Revista Contraste #02

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Aristóteles, Política

UMA CIDADE ÉCONstruiDA POR DIFeRENTES TIPOSDE HOMENs PESSOAS IGUAISNaO PODEM FAZe-LA EXISTIR


número

publicação estudantil independente

tiragem 1700 exemplares cor po de tex to s w if t l ight

2º semestre de 2013

miolo a lta a lv u ra 90g color plus ja ma ica 80g verge opa la 8 0g c a p a s u p r e m o a lta a lv ura 250g

CORPO EDITORIAL D

I

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02

periodicidade semestral

vencedor do concurso de capa

pablo santacana lópez

br uno stepha n • caio henrique sens • eric martinelli v illarosa • fer nando guerreiro m ot t a • ga br iel hollae nde r v i lela • léo schurmann de azevedo • ligia ferreira de a r auj o • lui s g uil her me a lv e s r os s i • luiza gomyde • nicolas le roux • rafael lop e z p e g o r a r o • t h a i s v i y u e l a d e a r a uj o

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BRUNO STEPHAN | CAIO HENRIQUE SENS | CALIXTO COMPORTE AMARAL

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FERNANDO

GUERREIRO MOTTA | GABRIEL HOLLAENDER VILELA | ILKA APOCALYPSE JOIA PAULINI

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LUIS GUILHERME ALVES ROSSI

LÉO SCHURMANN DE AZEVEDO | NICOLAS LE ROUX | PRISCILA

FERNANDES | THAIS VIYUELA DE ARAUJO | VICTOR OLIVEIRA

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m o n t a g e m

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l p g f a u @ u s p . b r

issn 2317.2134 autor corporativo gabriel hollaender vilela

email contraste.edit@gmail.com


autores e entrevistados

andrés cánovas - atxu amann - camila ribeiro mogueira - comitê popular da copa - cris xavier - david barragán - eugênio queiroga - estevão sabatier - esteban benavides - edu teruki - euler sandeville eduardo andrade de carvalho - fernando meirelles - gabriel feltran - guilherme wisnik - gustavo de camargo souza - jorge bassani - josé álvaromoises - kátia rúbio lisete arelaro - maria luisa borja - marilena chauí - marilia reis - nabil bonduki nicolás maruri - pascual gangotena - paula freire santoro - raquel rolnik - ricardo gomyde - vinicius de moraes netto

i l u s t r a ç õ e s

jord a n a lope s

FOTOGRAFIAS

calixto comporte amaral

mathews v ich r lopes

CAIO HENRIQUE SENS

felipe lealdini righi

m ichel moreno lara

DANIEL DUCCI

h u g o

g u e d e s

pedro spegeorin adati

I L K A A P O C A LY P S E

júlia contreiras

th iago rocha r ibeiro

JOÃO X AVIER

REPUBLICAÇÕES

LUIS GUILHERME ALVES MARTIM PASSOS

CA R L O S DR U MON D DE A N DR A DE * E DUA R DO

NICOL A S LE ROUX

ALVES DA COSTA * ERMINIA MARICATO * GUSTAVO

P E D R O

TARETTO * JOÃO CABRAL DE MELO NE T O * M A R I O

RICARDO IANNUZZI

Q U I N T A N A * O D Y R B E R N A R D I * PA U L O

THAIS VIYUELA

LEMINSKI * REM KOOLHAAS * VINICIUS DE MORAES

VITOR COELHO NISIDA

K O K

A G R A D E C I M E N T O S f a c u l d ade de a r q u i t e t u r a e u r ba n i s m o d a u n i v e r s i d a d e d e s ã o p a u l o / d i r e t o r i a de comissão de publicação da fau usp / equipe do laboratório de programação gráfica da fau usp / j o s é t a d e u d e azevedo maia / camilla annarumma / leandro quintanilha / todos que apoiaram o projeto


A cegueira de sujeitos planos, meio-ocos, que trocam seu lugar na história por um assento em um veículo e aceleram através de uma série de presentes não relacionáveis. É o sujeito esquizofrênico, sem coesão, que não faz sentido, deixa de lado a raiz profunda dos significados, se atém à superfície dos significantes e mergulha no espetáculo. Antes fossem alienados, que haveria de que se alienar, mas só há um suco cinza, frio, melaço de ferro torto. Há um espaço que acolhe e molda pensamentos e movimentos: influencia. Há uma rua deserta, um tipo contínuo e um tipo isolado. Há um presídio de capital e consumo e há o espaço livre para conflitos dialéticos. Há um sujeito que caminha onde se pode caminhar. Há um “muitos sujeitos” que altera os predicados do “um sujeito”: influencia. Ora compartilha, ora oprime: Não diga isso, criança. Comporte-se! Há um agir em muitos, há um agir em um. Há um agir em um? Em sociedade, estamos sempre estimulados por um espaço e um viver conjuntamente. Correndo o risco de nos tornarmos “uma pele lisa: uma ilusão estereoscópica...”


O tema do qual parte este segundo número foi colocado, com uma imprudência proposital, de forma indefinida, almejando um conteúdo plural e interconectado, capaz de tecer conceitos inesperados. Tangenciamos diversos assuntos e o que ficou foi um sentimento de liberdade, de escolas sem paredes, de espaços livres apropriáveis e inerentemente conflitosos. Ficou o sentimento de abrir vilas e pontos de encontro em meio a um bairro em transformação. Olhar mais para baixo, para o bairro, e menos para cima, para o espetáculo. De preocupar mais com a insalubridade que lhe toca do que com a estética fútil e a exibição. Construir, cada uno su camino, e não preocuparse com o federalismo internacional. Ter as próprias referências e construir uma nova ideia de nacionalismo. Ficou o sentimento de uma arquitetura híbrida e duplament pública, espaço de uma sociedade democrática e solidária. Nisso, talvez tenham ficado poucas respostas. Mas ficaram muitas perguntas: de como realizar tantos sonhos que compartilhamos em silêncio e desconhecimento com quem senta ao lado na sala de cinema. Das problemáticas da sociedade contemporânea na relação do indivíduos com o espaço - nosso ponto de partida - chegamos ao entendimento de que é preciso desvencilhar-se das cordas, amarras e escaras que sociedade e espaço nos colocam. É preciso abrir espaço, na escala do sujeito e da possiblidade de convívio. Pois a medida do espaço somos nós, homens... Corpo Editorial

ILUSTRAÇÃO CALIXTO COMPORTE

EDITORIAL




Buenos Aires crece descontrolada e imperfecta. Es una ciudad superpoblada en un país desierto, una ciudad en la que se yerguen miles y miles y miles y miles de edificios sin ningún criterio. Al lado de uno muy alto hay uno muy bajo. Al lado de uno racionalista, uno irracional. Al lado de un estilo francés hay otro sin ningún estilo. Probablemente estas irregularidades nos reflejen perfectamente. Irregularidades estéticas y éticas. Estos edificios que se suceden sin ninguna lógica demuestran una falta total de planificación. Exactamente igual es nuestra vida, la vamos haciendo sin tener la más mínima idea de cómo queremos que nos quede. Vivimos como si estuviésemos de paso en Buenos Aires. Somos los inventores de la cultura del inquilino. Los edificios son cada vez más chicos, para darle lugar a nuevos edificios, más chicos aún. Los departamentos se miden en ambientes, y van desde los excepcionales cinco ambientes con balcón terraza, playroom, dependencia de servicio, baulera, hasta el mono ambiente, o caja de zapatos. Los edificios como casi todas las cosas pensadas por el hombre están hechas para que nos diferenciemos, los unos de los otros. Existe un frente y un contrafrente, están los pisos bajos y los altos. Los privilegiados son identificados con la letra A, o excepcionalmente la B, cuanto mas progresa el abecedario menos categoría tiene la vivienda. Las vistas y la luminosidad son promesas que rara vez coinciden con la realidad. ¿Qué se puede esperar de una ciudad que da la espalda a su río? Estoy convencido de que las separaciones y los divorcios, la violencia familiar, el exceso de canales de cable, la incomunicación, la falta de deseo, la abulia, la depresión, los suicidios, las neurosis, los ataques de pánico, la obesidad, las contracturas, la inseguridad, el estrés y el sedentarismo son responsabilidad de los arquitectos y empresarios de la construcción. Texto extraído do roteiro de Medianeras, de Gustavo Taretto



EM PAUTA

A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO A PARTIR DA REALIDADE INDIVIDUAL DA CRIANÇA Lisete Arelaro

Professora da Faculdade da Educação da USP e ex-secretária de educação de Diadema

“Como você ocupa os espaços? Os nossos próprios alunos noturnos não conhecem a USP. Cem por cento de uma das nossas classes nunca foi ao CEPEUSP. Em geral, se a pessoa trabalha o dia inteiro, no sábado ela atualiza leituras e no domingo ela dorme ou vice-versa. Eles não vêm à USP no final de semana. Talvez seja uma realidade diferente da de vocês porque à medida que o curso de vocês é integral, necessariamente dois períodos vocês estão convivendo aqui. O Paulo Freire está ali pendurado na parede pra sempre lembrar certas coisas, porque com a história de que a escola é um lugar destinado `a transmissão de conhecimento, as pessoas acham

que eu posso fechar os olhos de onde eu estiver e de quem eu sou e trabalhar com o conhecimento e acabou. Por mais que o Paulo Freire dissesse: “olha, não é bem assim, eu não posso ignorar qual é o conhecimento que o aluno tem, o que ele aprendeu, como ele aprendeu, o que ele tem a dizer. Você organiza um currículo e não interessa se o pai está desempregado, se o menino passou mal, se a família está desintegrada, se teve uma greve ou um incêndio”. A Campo Salles é uma referência nesse sentido e tem uma relação com os alunos bastante intensa. Uma menina foi assassinada há quatro ou cinco anos e eles fazem uma caminhada da paz


todo ano, o que é um movimento muito interessante. Tem escolas lá que não permitem que os alunos participem e os moleques não estão nem aí, pulam o muro de dois metros e meio – podem se machucar – e claro, vão na caminhada. Quanto mais entrarmos numa lógica dentro das escolas que o que interessa é o conhecimento exclusivamente, você vai ter um problema e um conflito sobre essas questões. Nós estamos vivendo um momento difícil no Brasil, porque de uma certa forma, o governo FHC 1 e 2 criou e acentuou a questão dos testes nacionais e surpreendentemente os governos Lula e Dilma acentuaram essa questão. A função da escola é preparar os alunos para o IDEB (indicador da educação básica) que está virando uma neurose. No Brasil você já tem essa questão de bônus aos professores dependendo do desempenho dos alunos nas provas que vai de certa forma isolando o aluno. É esse discurso falacioso e conservador que diz “estamos na sociedade do conhecimento a democracia está implantada. Basta ter acesso à internet para ter acesso ao conhecimento” e que permite que as escolas deixem de olhar o ambiente onde as crianças vivem. Dificilmente hoje um professor conhece onde suas crianças moram. Quando dizemos que a escola deve estar aberta aos finais de semana não é só para ter um “joguinho”, é uma oportunidade de conhecer a família dos meus alunos

com suas crenças e ideias e isso vai me permitir realizar melhor minha função como professor. Uma vez um docente da FAU fez um trabalho relacionando o fracasso escolar com o espaço e ele fez um estudo sobre os cortiços. Eles permitiram que ele fotografasse, levaram ele numa escola que aliás era um prédio de repartição pública considerado inadequado. Nenhum dos cortiços tinha janelas, a grande maioria não tinha mesa. Aí perguntaram para uma mãe se ela achava que aquela escola era um espaço adequado para o filho dela estudar: - Claro, totalmente. - Mas me diz onde isso fica claro. E ela mostra, num lugar muito apertado, um prego na parede e diz: - Olha, aqui é o lugar onde ele pendura a mochila dele. É interessante ver como o próprio trabalho pedagógico pôde ganhar dimensão diferente, pedagogicamente correto a partir daí. Os professores conseguiram incorporar as limitações que o espaço dava e as oportunidades que o próprio prédio escolar representava para aquelas crianças como um locus diferenciado de diversão, de espaço livre, onde eles pudessem ficar sem se esconder - porque a rua é perigosa, assim que escurece a mãe põe pra dentro de casa. A criança corre o risco de ser


