudança, e a revitalização do centro é um esforço e uma tendência para isso se intensificar. Já há um movimento geral das pessoas se mudando, jovens que vão morar no centro e também com as ocupações que os movimentos sociais estão fazendo. É uma forma de provocar uma situação que demanda novas soluções arquitetônicas e urbanísticas. M A R C E L O

Nossa ferramenta é projetar. Isso influenciou vocês de alguma forma a abrir espaço no térreo ou algo assim?

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Fotos da maquete do Memorial da Democracia (acima) e de sua implantação (abaixo) tiradas durante a entrevista

FRANCISCO

É um grande espaço no térreo. Esse edifício ocupa do térreo o mínimo necessário, é quase uma doação à cidade de um piso inteiro, por uma série de motivos: tem o jardim da Luz e a ponte sobre a ferrovia - que é um absurdo porque tem um monte de gente que hoje caminha perigosamente por ela, num conflito com os carros. A gente acha que essa travessia teria que ser ampliada, assim, no projeto, a entrada principal tem uma grande boca, já esperando uma conexão mais forte, se preparando pra um dia ter essa esplanada. Há uma história desse bairro, todo construído com o desenho da rua, com fachadas continuas ao longo da rua. A gente resolveu nosso problema muito bem dentro da legislação do gabarito e de tudo; então, o que a gente faz? Abre um espaço mesmo. É um diálogo que a gente poderia chamar, nesse caso, de “reciprocidade com a cidade” - de dar e receber alguma coisa em troca, acho que tem um pouco desse sentido. Se for mesmo construído [o Memorial], talvez fique mais óbvio que é necessário criar uma esplanada, tirando a rua José Paulino desse funil, ligando os dois lados da ferrovia. Acho que o projeto induz a mudanças, a novas atitudes e a novos projetos. Nós vimos isso na Praça das Artes, na qual vocês tentam conectar as quadras mas acabam sendo obrigados a colocar um portão. FRANCISCO

Esse portão é uma briga.

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“Será que isso não é uma contradição do projeto? Será que a gente está fazendo uma coisa contra a cidade, desenhada daquela maneira?”

M A R C E L O

A gente não é a favor de colocar portão, principalmente em espaço público, mas também não vamos fingir que de noite não existem problemas. FRANCISCO

E tem o contratante. Às vezes ele coloca uma questão contra a qual não adianta argumentar, mas a gente tentou resolver. Esse portão durante o dia desaparece no chão. M A R C E L O

A ideia é que ele desapareça o dia todo e suba só à noite, e a gente nem sabe como eles vão fazer quando abrir o trecho do Anhangabaú. Ali tem uma mureta provisória, como vai ficar esse portão? FRANCISCO

Fizemos uma proposta de um portão que vai dobrando e se encolhe, quase desaparece. M A R C E L O

É uma guerrilha, o projeto; você vai forçando a mão pra ver se liberam. Mas na Praça das Artes tem ainda uma questão que não sabemos se é boa ou ruim: a gente pega uns restos de quadra, fundo de lote, e cria uma passagem nova ao lado da São João - que já é uma passagem formal, antiga, importante, que é calçadão pra pedestre cercado por prédios tombados. Ali está dito “Aqui é o caminho!” e nós fazemos um “rabo” de caminho atrás, ou paralelo. Será que isso não é uma contradição do projeto? Será que a gente está fazendo uma coisa contra a cidade, desenhada daquela maneira? Abro isso para vocês porque são questões que enfrentamos durante o projeto, fazendo escolhas. Discutimos muito, questionamos, mas a proposta está lá. FRANCISCO

Ou será que a permeabilidade desse tecido, quanto maior for, melhor para o uso?

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Corte longitudinal da Praça das Artes (rua Formosa à esquerda e Rua Conselheiro Crispiniano à direita)

M A R C E L O

Estamos explicitando uma situação, mas estamos também criando uma disputa de caminhos, o que pode ser saudável. Queria fazer uma observação final sobre este projeto, uma descoberta: ao olharmos em retrospectiva, com a Praça quase pronta, encontramos alguns dos princípios de nosso projeto feito para o concurso do Anhangabaú, em 1981, com Lina Bo Bardi. É o Vale que se espraia como um parque adentrando as quadras, ampliando a área pública, de convívio. Isso é o que veremos logo mais, quando derrubarem os muros do canteiro de obra liberando a livre circulação de pessoas. Agora, nós queríamos perguntar um pouco sobre a Lina. Nós vemos sempre a influência dela no trabalho de vocês, mas acreditamos que haja uma reciprocidade. Vocês pensam que influenciaram e contribuíram com o trabalho da Lina? FRANCISCO

De certa maneira, eu fiquei cuidando da casa enquanto o Marcelo, durante uns quinze anos da vida da Lina, a acompanhou - talvez como a pessoa mais próxima dela. A Lina não era muito fácil, ela era complexa e impaciente. Eu acho que o Marcelo viabilizou a Lina para o mundo da arquitetura muito mais que outra pessoa que pudesse estar no lugar dele. Fui testemunha dessa experiência. Não se trata de influência, se trata de interatividade, de uma presença que fazia uma parte do trabalho que ela não tinha muita paciência de fazer, e isso garantia um movimento na parte da criação. M A R C E L O

Toda relação de trabalho tem trocas, a gente estava numa equipe (André Vainer, Marcelo Suzuki e eu). Era muito bom trabalhar com ela, era duro e bom ao mesmo tempo. Nós víamos na Lina alguma coisa que não víamos em outras pessoas, em outros arquitetos, um certo desconforto com o mundo aliado a uma busca de poesia, e achávamos que valia

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a pena investir para que ela trabalhasse, fizesse mais coisas. Era dedicação mesmo. Por outro lado, acho que ela se dedicou muito à gente, mais que nós aos nossos colaboradores de hoje. No dia-a-dia do trabalho estamos sempre correndo, sem tempo. Lina tinha uma disponibilidade enorme de nos acompanhar, de trazer novidades e discutir, discutir exaustivamente, discordar e exercitar o diálogo. Nós passamos a ser grandes amigos. Eu acho que isso foi uma dedicação dela e, claro, tínhamos sangue novo, queríamos sempre fazer mais e mais. Depois que ela morreu, fizemos um grande esforço para divulgar seu trabalho e acho que isso ajudou a colocá-la na posição que ocupa hoje. Quando fui indicado para trabalhar com ela, quase não fui, porque ninguém a conhecia e o pouco de informação que havia sobre Lina era negativa, mesmo na FAU. Lá mesmo, fui desaconselhado por professores e colegas que diziam que ela era “fascista”. Aí eu fui para o SESC para o primeiro encontro, com a obra começando, cheio de gente, e aquela lady de preto comandando tudo. Eu não tinha a menor ideia do que viria a ser aquele trabalho. Lina era uma pessoa que não existia no mundo dos arquitetos à nossa volta, mesmo já tendo feito o Masp. Com o avanço das obras do SESC Pompéia ela foi ficando em mais evidência, os estudantes da FAU começaram a frequentar, ver a obra. O contato veio muito dos alunos, nossos colegas. Ela dizia em tom provocativo para alguns professores da FAU que tinha mais alunos que eles, porque, na FAU, o pessoal passava, e com ela, ficavam. Quando Lina morreu, nos sentimos na obrigação de publicar e divulgar seu trabalho, seu pensamento. Fizemos um grande livro, um documentário e uma exposição que rodou o mundo por 46 cidades. Ela passou a ser um marco indispensável no universo arquitetônico. Hoje, todo mundo já ouviu falar sobre a Lina. Mas você acha que ainda falta Lina na FAU? M A R C E L O

Eu acho que falta. Outro dia eu fui numa banca de um aluno do Luis Antonio Jorge. Parêntesis: Luis Antonio é uma figura que leva todo mundo pra dentro da FAU, ele abre a FAU, é corajoso, tem uma cabeça grande e aberta, como eram as coisas da Lina. Isso faz falta lá, porque senão, na hora de fazer o projeto, os meninos usam aquela linguagem um tanto viciada e repetitiva, um repertório que às vezes é limitador . Acho que o bom da Lina era justamente esse conhecimento, um repertório amplo que as escolas precisam oferecer. E a continuação do projeto durante a obra. FRANCISCO

O SESC Pompéia, a própria Lina dizia, foi uma experiência quase renascentista no contato com a obra, como Michelangelo. O escritório era dentro da obra e isso é um canal direto, sem intermediação. Hoje a gente padece, é uma briga em todos os projetos: enquanto

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FOTOGRAFIA LÉO SCHURMANN

“Acho que o bom da Lina era justamente esse conhecimento, um repertório amplo que as escolas precisam oferecer.”

Desenho feito por Marcelo Ferraz durante a entrevista

a gente está desenhando ou mostrando ideias, nós recebemos um tipo de tratamento; em seguida a gente passa a ser um estorvo para todo mundo que intermedia essas relações. M A R C E L O

Lá no SESC Pompéia, a Lina simplesmente eliminou essa intermediação, a gente trabalhava lá, riscava no chão, no madeirite, e mandava fazer. Fazíamos amostras de tudo. Tivemos três escritórios lá. O primeiro no último galpão da rua central à esquerda, metade dele era nosso escritório. Engraçado é que quando cheguei tinham acabado de montar o escritório para ela mas estavam tirando o carpete. Tinham colocado carpete e ela estava furiosa, dizia “Carpete não, por favor!”, e tinha secretária. “Não precisamos de secretária, a gente atende o telefone”. Então todos trabalhávamos também como secretária, os colaboradores eram os serventes da obra, fazendo cafezinho, limpando. Depois, o segundo escritório, foi no primeiro galpão, entrando pela rua à direita. Era só um cercado, muito legal. O último foi um barraco lá no fundo, junto à Avenida Pompéia, porque a parte da fábrica já estava funcionando. Era lá no fundo, perto da caixa d’água. Era um barraco de dois andares, nosso “Catetinho”, dizia Lina. Mas isso é difícil, a gente briga muito na obra, porque um ótimo projeto pode dançar na execução, ser estragado. Ficamos em cima e mesmo assim, engolimos sapo, sai muita coisa mal feita. Mas não tem jeito, porque o desenho não dá conta da arquitetura e a presença do arquiteto no canteiro é cada vez menor, por diversos fatores.