levada pelas drogas ou virar um transportador de pacotinhos. Nesse trabalho que ele fez lá ele levou alguns alunos (de arquitetura) e discutiram com as crianças como elas gostariam que fosse a casa delas. O mais comum era o direito de ter um banheiro onde houvesse a possibilidade de fechar a porta e tomar um banho tranquilo. Com essas informações foi feito depois um debate, e a mudança de comportamento dos professores foi incrível. Nenhum dos professores conhecia um cortiço real. Não conheciam porque o modelo de escola é aquele onde os pais têm em casa uma certa infraestrutura, com livros e um lugar para o estudo acontecer. O posicionamento dos professores agora é de não reprimir mais, por exemplo, o correcorre nos corredores ou para o caderno que vem com uma mancha de dedos – porque vocês sabem que nós, professores, nas séries iniciais cobramos muito se o trabalho vem sujo e cheio de marcas. Eu não defendi a construção dos CEUS, mas acho que agora que está construído, vamos aproveitar essa oportunidade que eles nos oferecem. Fui secretaria da educação de Diadema, uma cidade com peculiaridades – 32km2, 415 mil pessoas amontoadas – onde você assovia e de repente tem 150 pessoas pra qualquer trabalho. É uma cidade que sempre teve um alto percentual de participação popular, que não tem medo da praça. As pessoas lá não têm quintal, é tudo construído, aglomerado, sobreposto. Talvez por isso as praças sejam plenamente ocupadas nos finais de semana. Isso favorece uma convivência. A questão é que educação, esporte e cultura são trabalhos muito diferentes. Parece que é só sentar e discutir um plano junto, mas um não conversa com o outro. Uma atividade cultural que acontece no terreno da escola não é entendi-

da pelo professor como atividade curricular. O que se passa lá, que pode ter sido interessantíssimo e onde ele (professor) pode até ter estado presente, não entra na sala de aula. O que importa é a sala de aula e sempre ela. As áreas de cultura e esporte criam até uma situação de disputa. De repente a criança que não escreve, não participa em sala, participa de um jogo do final de semana e essa informação não chega a sala de aula. Considero que temos muito a avançar quanto a isso. Existe uma idéia aqui no Brasil de que, pra pobre, uma escola pobre está bom. Nem os pais nem os avós tiveram isso, então você pode dizer que está bom. E não está bom, isso é uma crise da educação. É verdade que também não está tão ruim como a Globo e o Estadão gostam de falar, nós temos vida inteligente nas escolas - coisas interessantes acontecendo em todas as áreas - e tem professor que está fazendo esforço. Porém, é verdade, temos que admitir que essa questão da separação entre a vida e aquilo que se estuda na escola tem uma certa razão de ser criticada. Lá em Heliópolis vocês vão encontrar uma situação interessante, porque eles têm um projeto de “cidade educadora” e eles têm clareza de que para aquele espaço da favela - hoje conjunto habitacional existe uma programação de seis grandes prédios e um shopping - porque afinal de contas eles poluem a imagem para chegar em São Caetano, que se considera a cidade de mais alto IDH. Eles sabem que tem alí uma disputa, um projeto que em tese já é aprovado e que a Prefeitura já tentou durante um tempo significativo no Governo Kassab transformá-los em “bairro”. Eles têm muita clareza – ali eles estão fazendo um movimento para dentro e dizem com muita tranquilidade, não nos enganemos: “É guerra. Se baixarmos a atenção os caras entram”.


E eles não são bobos, sabem que ser que sobrou fez esse churrasco que foi “bairro” significa tirar dois terços das super animado e pronto, acabou. E a pessoas que moram lá, porque tem que Prefeitura nesses casos fala “Oba, pagaalargar ruas e etc., porque o conceito de mos aqui. Um problema a menos”. conjunto habitacional é outro, porque E em Perdizes, nós viajamos uma vez ali é uma ocupação. Então tudo aqui- no mês de julho e quando voltamos um lo é muito presente pra eles e essa luta quarteirão estava abaixo e hoje temos deles porque isso vai tornando mais su- quatro prédios de quatro dormitórios portável a vida lá. Aí tem um espaço, é de quase R$ 1.200.000,00. Então a prómais bonito, tem pria convivência uma biblioteca em Perdizes que que eles nunca tinha a casinha e terão na casa detal está acabando. les. Em São Pau- “Tanto o organismo precisa de alimen- É que a PUC ainlo, como eu acabo to, água e ar, nós, seres humanos, pre- da segura um poucom uma favela? co, dá uma graça, Contrato uma pes- cisamos de ética. A sua falta pode sig- uma movimentasoa por R$ 500,00 nificar a morte ou uma falsa vida, falsa ção. Ninguém vai pra colocar fogo e tirar os barzinhos individualidade e pseudoexistência. depois espalham em que vocês fuas pessoas. Elas se Sem ética, sem pensar no outro como mam uns baseadividem e pron- revelador de nós mesmos, nós não pas- dos porque aí já é to. E são pessodemais. Mas é inas que defendem samos de pássaros que não têm asas. teressante como que terminemos Sem agir em benefício dos outros, ain- você vai com difecom os movimenrentes argumenda que pensemos, teríamos as asas, mas tos sociais, portações tirando as que afinal eles só mesmo assim não voaríamos.” variedades que obatrapalham, manviamente uma citêm o povo unido, dade comporta. dão forças pra arVai higienizangumentação, sou do um pouco esse obrigado a olhar processo e relação. Citação retirada de um mural no salão uma situação que Eu tenho a mide entrada da E.ME.F. Campos Sales nha casa, mas eu não quero. A Prefeitura não tenho a mientão foi lá e fez nha cidade, é o um discurso cheio de termos técnicos, que nós sentimos. Eu gosto muito de suficiente para muitos moradores acre- morar em São Paulo, se eu quiser comer ditarem que eles mesmos estavam erra- um sanduiche às três da manhã de pão dos . Então o que aconteceu lá, eles rece- com queijo eu tenho onde ir. Tem proberam R$ 5.000,00 para viver um ano, gramas alternativos, mas acho que isso então o que fez um? Comprou carne e nós estamos perdendo, e este movimenfez um churrasco para todos pra se des- to é muito importante. pedir (o que é muito importante), comDizemos a mesma coisa sobre as escoprou as passagens de ônibus, e o resto las: se elas estiverem abertas, se profes-



sores e diretores conhecem onde eles estão, eles saberão admitir que em 80% da cidade de São Paulo, onde somos 11 milhões, as escolas são espaços privilegiados. Quando você entrevista um jovem, ele diz: “O lugar que eu mais gosto de ir é a escola - apesar de detestar as aulas”. Se você facilita e oferece situações para ele, quem sabe ele pode até gostar mais das aulas, mas você tem que aproximá-los de uma certa maneira, e em geral acho que ainda falta avançarmos nesta área. Nós aqui tivemos um primeiro problema na sexta feira passada, aconteceu uma festa aqui para 90 pessoas e haviam duas mil. E nós não temos espaço. Inclusive os pichadores não eram eles - o que é diferente da intervenção que pessoal do Centro Acadêmico veio pedir para fazer naquele prédio que vão derrubar. Conversamos bastante com o pessoal, mas convocaram por Facebook então querem o quê? A festa é importante, é uma oportunidade de ocupar o espaço de uma outra maneira e ela não se encerra em si. Existe um processo de relacionamento, e se vem um da Geociências, da Arquitetura ou da Poli eu vou lá na próxima festa. A formação também não está só dentro da sala de aula, está nos corredores, está aqui também, nessas praças. Não temos nenhum espaço para reunir duas mil pessoas. Nós temos 90 mil alunos, 20 mil funcionários, seis mil professores. Somos muito grandes e precisamos de um local para nos reunirmos.

Na Unicamp tem até um “hotelzinho”, o que é o mínimo. Aqui temos um problema super complicado, tem muita gente que mora em Jundiaí, Campinas, e se essa pessoa perder o ônibus que é às 22h55 - e a aula acaba às 23h - ele não tem onde dormir, porque em São Paulo se não reservarmos com 20 dias de antecedências não conseguimos colocar nenhum professor em hotel. Um momento pedagógico é a greve. É bom ter greve de vez em quando - que os reitores não nos ouçam - e os funcionários ainda falam: “É o único momento em que nós os chamamos pelo nome”. A USP é dispersa também, não é um ambiente que favorece isso, com a história de cada um estar em seu prédio. E ainda falo, sem ser saudosista porque já passou e não vai voltar, mas o prédio da Maria Antônia era muito sensacional para a área de humanas, porque você assiste aula tanto de linguística como de economia ou política e história tranquilamente. Até porque você podia entrar na sala errada e sem querer se surpreender com algo interessante. Acho que única coisa mais parecida com a Maria Antônia hoje é a PUC de São Paulo, porque manteve os prédios ali, próximos. Até para caminhar pelo corredor eu acabo passando por vários outros cursos e formações, e isso desperta a curiosidade por saber como são as coisas. Então é isso aí, queridos”


fotos caio sens

nota do editor As fotografias que ilustram a entrevista retratam as escolas municipais Campos Salles e Amorim Lima. Citadas superficialmente na entrevista, essas EMEFs representam exemplos concretos de alternativas pedagógicas no contexto da educação infantil pública nacional. Derrubaram-se os alambrados, encurtaram-se os muros. A criança a partir de então é menos o agressor e mais o fator de mudança, a comunidade não é mais uma figura a ser afastada, mas os olhos e as vértebras da escola. Chega um momento em que caem até mesmo as paredes internas entre as salas de aula e o aluno passa a ter um papel efetivamente ativo na sua formação. Alteram-se conceitos básicos canonizados pela pedagogia tradicionalista fundamentada no “Magister dixit” em nome de uma sala de aula protagonizada pela criança. A noção de coletivo é incessantemente incentivada. Tudo acontece em grupo e tudo deve ser resolvido em grupo. Nas primeiras fotografia está registrado como o espaço da escola é apropriado nas atividades didáticas. Não eram incomuns grupos trabalhando nos salões de recepção e no pátio do colégio. A intenção é que fique a ideia de uma escola preparada para abrigar o aluno com todas as complexidades do contexto em que ele está inserido. Se realmente temos “vida inteligente nas escolas”, que ela se faça ouvir e motive outras propostas ainda, pois evidentemente não há solução definitiva para a questão em pauta ◐


Espaço na construção da identidade nacional brasileira Por Jorge Bassani

“Somente em sendo capazes de habitar é que podemos construir” (M. Heidegger)

Os responsáveis pela revista Contraste me convidaram para escrever um artigo com a questão “espaço na construção da identidade nacional”, não sei por que me associaram a este tema, mas achei boa oportunidade de demonstrar meu apoio à iniciativa da publicação de estudantes da FAU. E, de qualquer forma, é um tema interessante para se refletir. Os termos, noções básicas presentes no tema são: espaço e identidade. São duas noções invariavelmente presentes em nosso meio, e interessantes quando observadas na mesma ideia. Espaço é um ente abstrato, não existe se não o definirmos. Para que exista precisamos quantificá-lo e qualificá-lo, ele sempre vem acompanhado de outra palavra o adjetivando, espaço arquitetônico, espaço urbano, espaço sideral. Estranho vê-lo tão solitário no título deste texto. Identidade é mais abstrato ainda, aquilo que identifica ou é próprio de alguém ou algo. Identidade é uma imagem aplicada, como nossos documentos, ‘carteiras de identidade’, o que os valida é a presença de um número. O estranhamento perante o espaço sem adjetivo se desfaz, ele é adjetivado por outro substantivo, a identidade. E ambos carecem da construção, uma vez que não existem, eles devem ser construídos. Parece que esta é a idéia central por de traz de todos os discursos de “construção da identidade nacional” (brasileira ou de qualquer outra nação). Isto é, de fato, um problema se pensarmos em quem (ou quais setores da sociedade) tem os meios para tal construção. Na condição de construção, a imagem aplicada da identidade atrai o discurso arquitetônico. Muito se fez e faz na arquitetura objetivando a construção dessa abstração. No Brasil, a arquitetura neocolonial do início do século XX, o edifício para o Ministério da Educação e Saúde, Brasília, são alguns exemplos da idéia de construção da identidade nacional, sempre associadas às imagens que setores restritos da so-