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“o desenho não dá conta da arquitetura”

Em que vocês acham que mais diferem da Lina? M A R C E L O

Em tudo. (risos) FRANCISCO

Eu acho o que o Marcelo falou algo muito importante. A gente, em São Paulo, tem uma herança da arquitetura que se produziu aqui nos anos 60, um discurso que ganhou um repertório muito forte - a FAU, o Artigas, a relação da estrutura , mas que é também seu “calcanhar de Aquiles”, porque ficamos muito aprisionados por esse repertório. Você pode até usar a palavra “discípulo”, a palavra “escola de arquitetura” e não sei o que. Eu acho que a Lina não nos deixou esse tipo de legado. Talvez tenha nos deixado muito mais uma atitude, não um método, no sentido de um instrumento que orienta a ação. O método pode ser algo que aprisiona e define a forma de organização da ação passando ao largo das circunstâncias. Tem projeto que sai fácil demais, tem projeto que não. Tem projeto que a gente não conversa muito, outros em que se fala demais. E, às vezes, não conversa muito e não faz, dá um branco e de repente, alguém fala uma palavra que pode desenrolar uma meada. Assim, a gente briga bastante. Isso pode ser um método, uma postura. Não é nenhuma regra, às vezes é a sensação de limitação mesmo, diante da complexidade de alguma situação. Talvez isso seja uma diferença em relação à Lina, ela tinha uma abertura muito maior do que a nossa. M A R C E L O

Ela chega no Brasil com uma formação absolutamente europeia. Um outro modelo de arquitetura. A casa dela é “Miesiana”. O próprio MASP é um projeto um tanto europeu. Mas ela vai mudando. Ela dizia pra gente: “Se eu fosse fazer a minha casa hoje, eu faria outra casa, com beiral, com palha, com telhado, diferente”. Talvez fosse apenas uma provocação, e era, mas ela falava assim. FRANCISCO

Ela fez casas assim depois.

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“Então muitas vezes é pela omissão, pela saída de cena, que vem a maior contribuição que a função estrutural pode dar.”

M A R C E L O

A Casa Cirrel já é abrasileirada, se é que possível dizer isso. E contém certas características que são super importantes, e que mesmo trabalhando muito, são para nós difíceis de alcançar. São fundamentos da arquitetura, como economia de estrutura e atenção ao emprego dos materiais, a resistência dos materiais. Não tomamos a estrutura como a protagonista da arquitetura. A estrutura é um dos componentes que você tem que trabalhar. Mas eu acho que, na FAU, tem muito essa coisa: a estrutura. A gente não parte desse princípio, não começa daí. A gente começa tentando entender e ver adiante o que se quer com aquele prédio ou espaço, que vida queremos ver acontecer lá dentro. FRANCISCO

Em projetos diferentes pode ser diferente o papel da estrutura também. Eu acho que a estrutura pode ser um elemento constrangedor, que restringe as possibilidades que o espaço pode oferecer. Pra afirmar um partido estrutural, esse constrangimento tem que ser evitado totalmente. Tem que ser para libertar, não para constranger. Então muitas vezes é pela omissão, pela saída de cena, que vem a maior contribuição que a função estrutural pode dar. Nós vemos que vocês trabalham em várias escalas, desde o mobiliário até intervenções urbanas. Que tipo de perguntas vocês se fazem cada vez que vão responder a esses projetos diferentes? FRANCISCO

Uma vez eu estava fazendo uma banca de TFG (Trabalho Final de Graduação), na FAU, de um menino que desenhou um instrumento musical. Ele trabalhou um tempo na Baraúna, a marcenaria, e sendo músico ele gostava de madeira. Ele fez uma leitura linda da história do contrabaixo, que tem aquele desenho antigo, que ainda continua do mesmo jeito. Poderia ter se transformado num outro tipo de instrumento, que desse conforto e uma mobilidade maior para o músico. Então ele desenhou um contrabaixo genial, leve e compacto. A apresentação foi um concerto de Bach, e a banca era o baixista da Orquestra

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Sinfônica do Estado, um professor do design da FAU, que toca saxofone, e eu. Comecei minha fala, como eu era convidado, dizendo que uma das coisas da FAU que eu achava sensacional, era essa formação global, essa possibilidade de amplitude que tem. Já houve um TFG que foi uma dança numa gaiola pendurada. E entender todos esses assuntos como arquitetura era uma coisa da FAU. Esse professor de design me interrompeu e falou que havia um descompasso ali, eles estavam separando o desenho industrial da arquitetura, dividindo os cursos. Foi uma ducha de água fria, nesse sentido de que essas coisas todas podem ser a mesma. São escalas diferentes, são lógicas de materiais diferentes, você tem que entender essas lógicas, mas no fundo é a mesma coisa. Você está desenhando, de certa maneira, as circunstâncias da vida das pessoas: uma cidade, uma casa, um móvel. Tudo é muito mais interessante pelas aproximações que elas têm do que pelas especificidades que cada escala ou material traz. Indo buscar esse lado de vocês de intervenção nos edifícios históricos, nós vemos que no museu Rodin a intervenção é muito explícita. Já no Museu do Pampa vocês tentam disfarçar mais a intervenção, preservando muito da identidade original. Por que essa distinção? Qual foi o critério de cada um? M A R C E L O

Depois que eu visitei o Museu das Missões do Lúcio Costa, há pouco tempo, eu fiquei impressionado como, já em 1938, ele fez uma brincadeira séria com todos nós nessa questão do patrimônio. Em São Miguel das Missões, ele localizou o que seria o quadrado jesuíta, porque aquilo foi uma cidade, ou um povoado, que se desenvolveu ao redor


do convento, com hierarquias de ocupação. Lendo tudo isso, com a capacidade que ele tinha de entender o que era um assentamento missioneiro, ele quis marcar esse quadrado, porque achava que esse era um patrimônio importantíssimo, não só preservar a igreja com seu desenho, sua técnica, com a pedra vermelha, etc. Então, ele projeta o museu numa esquina: de quatro águas, com a casinha do caseiro - porque precisava ter um caseiro pra cuidar. Com essa construção e mais uns “pirulitinhos” no gramado ele sugere sutilmente o que era o quadrado missioneiro, olha que gesto incrível. Quando você chega pela frente, você olha para a construção do museu, acha que ela faz parte da original, com telhados de barro e colunas todas esculpidas em pedra. Você pensa que aquilo é antigo e isso até me incomodava um pouco, como é que o Lúcio Costa faz uma coisa imitando outra antiga? E ele diz que encontrou uma coluna por aí, caída nos escombros históricos, e resolveu fazer as novas colunas para o Museu baseadas naquela. Ou melhor, exatamente como aquela porque tinha a mão de obra pra esculpir a pedra com a mesma qualidade, então ele fez. Ninguém sabe se é verdade ou mentira, porque hoje, se existe dentre todas uma coluna matriz, ninguém sabe qual é. Olha que loucura, que “malandragem” ele faz. Parece que ele queria escancarar, dizendo que tudo é muito relativo. Essa questão do tempo, não existe linearmente. Ele podia pegar um cara que fizesse uma coluna tão bem feita quanto a de duzentos anos atrás, manualmente, não precisava ser com máquina. Com isso, ele faz um museu que parece antigo à primeira vista mas no qual, ao adentrarmos, encontramos uma planta de quatro paredes totalmente “Miesiana”. Ele faz uma planta super moderna, aberturas de visuais que valorizam o conjunto original, antigo, pela presença do novo. Nesse projeto ele tem várias atitudes, a rigor, contraditórias. Ele evidencia, mas mascara, ele é sutil, mas também contundente, ele tem ali todas essas posturas, já há quase cem anos.

Francisco Fanucci (à esquerda) e Marcelo Ferraz (à direita) durante a entrevista


“No fundo estamos tentando o tempo todo não cometer uma barbaridade ou, bom... se for, que seja pequena”

FRANCISCO

Mas negando uma série de outras. M A R C E L O

Ele nega algumas. Eu acho que isso foi uma lição, porque ajuda a gente a entender o que estamos fazendo, pelo menos conforta um pouco nosso trabalho quando nos deparamos com o patrimônio histórico. Por exemplo, no Rodin, precisamos fazer uma escada nova. Começamos pensando numa escada fora do prédio numa torre metálica, que quase não tocasse no casarão. Avançando mais, resolvemos colocá-la num canto do casarão, sacrificando uma varanda, melhor posicionada (uso interno) e até mesmo menos visível da rua. Assim, ela poderia atender ao prédio antigo e ao novo, ainda em projeto. Essa decisão nos deu as dicas pra fazer o novo. Nasceram juntos. Com a escada você anuncia um material novo, um projeto novo, uma lógica nova de projeto, uma coisa contemporânea, ou seja, uma linguagem nova. Esse foi o caminho, fomos construindo assim. No Pampa, tentamos de tudo para criar um auditório fora das ruínas da enfermaria. Não tivemos coragem de botar um auditório em frente, ao lado ou atrás, um volume que sempre iria competir com o existente. A quadra inteira é já um pedacinho do Pampa. O museu começa na própria paisagem do entorno e a enfermaria é tão forte, uma construção militar do século XIX. Podia ficar bom, alguém podia projetar, mas nós achávamos que ali tínhamos que ser discretos, desaparecer. Embaixo da terra foi a solução, embaixo da pedra, porque o basalto aflora em toda a coxilha. O auditório foi enterrado, você entra e é uma pedreira com o auditório. Só criamos uma parede nova de concreto do lado de fora da enfermaria, que anuncia ... algo novo, um novo uso interno, um novo conteúdo. Mas é isso: a enfermaria foi nos dando dicas, foi nos libertando, ou inibindo aquilo que podia ser absurdo. Portanto, cada caso é um caso, lutamos com isso a cada projeto. No fundo estamos tentando o tempo todo não cometer uma barbaridade ou, bom... se for, que seja pequena e não moleste a vida das pessoas por tanto tempo quanto dure toda arquitetura.

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FRANCISCO

Há quem discorde, que ache que a gente só cometa barbaridade. De certa maneira eles têm razão também. Para fechar, como vocês acham que a memória é tratada no Brasil? FRANCISCO

Muito ampla essa... Essa é a ideia. M A R C E L O

Vocês acham que ela é tratada diferente em outros lugares? Acho que a memória é uma construção, portanto, depende de quem a está construindo. M A R C E L O

É, a memória é uma construção. Eu acho que aí você já deu a resposta. Outra coisa, a memória não pode aprisionar, ela tem que nos ajudar. Ela pode viver perfeitamente e nos acompanhar por toda vida. Tentamos lidar com esse tema em duas exposições sobre nosso trabalho, aqui do escritório. Em geral, a tendência é querer nos botar numa gaveta - ou em duas, mas isso não vem ao caso. A gaveta é “eles fazem arquitetura assim, fazem arquitetura assado, arquitetura histórica, patrimônio histórico, regional”... sei lá. Por isso

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“...memória é o que nos ajuda, mas o esquecimento também é fundamental.”

mesmo resolvemos encarar o tema em duas exposições. Uma se chamava “Tradição do novo”, justamente pra brincar com a palavra “tradição”, que está ligada à memória, ao passado, e “novo”. Como é a tradição do novo? Ou então, a tradição está sempre inovando? É justamente para não deixar isso claro, porque, para nós, não é claro. Não é que nós separamos coisas novas de coisas de restauro. São a mesma, o approach é o mesmo. A outra exposição era a “Invenção da tradição”, que é o que você disse com sua pergunta. Por que não? As tradições são inventadas também, de certa maneira, ou reinventadas constantemente. Se não são, morrem. FRANCISCO

Eu li uma frase, outro dia, que achei maravilhosa e que ficou na minha cabeça: “O futuro é a origem da história”. É isso que o Marcelo disse, com esses dois nomes. Eu acho que a memória é uma invenção, de fato. M A R C E L O

E “tradição” quer dizer, se você pegar do radical traditar, transmitir, transferir, mudar. Só existe tradição se existir transformação, renovação o tempo todo. Se não existir isso, morreu, acabou. Então a tradição é refeita o tempo todo. Os índios podem cantar o mesmo canto, mas cada grupo, cada filho, cada neto, vai cantar ao seu modo, e as coisas vão mudando. Na hora que você congela, é a morte. Logo, tradição é muito interessante se for pensada como transformação, esse é um jeito legal de pensar no trabalho, pensar na memória. Quando vamos pro Rio de Janeiro sentimos muito mais coisa preservada ali, mais memória construída conservada. São Paulo é uma cidade muito voraz, é uma cidade que se autodestrói muito rapidamente, isso é até chocante. Você vai pra Bahia é outra história, vai pras cidades históricas... O Brasil é muito diverso, e é legal a gente ir pro Rio pra tomar um choque, vendo que riqueza está ali. Essa questão da memória... memória é o que nos ajuda, mas o esquecimento também é fundamental. Tem também aquele textinho que eu fiz no meu livro “Memória e Esquecimento”. Eu termino com a história do conto “Funes, o Memorioso” do Jorge Luis Borges. Ele tinha uma memória tão incrível, que para contar o que tinha feito ontem, gastava 24 horas, ou seja, vira uma coisa completamente anacrônica. A gente tem que esquecer muito, a memória é seleção das coisas, é escolha. Projeto é isso, não importa se é museu, prédio velho, se é novo. Projeto é escolha, seleção, ordenamento, é criar uma realidade nova. Nesse sentido, a gente trabalha com memória o tempo todo, mesmo quando vamos fazer uma casa nova num bairro novo, estamos selecionando coisas, selecionando o que vem da memória.

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C A I S D O S E RTĂƒ O L U I Z G O N Z A G A

Modelos tridimensionais do Cais do SertĂŁo Luiz Gonzaga

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Além disso, o novo equipamento cultural terá o máximo aproveitamento da paisagem em que se insere, respeitando e requalificando o tecido urbano envoltório. Usará a tecnologia mais adequada, visando a economia de meios construtivos, o baixo custo de manutenção, a durabilidade dos materiais empregados, bem como a economia de consumo energético e de recursos naturais – água, luz, ventilação e isolamento térmico – dentro dos limites acei-

Texto de apresentação do site http://www.brasilarquitetura.com/

O projeto do Cais do Sertão Luiz Gonzaga funde arquitetura e museografia de uma maneira sempre instigante e surpreendente. Durante sua elaboração, arquitetos e curadores trabalharam em conjunto – num permanente diálogo criativo. O resultado é um edifício que revela, metaforicamente, de diversas maneiras – ora sutis, ora contundentes –, os principais eixos temáticos da museografia.

PLANTA TÉRREA

táveis para um museu de alta tecnologia expositiva. Além de prestar um justo tributo a um dos maiores ícones da cultura brasileira – abrigando um grande acervo do Rei do Baião – o Cais do Sertão Luiz Gonzaga propiciará a seus visitantes uma experiência acolhedora, de caráter único, ao mesmo tempo intelectual e afetivo. Com acessibilidade universal a todos os espaços, será um lugar para muitas – e todas – as interações.


CORTE LONGITUDINAL

ELEVAÇÃO LATERAL


T E AT R O D O E N G E N H O Teatro Erotídes de Campos - Engenho Central Programa: Restauro e adaptação de galpão no Engenho Central de Piracicaba para abrigar teatro, salas de ensaio e restaurante. Área: 2850 m2 Local: Engenho Central, Piracicaba-SP

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O Engenho Central é “marca da terra” e está implantado na margem direita do rio Piracicaba, de onde se vê o centro da cidade do outro lado. Seus volumes em tijolo aparente oferecem uma visão impressionante, com a presença do rio espelhando suas luzes e compondo um cenário que singulariza a paisagem urbana de Piracicaba. O conjunto mantém-se com a integridade de quando foi desativado, como cidadela resistente às grandes mudanças por que passou seu entorno nas últimas décadas. Não nasceu como está. Ao contrário, ao longo de sua vida foi recebendo acréscimos, reformas, desenvolvimentos e, assim, guarda registro

de várias de suas idades. Um dos galpões mais antigos do conjunto, conhecido como “Número Seis”, será restaurado e adaptado para receber um teatro multifuncional. O projeto tem como fundamento básico a preservação da memória do antigo engenho aliada ao perfeito funcionamento de um teatro contemporâneo. Assim, o valor da arqueologia industrial se mescla às modernas tecnologias construtivas e cenotécnicas. O antigo galpão que abrigava tonéis de álcool estará lá, íntegro, como testemunha de um tempo que já não há, agora equipado e preparado para novos tipos de produção: música, teatro, dança, cinema e lazer.

Texto de apresentação do site http://www.brasilarquitetura.com/

Implantação do Teatro do Engenho


PLANTA TÉRREO NÍVEL 502.45 m

PLANTA 2o PAVIMENTO NÍVEL 509.60 m

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PLANTA - PISO TÉCNICO NÍVEL 514.05 m

PLANTA 2o PAVIMENTO NÍVEL 509.80 m

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VISTA FRONTAL

VISTA POSTERIOR

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VISTA LATERAL DIREITA

VISTA LATERAL ESQUERDA

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CORTE AA

CORTE BB

CORTE CC

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FOTOGRAFIA NICOLAS LE ROUX

Incursões de

Lina Bo Bardi pelo território da memória e possíveis relações com a teoria da restauração Eneida de Almeida

Difícil entender as razões pelas quais um estudante de arquitetura que passou pela FAU-USP entre os anos 1970-80 não tenha ouvido falar de Lina Bo Bardi. A investigação desses motivos não é exatamente o intento deste artigo, mesmo porque só podem ser pequenos diante da importância do seu trabalho, da sua imensa contribuição. Essa convicção, no entanto, não justifica ignorar esse fato por completo, como se coubesse registrar que, em certa medida, essa instituição de ensino contraiu um débito em relação à memória da arquiteta. Talvez esse débito já tenha sido reparado por meio das investigações desenvolvidas nas últimas décadas, sobre a atuação dessa arquiteta ítalo-brasileira. Quiçá tenha sido remediado pelo trabalho de alguns de seus estudantes que, fora dos círculos acadêmicos, tiveram contato e deixaram-se contaminar por sua competência, por sua vitalidade, de modo a manter uma duradoura colaboração que persistiu depois de formados.

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Este texto pretende, portanto, registrar alguns aspectos da produção de Lina Bo Bardi no que se refere ao seu interesse pela memória, pela história, e de relacioná-los à intervenção em edifícios de reconhecido valor patrimonial. Antes de enveredar por sua produção especificamente ligada ao universo das preexistências arquitetônicas de interesse documental, convém assinalar aspectos mais gerais do seu trabalho que a situam no lapso temporal que avança em pleno modernismo, mas que atravessa em direção à turbulência da revisão pós-moderna (RUBINO; GRINOVER, 2009, p. 23). Entre os vários autores que se dedicam à análise de sua obra apontam-se aqui Montaner (1997) e Oliveira (2004). Josep Maria Montaner destaca, em sua arquitetura, a presença dos valores básicos do ideário moderno: humanismo, projeto social, vontade de renovação formal, construção utilitária e funcionalista. Indica, entretanto, uma peculiaridade: a marca da expressão do trabalho artesanal. O autor a situa junto a Louis Khan, Aldo van Eyck, Luis Barragán e Fernando Távora, representantes de uma terceira geração do movimento moderno que “rechazan el formalismo y el manierismo del estilo internacional y reclaman mirar de nuevo hacia los monumentos, la historia, la realidad y el usuario, hacia la arquitectura vernacular” (MONTANER, 1997, p. 12). Olívia de Oliveira, assim como Montaner, observa no trabalho de Lina Bardi a superação do esquematismo abstrato da linguagem moderna. Dessa forma explica o compromisso do “architetto”1 com a história, a atenção à tradição popular e ao ambiente preexistente, seja natural, ou construído. Como bem coloca a autora, essa aproximação com os elementos artesanais e o uso dos materiais recorrentes na arquitetura popular, no entanto, nada têm a ver com o ideal romântico de Ruskin e Morris. Não se trata de mitificar o artesanato, mas sim privilegiar a simplicidade das soluções, o uso de recursos disponíveis e de baixo custo combinados à inventividade. Uma questão relevante a se discutir corresponde a uma possível abordagem desatenta, que erroneamente poderia sugerir a indiferença de Lina Bo Bardi em relação ao pensamento produzido no campo da preservação e restauro dos bens culturais. A sua postura independente e seu modo irreverente corroboram essa tese. De fato, não é o caso de rotular seu procedimento de projeto conforme esta ou aquela vertente da restauração. Engano pensar, no entanto, que

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1 Era assim que Lina Bo gostava de ser chamada, architetto, no masculino como se diria no idioma italiano, em que a maioria das profissões não possui denominação feminina


ela desconheça ou ignore a produção teórica dos seus conterrâneos, ou pensar que seus projetos sejam fruto de pura e simples intuição. Assim sendo, caberia reconhecer certas tangências de raciocínio e, sobretudo, investigar como Lina Bo Bardi transita entre o rigor exigido pelo respeito histórico e a liberdade que tanto preza.

2 FERRAZ, Marcelo C. (org.) Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993. Citação de fechamento da publicação. 3 FERRAZ, op. cit., p. 276, em texto sobre o “Projeto Barroquinha”. (Grifo meu).

Para examinar algumas das estratégias de Bo Bardi relacionadas às intervenções voltadas à arquitetura preexistente, nada mais oportuno que averiguar sua compreensão a respeito do tempo, que subentende a distinção entre história e memória, entre a narrativa que se pretende objetiva, teleológica, e as diferentes interpretações que constituem o ato de rememorar: Mas o tempo linear é uma invenção do Ocidente, o tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim.2 Comparece aqui a articulação entre memória, como uma espécie de escavação espontânea de referências, e invenção, como reedição dessas imagens recuperadas. As palavras de Lina Bardi sobre o trabalho do SESC Pompéia são sugestivas a exprimir o espírito da ação realizada quanto à relação passado/presente, reconhecível na dualidade entre permanência e transformação, como também à remissão à fronteira entre lembrança e esquecimento, ou seja, à imprescindível seleção implícita no processo de reconhecimento daquilo que se elege para conservar: Não se trata de só devolver o prédio como uma máquina do tempo no passado. Isso é preciso esclarecer porque a retromania está tomando conta do mundo, não é isto que estou fazendo (...) se formos tomar por princípio absoluto o uso que fizemos dos espaços da fábrica da Pompéia, haverá gente querendo recuperar e proteger uma salada de edifícios que são velhos e não históricos. Assim a cidade transforma-se, por excesso de zelo, numa cidade de cacarecos, o que não é desejável. É preciso deixar também florescer a nova arquitetura. Oportuno para esta análise investigar o seu entendimento acerca da locução ‘presente histórico’: “Existe porém outro tipo de Passado que pode ser conservado mas deve viver ainda em forma de ‘Presente Histórico’, acompanhando o presente real da vida de todos os dias.” 3

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O termo já tinha sido nominado na Aula de arquitetura4 e reaparece no texto sobre a intervenção que transforma o antigo Palácio das Indústrias em nova sede da Prefeitura do Município de São Paulo5 nos seguintes termos: É preciso se libertar das ‘amarras’, não jogar fora simplesmente o passado e toda a sua história: o que é preciso é considerar o passado como presente histórico. O passado, visto como presente histórico, é ainda vivo, é um presente que ajuda a evitar as várias arapucas... Frente ao presente histórico, nossa tarefa é forjar um outro presente, ‘verdadeiro’, e para isso é necessário não um conhecimento profundo de especialista, mas uma capacidade de entender historicamente o passado, saber distinguir o que irá servir para as novas situações de hoje que se apresentem a vocês, e tudo isto não se aprende somente nos livros. (FERRAZ, 1993, p. 319)

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No texto da Aula Inaugural da FAUUSP de 1990, publicada na revista Projeto n. 133, p. 105.