ciedade (que tem os meios) quiseram aplicar ao Brasil como um todo, quer seja o centralismo estadonovista de GV, quer sejam as elites intelectuais do país. Duas questões chamam a atenção se optarmos por esta linha de pensamento: A primeira, qual imagem é esta? A segunda, qual seria a imagem identitária de um utópico coletivo nacional? Em relação à primeira, se ficarmos restritos aos nossos exemplos, o neocolonial é uma caricatura da arquitetura de matriz portuguesa considerando os desenvolvimentos locais no eixo RJ-MG. Não articula a nova situação de nação independente. O caso do MES é ainda mais especial, tendo ganhado o concurso promovido um projeto em estilo marajoara de Archimedes Memoria, foi necessária uma articulação de Gustavo Capanema para que o projeto vencedor fosse descartado e a equipe de Lucio Costa, com a consultoria de Le Corbusier, ficasse encarregada de fazer outro, no que seria depois consagrado como estilo internacional. Aparentemente a idéia de identidade nacional é sempre uma imagem imposta, autoritária. O que nos remete à segunda questão. A resposta: nenhuma. Como associar uma identidade única que abarque dos gaúchos dos pampas aos jangadeiros do Nordeste, ou à miscigenação da metrópole paulista? A partir da década de 1960 foi retomado (e ampliado) o conceito de locus. A idéia de lugar – colocada principalmente por Aldo Rossi em “A arquitetura da cidade”, estava vinculada à filosofia de Martin Heidegger, não à toa citado em nossa epígrafe – no que diz respeito ao habitar como condição básica para o construir, é um pensamento de territorialização, de ser e pertencer. O lugar é o espaço não abstrato, é o espaço com caráter e espírito (genius loci, espírito do lugar), onde nos reconhecemos. É uma construção através da história, é comunal, de significado comum. O espaço construído para particularizar uma identidade é sempre um vinco no tempo, é uma imagem acabada e circunscrita. O lugar é processual, nunca acabado, sofre transformações no tempo e com o tempo, mas sempre singulariza uma situação espacial. Não há necessidade de construir o signo da identidade, ela estaria em toda a parte, em tudo o que é material e no imaterial também. Talvez seja fácil para um alemão interpretar a construção nestas condições e mesmo para um italiano retomá-las. Não parece tão simples para pensarmos uma identidade nacional brasileira, nem ao menos pensarmos identidades locais em


uma época de globalização cultural galopante. Da forma como é colocada a noção de lugar pelos europeus fica a impressão de que falam de situações espaciais que sempre estiveram lá e constituíram-se em lugares na relação com o povo que sempre esteve lá e, se tudo sempre esteve lá, lá deve permanecer. O processual do lugar tem o limite temporal do agora, um ponto de chegada para o processo de construção coletiva do lugar. O genius loci, enquanto espírito, ao contrário da matéria, não é passível de ser transformado. Pode até ser aceitável a idéia deste espírito que marca a relação da sociedade com seu habitat, mas francamente é contrária a idéia de outro espírito, o da época, o zeitgeist, e este não para de metamorfosear. A noção de identidade advém da classificação do povo que o produz, o alemão, o italiano, o brasileiro, e o lugar é a expressão espacial de seu habitat. No entanto, eu prefiro a explicação do poeta-músico Arnaldo Antunes:

aqui somos mestiços mulatos cafuzos pardos mamelucos sararás crilouros guaranisseis e judárabes orientupis orientupis

somos o que somos inclassificáveis

ameriquítalos luso nipo caboclos orientupis orientupis iberibárbaros indo ciganagôs O brasileiro nunca esteve aqui, ele sempre veio de algum lugar, até nossos índios eram nômades, o lugar é uma instância vaga para nós. O que conta é o território. Nós não circunstanciamos lugares, demarcamos território, algo mais complexo e ativo, principalmente ativo, não é o cenário da vida cotidiana, e sim a própria condição de habitabilidade. Os conjuntos habitacionais produzidos na era BNH são a mostra mais evidente dessa condição. Produzidos como espaços impessoais e estéreis, são hoje territórios marcados pelas múltiplas expressões das populações transferidas para eles. A construção da identidade nacional brasileira não é a construção de um espaço ou de qualquer forma simbólica, ela são as inscrições que fazemos no território, um texto nunca acabado, nunca pronto, um palimpsesto, nunca sintetizável ou representável porque a cada olhar é diferente


Paulo Leminski meu eu brasileiro


O NACIONALISMO COMO IDEOLOGIA MARILENA CHAUÍ Em 1978, durante as históricas greves do ABC paulista, helicópteros militares sobrevoavam as passeatas e os comícios no Estádio Vila Euclides, em São Bernardo. Alguém lembrou que os militares não podem atirar contra a bandeira nacional. Imediatamente, dezenas de bandeiras brasileiras surgiram pelas ruas, protegendo os grevistas e todos os que os apoiavam. Além disso, alguns militares afirmavam que as greves eram incentivadas pelo Partido Comunista Cubano e pela União Soviética. A bandeira nacional, além da proteção, passou também a significar que as greves nasciam das comissões de fábricas, criadas pelos próprios trabalhadores para suas reivindicações, nada tendo a ver com uma conspiração internacional. Ademais, o patronato (embora pertencente a empresas multinacionais) afirmava que a greves eram contra a economia nacional e por isso a presença da bandeira passou também a significar que a classe trabalhadora, e não os patrões, representava os verdadeiros interesses da economia brasileira. Em 1993, quando se iniciou ou movimento “Fora Collor”, os estudantes foram às ruas com a cara pintada com duas riscas, uma azul e outra verde, ou uma azul e outra amarela. A escolha das tiras tinha como finalidade lembrar que, durante a campanha


eleitoral, Fernando Collor as usara para caracterizar sua pessoa e seu programa político. Visto que ele se apossara pessoalmente das cores nacionais, os estudantes as tomaram de volta contra ele. Em junho de 2013, muitos manifestantes foram às ruas enrolados na bandeira nacional, mas traziam cartazes opostos: alguns diziam “meu partido é meu país” (numa atitude claramente nacionalista que os justificou na queima de bandeiras estaduais, municipais, partidárias e de clubes esportivos), enquanto outros diziam “sou brasileiro, não desisto” (afirmando-se parte de uma tradição de lutas sociais). Esses exemplos indicam a dimensão simbólica da bandeira, cujo sentido se modifica conforme as razões de sua presença no espaço público. Resta indagar por que a bandeira nacional pode ter usos tão diversificados e, sobretudo, porque ela aparece no espaço público fora dos momentos de comemoração de datas cívicas. Em outras palavras, resta indagar o significado da referência à nação.

“Esses exemplos indicam a dimensão simbólica da bandeira, cujo sentido se modifica conforme as razões de sua presença no espaço público.”

A ideia de nação é muito recente, datando dos meados do século XIX. Eric Hobsbawn¹ percorre o surgimento e as mudanças da ideia de nação entre 1830 e 1960, assinalando a existência de três etapas: entre 1830 e 1880, com a economia política liberal, aparece a expressão “princípio da nacionalidade” – a nação é vinculada ao território; entre 1880 e 1918, com os intelectuais pequeno-burgueses alemães e italianos, fala-se em “ideia nacional” – a nação está articulada à língua, à religião e à raça; e entre 1918 e 1960, com o desenvolvimento dos partidos políticos e o Estado, surge a fórmula “questão nacional” – a nação se refere à consciência nacional e a lealdades políticas.

¹Eric Hobsbawn Nações e nacionalismos desde 1780. Programa, mito e realidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.


“Sob o pano-de-fundo nacionalista, o Estado, a burguesia e a religião se exprimem reciprocamente e já não precisam disputar as lealdades populares.”

Essas expressões tiveram como ponto de partida o surgimento do Estado moderno, definido por um território preferencialmente contínuo, com limites e fronteiras claramente demarcados, agindo política e administrativamente sem a mediação de sistemas pessoais de dominação (o sistema feudal de vassalagem e o princípio monárquico segundo o qual “o que apraz ao rei tem força de lei”) e que precisava do consentimento de seus cidadãos válidos para políticas fiscais e militares. Dois problemas precisavam ser resolvidos por esse Estado: o primeiro, a necessidade de incluir todos os habitantes do território na esfera administrativa estatal; o segundo, a necessidade de assegurar a lealdade ao sistema dirigente, uma vez que a luta de classes, as facções políticas e as religiosas disputavam essa lealdade. A ideia de nação surge para solucionar os dois problemas.

O “princípio da nacionalidade” foi elaborado pelos economistas alemães com o intuito de definir quando poderia ou não haver um Estado-nação. De acordo com esse princípio, a definição do Estado nacional dependia de um extenso território e de uma população numerosa, condições para levar à perfeição “os vários ramos da produção”. As consequências do princípio não se fizeram esperar: a nação entendida como um processo de expansão de fronteiras ou de conquista de novos territórios e o Estado-nação como unificador. Dois elementos produziam a unificação nacional: a língua única em todo o território do Estado e a nação como ponto final de uma evolução iniciada pela própria natureza com a família. A partir de 1880, porém, tem início o debate sobre a “ideia nacional”, suscitado pelas lutas sociais e políticas. Elas haviam colocado as massas trabalhadoras no cenário político e os poderes constituídos tiveram que disputar lealdades populares com socialistas e comunistas. Para isso, o Estado precisava de uma “religião cívica” fortemente mobilizadora, o patriotismo, que se torna nacionalis-


mo, buscando por meio de símbolos e sentimentos produzir uma comunidade imaginária. O nacionalismo não respondia apenas ao problema da lealdade popular, mas também o de classes tradicionais ameaçadas pelo desenvolvimento capitalista e o de um estrato social intermediário ou uma classe social intermediária, a pequena-burguesia (ou classe média), que temia a proletarização. Foram os intelectuais pequeno-burgueses (ou da classe média) os responsáveis pela transformação do patriotismo em nacionalismo, por meio da ideia de “espírito do povo”, encarnado na raça, na língua, nos costumes, na religião e nas tradições. Sob o pano-de-fundo nacionalista, o Estado, a burguesia e a religião se exprimem reciprocamente e já não precisam disputar as lealdades populares. O poder persuasivo da “ideia nacional” levou, entre 1918 e 1960, à “questão nacional”. A Revolução Russa de 1917, a derrota alemã na Primeira Guerra (1914-1918), a depressão econômica dos anos 1930 e o aguçamento mundial da luta de classes – tanto sob a forma de lutas coloniais pela independência como sob a forma de movimentos socialistas e comunistas – levaram, entre 1919 e 1945, à grande arrancada do nacionalismo, ou seja, o fascismo e o nazismo. Surge, no dizer de Hobsbawn, o nacionalismo militante. Há, porém, uma pergunta a ser feita: por que esse tipo de nacionalismo permaneceu em toda parte mesmo com o fim do nazi-fascismo? Possivelmente por causa da natureza do Estado moderno, no qual práticas políticas e sen-

timentos políticos que formam a consciência política do cidadão estão referidos à nação e ao civismo, de maneira que a distinção entre classe social e nação deixa de ser clara e se dilui. No caso do Brasil, a ideia de “caráter nacional” aparece cobrindo os dois períodos iniciais, isto é, o do “princípio da nacionalidade” e o da “ideia nacional”. Essa ideia, porém, é substituída entre 1956² e 1975³ pela de “identidade nacional”. Enquanto o “caráter nacional” é uma elaboração ideológica que oferece uma totalidade de traços coerentes, completos, fechados e sem lacunas (pois oferece a “natureza” ou a “essência” do povo brasileiro), a ideologia da “identidade nacional” propõe um núcleo essencial, tomando como referência um conjunto de diferenças internas à nação. Dessa maneira esta é uma totalidade inacabada e lacunar, algo a ser construído. Ou seja, na ideologia do “caráter nacional” diz-se quais são as características e qualidades que efetivamente constituem a brasilidade dos brasileiros, enquanto na ideologia da “identidade nacional” mostra-se tudo quanto falta para que sejamos uma nação. O que falta? O conjunto de características próprias

²Eleição de Juscelino Kubistchek para a presidência da república. ³Início da “abertura democrática”, proposta pelo General Golbery durante o governo do General Geisel.