5 Sobre o projeto para a instalação da sede da Prefeitura Municipal de São Paulo no antigo Palácio das Indústrias (199092), convém relembrar a estimulante ideia da instituição “antikafkiana” mencionada por ela. 6 BRANDI, C. Teoria da restauração. Tradução de Beatriz M. Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. A tradução do livro para o português permitiu a maior divulgação dessa obra fundamental no Brasil, bem como a ampliação e atualização das discussões, conforme os debates mais recentes do panorama internacional. 7 A referência de Brandi à obra de arte deve ser contextualizada. Na atualidade essa compreensão subentende a noção do patrimônio numa acepção mais ampla, equivalente a de bem cultural.

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Essas colocações fazem pensar à apreensão de uma dimensão histórica que não se reporta a um passado idílico, mas que, ao contrário, enxerga as coisas vivas do presente como resultantes de todo um acúmulo de experiências passadas que lhe conferem peso e significado cultural. Essa noção sugere de pronto uma aproximação com aquela enunciada por Brandi em seu livro, Teoria da restauração6 , ao apresentar a história e a estética como os elementos centrais da obra de arte7. De início o autor indica a peculiaridade da ação de conservação voltada ao bem cultural, distinta daquela dirigida ao artefato comum. Observa que em uma acepção corrente a noção de restauro pressupõe a recuperação de uma condição de uso. Se para o artefato comum esse aspecto é relevante, para a obra de arte, afirma Brandi, essa condição é secundária, tendo em vista a preponderância de sua expressividade figurativa, frente às questões utilitárias. Dessa apreensão decorre o primeiro corolário enunciado: “(...) qualquer comportamento em relação à obra de arte nisso compreendendo a intervenção de restauro, depende de que ocorra ou não o reconhecimento da obra de arte como arte.” (BRANDI, 2004, p.28)


O valor atribuído ao objeto de intervenção condiciona definitivamente a ação, isto é, a própria intervenção deverá articular seu conceito não com base nos procedimentos operativos, mas com base no conceito que se faz da obra. Assim conclui Brandi: “Chega-se, desse modo, a reconhecer a ligação indissolúvel que existe entre a restauração e a obra de arte, pelo fato de a obra de arte condicionar a restauração e não o contrário.” (BRANDI, p. 29) Para compreender o alcance da reflexão de Brandi, convém retomar a sua definição de restauro: “(...) a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro.” (BRANDI, p. 30)` No entender de Brandi, a ação encontra origem no momento de reflexão, nessa súbita revelação que impõe a necessidade de transmissão ao futuro. Restauro é, portanto, providência vinculada ao reconhecimento de valor que, por sua vez, requer um processo organizado, lógico e sistemático de instrução. Sobre os componentes constitutivos do objeto de intervenção, assim discorre Brandi: Como produto da atividade humana, a obra de arte coloca, com efeito, uma dúplice instância: a instância estética, que corresponde ao fato basilar da artisticidade pela qual a obra de arte é obra de arte; a instância histórica que lhe compete como produto humano realizado em um certo tempo e lugar e que em certo tempo e lugar se encontra. (BRANDI, p. 29) Mais adiante pontua o caráter dúplice da historicidade: Foi dito que a obra de arte goza de uma dúplice historicidade, ou seja, aquela que coincide com ato de sua formulação, o ato de criação, e se refere, portanto, a um artista, a um tempo e a um lugar, e uma segunda historicidade que provém do fato de insistir no presente de uma consciência (...)

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O período intermediário entre o tempo em que a obra foi criada e esse presente histórico que de modo contínuo se desloca para frente, será constituído de outros tantos presentes históricos que se tornaram passado, mas de cujo trânsito a obra poderá ter conservado traços. (BRANDI, pp. 32-33 – grifo meu) O entendimento do presente histórico, formulado por Brandi, é fundamental para a definição do momento adequado para situar a intervenção de restauro. (...) o único momento legítimo que se oferece para o ato da restauração é o do próprio presente da consciência observadora, em que a obra está no átimo e é presente histórico, mas também é passado e, a custo, de outro modo, de não pertencer à consciência humana, está na história. A restauração, para representar uma operação legítima, não deverá presumir nem o tempo como reversível, nem a abolição da história. A ação de restauro, ademais, (...) não se deverá colocar como secreta e quase fora do tempo, mas deverá ser pontuada como evento histórico tal como o é, pelo fato de ser ato humano e de se inserir no processo de transmissão da obra de arte para o futuro. (BRANDI, p. 61 – grifo meu) Vale destacar a clara intenção de evidenciar a intervenção, não mimetizá-la à preexistência, não escondê-la, ao contrário configurá-la como ação do presente, consoante com o reconhecimento de seu valor estético e documental. Difícil saber se o presente histórico de Lina Bardi tem por base a expressão brandiana8. Contudo, sua origem e formação apontam para uma familiaridade com a notável produção desse intelectual italiano. Da mesma forma, não se pode subestimar o peso de sua formação no tocante ao campo específico da restauração, tão relevante na produção acadêmica de Roma, cidade em que nasceu e se formou. Não se trata aqui de pretender enquadrar forçosamente a conduta de Lina Bo Bardi, conforme as orientações da teoria de Brandi, e sim buscar afinidades no encadeamento lógico do problema, indicar um provável alinhamento. Afinal não só de intuição e espírito anárquico é constituído o seu trabalho, mas justamente de um entrelaçamento entre o popular e o erudito, entre realidade e utopia, entre comedimento e poesia.

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8 Em debate realizado no MASP, em 25/08/09, por ocasião do lançamento do livro Lina por escrito, Silvana Rubino (umas das organizadoras da publicação junto com Marina Grinover) comenta a respeito da acepção crociana dessa expressão. Benedetto Croce representaria certamente um dos pontos de contato entre os presentes históricos de Lina Bardi e de Cesare Brandi.


UX RO E SL LA CO NI IA AF GR TO FO

Referências bibliográficas ALMEIDA, Eneida de. O construir no construído na produção contemporânea: relações entre teoria e prática. Tese de doutorado. FAU-USP, 2010. BRANDI, C. Teoria da restauração. Tradução de Beatriz M. Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. FERRAZ, Marcelo C. (org.) Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993. MONTANER, Josep Maria. La modernidad superada. Arquitectura, arte y pensamiento del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1997. OLIVEIRA, Olívia de. “I mondi immaginari e i modi reali”. In: GALLO, Antonella. Lina Bo Bardi architetto. Veneza: Marsilio, 2004. RUBINO Silvana; GRINOVER, Marina (org.) Lina por escrito. Textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

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Vapor barato Um mero serviçal Do narcotráfico Foi encontrado na ruína De uma escola em construção... Aqui tudo parece Que era ainda construção E já é ruína Tudo é menino, menina

FOTOGRAFIA MARTIM PASSOS

MÚSICA: FORA DA ORDEM, AUTOR: CAETANO VELOSO, EDITORA: UNS PRODUÇÕES ARTÍSTICAS LTDA

No olho da rua O asfalto, a ponte, o viaduto Ganindo prá lua Nada continua... E o cano da pistola Que as crianças mordem Reflete todas as cores Da paisagem da cidade Que é muito mais bonita E muito mais intensa Do que no cartão postal... Alguma coisa Está fora da ordem Fora da nova ordem Mundial

FORA DA ORDEM Caetano Veloso


Memórias Ecanas uma nova arquitetura narrativa

Paulo Nassar e Emiliana Pomarico Ribeiro A Escola de Comunicações e Artes é um centro de excelência em suas áreas no Brasil e na América Latina. Sua história é marcada por professores de trajetória claramente meritória, sendo um espaço que contribuiu e continua contribuindo para a formação de comunicadores, artistas, pensadores e pesquisadores de destacada atuação na sociedade, gerando personagens importantes no mercado de trabalho e no cenário sociocultural. No entanto, apesar da relevância passada e atual que a ECA tem na formação e na produção brasileiras, havia poucos registros sobre as memórias desta Escola. Pensando sobre esses aspectos, em 2006, o Professor Doutor da ECA-USP, Paulo Nassar, idealizou o projeto Memórias Ecanas para ser aplicado como trabalho acadêmico realizado pelos alunos do 6° Semestre de Relações Públicas da Escola para a disciplina ministrada por ele, intitulada “Produção Audiovisual no Contexto das Novas Mídias, do Novo Social, e das Empresas e Instituições”, em que os próprios alunos escolhem seus entrevistados

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dentre aqueles que vivenciaram ou ainda vivenciam momentos importantes, mesmo que considerados pessoais, na trajetória da Escola - e que tenham lembranças afetivas sobre os anos que ali fizeram a sua própria história. Com a ajuda do Prof. Dr. Paulo Nassar e das monitoras do projeto, Emiliana Pomarico Ribeiro e Renata Biagioni Wrobleski, os alunos, divididos em grupos de quatro integrantes, preparam um roteiro de perguntas para o seu entrevistado após pesquisar sobre sua vida e suas obras, lidam com os desafios de uma produção audiovisual e aprendem a mexer nos equipamentos de gravação e edição. Ao final, cada grupo divulga o seu vídeo segundo um plano de comunicação, promovendo a memória institucional, espacial, acadêmica, cultural e social da ECA/USP por meio do registro da história oral da comunidade da Escola, dos docentes, discentes e funcionários, atuais e passados, além de contribuir com o reconhecimento da participação e da trajetória de pessoas em diferentes funções e hierarquias com a história da ECA/USP.