aos países capitalistas centrais. Como tais países são ditos “avançados”, o Brasil é “atrasado” ou, como aqueles países são chamados de “desenvolvidos”, o Brasil é “subdesenvolvido”. Por isso a ideologia da “identidade nacional” foi inseparável de uma outra, a do desenvolvimentismo, isto é, um processo para alcançar a forma capitalista acabada ou completa, cujo modelo é dado pelos países centrais. Como sabemos, a identidade da sociedade capitalista funda-se numa divisão interna – a contradição das classes sociais. Por isso, a representação ou a figuração da identidade como unidade e não-contradição exige um conjunto de imagens unificadoras sobre as quais precisa assentar-se. Essas imagens são o povo, a nação, a pátria e o Estado, que produzem um imaginário social de identificação e o ocultamento da divisão social como luta de classes. A divisão aparece como diversidade, a contradição aparece como oposição acidental de interesses, e o desenvolvimento aparece como nacional, popular ou estatal e não como desenvolvimento do capital. Povo, nação e Estado são, simultaneamente, reais e imaginários, cada qual aparecendo como uma diversificação (as várias partes do povo) e como uma unificação (a nação e o Estado). A base material ou real do povo (a divisão social das classes) permite imaginar a unidade nacional (a comunidade de todos os que

nascem e vivem no mesmo território); a base material ou real da nação (território, mercado interno, instituições, leis, costumes) permite imaginar a unidade social (todos os nativos do território como trabalhadores e proprietários). Graças a esse movimento, a sociedade pode aparecer como conflituosa (as lutas dos interesses individuais entre os proprietários privados dos meios sociais de produção e os “proprietários” da força de trabalho) e como harmoniosa (sob a regulamentação objetiva das leis). Constrói-se, então, a figura do Estado, que é nacional por seu território, popular por sua soberania (“todo poder emana do povo”, garante a Constituição) e autodeterminado pela inviolabilidade do espaço nacional e da independência política. Ora, visto que, de fato, a sociedade capitalista é constituída por divisões sociais das classes, torna-se inevitável a proliferação de discursos diferentes ou mesmo antagônicos sobre a nação - cada um deles determinando um modo de representar a sociedade e a política segundo a determinação de classe, cada uma enfrentando, combatendo e excluindo as outras e pretendendo oferecer-se como discurso da “verdadeira” nação. Há um movimento invisível que leva cada um dos discursos sobre a nação, ao se transformar num discurso hegemônico da classe dominante, a apresentar-se como discurso para a nação e, finalmente, como discurso da nação, pretendendo dizer o que a nação é ou deve ser. Esse movimento invisível não


“Há um movimento invisível que leva cada um dos discursos sobre a nação, ao se transformar num discurso hegemônico da classe dominante, a apresentar-se como discurso para a nação e, finalmente, como discurso da nação, pretendendo dizer o que a nação é ou deve ser.”

indica apenas uma luta política e ideológica para apossar-se de uma fala nacional que se proferiria a si mesma ocultando seus falantes reais, mas indica ainda que a nação não seja uma ideia nem uma coisa, mas uma prática sócio-política: um conjunto de relações instituídas pelas falas e pelas práticas sociais e políticas para as quais ela serve de suporte empírico (o território), imaginário (a comunidade e a unidade por meio do Estado) e simbólico (o campo de significações, valores e normas culturais historicamente produzidas pelas lutas sociais e políticas). Em outras palavras, por ser uma prática social, o nacional está marcado pela indeterminação (como os três exemplos que apresentamos ao iniciar este ensaio), isto é, ele tem existência como prática contraditória em busca da unidade que anule a divisão social e que não pode cumprir-se senão ocultando-se como prática. Esse ocultamento leva ao nacionalismo, que converte a nação numa substância espiritual e imortal. Por isso vale a pena lembrar o que propôs Gramsci. Na sociedade capitalista, o que é chamado de Povo é uma abstração, ou melhor, é constituído por uma divisão entre o não-popular (a classe dominante) e o popular (a classe dominada). Da mesma maneira, Nação é também uma ideia abstrata quando opera para ocultar a divisão social das classes sob a imagem da unidade indivisa. Em outras palavras, a explora-

ção econômica, a dominação política e a exclusão social e cultural que fundam a existência das classes pressupõem a divisão entre os com-poder e os sem-poder. Assim, o núcleo dos nacionalismos se encontra na apropriação das ideias de Povo e Nação como substâncias espirituais unas e indivisas, ocultando a divisão entre os com-poder e os sem-poder. Na luta contra o nacionalismo fascista, Gramsci propôs o conceito de nacional-popular na cultura. Nacional pelo resgate de uma tradição não trabalhada ou manipulada pela classe dominante, popular pela expressão da consciência e dos sentimentos populares. Na perspectiva gramsciana, o popular na cultura significa a transfiguração expressiva de realidades vividas, conhecidas, reconhecíveis e identificáveis, cujas interpretações pelo intelectual, pelo artista e pelo povo coincidem. A ideia do nacional-popular na cultura é inseparável do conceito gramsciano de hegemonia, baseado na distinção entre sociedade civil e sociedade política, a primeira definida como organização e regulamentação das instituições que consti-


“A hegemonia não é um sistema e sim um complexo de experiências, relações e atividades cujos limites estão socialmente fixados e interiorizados. É constituída pela sociedade e, simultaneamente, constitui a sociedade, sob a forma da subordinação interiorizada e imperceptível.”

tuem a base do Estado e a segunda como passagem da necessidade (econômica) para a liberdade (política), da força para o consenso. A hegemonia opera nos dois níveis: no primeiro, como direção cultural e no segundo, como direção política. A hegemonia é a consolidação de uma vontade coletiva por uma direção política e a ela se contrapõe a contra-hegemonia como luta contra essa direção para a criação de uma nova vontade coletiva por meio de uma reforma intelectual e moral para uma nova direção cultural. A hegemonia não é um sistema e sim um complexo de experiências, relações e atividades cujos limites estão socialmente fixados e interiorizados. É constituída pela sociedade e, simultaneamente, constitui a sociedade, sob a forma da subordinação interiorizada e imperceptível. Ela não é uma forma de controle sócio-político nem de manipulação ou doutrinação, mas uma direção geral (política e cultural) da sociedade, um conjunto articulado de práticas, ideias, significações e valores que se confirmam uns aos outros vo sentido global da realidade para todos os membros de uma sociedade, sentido experimentado como absoluto, único e irrefutável por que interiorizado e invisível como o ar que se respira. Sob essa perspectiva, hegemonia é sinônimo de cultura em

sentido amplo e, sobretudo de cultura em sociedade de classes, pois indica um sistema interiorizado de dominação. Como cultura em sentido amplo, a hegemonia determina o modo como os sujeitos sociais se representam a si mesmos e uns aos outros, o modo como interpretam os acontecimentos; o espaço; o tempo; o trabalho e o lazer; a dominação e a liberdade; o possível e o impossível; o necessário e o contingente; o sagrado e o profano; o justo e o injusto; o verdadeiro e o falso; o belo e o feio; as relações com a natureza; as instituições sociais (religião, família, vestuário, culinária, medicina, habitação, etc.) e políticas (Estado, movimentos, associações, partidos, etc.); a cultura em sentido restrito (as obras de arte e de pensamento), numa experiência vivida ou mesmo refletida, global e englobante, cujas balizas invisíveis são fincadas no solo histórico pela classe dominante de uma sociedade. É o que Gramsci designa como visão de mundo. No entanto, hegemonia também significa que essa totalização não existe apenas passivamente, na forma de dominação, mas é um processo, ou seja, precisa ser continuamente modificada, renovada, alterada e desafiada sob a ação de lutas, oposições e pressões sociais. Em outras palavras, a hegemonia


é um conjunto complexo de determinações contraditórias cuja resolução não só implica num remanejamento contí¬nuo das experiências, ideias, crenças e valores, mas também pode entrar em crise e, por ser um processo sujeito a desafios e pressões, ela propicia o surgimento de uma contra-hegemonia (uma outra visão de mundo) por parte daqueles que resistem à interiorização da cultura dominante, mesmo que essa resistência se manifeste sem uma deliberação prévia, podendo, em seguida, ser organizada de maneira sistemática para um combate na luta de classes. É na perspectiva da contra-hegemonia que Gramsci elabora o conceito de nacional-popular. Como dissemos, tanto o adjetivo “nacional” quanto o adjetivo “popular” reenviam a maneiras de representar a sociedade sob o signo da unidade social (isto é, Nação e Povo) propostos hegemonicamente pela classe dominante. São suportes de imagens unificadoras, quer no plano do discurso político e ideológico, quer no das experiências e práticas sociais. No entanto, quando se leva em conta a divisão das classes essa absorção se torna impossível. É nessa perspectiva que Gramsci concebe o nacional e o popular: não são coisas dadas nem ideias, mas práticas sociais e políticas de lutas de contra-hegemonia, portanto, contra a ideologia nacionalista. Nos três exemplos com que iniciamos este ensaio, presenciamos os usos diferenciados da bandeira nacional: no caso de 1978 e 1993, como momentos de contra-hegemonia e, no caso das manifestações de junho de 2013, como presença simultânea da hegemonia dominante (“meu partido é meu país”, como disseram Mussolini e Hitler) e da contra-hegemonia (“sou brasileiro, não desisto”) Marilena Chauí é filósofa e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

ILUSTRAÇÃO THIAGO ROCHA RIBEIRO


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“A dependência é o fato de termos países que conseguem alavancar um certo nível de desenvolvimento, mas que só conseguem fazer isso porque estão atendendo aos interesses da expansão do capitalismo.” João Sette Whitaker, urbanista e professor da FAUUSP, sobre filme Queimada (1969), de Giulio Pontecorvo

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KÁTIA RÚBIO

psicóloga, jornalista e professora da EEFEUSP

Avaliando o legado e as funções da Copa 2014 e sua relação com o cenário sociopolítico brasileiro.

Se pensarmos friamente, nós ficaremos com doze estádios e todo o circo construído em torno deles pra depois da copa. Mas acho que a discussão não é só o legado que fica, mas o custo desse legado. É inegável que os estádios ficarão, mas o que temos que avaliar é o custo material e social desse legado. A construção desses estádios irá gerar uma grande dívida tanto para o poder público quanto pra iniciativa privada, já que em alguns estádios o dinheiro é basicamente público (ou via BNDES) e a iniciativa privada no fundo está usando dinheiro vindo por via pública. Ou seja, nós estamos pagando muito caro por várias intervenções urbanas que não sabemos efetivamente para que servirão no futuro. Além disso, o estádio em si, se não tem projeto, é só uma montanha de concreto. O que faz um estádio ser um estádio é o plano de manejo que se tem desse equipamento. Então ouço a justificativa de que não são estádios, são arenas; que poderão abrigar shows. Estádio foi feito para ser estádio, a concepção dele é a de abrigar competições esportivas. Shows são uma adaptação para aquele espaço. Tanto é assim que você tem áreas cegas que não são usadas em espetáculos, porque aquilo não é feito para isso. Portanto, minha maior crítica em relação a tudo isso é que há um projeto enganoso sobre aquilo que significam os estádios e tudo aquilo que envolve a copa do mundo. Por exemplo: o metrô de Itaquera não foi adaptado para aquele estádio. Fico imaginando um jogo com 60 mil pessoas em que o juiz apita e vai todo mundo para o metrô. Me lembro do Camp Nou, em Barcelona, e toda a logística que tem para as pessoas chegarem ao estádio de transporte público – um sistema integrado de metrô, ônibus e das pessoas caminhando. A Arena de Recife só é acessível de


carro. Quais foram efetivamente os projetos de intervenção urbana para a construção desses equipamentos? Não foram equipamentos pensados para ser um patrimônio público. Na arena de Fortaleza, que fica ao lado do aeroporto, em dia de jogo ninguém sai nem entra, porque a mesma avenida que leva ao aeroporto leva ao estádio. Que legado é esse? Legado nenhum fez parte da pauta de discussão da Copa do Mundo nem dos Jogos Olímpicos. Foi um projeto que veio de cima para baixo como uma mega intervenção no país sobre a qual a população não foi consultada. Assim, o “legado” (social, cultural, material, etc.) é uma ideia inventada para tentar resolver um problema político que a FIFA e o COI criaram para si na medida em que esses eventos ganharam uma proporção gigantesca. Até os anos 80, você tinha esses eventos sendo realizados e disputados pelos países por visibilidade, em termos de lucro, porém, eles não representavam a exorbitância que representam para essas entidades hoje. Na medida em que esses eventos crescem em lucratividade, há também uma cobrança por parte de grupos sociais organizados em relação ao que fica para os países que recebem esses eventos. Até os jogos de 1976, quem pagava 100% dos custos das realizações dos jogos olímpicos era o país que hospedava o evento. Com o rombo que Montreal viveu, o COI chegou à conclusão que tinha que abrir frente para a iniciativa privada para que esses custos pudessem ser compartilhados, ou em pouco tempo não teria nenhum país interessado em sediar o evento. A população de Montreal pagou os custos dos jogos olímpicos de 76 até o ano 2006. Foi o Estado que se responsabilizou - se o governo é eleito pelo povo, quem paga a conta é o povo. O carnê de imposto tinha discriminado “jogos olímpicos de Montreal”. Passou a existir, então, um item