Dessa maneira, o projeto não apenas atendeu o preenchimento da lacuna sobre os registros e o armazenamento da história oral da comunidade e das personalidades da ECA-USP como também passou a ser base para a construção de conhecimentos teóricos e práticos sobre Audiovisual, Relações Públicas e Memória Organizacional. Unidas estas áreas, os alunos visualizam a possibilidade da elaboração de novas estratégias de comunicação necessárias em um contexto informativo e relacional digital: de transparências, multiprotagonismos, sobrecargas de informações e de atenção sobre a relação entre as esferas públicas e privadas, que exigem uma configuração mais atrativa, subjetiva e afetiva, capaz de gerar maior envolvimento e atenção. Os vídeos resultantes do projeto são exemplos dessas novas estratégias e demonstram aos alunos, principalmente, como é possível criar o que acreditamos ser, na comunicação, uma espécie de nova “arquitetura narrativa” capaz de atender as exigências do atual contexto social e

educacional. Este conceito se traduz em uma maneira de organizar as informações e os conteúdos para estruturar e construir narrativas - no caso do projeto, narrativas afetivas, transparentes e que dão espaço para a multiplicidade de vozes da comunidade da Escola, não apenas de forma técnica e ética, mas também estética. Outro ponto importante é o armazenamento das memórias do “espaço ecano”, uma vez que os espaços podem ser reconstruídos pelas memórias. Frances A. Yates1, em seu livro “A arte da memória”, começa justamente contando a história mitológica de Simônides, poeta que cantava seus poemas em um banquete para um nobre de Tesalia quando, em sua ausência, o teto desabou matando todos os convidados do local. Simônides foi capaz de identificar os mortos em meio aos destroços, recordando os lugares onde cada um deles estava sentado. Isso inspirou o poeta para a invenção dos princípios da “arte da memória”, que consiste exatamente na ligação entre espaços e memória, sendo que a memória pode ajudar tanto na reconstrução

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dos ambientes como na recordação deles, de seus detalhes e das situações vivenciadas sobre eles, tornando-se a essência de uma boa memorização e base de uma comunicação excelente. Estes princípios se relacionam com os lugares antropológicos de Marc Augé2, raros no contexto atual que ele chama de “sobremodernidade”. Excessos de falta de tempo em uma sociedade da velocidade e da efemeridade geram os “não-lugares”, ou seja, ambientes racionais, objetivos, sem relação meio/fim, sem espaço para relacionamentos, construções de memórias e, consequentemente, sem tempo para a edificação das narrativas da comunicação. É perante essas “ameaças” contextuais que os estudantes podem refletir, com o projeto, a importância identitária, histórica e relacional dos ambientes associados às necessidades da comunicação organizacional. Dessa maneira, podemos resumir que o projeto Memórias Ecanas foi criado por estar fortemente relacionado a uma série de questões importantes para a formação democrática de um comunicador, como: a) a possibilidade de formatar uma arquitetura narrativa que minimize a sobrecarga de informações circulantes por envolver sentimentos e um tom confessional que gera identificação, veracidade, curiosidade e repercussão; b) a oportunidade em ser um exercício prático sobre as teorias de descentramento do sujeito3, não mais privilegiando fontes por hierarquia, mas estimulando a diversidade de vozes (as chamadas micronarrativas) e a coleta inclusiva de pontos de vista numa sociedade que caminha para o multiprotagonismo; c) a geração de insights relevantes sobre a história, o funcionamento e a divulgação da Escola e da USP com vistas ao traçado de

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planos futuros, sob uma ótica mais voltada ao estudo do processo cognitivo de percepção e afetividade; d) a associação sobre a valorização das pessoas que fazem parte de uma organização, seus feitos e histórias individuais e e) as consequentes descobertas de como esses registros podem contribuir com o próprio discurso institucional da Escola e da USP, uma vez que o projeto demonstra que toda memória se transforma em história, revelando significados, afetos, empatias e valores que não são possíveis em discursos institucionais, já que a evidência oral “contribui para uma história que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira” (Thompson, 1992, p. 137)4. Assim, durante os últimos seis anos, pode-se dizer que o projeto tornou-se também uma ação de comunicação da Escola, contando com a gravação e edição de, em média, quinze novos testemunhos por ano que apresentam diversas memórias de quem fez e faz parte da história da Escola. Professores, alunos, ex-alunos e funcionários dão seus depoimentos de vida, narrando suas lembranças, ajudando a construir a história da ECA, que cresce em seus detalhes a cada nova turma de alunos. Os vídeos resultantes deste projeto, os quais podem ser acessados no site Youtube (pelo canal: http://www.youtube. com/user/memoriasecanas), denotam a importância desses registros para alunos, entrevistados, pesquisadores, comunidade ECA-USP como um todo e para a própria Escola como instituição, além de reforçar as oportunidades tecnológicas que proporcionam a distribuição dessas narrativas de maneira abrangente e livre. O que o projeto pode significar para a comunidade da ECA: O projeto Memórias Ecanas, com o registro audiovi-


sual-digital de histórias de vida, pretende viabilizar uma forma de garantir às gerações futuras o conhecimento sobre a trajetória de personagens e seus feitos admiráveis ligados à ECA e à USP. Com isto, pode-se criar uma valorização do passado, não como engessamento das práticas atuais, mas como estimulador das inovações, respeitando um jeito de ser da Escola como instituição pública e como agente de reflexão sobre os rumos da sociedade. É preciso destacar que as obras, as produções e as contribuições para o campo das comunicações e das artes para a sociedade destes “ecanos” entrevistados acabam por estimular a valorização da história da ECA. Ademais, este projeto coloca-se como relevante por significar um esforço transdisciplinar que vem a qualificar as pesquisas sobre comunicação com a inteligência da História Oral. Mais ainda, introduz a reflexão e o uso das tecnologias sociais da memória como formato de comunicação institucional, consolidando o espírito inovador da Escola. É importante assinalar que o projeto já permitiu a realização de pesquisas acadêmicas e de disseminação do conteúdo audiovisual com fins institucionais e históricos.5 De todo modo, com sua contínua ampliação de produção e divulgação, certamente poderá ser gerada uma efervescência de novas investigações e novas combinações de conhecimento em torno da memória institucional, da história oral, da oferta de acervos digitais e da valoração dos testemunhos. Isto acontece pela viabilização de maior acesso a cidadãos com história ligada à Escola para participar das gravações num tom polifônico – mais vozes, mais pontos de vista, mais histórias, mais valorização.

Paulo Nassar é Prof. Dr. da ECA USP e idealizador do Projeto Memórias Ecanas Emiliana Pomarico Ribeiro é Mestranda em Ciências da Comunicação na ECA USP e monitora do projeto Memórias Ecanas 1 YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. 2 AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994. 3 NASSAR, Paulo. A mensagem como centro da rede de relacionamentos. In: FELICE, Massimo Di [org.]. Do Público para as Redes: A comunicação digital e as novas formas de participação social. São Caetano do Sul: Difusão Editora, 2008. 4 THOMPSON, Paul. A voz do passado: historia oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 5 Como exemplo, temos a publicação do capítulo Memórias Ecanas e o Resgate da Propaganda. In: Victor Aquino. (Org.). A USP e a invenção da propaganda: 40 anos depois. A USP e a invenção da propaganda: 40 anos depois. 1ª ed. São Paulo: FUNDAC, 2010, v. v.1, p. 331-336, escrito por Paulo Nassar, Emiliana Pomarico Ribeiro e João Valsechi Ribeiro de Souza. Além da produção do trabalho de conclusão de curso com o título “Audiovisual como estratégia de Relações Públicas - Relato do Projeto Memórias Ecanas”, por Emiliana Pomarico Ribeiro e orientação Prof. Dr. Paulo Nassar, trabalho vencedor em segundo lugar do 29º Prêmio ABRP Concurso Universitário Nacional de Monografias e Projetos Experimentais de Relações Públicas. Além da Iniciação científica de João Valsechi Ribeiro de Souza, em que foram feitas análises sobre os conteúdos dos depoimentos existentes entre os anos de 2006 e 2010.

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Reféns da Palavra, Luis Fernando Veríssimo. “No seu livro Lessons of the Masters, George Steiner lembra que nem Sócrates nem Jesus Cristo, que ele chama de as duas figuras “pivotais” da nossa civilização (de pivots, como no basquete ou nos crimes passionais), deixaram qualquer coisa escrita. São mestres cujas lições sobreviveram no relato de outros, Platão no caso de Sócrates e os evangelistas no caso de Jesus. Não existe nem evidência de que os dois soubessem escrever. A única, enigmática referência da Bíblia a um Cristo escritor está em João 8:1-8, quando, indagado pelos fariseus sobre o destino da mulher flagrada em adultério, Jesus finge que não ouve e escreve algo no chão com o dedo - ninguém sabe o que ou em que língua. Existe até uma velha piada, que Steiner cita, sobre um acadêmico moderno comentando o currículo de Jesus: “Ótimo professor, mas não publicou.” O legado literário de Sócrates, via Platão, é em forma de mitos, o de Jesus em forma de parábolas. Dois meios de organização e transmissão oral de memória que a escrita diminui, transformando narrativa aberta em cânone e lição em dogma. Nos diálogos de Platão o pensamento vivo de Sócrates já se coagulou em filosofia, nos textos bíblicos a verdade poética de Cristo se petrificou em verdades sagradas, irrecorríveis. Mas o maior defeito da escrita seria o de ter sabotado a memória como guia, roubando a sua função civilizatória de “mãe das musas”.


Durante muito tempo, os gregos desconfiaram da palavra escrita como a linguagem cifrada de um mundo obscuro que só levava à danação, diferentemente do que se aprende “de cor”, ou com a linguagem do coração. Homero, o inventor da literatura ocidental, era maior porque também nunca escrevera nada e suas estrofes inaugurais tinham sido transmitidas oralmente, de coração em coração. Mas isto pode ser outro mito. “Omeros” em grego, descobri agora, quer dizer refém. Homero, como o primeiro escritor do nosso mundo, seria o primeiro prisioneiro da maldita palavra grafada. Meu convívio forçado com o computador, sua conveniência, seus mistérios e seus perigos, me faz pensar muito sobre a precariedade da palavra. Pois um pré-eletrônico como eu está sempre na eminência de ver textos inteiros desaparecerem sem deixar vestígio na tela. O computador nos transforma todos em reféns sem fuga possível da palavra e pode acabar, num segundo, com um dia inteiro de trabalho da pobre musa dos cronistas em trânsito. Que, como se sabe, se chama Ritinha, é manicure e faz trabalho de musa como bico. Ao mesmo tempo, nos transformou na primeira geração na História que tem toda a memória do mundo ao alcance dos seus dedos. O computador resgata a memória como mestre da História ou, ao contrário, nos exime de ter memória própria, e decreta o domínio definitivo da escrita sobre quem a pratica? Sei lá. É melhor acabar aqui antes que este texto desapareça”.


Oscar Niemeyer rodrigo cristiano queiroz

Acima dos conhecidos atributos que identificam sua obra, como leveza, invenção, beleza, movimento, entre tantos outros, Oscar Niemeyer é um arquiteto moderno. Ao considerar esse fato, faz-se necessária a compreensão de alguns conceitos que balizaram as artes visuais e a arquitetura no interior do projeto moderno, para um entendimento mais esclarecido sobre a obra do arquiteto, que ultrapasse o olhar superficial, ainda à deriva entre as curvas de seus desenhos e de suas formas. Para determinadas vertentes da matriz construtiva moderna, arte e vida deveriam constituir uma unidade em si, sendo indistintos os limites entre uma e a outra. Trata-se de um projeto ambicioso, que ultrapassa a fatura isolada da pintura, da escultura, do design e da própria arquitetura. A anulação da hierarquia entre o mundo da arte, como a tentativa de repre-

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sentação literal da realidade, e o mundo real, a vida do povo, define um dos principais anseios da arte moderna. A utopia que move parte das vanguardas modernas apoia-se na perspectiva da constituição de um espaço supostamente ilimitado, onde a abstração geométrica transpõe as escalas domésticas da pintura e da escultura, e assume a escala do espaço, e consequentemente, da sonhada cidade moderna. Uma típica pintura neoplasticista de Piet Mondrian não pode ser asfixiada em uma moldura rica em ornamentações e entalhes. Seus planos preenchidos e suas linhas pretas, verticais e horizontais, expressam um claro desejo de expansão que pretende parametrizar, a partir de uma trama ortogonal, racional, nada humana, todo o espaço que a circunda. Trata-se de uma experiência que reivindica do espaço


e a forma da liberdade

a mesma adesão à abstração identificada na pintura. Do mesmo modo, uma escultura de Jean Arp não se assenta sobre um pedestal adornado com caneluras e volutas, ao contrário, muitas delas repousam diretamente sobre o chão, estabelecendo sutis pontos de tangência entre seu perfil curvilíneo e o solo. Tanto em Mondrian como em Arp inexiste a moldura e o pedestal como amparos que preservam a autonomia da arte no mundo real. O suporte de ambas é o próprio espaço. Nesses casos, a obra prescinde de uma superfície homogênea que demonstre a relação condicional entre o objeto e o espaço, e consequentemente, entre a arte e a vida. A unidade entre arte e vida, expressa nas estratégias de Mondrian e Arp, expõe o claro objetivo por uma espacialidade abstrata integral, que se deseja in-

finita, sendo assim, isolada da memória, representada pelo espaço do presente, paradoxalmente, identificado pelas camadas de tempo que constituem a cidade real. A configuração de um ambiente novo, totalmente inume a tradição, se viabiliza quando a condição não figurativa da imagem e do objeto extravasa às escalas da construção e do espaço, isto é, da arquitetura e do urbanismo. A real possibilidade dessa síntese absoluta foi o que o projeto moderno cunhou de “obra de arte total”: uma conjuntura espacial onde imagem, objeto, arquitetura e cidade assumem uma relação condicional, existencial e ética entre si. É inegável que a relação entre forma e espaço em Niemeyer é tributária a esses pressupostos canônicos da arte moderna. Exceto raras exceções como o edifício Copan (1951/1966), localizado no

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centro da cidade de São Paulo, a obra de Niemeyer não é reconhecida por uma proficiente inserção no tecido da cidade real. Invariavelmente, suas formas prescindem de um vazio que as façam respirar, seja ele previsto no próprio projeto, como no caso das superfícies planificadas de Brasília (1957/1960), na forma de terraplenos geométricos sobre o Planalto Central, seja natural, como no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (1991/1996), com seu perfil inscrito entre as silhuetas das montanhas do Rio de Janeiro, do outro lado da Baía da Guanabara. Assim como Mondrian e Arp, a forma de Niemeyer pressupõe a existência desse vazio homogêneo, horizontal que a isole de toda e qualquer reminiscência de um passado construído. O espaço moderno e, consequentemente, o espaço projetado por Niemeyer, não é o espaço do presente, mas representa situações-fragmento de uma “terra prometida” que materializa, aqui e acolá, os mandamentos escritos nas tábuas da modernidade pelo mestre Le Corbusier. Nesse futuro possível, desenhado pelo projeto moderno e por Niemeyer, a arquitetura não assume a nefasta condição burguesa que reflete os desejos privados de proteção, isolamento, intimidade, bem estar, propriedade e status que hoje infestam as cidades com infames condomínios privê e shopping centers na forma de fortificações encasteladas, arquiteturas do medo, negação absoluta da cidade e, consequentemente, de uma desejável vida em sociedade.


É justamente essa cidade, resultado míope do capital e do lucro, que deve ser superada pelo projeto moderno. Porém, essa superação, via-de-regra, ocorre a partir de um ato inaugural, da fundação de um novo espaço apartado da cidade propriamente dita. Diante de uma realidade, digamos, bem pouco moderna, a arquitetura de Niemeyer exige do usuário um comportamento incomum, um desapego ao conforto fácil e a consciência de que o espaço não tem hierarquia, é de todos, daí as superfícies planas e vazias, pontuadas por formas que apenas tangenciam o chão ou configuram um movimento dessa própria superfície. O esvaziamento dessas imensas esplanadas possui um toque de melancolia: um espaço pronto, a espera de uma sociedade que ainda não se formou. São espaços que representam, acima de tudo, a esperança. A aridez de seus espaços, associada à nudez alva de superfícies que dispensam qualquer elemento ornamental, constituem um conjunto onde a beleza é proporcional à simplicidade desconcertante do gesto que define a forma. Ao suspender suas formas do chão, seja com o advento dos pilotis – solução herdada de Le Corbusier – seja pela predileção por formas que tocam o solo em pontos de apoio mínimos, Niemeyer questiona o sentido de propriedade do solo, promovendo um espaço marcado por uma superfície aberta, livre de portas que delimitam a vida pública e a privada. Aliás, nada mais figurativo e

reacionário para a arquitetura moderna do que uma porta. Esse elemento arquitetônico quase ancestral representa justamente o umbral de passagem entre o mundo livre e a vida particular. Notem que dificilmente os edifícios de Niemeyer são acessados por meras portas, ao contrário, como suas formas estão suspensas, refletidas em espelhos d’água, o acesso é franqueado por generosas rampas, invariavelmente sinuosas, que representam, justamente, a continuidade da própria superfície do chão que ascende ao corpo suspenso. Ao contrário, no caso das formas rasas, abatidas, parcialmente enterradas, o acesso se dá por um túnel em penumbra, como na Catedral Metropolitana e no Memorial JK, ambos em Brasília. O sentido de urbanidade projetado por Niemeyer não remete às cidades que conhecemos. Sua estratégia é justamente opor-se radicalmente ao modo conservador como a cidade é construída, dividida em lotes e com suas construções alinhadas na calçada. Em suas obras e projetos, Niemeyer sinaliza para a possibilidade da constituição de uma convivência igualitária. A relação condicional entre forma e espaço, identificada pela simplicidade de um gesto reduzido ao limite do necessário que define vazio e construção em um movimento sem interrupção, faz da obra de Niemeyer não um mero conjunto de formas “inventivas”, mas uma hipótese de futuro, onde a arquitetura inspira nos cidadãos o feliz sentimento de liberdade total.

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MEMóRIAS D E

U M A

A R T E

S E M

P A S S A D O

DO FUTURO Giselle Beiguelman A net art foi desde sempre um problema no espaço, por não se enquadrar nas tradições expositivas. Tornou-se um problema para o tempo, desaparecendo com os sites que linkava, os servidores que a abrigaram e as tecnologias que consolidaram a obra. A história da net art é recente, mas cheia de revezes. Eterna prima pobre da artemídia, pela acessibilidade intrínseca às redes que nunca caiu bem no crivo exclusivista dos colecionadores, viveu um breve hype entre o fim dos anos 1990 e o início dos 2000. Nesse curto período, penetrou o circuito das bienais, inclusive a de São Paulo, em 2002, e chegou à Documenta de Kassel, cuja décima edição, em 1997, prometia à arte na rede uma trajetória crítica de sucesso que nunca vingou. A Documenta X comissionou dez projetos web site specific, selecionados pelo crítico suíço Simon Lamunière, curador convidado por Catherine David, curadora-

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-geral da mostra. Revolucionária para a época, a interface online daquela edição distanciava-se do estilo portal para apresentar-se como uma plataforma de experiências artísticas interligada às temáticas e à programação da Documenta. Com um menu exclusivamente baseado em ícones, o site distribuía os projetos comissionados em quatro eixos principais: Superfícies e Territórios, Dentro e Fora, Grupos e Interpretações e Cidades e Redes. Além disso, trazia um guia de links sobre arte online e um fórum de discussão entre artistas e curadores, publicado no jornal Le Monde. Na Documenta em si, o site era disponibilizado localmente no café, transformado em net.room. A ambientação em formato de escritório e offline desagradou aos artistas. Respondendo a um e-mail da curadora Catherine David, no qual ela explicava suas expectativas sobre o site da


O

mostra, a dupla de webartistas JODI resumiu a insatisfação geral na lista de discussão dos projetos de internet da Documenta X:

“O net.room simula um escritório, com mesas de escritório, cadeiras de escritório, móveis de escritório, tudo organizado ‘como em um escritório’. Essa configuração-escritório foi ‘criada especialmente’ para a apresentação de nove (sic) net projetos de artistas participantes da Documenta X. É uma construção simbólica desnecessariamente confusa e feita sem consulta aos artistas. Projetos para a internet não precisam de tais metáforas quando apresentados no espaço real das exposições, assim como monitores de televisão não precisam de um home décor em torno deles para visualização de vídeo. O clichê-escritório também é uma droga, porque dá um rótulo falso a um grupo de artistas que em comum têm apenas o uso da rede, e os categoriza, em oposição ao resto da exposição, pela técnica”. A Documenta X acabou, mas a discussão de fundo – como expor net art – perdurou, gerando, no fim das contas, mais frustações que soluções. Acima de tudo, a arte online depende da internet em todos os seus sentidos e isso vai muito além de uma tela de computador. É uma arte contextual, que lida não só com o trânsito dos dados na rede, mas com a situação particular de quem a acessa (do modelo de computador ao browser, passando pelo provedor de acesso, até as inúmeras janelas e abas abertas).

ESTéTIcA DA TRAnSMISSãO Arte ubíqua e do trânsito por excelência, a net art tem por paradigma uma estética da transmissão difícil de se condicionar a

situações que lhe são antagônicas, como o meio offline ou a simples projeção em grande escala. Os projetos desse tipo geralmente se alimentam de informações geradas em tempo real na internet e, portanto, não podem ser apresentados sem conexão. A maioria também é pensada para a situação do consumo individual de informações, sendo por isso ideal que não fuja da escala dos monitores e das telas portáteis. Esse drama parece ter chegado ao fim, redundando no ostracismo total das práticas de arte online das discussões críticas e do circuito da arte. Mas outro se impôs: a difícil tarefa de preservar as obras de arte online. Do ponto de vista museológico, a preservação é dramática porque as obras dependem de tecnologias digitais que, como se sabe, ficam obsoletas rapidamente no âmbito da internet. Dito de outra forma, se a net art foi desde sempre um problema no espaço, por não se enquadrar nas tradições expositivas, ela tornou-se um problema para o tempo, desaparecendo com os sites que linkava, os servidores que a abrigaram e os recursos tecnológicos que possibilitaram a obra. Uma série de estudos e discussões está em curso, problematizando a questão de como lidar com o arquivamento da net art. Netescópio, projeto de Gustavo Romano com o museu espanhol MEIAC, Archive 2020, da holandesa Annet Decker, Variable Media Iniciative, coordenado por John Ippolito, nos EUA, ArtPort, com curadoria de Christiane Paul, no Museu Whitney de Nova York, Net Art Pioneers, de Dieter Daniels, na Áustria, Taxononomedia, de Vanina Hoffman, na Argentina, e o VideoBrasil e FILE Archive, no Brasil, são alguns deles. À proliferação de pesquisas e estudos corresponde a constatação das ambivalências da memória nos dias de hoje.