específico no material de postulação que tem que dizer qual é a responsabilidade do postulante em relação àquilo que ficará desse evento para depois. Em outras palavras, “nós vamos fazer um grande projeto social, vamos trazer o povo para dentro do estádio, vamos trazer as crianças pobrezinhas, carentes, maltrapilhas, sujas e malvadas. Vamos fazer todo mundo jogar futebol no país.” Isso é uma mentira. Basta ver a Copa das Confederações. Foi só um aperitivo daquilo que será o ano que vem. Inclusive porque eles já sabem onde estão os problemas. Então, as baianas de Salvador conseguiram manter o acarajé na beira do estádio. Por outro lado, não pense que você vai comer aquele lanche de pernil que você come na beira do Morumbi. O espetinho de gato. A cerveja que você gosta, a sua Itaipava, não vai estar na beira do estádio. Por quê? Porque tudo isso é uma grande enganação do público que acha que a copa é nossa. A copa não é nossa. Nós estamos vendo a nossa soberania afrontada. Existe uma legislação específica para a época da copa. Ninguém vai precisar de visto para entrar no Brasil. Porque assim a FIFA o determina. Comercializaremos só os produtos autorizados, somente os produtos FIFA. Não poderá ter televisão ligada em bar de esquina, você já imaginou? Se você quiser assiste na sua casa de forma privada, ou paga 400 reais pra entrar no estádio. Se é que você vai encontrar ingresso a esse preço. Nesse cenário, quando eu vejo em plena copa das confederações o povo ir para a rua é porque inconscientemente, ao menos, eles sabem o que está acontecendo. Eles não sabem dizer que é isso, mas o povo tá na rua por causa disso, entre outras coisas. Nós estamos sendo enganados.


Meirelles é o c*®*!ho, meu nome é Fernando!

Entrevista realizada em agosto de 2013 com o diretor de cinema Fernando Meirelles, formado em arquitetura pela FAU-USP e sócio-fundador da produtora O2 Filmes


FADE IN: INT - SALA DE REUNIÕES/ O2 FILMES - MANHÃ DEZ EDITORES de uma revista estudantil, Contraste, estão sentados em cadeiras em volta de uma grande mesa. O grupo heterogêneo é formado por homens e mulheres no começo dos vinte anos. FERNANDO MEIRELLES está entre eles. Fernando lembra um pai. Ou um tio - definitivamente não um avô. É comunicativo, simpático, acessível. O grupo, inicialmente nervoso, aos poucos se sente confortável. Fernando parece tão interessado pelos editores quanto os estudantes por ele. FERNANDO Vocês vão começar a gravar? Vou fazer uma claquete pra vocês. Os estudantes riem. FERNANDO É verdade, ajuda muito na edição! Tá gravando? Tá valendo? CLAQUETE! Começo da entrevista! Fernando sinaliza a claquete batendo palmas. Os risos silenciam. Os estudantes tentam se mostrar profissionais.

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EDITOR #1 Em seus filmes Domésticas (2001) e Cidade de Deus (2002) você dá uma voz pra setores excluídos, o que podemos interpretar como um posicionamento político. Você acha que isso é uma diretriz do seu trabalho? FERNANDO Na verdade, acabou sendo assim porque eram temas que me mobilizavam: a pessoa que tá fora do sistema, não participa, não consegue entrar. E foi engraçado que, quando eu fui pro Japão fazer o lançamento de O Jardineiro Fiel (2005), um crítico de cinema sentou na minha frente e perguntou “Por que você continua fazendo o mesmo filme, repetidamente?”. E eu respondi “Como assim o mesmo filme?”. “É. Domésticas é sobre uma exclusão doméstica [que ocorre


dentro de casa], Cidade de Deus é uma exclusão social no Brasil e agora você fez O Jardineiro Fiel , que é um continente excluído do mundo, a África. Você fica só repetindo o mesmo filme!”. Fiquei um pouco ofendido, mas vi que ele tinha razão. Eu não tinha nem me atinado que os meus três primeiros filmes eram sobre pessoas excluídas lutando contra um sistema muito maior que elas. Mas eu acho que isso nunca foi consciente. O tema me mobiliza. Eu lia as histórias, ficava tocado e embarcava. EDITOR #2 E o que uma história precisa ter pra te motivar a fazer um filme? FERNANDO Eu acho que tem que ter um tema que cative. Em geral, sempre que eu leio um roteiro, o meu foco não vai pra a história que a gente tá contando. Não é uma coisa pensada, é instintivo. Domésticas é sobre essa “instituição das domésticas” e o Cidade de Deus é sobre a exclusão urbana. Tem lá o Buscapé e os personagens todos, mas o meu interesse não é mostrar a trajetória daqueles caras. Assim como no Jardineiro não é mostrar a trajetória do protagonista, do Ralph Fiennes: é falar sobre a indústria farmacêutica, sobre o que tá por trás. Sobre como a África é usada como cobaia pra testar remédio pros ricos. Acabei percebendo, na experiência, nunca muito pensado, que eu uso as histórias pra mostrar o que tá por trás delas, esse pano de fundo. No último filme que eu fiz, até, eu quis sair dessa cilada em que eu sempre me coloco. E fiz o 360 (2012) sobre nenhum tema, só sobre aqueles personagens. É só sobre aquela vida mesmo, a nossa vida. E muita gente nem entendeu o filme. Acho que é um filme fraco, um filminho,


justamente porque não tem esse pano, não tá discutindo um grande tema por trás. É só sobre afeto, sobre relações pessoais mesmo. Mas eu queria fazer um filme pequenininho sobre pessoas, e não sobre temas. Agora, o próximo, eu já não sei o que será. EDITOR #1 Já tem algum projeto novo? FERNANDO Tem um projeto, uma biografia do Onassis. É um pouco sobre o ódio, na verdade. Mas eu tô encarando mais como um filme de entretenimento, tem um certo suspense. Vamos ver. De novo, é um filme muito diferente de todos os outros que eu fiz. É um filme de época – se passa nos anos 50, 60 – então vai ser uma experiência nova pra mim.

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EDITOR #2 Quais são os principais obstáculos na produção dos seus filmes, da criação até a exibição? FERNANDO O grande desafio, pra mim, é sempre o roteiro. E é como o projeto, na arquitetura: você pode ter o melhor construtor, o material mais incrível; mas, se você não tiver um projeto pra começar, pode pôr o dinheiro que quiser que aquilo não vai virar nada. Cinema é absolutamente igual. Eu acho, inclusive, uma injustiça os roteiristas não receberem os créditos pelos filmes. Em geral, dizemos “é um filme do Fellini”, sempre do diretor. O filme tinha que ser sempre do roteirista e do diretor. No Brasil, começamos só agora a ter uma formação de roteiro melhor. O roteirista de cinema brasileiro, até 10 anos atrás, era jornalista. Era um cara que escrevia bem, que gostava de ler muito, mas não tinha técnica. Assim


como os arquitetos que não têm formação e são bons arquitetos. Mas, nos últimos 12 anos, o mercado de cinema cresceu. Explodiu o número de faculdades de cinema no Brasil e começa a sair agora uma primeira geração de roteiristas formados, que conhecem a técnica, que já leram e conhecem muito história de roteiro. Isso vai fazer diferença. Eu tenho fé de que o nosso cinema vai melhorar. E a televisão vai ajudar a melhorar, justamente pelo volume de roteiristas se formando. Pra mim, o maior desafio é esse: o projeto, o começo do processo. EDITOR #3 E sobre o público que o cinema atinge? Você acredita que o cinema chega às pessoas, em especial às retratadas pelos seus filmes? FERNANDO O cinema brasileiro é muito pouco assistido. Na verdade, não é nem o cinema brasileiro – o cinema no Brasil é muito pouco assistido. É uma parcela de 10%, 12% da população que vai ao cinema. Os grandes sucessos de bilheteria no Brasil alcançam 3 milhões, 4 milhões de espectadores. Isso é o quê? É 1,5% da população brasileira? E, enquanto o cinema for caro, vai ser isso mesmo. As pessoas vão assistir depois, na televisão, no vídeo, no celular. Mas o problema de fazer o filme chegar ao público é principalmente uma questão econômica. As pessoas não têm dinheiro pra pagar o ingresso e aí, como nunca tiveram esse dinheiro, não têm o hábito. Agora, nesses últimos 10 anos, os brasileiros conseguiram dar uma melhorada no padrão de vida, o que trouxe mais gente querendo ir ao cinema. E é justamente esse o público das comédias brasileiras. Os filmes brasileiros que mais têm público são essas comédias que parecem muito com televisão. É um pouco o que o


público tava acostumado a ver na TV e, a hora que vai ao cinema, busca uma coisa parecida, com os atores de televisão. Mas acho que a gente vai passar disso. EDITOR #2 Assim como acontece na arquitetura, a produção cinematográfica parte de um projeto, com ideais e intenções. Como é a elaboração desse projeto, pra você? FERNANDO Um dia me caiu a ficha dessa história – tem um pouquinho a ver com isso, eu vou dar uma voltinha, mas eu chego lá... Os editores riem. FERNANDO (cont) Eu era arquiteto, como é que eu fui virar diretor de cinema? Descobri que as duas atividades são muitos parecidas. O arquiteto é o que entra com a visão do projeto, quem tem que pegar o terreno e imaginar o que pode vir a ser aquele espaço e todas as implicações que ele vai ter. E, se deixar ele sozinho, ele não sabe projetar estrutura, não sabe empilhar tijolo, não sabe preparar massa, não sabe fazer basicamente nada. Mas ele entra com a visão e vai juntando pessoas pra construir. E o diretor é o arquiteto do cinema. Eu não sei fotografar, eu não sei montar, não sei fazer música, seria um péssimo ator. Eu coordeno uma equipe enorme de gente que sabe melhor que eu o trabalho deles. Mas eu entro com a minha visão, com qual história eu acho que deve ser contada e como deve ser contada. Quando entro no projeto, sempre parto de uma imagem, de uma cena, ou de um diálogo que eu acho “o filme é isso aqui!”. Aí eu tento construir o filme todo em volta. E, no processo em que você vai desenvolvendo o roteiro,


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começa a chegar elenco, você começa a montar os cenários, a escolher figurino. Cada vez chega um novo criativo e entra no processo. Por exemplo, chega o maquiador e te pergunta: “como você vê a maquiagem desse filme?”. Na hora você começa a pensar naquilo, o cara te dá um toque, fala “olha, isso aqui é interessante!”. Então você passa isso pro figurinista, e ele inclui e passa pro roteirista. Parece que o filme vai se montando sozinho e eu fico lá só ouvindo um falando com o outro, o outro falando com outro... É meio essa coordenação. Tem diretores que pensam, desenham o filme e depois vão lá e filmam exatamente o que eles desenharam. Sabem tudo! O Kurosawa era assim. O Hitchcock, o Guel Arraes. Eu faço o oposto. Eu tenho a ideia do que eu quero, mas não como chegar lá. Por isso, sou muito permeável a todo tipo de contribuição. Eu sou o arquiteto que ouve toda a equipe.

FERNANDO É, alguma coisa chega. Às vezes não o que você queria que chegasse. Às vezes, você imagina um filme com uma sequência de uma maneira e o ator te traz outra coisa. Mudam o texto e, quando você vê, aquele troço já não é o que você tinha imaginado. Às vezes fica melhor – você tinha imaginado que era uma “ceninha” e, de repente, pela maneira como o ator fez e tal, vira uma supercena. E, às vezes, acontece o contrário – você tem altas expectativas com uma sequência, faz tudo do jeito que você planejou, mas, na hora que monta, aquilo não funciona direito. Enfim, é a vida. Mas essa é a graça, né? Você não ter controle. Na arquitetura é a mesma coisa. Esse

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EDITOR #1 Você acha que a sua intenção, seu objetivo, chega ao espectador?


prédio aqui, da O2, também foi muito pensado: cada lugar, cada uso. A arquiteta, Cris Xavier, falou com todo mundo. Tem lugares que a gente achou que fosse só passagem e viraram uma praça. Outros foram pensados e ninguém dá atenção. Tem um lugar ali no fundo que era pra ser de cafezinho, de as pessoas trazerem seu lanche... ninguém usa aquilo, ninguém nunca sentou ali. A gente não consegue controlar tudo, né? EDITOR #4 Tem algum motivo pra você não usar muito cenário nos seus filmes? FERNANDO Eu uso cenário, uai! Como não? EDITOR #4 Você vai a campo, mostra a cidade... FERNANDO Talvez eu tenha usado mais locação pelo tipo de história. Os meus filmes têm muita externa. Mas já fiz bastante coisa com cenário! Fiz uma série na Globo chamada Som e Fúria (2009) em que a gente montou uns três ou quatro cenários bem grandes num teatro e rodamos a série inteira ali dentro, no estúdio. É até muito confortável, porque a sua luz já tá toda instalada, você não perde tempo preparando as coisas. Chega de manhã, bate a luz e já pode filmar. Mas de fato, na maior parte das coisas que eu fiz era tudo locação. Tem uma regra, na verdade, pra escolher se você vai fazer em locação ou cenário. Se eu tenho um dia de filmagem ou dois nessa sala, é mais fácil achar uma sala pronta e trazer a luz. Perco um tempinho pra montar, descarregar, carregar, mas vale a pena. Se eu vou filmar três, quatro ou mais dias num espaço como esse, já vale


mais a pena eu construir em estúdio. O tempo que eu ganho compensa o custo de construir. Essa opção de cenário ou locação é muito em função de custo, mesmo. Quem acaba mandando é o cara que paga a conta.

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EDITOR #1 A gente viu que na pré-filmagem de O Jardineiro Fiel você tinha muitas cenas em estúdio e que você, como diretor, quis levar essas cenas pra rua. Isso foi também função de custo, ou... FERNANDO Não, aí foi um pouco da história. Porque o livro, O Jardineiro Fiel , é sobre um diplomata, um cara que tá sempre conversando com o chefe, com um superior, ligando pra Londres. É um filme com muito diálogo, inclusive. E esses diálogos eram sempre em um escritório. Na hora que eu li e comecei a imaginar o filme, era um filme muito fechado, um filme desses falados, tipo Lincoln (2012). Só gente falando com um biombo atrás. Aí, de fato, eu dei uma passada no roteiro inteiro, senti isso e resolvi abrir um pouquinho o filme. Então, numa conversa que era no escritório, eu pus os caras guiando o carro no meio do Quênia. Numa cena que era de telefone, eu fiz o cara ir até uma feira no meio da cidade, pra trazer um pouco da África, da Alemanha, de Berlim... Fiquei tentando abrir um pouco pra não parecer um filminho de gabinete. EDITOR #2 E como foi a escolha de São Paulo como set de filmagem de Ensaio Sobre a Cegueira (2008)? Porque, ao mesmo tempo em que o filme tenta mostrar uma cidade genérica, a gente achou que podia ser uma opção crítica sua.


FERNANDO Na verdade, a gente vê São Paulo por um momento, no Anhagabaú, ali na frente do Teatro Municipal. Mas os personagens saem de Toronto, fogem da prisão ainda nos prédios de lá, andam pela Marginal Pinheiros, caem numa rua no centro velho de Montevidéu, atravessam uma praça e vêm parar no Teatro Municipal, aqui no Anhagabaú. E a ideia era que fosse mesmo uma cidade meio genérica, como no livro. Quando li, pensava em Lisboa, mas não tem nenhuma referência a Lisboa, nem a Portugal, porque é uma história meio metafórica. É sobre a humanidade, sobre uma cegueira metafórica da humanidade. Era importante não ser sobre o Brasil, senão alguém podia falar que é uma crítica ao governo brasileiro que não enxerga. A gente quis tirar qualquer referência a qualquer país, a qualquer raça, pra ser mesmo sobre o ser humano. EDITOR #1 Quando você escolhe mostrar a Ponte Estaiada, o Anhagabaú, o Rio Pinheiros, não sei se pra todo paulista, ou pra...

EDITOR #1 (cont) ... a gente vê isso. Você acha que esses lugares têm uma aptidão a ser esse espaço genérico? Ou você conseguiria fazer essas cenas em qualquer lugar, na Torre Eiffel? FERNANDO Olha, eu conseguiria. Se eu tivesse que filmar em Xangai ou em qualquer outra cidade eu ia acabar escolhendo espaços que tivessem aquele tipo de frieza. A gente tava filmando em São Paulo,

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FERNANDO Os paulistas vão reconhecer, com certeza.


então eu procurei aqui. Mas, realmente, não teve nenhuma intenção de comentar São Paulo. A gente foi nesses espaços porque são espaços que, pra mim, são expressivos. Aquela ponte lá: quando a gente filmou ela não tava inaugurada ainda, ela tá pela metade. É uma metáfora boa, né? Uma ponte que não leva a nada. Uma obra daquele tamanho que acaba do nada. Mas foi um pouco em decorrência da produção, não tem uma intenção de fazer um comentário sobre São Paulo. Pelo contrário. Eu não queria que as pessoas associassem a São Paulo.

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EDITOR #1 Ainda no Ensaio Sobre a Cegueira , a gente vê que a transformação do comportamento do indivíduo a partir da perda da visão torna o espaço diferente, mais agressivo. E, por outro lado, no vídeo de candidatura do Rio às Olimpíadas você usa muito o povo como forma de qualificar o espaço, de forma positiva. Como você vê essa relação do indivíduo com o espaço?


FERNANDO É, eram duas intenções muito diferentes. Em uma eu tô fazendo uma crítica a uma cidade, a uma sociedade. Na outra eu tô tentando exaltar. E eu achei que o negócio das Olimpíadas foi uma bela sacada: em vez de a gente ficar mostrando paisagem do Rio, Marina da Glória e os espaços onde seriam as Olimpíadas, a gente apostar nas pessoas, no calor do carioca. E funcionou. Eu evidentemente acho que tem uma relação muito grande, claro, entre as pessoas, o tipo de vida das sociedades e o espaço em que elas moram. Acho que onde eu fui mais longe nessa coisa de usar o espaço pra contar uma história, pra falar das pessoas que moram ali, foi no Cidade de Deus ... Editor #2 sorri, entretido, o que parece incentivar Fernando a prosseguir falando. FERNANDO (cont) O jeito que eu mostrei a Cidade de Deus, sem os personagens, já conta um pouquinho a história. O filme tá dividido em três partes. Tem aquele começo, onde todo mundo vai pra Cidade de Deus e é aquele conjunto habitacional – de fato era assim, aquelas casinhas tipo BNH, aqueles conjuntos de três mil casas iguaizinhas. No começo do filme as pessoas estão chegando ali pra uma vida nova. Tem horizonte, tem uma certa ordem. Nos anos 50, 60 ainda tinha o governo, o Juscelino, o Brasil ia ter futuro. Quando eu vejo a Cidade de Deus ali eu vejo essa organização das casinhas, vejo horizonte, pôr do sol. Existia uma perspectiva. Daí o tráfico chega, e é a segunda parte, quando o Buscapé fica adulto e o tráfico já tá tomando conta do lugar. Aí começam a construir aqueles predinhos, as casinhas já vão fazendo puxadinhos... vão “favelizando” um pouco a Cidade de Deus.


E, se você olhar a segunda parte do filme, Buscapé andando no meio daquelas vielas, você vê muros. Tem umas horas de bicicleta que você tem um espaço livre, praia, cor, mas você sente que o espaço tá fechando. Até que vai pra terceira parte, a hora que o Zé Pequeno entra em guerra, quando já tinha deteriorado totalmente as relações sociais. Dalí em diante você já não vê mais o espaço. Se você não assistir o filme inteiro, você não entende nada, você só vê muro, pedaço de janela, porta. A primeira parte eu filmei tudo com grande angular. Era 40mm, 32mm, você vê longe, você vê prédios inteiros. A segunda a gente usou 60mm, 70mm. Você vê, reconhece prédios, mas tudo um pouquinho mais confuso. A terceira parte eu filmei tudo com tele objetiva, então é tudo chapado. Você só vê pessoas contra a parede. É como se a história inteira acontecesse dentro de um labirinto de vielas. E a gente acaba contando a história de como aquelas pessoas criaram uma arapuca pra eles mesmos, eles estão presos dentro de um labirinto. Como é que eles vão sair desse troço? E sabe que funciona, cara? Se você pega, sem fala, um pouquinho de uma coisa, um pouquinho da outra e um pouquinho da outra, você entende que a coisa tá fechando. Alguma coisa tá dando errado naquela cidade ali. Eu acho que nesse filme, nessa coisa de cenário e do uso de lente, os meus cinco anos de FAU me ajudaram muito. Entender a relação do espaço com as pessoas e com a sociedade. Não sei se eu enrolei, mas... foi. Fernando ri. Os editores riem. EDITOR #2 Como você acha que a sua formação de arquiteto influenciou, tanto positiva quanto negativamente, no seu trabalho? Hoje, tendo outras opções, você escolheria arquitetura de novo?


FERNANDO O que mais me ajudou na FAU foi essa coisa de percepção de espaço, de fruição. Eu gosto muito de arquitetura. Quando eu viajo, visito lugares que não são museus. Visito praça, construção. Me dá um barato. Espaço me dá um barato. E, pra cinema, cenário é tudo, né? Você tem ator e todo o resto: “todo o resto” é arquitetura. Mesmo na decupagem, quando você tá montando um diálogo, você tem que contar aquele espaço. Muitas vezes – na maior parte das vezes – você cria um espaço na montagem. Eu tiro você aqui de um lado e, ao invés de me pôr aqui contra essa parede branca, que é feia, eu me ponho lá na outra sala, que dá pra um jardinzinho. E eu invento um espaço virtual, que não existe. Mas a minha cena tem que ter um espaço que faça sentido. Eu acho que eu tenho uma boa compreensão espacial, um bom senso de orientação. A FAU, talvez por ter me feito observar arquitetura e me falar como os espaços tocam a gente, que espaços que tocam mais ou não, me ajudou muito no meu trabalho. Até hoje. Sempre que vou fazer qualquer coisa, até comercial, eu penso no espaço e como ele vai ser mostrado antes de quem é o ator. EDITOR #1 Você acha que a passagem pela FAU pode ter te atrasado a se aproximar do cinema? FERNANDO Não, pelo contrário! Eu acabei fazendo cinema porque a FAU, na minha época, era um curso muito aberto. Você podia fazer o curso que quisesse ali dentro. E eu sabia que tinha na ECA, ali ao lado da FAU, uma máquina de desenho animado. Uma Higashino, que chamava. É uma multiplano, uma câmera de fazer – uma sala inteira, na verdade – de fazer desenho animado, e os alunos da ECA não usavam. Então eu, com uns amigos


de curso, conseguimos o direito de usar aquele equipamento pra fazer matérias da FAU. Foi assim que eu comecei a fazer cinema. A gente fez três desenhos animados. Depois eu fiz outros trabalhos em cinema, fiz uns trabalhos no Super 8, chama Arquitetura Animada (1978), sobre conjuntos habitacionais. E depois minha tese de graduação, meu TGI... chama TGI ou TCC, agora? É TGI ainda? EDITORES TFG. FERNANDO Oi? Que que é o “FG”? EDITORES Final de graduação. FERNANDO Ah, no meu tempo chamava TGI. O meu TGI também não foi um projeto de monografia, foi um vídeo. Resolvi fazer meu TGI num média-metragem. Então, se eu não tivesse feito a FAU, talvez eu não tivesse tido a oportunidade de filmar tanto. Se eu tivesse feito a ECA, talvez eu não tivesse tido a oportunidade de filmar tanto quanto eu tive na FAU. Fora que a FAU tinha aquele laboratório... tem ainda? Um bom laboratório de fotografia? Não, porque ninguém usa mais fotografia, né? EDITOR #1 Tem! FERNANDO Tem mesmo?! Com químico e tudo?! Museu! Todos riem. EDITOR #1 É, ele tá meio abandonado agora, mas ainda tá lá...