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ARqUITETURAS DO ESqUEcIMEnTO

Poucas palavras tornaram-se tão corriqueiras no século 21 como “memória”. Até bem pouco tempo confinada aos campos da reflexão historiográfica, neurológica e psicanalítica, a memória converteu-se num aspecto elementar do cotidiano. Tornou-se uma espécie de dado quantificável, uma medida e até um indicador do status social de alguém. Existe um fetiche da “memória” como “coisa”: quanto de memória tem seu computador? E sua câmera? E o seu celular? Tudo isso? Só isso?… Compram-se memórias, transferem-se memórias, apagam-se e perdem-se memórias. Curiosamente, à inflação discursiva corresponde um vazio metodológico no trato dos produtos culturais criados com os meios a que dizem respeito essas memórias: os meios digitais. As perguntas – sem resposta – multiplicam-se: como preservar a memória de bens culturais que resistem à objetificação, que muitas vezes só existem contextualmente, como é o caso da net art? Como lidar com memórias tão instáveis, que se esgotam juntamente com a duração dos equipamentos e cujas tipologias não correspondem aos modelos de catalogação das coleções de museus e arquivos? Como não pensar que, hoje, a memória cultural é também uma questão econômica e um serviço que deveria demandar algum tipo de código ético? Afinal, cada vez mais, memórias mediadas por instâncias corporativas, que se abrem como grandes repositórios, são descontinuadas assim que deixam de ser um nicho de marketing conveniente. Basta lembrar o caso recente do Geocities, um serviço de

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hospedagem gratuita de sites que foi encerrado pelo Yahoo, levando consigo boa parte da história da web 1.0. E se o Google resolver fazer o mesmo com o YouTube? Talvez essa iminência da desaparição justifique o tom apocalíptico que vem sugerido nos comandos mais elementares de manuseio dos programas de edição digitais, que nos convidam a todo tempo a “salvar” arquivos e não simplesmente guardá-los. Para não ceder a uma hipótese catastrofista e ir além das pressões de descartabilidade do mercado e da economia da obsolescência programada, melhor seria optar por uma reflexão em torno dos novos sentidos da memória e das tecnologias de memorização, discutindo metodologias de preservação de obras efêmeras e digitais, especialmente aquelas que implicam e denunciam a materialidade das redes (a imbricação com a largura das bandas de tráfego de dados, os tipos de servidores que armazenam os dados, a contextualidade dos links, a validade dos scripts de programação e suas relações com os browsers, entre outras variáveis). O irrevogável processo de digitalização da cultura demanda a elaboração de um repertório crítico e especializado, com terminologias e métodos adequados, para dar conta das obras produzidas e concebidas para meios digitais, e também da incalculável massa de dados e memórias que se esvaem entre cartões e USBs, acumulados e perdidos em arquivos coletivos e pessoais na internet, alguns dos quais relacionados à história da net art. Enfim, a net art morreu? Então… longa vida à net art!



FOTOGRAFIA CRISTIANO MASCARO

ILUSTRAÇÃO PAULO CARUSO

FOTOGRAFIA CRISTIANO MASCARO



Encontraste Arthur Moura Campos

Ontem encontrei num canto essa velha caixa mofada Lá jogada no esquecimento cheia de riscos e amassada Pus nas mãos para medir seu peso e tive a estranha certeza que esmagava meus dedos e ao mesmo tempo levitava Estranho paralelepípedo inesperado a todo sentido Ora é gelo mais gélido ora arde, aço fundido


Vejo o baú lacrado pela poeira suspeitando já tê-lo visto Não sei se ele quem varia ou se eu quem me reviso Exala mais de mil cheiros esse túmulo tão cheiovazio Suores brotam dos veios Traz-me rosas, incensos antigos Ó meu cofre indecifrável que sempre abrir é possível Encontro-o no inesperável pois é o que é invisível


C A R A


M E L O A Caramelo foi uma revista que surgiu na FAUUSP em 1990 com o intuito de promover um espaço para debater temas de arquitetura, sociedade e arte, além de levantar questões importantes acerca do ensino e da situação da própria faculdade. Sua produção se dava por meio da apropriação dos recursos da escola - como a gráfica, o LPG, o laboratório fotográfico, entre outros - que permitiam o contato dos alunos com um mundo de experimentações e práticas importantes para o enriquecimento tanto acadêmico como pessoal. Ao longo das dez edições publicadas, diversos profissionais, alunos e professores passaram pelas páginas que se tornaram um ícone entre as publicações estudantis da FAU que até hoje são lembradas pela repercussão que tiveram. Em meio às dezenas de alunos que participaram da elaboração da Caramelo, nesta entrevista, realizada em janeiro de 2013, conversamos com três de seus idealizadores, que, hoje, são sócios no escritório UNA Arquitetos e professores na Escola da Cidade: Cristiane Muniz, Fernanda Barbara e Fernando Viégas. A Caramelo foi uma grande inspiração para darmos os primeiros passos em direção à concretização da Contraste.


“Esse início em grupo foi denso como formação, um período agudo de discussão. Foi uma forma de sistematizar as discussões daquele momento e ter contato com pessoas que até hoje são muito importantes na construção da cultura brasileira.” Fernando Viégas

Para começar a aprofundar a conversa, nós queríamos saber como foi o surgimento da Caramelo. O que levou vocês a quererem criar uma revista? Algum contexto na FAU? Um objetivo? Algo que vocês precisavam publicar para contestar? F E R NA N D O

Entramos na FAU em 1989, e no ano anterior houve uma grande paralisação, uma greve de alunos e professores. Foi um momento de discussão do ensino e da estrutura da escola. CRISTIANE

Mas essa discussão não havia sido finalizada. Na verdade, a greve de 88 foi importante, porém não se desdobrou num plano para renovação do ensino. F E R NA N D O

Olhando à distância, o Brasil estava vivendo um momento de redemocratização. A primeira eleição para presidente foi em 1989. Nós tínhamos por volta de 20 anos e nossos pais estavam votando pela primeira vez junto conosco - era um momento de abertura política. Existia esse clima e diante da tradição de publicações da FAU - interrompidas no período da ditadura - seria o momento adequado para uma retomada.

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Depois que se consolidou a Caramelo na FAU e até mesmo fora dela, ela se tornou bastante conhecida e adquiriu um espaço bem querido. Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas para consolidar esse projeto? CRISTIANE

Muitas. Primeiro, haviam dificuldades operacionais quanto à dedicação simultânea a todas as outras atividades da FAU. Estabelecemos uma espécie de pacto de que a revista teria que ser realizada a cada seis meses. Era um compromisso entre todos, custasse o tempo que custasse. Fazíamos reuniões durante a semana e nos finais de semana. Além disso, haviam todas as questões editoriais. Os temas de cada número, quem convidar para escrever, o projeto gráfico. F E R NA N D O

Hoje sabemos quanto trabalho nos deu, e desde este momento prezo muito quem consegue realizar. As dificuldades de produção eram muitas: conseguir papel e chapa de impressão, desenhos, tradução de texto, editoriais e os processos gráficos, que eram manuais. Sempre contamos com a ajuda dos funcionários do LPG, Laboratório Fotográfico e Gráfica, um pessoal incrível, que abraçou o projeto e o desenvolveu conosco. Muitos professores também nos deram apoio.

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Nós vemos que a Caramelo é bem reconhecida, inclusive tendo ganhado prêmios. O que vocês acham que deu tanto destaque a ela? F E R NA N D O

O maior reconhecimento é essa nossa conversa, mais de vinte anos depois. A revista era um trabalho de muita gente e aberta para a comunidade da FAU. No primeiro número o corpo editorial possuía nove integrantes, mas desde o começo decidimos que era uma revista do grêmio, com um corpo editorial que, inclusive, foi mudando depois. O número 7 foi o primeiro número no qual não havia quase mais ninguém do grupo fundador, cujo texto editorial se afirmava também como um grupo aberto, um “corpo editorial Macunaíma”. Isso criou, não um reconhecimento, mas uma difusão da revista como espaço aberto, de experimentação. Claro que haviam muitas críticas, e esse movimento também era interessante. É preciso estar muito atento ao que valorizamos, seja um discurso arquitetônico, urbanístico, etc. Esse espaço era para isso: para ter uma atitude crítica em relação ao que estava acontecendo na FAU e tentar de alguma forma ampliar essa discussão com outros campos do conhecimento. Vocês falaram de ser sempre um campo aberto, imagino que não tenha sido assim na primeira edição, porque quando você fala que está fazendo uma

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“Era um momento no qual a discussão modernismo/pós-modernismo estava muito mal colocada na FAU”

publicação nem sempre tem tantas pessoas interessadas em participar. F E R NA N D O

Essa primeira realmente nasceu de um grupo que era praticamente todo da mesma turma, e que achava que teria que lançar a primeira para abrir esse espaço. Tanto que ela é assim, pequenina. CRISTIANE

Não sabíamos o que iria acontecer depois. Poderia inclusive acabar por aí. F E R NA N D O

Ao mesmo tempo foi um número importante pelo que representou. Fizemos a entrevista com o Paulo Mendes da Rocha. Hoje em dia pode parecer óbvio, mas na época não foi. Recebemos muita pancada. Houve uma reação fortíssima. No primeiro número de uma revista de estudantes, entrevistar o Paulo Mendes da Rocha representou, para muita gente, uma atitude ultrapassada. Era um momento no qual a discussão modernismo/pós-modernismo estava muito mal colocada na FAU. Em um debate sobre publicações estudantis ocorrido na FAU no ano passado, a Fernanda citou que desde o início vocês tinham o objetivo

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de fazer uma publicação sobre a FAU, mesmo que não no primeiro número. Mudou alguma coisa para vocês depois de terminarem o sexto volume e cumprirem esse objetivo? CRISTIANE

Era uma ideia que nós queríamos realizar desde o começo. Precisamos desse tempo trabalhando juntos para poder definir como seria esse número sobre a FAU. Nesse número aprendemos muito, foram várias entrevistas, muitos convidados. Até hoje esse trabalho tem peso para nós. F E R NA N D O

O conjunto do trabalho é uma reflexão sobre a FAU. Eu concordo com a Cris, foi um processo. Quando a gente terminou esse sexto número, tivemos a sensação de dever cumprido. As discussões durante os três anos anteriores resultaram num histórico da FAU, a partir de outros iniciados em outras revistas, dando continuidade e atualizando as discussões até aquele momento. Tentamos fazer uma reflexão sobre as revistas (‘Ou...’ e ‘Desenho’), sobre a polarização que dividiu a esquerda do país em determinado momento. A FAU teve isso representado em figuras próximas, como o Sérgio Ferro e o Artigas. Conseguimos muitos depoimentos nesse número, por exemplo, sobre o Flávio Motta, grande professor de estética da FAU. O Katinsky e o Sérgio Ferro foram assistentes dele, ele estava

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na arguição do Artigas, escreveu aquele texto sobre o Pavilhão de Osaka. Flávio Motta era uma figura pensante central do que é a FAU. Tem a entrevista com Sérgio Ferro. Ele fala que fomos os primeiros estudantes que o procuraram desde seu afastamento da FAU. O depoimento dele demonstra o carinho e a admiração pelo Artigas: “Tendemos sempre a hipostasiar nosso passado. Mas creio que os anos 60 foram realmente exaltantes. Tive o privilégio de ser assistente do Flávio Motta. Sua erudição e intimidade com as coisas da arte não o impediam de participar das mais ousadas experiências e de distribuir carinho. A ética rigorosa militante do Artigas nos modelou definitivamente. (Abro um parêntese: é escandalosa, apesar do esforço da Fundação Vilanova Artigas, a pouca divulgação de sua obra. Artigas é, sem dúvida, o melhor e mais generoso arquiteto brasileiro. Foi – e é – exemplar profissional, professor e senhor das formas significantes...)”. Foi um número de reflexão, de discussão de arquitetura, de teoria, de história, da FAU. Como vocês acham que toda essa participação na produção de uma revista ajudou na formação de vocês, tanto como arquitetos quanto como pessoas?