FERNANDO Quando eu fiz, era o Mílson que cuidava desse serviço. Mas tinha um laboratório que era muito legal, eles te davam até negativo. Você ia lá, rebobinava seu próprio negativo, podia revelar, depois ampliava... Tinha várias cabinezinhas. E eu vivia no laboratório. Comecei a mexer com imagem lá dentro. Acho que se eu não tivesse feito a FAU, talvez eu não estivesse fazendo cinema hoje. Se eu tivesse feito a ECA, talvez eu também não estivesse fazendo cinema hoje, como muitos colegas da ECA da época não estão. EDITOR #5 Na sua opinião, qual a diferença entre o pensamento espacial do arquiteto e do cineasta? FERNANDO Sobre o...? É, a diferença é que o arquiteto tem que criar um espaço que é real, né? Que as pessoas vão andar. E eu, quando vou criar um espaço num filme, sou muito mais livre. Como eu tava falando, posso criar um espaço em que essa parede é um fundo, a outra parede tá no Japão e o outro cara que tá ouvindo tá na Grécia. Eu consigo criar espaços mais interessantes, até, porque eu sou mais livre do que um arquiteto. Mas claro que é um uso diferente. Uma coisa é você entrar num espaço que te dá um barato e outra é você assistir a ele numa tela bidimensional. É menos legal, né? Menos interessante. Mas, enfim: eu, como diretor, sou mais livre pra criar espaços do que vocês, arquitetos. Fora 3D, né? Tá cada vez mais difundido, mais barato você criar cenários em 3D. Qualquer cenário um pouquinho maior, você faz tudo em 3D: uma cena de dois caras conversando na frente de uma catedral gótica, aqueles 150 metros de altura, eu posso fazer aqui nessa parede verde e depois desenhar a catedral, pôr


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a textura, pôr os prédios, fazer o sol e é hiper-realista. Hoje a gente assiste à TV e vê muito cenário que tudo mundo acha que tá lá e é fundo verde. E funciona.

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EDITOR #6 O que você pode dizer pra quem cursa arquitetura e tá querendo dar as caras no mercado do cinema? FERNANDO Pra quem tem formação de arquitetura, o lugar de entrar no cinema é, evidentemente, pela direção de arte. Os dois diretores de arte que mais trabalham com a gente aqui – na verdade, quase todos os diretores de arte – são arquitetos. O cara que mais faz coisa aqui com a gente é o Cássio Amarante. Fez Xingu (2012), fez A Busca (2013), agora tá fazendo uma série da Globo. Ele fez FAU também. O outro cara com quem eu trabalho é o Tuké Peake, que fez Cidade de Deus, fez Tropa de Elite (2007). A gente tá junto fazendo um filme agora no Rio chamado Trash, com o Stephen Daldry, o cara que fez o Billy Elliot (2000). O Tulé é arquiteto


também, um cara muito talentoso. Acho que o caminho natural pra entrar é por aí. E é muito legal pra quem gosta de cinema, arquitetura, sessão de artes... É muito bacana aprender os truques e simular a sensação do espaço sem ter que construir ele. E outra é essa possibilidade do 3D agora, né? De você pensar nos prédios, nos espaços, nas coisas mais malucas e poder criar eles hiper -realistas. Uma coisa é você fazer esses CADs, que são meio tosquinhos, né? Mas essa molecada agora faz você entrar no espaço. Ilumina o espaço, anda no espaço. Isso é muito legal. EDITOR #2 Você encara como sua responsabilidade essa retomada do cinema brasileiro no exterior, com o Cidade de Deus? FERNANDO Eu vejo mais como uma onda que sobe e desce. Dois anos antes do Cidade, o filme do Walter Salles, o Central do Brasil (1998), tinha ganhado Berlim. Mas não teve um público tão grande: fez uns 7 milhões de dólares em meio internacional. O Cidade fez 35 milhões. Ele deu um pulo e foi mais visto do que o Central, mas eu não vejo assim. O Waltinho fez o estilo que voltou a pôr o cinema brasileiro lá fora, daí eu fiz o meu filme. O Tropa de Elite ganhou o Urso de Ouro também, em Berlim. Eu vejo como degraus, não uma mudança de paradigmas. EDITOR #6 As leis de audiovisual, o patrocínio da Ancine... Dos anos 2000 pra cá, deu uma mudada, né? FERNANDO Na verdade, essas leis de audiovisual foram criadas acho que em 95 ou 96. Era o Fernando Henrique, ainda, o presidente.


E aí demora um tempo até as produtoras e empresas aprenderem a lei. Hoje isso tá completamente implantado e já sanou o problema da produção, que era o nosso grande obstáculo. Ninguém fazia filme no começo da década de 90, fazia uns cinco filmes por ano. No ano passado foram 108. Porque hoje a produção, o dinheiro pra produzir, existe. Não tem mais essa que não dá: filme brasileiro você consegue dinheiro pra produzir qualquer tranqueira, nem que seja um pouquinho. Porque tem tanto edital... Nosso problema hoje é distribuição. Acho que são duas coisas, na verdade: a gente consegue fazer o filme, mas não tem muito dinheiro público pra fazer o projeto, o roteiro; e não tem muito apoio também pra lançar o filme. O Brasil produziu 108 filmes, acho, no ano passado, mas só metade disso consegue chegar às salas. Alguns chegam no fim de semana, numa sala do interior. Agora o problema é resolver as duas pontas: criar uns patrocínios pra projeto e desenvolvimento e um apoio pra conseguir fazer o filme chegar na sala. Essa coisa de não ter dinheiro pra roteiro é muito típico de Brasil, né? EDITOR #2 Como assim? FERNANDO Porque o governo assume, tem quatro anos pra fazer a obra e é aquela coisa: o cara tem seis meses pra fazer o projeto e quer tocar pra inaugurar. Belo Monte, por exemplo. Que é um troço tipo transposição do São Francisco, total erro. Porque o cara queria tocar pra inaugurar, sai fazendo sem projeto e o negócio vai afundando pelo meio do caminho porque não foi pensado, não foi desenvolvido até o fim. No cinema é a mesma coisa. Os caras nunca


pensaram em bancar o roteiro. O roteiro custa 50 mil, o filme custa 1 milhão. O dinheiro vai pra onde? Pro 1 milhão! Se eu tivesse alguma voz, eu bancava 200 roteiros e dois longas. Dos 200, seleciona os melhores e faz dois. Mas hoje é zero roteiro e oito longas, dez longas. É muito a nossa cultura, né? Quero inaugurar! Quero lançar!

FERNANDO Agora falaram que o Estado vai tombar o Belas Artes. Preciso ver como vão fazer. A gente era sócio do Belas Artes e veio aquele movimento de “Vamos manter o Belas Artes!”, mas era uma barca furada. Se não tivesse acabado ali, a gente ia dar mais oito meses; se em oito meses não arranjasse o patrocínio, a gente ia fechar. A gente conseguiu o patrocínio pra fazer uma reforma, ficamos lá 2 anos, o Santander renovou o patrocínio, e aí acabou: não quis mais patrocinar e a gente não achou outro. Tinha um dinheiro em caixa, que ia acabar em outubro, acho. E em janeiro o dono cancelou o aluguel e tomou de volta. Foi uma burrada pra ele, porque ele podia continuar ganhando. Mas o Belas Artes era um negócio inviável, nunca ia dar certo. O aluguel do Belas Artes era 58 mil reais. E 40%, 44% do faturamento da sala ia pra pagar isso. Em geral nesses complexos, Cinemark e tudo isso, o custo da sala tem que ser por volta de 12%, 14% pro negócio ser rentável. Belas Artes era 40, então toda a margem o cara levava, e mais a reserva. Era um negócio inviável.

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EDITOR #6 Tem a ver com a questão do Belas Artes, que vocês eram sócios, né? De ter fechado, de reabrir... Era um dos poucos cinemas de rua, que tinha filme numa qualidade diferente, alternativa...


EDITOR #6 E, ao mesmo tempo, a Zona Leste é esquecida e a periferia de São Paulo não tem acesso a cinema nenhum... FERNANDO Não tem nada, né.... Acho que muito mais interessante era fazer salas aí. EDITOR #1 Tem muita doméstica que nunca viu Domésticas... Será que essa dificuldade na exibição tá levando mais a gente por um caminho de assistirmos ao filme no celular, sozinho? Ou a gente ainda tem esperança na sala de cinema, coletiva?

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FERNANDO Investir em centros de cinema na periferia a preço popular, é genial, muito legal. Não sei como anda isso, mas tinha um projeto de financiamento pra salas de cinema pra complexos em cidades de até 100 mil habitantes. Não sei quantas cidades, quantas pessoas conseguiram isso. Era um projeto muito bacana. Brasil tem pouca sala em relação à população. Tem dez vezes menos que o México. Mas vai mudar: as TVs tão ficando cada vez melhores e maiores, com som bom, em HD, a gente vai começar a assistir vídeo on demand. Você vai ir no cinema pra ver um filme que é um evento. E assistir em casa filmes menores e filme de arte. EDITOR #6 Em compensação, nesses filmes on demand acontece diferente, não é? Parece que a maior parte do dinheiro acaba não indo pra produção do filme... FERNANDO Tem vários sistemas. Tem uns em que você põe seu filme lá no canal e, cada vez que alguém assiste, o dono ganha 20%. Tem outros, como o Netflix, que


pegam seu filme, te pagam 50 mil reais, e podem explorar seu filme por 10 anos, 12 anos. E você entra num pacote, as pessoas assistindo ou não assistindo. Bom, aí cada produtor, escolhe qual a melhor alternativa, né? EDITOR #1 Mas você não acha um pouco triste a gente não sair mais de casa, não sair mais na rua? FERNANDO É, acho que o hábito de ir ao cinema faz parte da minha cultura, da minha geração. Mas as coisas mudam. Não sou nostálgico, não. Eu gosto do cinema pelo tamanho da tela. Acho muito legal assistir filme junto com outras pessoas. Essa ideia de que o filme é um sonho que você compartilha. Eu acho muito legal sonhar a mesma coisa que outras pessoas do meu lado estão sonhando. E você sente na sala o interesse, o sonho... eu gosto muito de ver junto. Mas... não é como está acontecendo. Fernando termina a frase sorrindo. EDITOR #2 Uma questão que acaba sendo levantada por críticos quando saem filmes como Cidade de Deus e Central do Brasil é a questão de “cosmetizar a miséria”... FERNANDO Eu lembro desse papo aí, mas eu nunca entendi onde estava a cosmetização. Eu realmente nunca entendi. Eu olho meus cenários realistas, vejo a roupa deles, vejo as caras... porque não tem nenhum garoto bonitinho, galãzinho, se você pegar o elenco do Cidade de Deus. E eu já fiz muita publicidade na vida, né? Caraca! A última coisa que qualquer cliente meu quer é esse elenco, esse cenário, esse figurino e essa história! Tudo, tudo que a


publicidade mais rejeita é essa estética. Nunca entendi, juro que eu tentei. Eu fiz um debate com a autora dessa crítica, a Ivana Bentes. Ela falou pra caramba, mas não entendi o que ela disse. Parecia um discurso muito teórico... Falei “Tudo bem, entendo o que você tá dizendo, mas cadê? Me mostra! Cadê o figurino que parece publicidade? Me mostra eu vendendo, eu glamourizando. Cadê o glamour aqui?” E ela não me convencia, não. Ela ficava no discurso. Em vez de pegar o filme, ela PUF!, mudava e ia pro discurso teórico. “Não, tudo bem, eu entendi o que você falou, mas agora me mostra, onde é que tá essa ligação disso que você viu com isso que você falou?”. E nunca... mas apanhei bastante. Fernando ainda está sorrindo. FADE OUT.