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CRISTIANE

A revista era também um grande pretexto para estudar. Todo esse processo teve tanta importância quanto o resultado impresso. F E R NA N D O

Trabalhar em grupo foi absolutamente formador do que é nosso trabalho hoje, como arquitetos e professores. Dialogar, ainda é, talvez, o princípio fundamental da forma como fazemos arquitetura. O projeto nasce desse diálogo. Projeto não como uma resolução de coisas, mas como uma formulação de questões, e isso foi iniciado lá. As ações coletivas sempre nos interessaram: daí o fato de termos feito essa revista, de trabalhar num grupo de arquitetos (Una), de ter realizado a exposição e o catálogo “Coletivo_ Arquitetura Paulista Contemporânea”, de ser professor e associado de uma instituição como a Escola da Cidade. Como vocês acham, então, que o produto ajudou na formação das outras pessoas? Porque para nós, é muito claro: estamos aqui influenciados pelo produto de vocês e dando um passo na nossa formação. Mas como você

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Fernando Viégas, Cristiane Muniz e Fernanda Barbara em conversa com a revista Contraste no escritório do UNA Arquitetos

acha que a revista atingiu as outras pessoas? F E R NA N D O

Nesse sentido, eu não poderia dizer como o conteúdo das revistas influenciou a vida de cada um, tem muita gente nestas páginas. Por exemplo, o Marcos Acayaba não estava dando aulas na FAU naquela época, e já falou que o fato de ter sido procurado por alunos para uma entrevista (no 3º número) o animou a voltar para a FAU. Só isso já teria valido a pena. F E R N A N D A entra na conversa

Quando começamos a fazer a revista não éramos do grêmio, nunca fomos, mas fazíamos questão de vincular a Caramelo à FAU. Muitas pessoas achavam que a revista devia ser independente, mas insistíamos que deveria ser uma revista de estudantes e do grêmio, independente de qual fosse a gestão. CRISTIANE

Esse é o ponto: ser, desde o início, uma construção aberta.

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“...víamos no grêmio a conformação de uma política estudantil que é próxima do cotidiano e de questões específicas da arquitetura, e que pode, a partir daí, ganhar um sentido político mais amplo.”

F E R NA N D O

Temos orgulho dos números que participamos diretamente, mas vocês não sabem a alegria de ter outros números posteriores. Foi ótimo ir até a 10, mas o que que vocês sentiram quando acabou a Caramelo, quando não surgiu a 11? F E R NA N DA

Não foi decretado um fim, ela foi acabando aos poucos. E é claro que imaginávamos que isso aconteceria em algum momento. Pensávamos o contrário, não é “que pena que acabou”, mas cada novo número era uma maravilha, uma grande conquista. No período em que nós editávamos a revista, entendíamos que manter a periodicidade era muito importante e demandava muito trabalho para que ela saísse a cada seis meses. Qual era a visão de vocês em relação ao movimento estudantil? Qual vocês acreditam que seja o papel do grêmio e do estudante em si? E como uma revista poderia contribuir para esse cenário?

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F E R NA N D O

Sempre imaginamos um espaço de discussão do ensino, mas também de arquitetura e arte. Tinha havido uma desmobilização enorme do movimento estudantil, por razões evidentes. Portanto, era um espaço para construir novamente esses laços, que foram sendo esgarçados na brutal ditadura militar que vivemos. F E R NA N DA

Acho que aí tem histórias de cada um. No meu caso, entrei na FAU um pouco mais velha porque fiz outras faculdades antes. Tive uma ligação com o movimento estudantil um pouco maior quando estava no segundo grau, participei de grupos de discussões e de algumas reuniões da UBES. Essa política estudantil que começava a se formar no final da ditadura era muito dura, com discussões muito vinculada à militância dos principais partidos de esquerda, com pautas já definidas e palavras de ordem. Foi ao longo do colegial que tive essa experiência, junto com um grupo de grandes amigos. Na Faculdade de Filosofia (fiz ciências sociais e filosofia), a presença dos centros acadêmicos era muito diluída. Na FAU, o gfau tinha uma presença mais interessante porque, de algum modo, tinham questões que se misturavam: questões acadêmicas, sobre a formação e papel do arquiteto, sobre a arquitetura brasileira e internacional.. Tínhamos uma simpatia pelo que historicamente o gfau representou dentro da FAU. Ou seja, víamos no grêmio a conformação de uma política estudantil que é próxima do cotidiano e de questões específicas

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da arquitetura, e que pode, a partir daí, ganhar um sentido político mais amplo. Tínhamos que ter ânimo, dentro das dificuldades pelas quais passava o movimento estudantil. O que vocês acham que mudou nos perfis dos estudantes desde o período da Caramelo? Vocês acham que mudou a cabeça dos estudantes, comparando hoje àquele período em que vocês começaram a fazer a revista? F E R NA N D O

Não imaginamos que a Caramelo representava todos os alunos da FAU naquele momento. Muita gente participou, mas muitos tiveram outra formação. Vocês sabem: na FAU você escolhe um mundo e vai. CRISTIANE

Acho que há uma diferença gigante. No período em que estivemos na FAU e estávamos fazendo a Caramelo, não existiam publicações sobre arquitetura brasileira, e mesmo sobre arquitetos estrangeiros eram reduzidas. F E R NA N D O

Não tinha livro do Vilanova Artigas, do Paulo Mendes da Rocha, da Lina Bo Bardi, do

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Reidy, nem o “Registro de uma vivência”, do Lucio Costa. Os arquitetos brasileiros que são nossas referências não haviam sido publicados. CRISTIANE

O livro Arquitetura Moderna Paulistana, do Carlos Lemos, Alberto Xavier e Eduardo Corona, era referência, andávamos com ele pela cidade. O acesso a uma infinidade de publicações, seja material, seja digital, como se tem hoje, fornece um panorama de possibilidades muito diferentes. Hoje, na formação do professor, principalmente na FAU e na USP, existe a exigência de um perfil acadêmico muito voltado à pesquisa e ao laboratório. Enquanto isso, o ofício e o canteiro tornam-se secundários e distantes do aluno. Como vocês percebem isso em relação ao seu período? F E R NA N D O

Isso de fato mudou muito. Mudaram os critérios de contratação de professores. Hoje, há necessidade do título de doutor para poder lecionar, porém muitos dos que foram nossos professores não tinham titulação acadêmica, pela vida que escolheram, uma vida voltada

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para a construção. São regras gerais da universidade, apesar da arquitetura ter suas especificidades. Essas especificidades deveriam ser discutidas. F E R NA N DA

Acho importante pontuar que a história da FAU é muito marcada por essa virada. Talvez o processo da ditadura, pela experiência que tive nas outras faculdades que fiz na USP, e o conhecimento que temos dessas instituições, mostre que a força negativa na FAU foi maior. De uma hora para outra se construiu uma carreira acadêmica que não existia antes na FAU. Em outras escolas aparentemente esse processo foi menos traumático. Na FAU, todo mundo conhece essa história: no retorno do Artigas e do Paulo Mendes da Rocha, eles voltam como auxiliares de ensino! A gente guardou para o fim uma pergunta mais pessoal. De tudo isso que vocês fizeram, todos esses artigos mencionados, qual foi a matéria mais marcante publicada na Caramelo? F E R NA N DA

Para mim é o histórico da FAU, por mais singelo que seja. Quando começamos a fazer a Caramelo tínhamos esse desejo, a revista nasce com esse objetivo. Então nós, por um

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“São regras gerais da universidade, apesar da arquitetura ter suas especificidades. Essas especificidades deveriam ser discutidas.”

conjunto de fatores, éramos um grupo que queria ter clareza sobre qual era a situação da FAU naquele momento, em que escola estávamos chegando. F E R NA N D O

As entrevistas que fizemos, guardo com muito carinho. Ir ao escritório do Marcos Acayaba, conversar com o Paulo Mendes da Rocha, e mesmo quando fizemos entrevistas por escrito (como foi o caso do Sérgio Ferro e Otília Arantes), ou quando fomos conversar com o Evandro Carlos Jardim lá no atelier de gravura no MAC. Me lembro da primeira vez que procuramos a Sophia Telles em seu apartamento, nós já conhecíamos seu texto sobre o Museu da Escultura, a partir destas conversas nos tornamos amigos. Ela colaborou nos números 3 e 5 da revista. CRISTIANE

É difícil escolher uma só. Posso citar, no número 1, a publicação do projeto do concurso para o Centro Georges Pompidou, do Paulo Mendes da Rocha, que ninguém conhecia. Fernando e eu fomos convidados pelos outros colegas a fazer a capa do número 3, e nos números seguintes fizemos concursos para escolha das capas, onde a comunidade participava. O número 6, com a extensa pesquisa sobre a FAU... É gratificante lembrar que o número 7, feito pelos mais jovens, foi dedicado a todos que participaram dessa aventura até então.

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“A oitenta milhas de distância contra o vento noroeste, atinge-se a cidade de Eufêmia, onde os mercadores de sete nações convergem em todos os solstícios e equinócios. O barco que ali atraca com uma carga de gengibre e algodão zarpará com a estiva cheia de pistaches e sementes de papoula, e a caravana que acabou de descarregar sacas de noz-moscada e uvas passas agora enfeixa as albardas para o retorno com rolos de musselina dourada. Mas o que leva a subir os rios e atravessar os desertos para vir até aqui não é apenas o comércio das mesmas mercadorias que se encontram em todos os bazares dentro e fora do império do Grande Khan, espalhadas pelo chão nas mesmas esteiras amarelas, à sombra dos mesmos mosqueteiros, oferecidas com os mesmos descontos enganosos. Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz – como ‘lobo’, ‘irmã’, ‘tesouro escondido’, ‘batalha’, ‘sarna’, ‘amantes’ – os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios.” A Cidade e as Trocas 1 in Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino, Companhia das Letras, 1972, pp. 38-39

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ILUSTRAÇÃO CAIO RIGHI


Mas de tudo, terrĂ­vel, fica um pouco.



Nยบ 01 - 1ยบ SEMESTRE 2013 - ISSN: 2317-2134

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