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FIM DA ENTREVISTA


FOTO RICARDO IANNUZZI

Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. “NO CAMINHO, COM MAIAKOVSKI” EDUARDO ALVES DA COSTA



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I M P L E

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BREVE DEPOIMENTO DA ARQUITETA CRIS XAVIER SOBRE O PROJETO DA 02 FILMES

Vários recortes seriam possíveis para contar um pouco da história do “Projeto O2 Filmes – São Paulo” a pedido da nova e bem vinda Revista Contraste da FAUUSP. Em 1995, recém formada arquiteta, ouvi de Roberto Schwarz um comentário que apenas guardei, sem entender muito: “Arquitetura e Cinema são, das Artes, as mais complexas”. Nunca perguntei o que ele quis dizer exatamente, nem sei se hoje ele diria o mesmo ou se foi uma simples fala em conversa informal. O fato é que me lembrei desse comentário em vários momentos do trabalho de projeto e obra da reforma da O2. Em abril de 2007, Fernando Meirelles me chamou na produtora, que já funcionava bem instalada em um galpão alugado (aproximadamente um quarto da área total atual) e recém comprado junto com outros seis galpões na Vila Leopoldina, formando um total de 7.600 m², uma meia quadra nesse bairro em transformação. Andamos por tudo, bem rapidamente. Sobe, desce, abre porta, fecha porta, olha aqui, olha ali. No fim do passeio, sentado no espaço de pré-produção do filme Ensaio sobre a cegueira onde estavam uma série de fotos interessantes de lugares, cidades, pessoas, imagens de quadros e maquetes de espaços, ele disse: “Simples! Precisamos reformar a produtora e dar um jeito de integrar o

novo espaço dos galpões. Vou te passar uma planta baixa e em cinco minutos você vai entender tudo. Pensa num conceito e vamos nos falando.” Silêncio. Arquiteta pensando: Simples? E agora? Cena: O pessoal trabalhando na preparação daquele filme, incrível e complexo, e, ao lado, aqueles galpões de antigas oficinas e concessionárias totalmente detonados, tudo cimentado, poucas aberturas e pouca luz. Áreas já sendo invadidas, assim mesmo, uma divisória aqui, outra ali, para novos trabalhos, filmes publicitários, testes de elenco, trabalhos de pósprodução, tudo ali, pulsando e pedindo espaços (melhores?). Muita energia e criatividade, e certo receio, expresso por vários, de que, ao crescer, reformar e construir com projeto, perderiam a informalidade criativa, os encontros casuais e decisivos nos corredores. Um arquiteto imporia uma ordem racional e estética? Viria estragar a brincadeira, o trabalho espontâneo e criativo? E agora? O que fazer com esse desejo de rua? Recorri ao texto de Ítalo Calvino, em Cidades Invisíveis, no embalo de Ensaio sobre a cegueira: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos.


Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”. Sendo assim, a meu ver, eles tinham duas alternativas. A primeira: “Vão em frente, sem projeto nem arquiteto, com espaços construídos da noite para o dia. Toca o pau! Libera a ocupação.” A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: “Tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”. Fechamos com a segunda e fomos em frente. Fernando, cineasta, arquiteto de formação e jardineiro (como diz), representando a O2, participou ativamente do processo, bancando a opção. Como Buscapé, em Cidade de Deus, “se correr o bicho pega e se ficar o bicho come”: tratava-se de “abrir espaço”. Para uma produtora de filmes, abrir espaço, em dois sentidos: o primeiro como uma cidade que acolhe, abrindo caminhos, vielas, pátios, ruas, praças, criando espaços de convivência e diversos locais de trabalho. A cidade como

DIAGRAMA DO PROCESSO DE PROJETO E OBRA DE REFORMA DA O2 FILMES (2 0 0 7 A 2 013)

2007

JUL.07 | JUL.08

JUL.08 | JUL.09

levantamento do espaço físico e do programa | estudo preliminar e anteprojeto funcionando como roteiro | divisão em três etapas de obra | definição da construtora e esquema de gerenciamento (O2 arquitetura e engenhAria) e instalação de escritório na obra | reforma de telhados

projetos executivos, obra e jardins da etapa 1 - galpões de elenco, financeiro, áreas externas de estacionamento e calçadas

2008

2009


local de encontro e troca de ideias, de trabalho, lazer, cultura e arte. Muita luz e fluidez, jardins, contemplação e reflexão. No segundo sentido, abrir espaço para novos conteúdos, filmes, séries de TV e longas. Mais entretenimento, cultura e arte. O trabalho de arquitetura se deu passo a passo, em camadas, mantendo as cascas e articulando os galpões de diversos usos com circulações claras e informais. Estruturas e caixas de madeira ocupando os espaços e criando vazios, curingas. A cada camada superposta, na horizontal e na vertical, com aberturas e entradas de luz e jardins, fronteira a fronteira, em plantas e cortes, até chegar às elevações das ruas. Abrir. Se comunicar com a cidade, o bairro: levar e trazer vida, civilidade. Muitos desenhos, croquis, e-mails, reuniões, projetos executivos e complementares. Muitos profissionais em obra, equipe de arquitetura, paisagismo, engenharia, estrutura, ar condicionado, elétrica, telefonia, hidráulica e reuso de água, comunicação visual, iluminação, design têxtil, diversos fornecedores e serviços. E assim foi a história. Uma verdadeira produção de Espaço. Um processo aberto, criativo e transformador. Simples! E complexo, ao mesmo tempo

JUL.09 | DEZ.10

JAN.11.|DEZ.11

JAN.12 | DEZ.12

FEV.13

projetos executivos, obras e jardins da etapa 2 - pós produção (mobiliário produzido nos estúdios de Cotia)

projetos executivos, obras e jardins da etapa 2 - galpão de produção 1 e 2, copa, sala de projeção, recepção, entrada e áreas externas, pátios praças e calçadas

projetos executivos, obras e jardins da etapa 3 - galpão de produção 3, produções executivas, atendimento e diretores

conclusão do processo de projeto e obra da reforma da O2 filmes

2010

2011

2012

2013


estacioestacionamento namento estacionamento

adminisadministrativo trativo administrativo

imóvel imóvelpara para aluguel/ aluguel/ restaurante imóvel para restaurante galpão aluguel/ galpão multiuso restaurante multiuso galpão multiuso estúdios estúdios estúdios camarins camarins elenco camarins elenco

produção produção copa produção copa recepção recepção copa

elenco produção produção sala produção salade de projeção projeção sala de projeção

diretores recepção diretores salas diretores salas de dereunião reunião salas de reunião

PLANTA PLANTATÉRREO TÉRREO PLANTA TÉRREO

póspósprodução produção pósprodução


CORTE AA CORTE AA

CORTE BB CORTE BB

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FOTO JOテグ XAVIER

FOTO PEDRO KOK

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RICARDO GOMYDE

Realizar megaeventos esportivos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos em um país em desenvolvimento, de dimensões continentais como o nosso, é uma tarefa não só dos governos, mas do Brasil como um todo. Temos que encarar nossos desafios como nossas maiores oportunidades. A oportunidade Copa está possibilitando a antecipação do cronograma de obras já previstas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), caso das obras de infraestrutura em transporte e mobilidade, telecomunicações, energia, segurança e defesa, portos e aeroportos. Essas obras, grandes e complexas em muitos casos, estão sendo realizadas não por alguma imposição externa, mas porque são necessárias para melhorar a vida e os serviços para a população das nossas cidades. Nos últimos dez anos, a paisagem das grandes cidades, principalmente, tem se modificado com obras e investimentos importantes. Basta viajar pelo Brasil para comprovar isso. E já há benefícios concretos para a própria economia. Apenas com a construção das seis arenas utilizadas na Copa das Confederações foram gerados 24,5 mil empregos diretos. Até agora foram gerados R$ 100 milhões em novos negócios para as micro e pequenas empresas brasileiras, grandes empregadoras de mão de obra, por causa das obras e serviços gerados pela oportunidade Copa. A Apex-Brasil bateu US$ 1,8 bilhão em negócios durante a Copa das Confederações. A ação, desenvolvida em parceria com 60 entidades setoriais, reuniu 1,4 mil empresários, quase 1 mil deles estrangeiros vindos de 70 países, em agendas de negócios durante a Copa das Confederações, de 15 a 30 de junho. Superou a previsão inicial, que era de US$ 1,1 bi em contratos. A venda de artesanato para turistas brasileiros e estrangeiros atingiu R$ 2,7 milhões durante a Copa das Confederações, de acordo com levantamento do Sebrae. E não podemos esquecer do

assessor especial do ministério dos esportes Avaliando o legado e as funções da Copa 2014 e sua relação com o cenário sociopolítico brasileiro.


legado imaterial. Apenas para citar um exemplo, há 86 mil trabalhadores se qualificando em cursos oferecidos pelo Pronatec Copa em todo o Brasil. Para o governo brasileiro, os megaeventos esportivos (Copa das Confederações da FIFA Brasil 2013, Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014 e Jogos Olímpicos Rio 2016) representam oportunidades para acelerar o desenvolvimento econômico e social, nas cinco regiões do país, e uma chance de antecipar investimentos – que são necessários para modernizar o Brasil –, consolidando legados materiais e imateriais para a população. Os benefícios econômicos têm de servir para promover o desenvolvimento social. Senão, não tem sentido. O Brasil já tem investido, nos últimos anos, para melhorar a infraestrutura em nossas cidades, avançar no desenvolvimento tecnológico e aprimorar os indicadores nos diversos níveis da Educação e da Saúde. O país comemora conquistas importantes nos campos social e econômico. Na última década, 40 milhões de bra sileiros ascenderam para a classe média. E o país se transformou na sexta maior economia do mundo. É claro que precisamos continuar avançando e temos muito trabalho pela frente. O governo também tem investido na promoção do Brasil no exterior para consolidar o país como um dos principais destinos turísticos do mundo. A previsão é receber 600 mil turistas estrangeiros, durante a Copa 2014, que devem viajar pelo país durante o evento. A sociedade brasileira também tem um papel importante, recebendo bem os turistas que vêm de fora. Com a Copa, o Brasil deseja proporcionar uma grande festa de celebração entre diferentes povos e culturas, que tem a paixão pelo futebol como elemento unificador, consolidando nossa imagem de um país democrático, que respeita a diversidade e tem capacidade de realização e de promover inovação e tecnologia.


Este texto trata das “inf luências do espaço na sociedade e no indivíduo”. Ao pensar sobre esse assunto, alguém pode inicialmente se perguntar, com certo espanto, “como o espaço, algo imóvel, fixo, pode ter qualquer inf luência sobre algo dinâmico, como nossas vidas, nossas interações, nossos atos?”1 Dada nossa dificuldade em pensar sobre o espaço, essas perguntas têm seu fundamento. Talvez surpreendentemente, veremos que esse papel, a presença e a inf luência do espaço são realmente amplos: parecem incluir muito do que fazemos e vivemos. O problema é que costumamos pensar sobre o espaço apenas quando sentimos seus “ruídos” – as dificuldades geradas ou encontradas nele, na forma de coisas como a mobilidade, tema que ganhou a atenção da opinião pública. Se pensarmos na ideia de mobilidade um pouco além da “capacidade de movimentação”, veremos que ela

não é apenas um problema de meio de transporte, mas uma forma de presença do espaço em nossas vidas, uma forma de senti-lo em nossas ações, em nossos esforços para fazer coisas e interagir. Temos dificuldades de mobilidade porque nossas cidades apresentam problemas em suas estruturas e em sua própria espacialidade. Nossas cidades têm sistemas viários com os piores níveis de acessibilidade do mundo.2 No momento em que sentimos menos ou mais mobilidade, estamos nos confrontando com o espaço a nossa volta, e exercitando nossa capacidade de vencer a distância, a extensão, a fricção que ele impõe sobre nós. Nesse momento, sentimos a “aderência inevitável entre nossos atos corporais e o espaço”. Sentimos os efeitos do espaço o tempo todo no esforço do corpo, mas mesmo quando o espaço impõe dificuldades a nossas práticas, ainda não conseguimos reconhecê-lo pelo que é. Não conseguimos pensar no espaço a nossa volta e no que ele pode ter a ver com problemas como baixa mobilidade, falta de diversidade de atividades, ou a insegurança que sentimos. Parte do problema começa com nossa própria linguagem. Temos poucas pala1

Essa pergunta ecoa aquela feita por Hillier, B. (1996) Space is the Machine. Cambridge: University Press.

2

Veja Medeiros, V.; Holanda, F. (2008) “A configuração espacial como estratégia para o planejamento urbano”. 5º

Congresso Luso-Moçambicano de Engenharia. Anais eletrônicos.


vras para falar do espaço ou trazer à tona todas suas propriedades relacionais e seus efeitos sobre nós. David Harvey nos alertou ainda nos anos 1970 sobre nosso vocabulário limitado. 3 Muitos esforços têm sido feitos nessas últimas décadas no sentido de gerar linguagens e vocabulários capazes de evidenciar qual o papel do espaço para a vida social e humana, e para esclarecer, afinal, o que é o “espaço do social” e da experiência individual. Essas são áreas de estudo jovens, com muito ainda a ser construído, e todos os esforços são bem-vindos. Visitemos algumas das ligações entre indivíduo, sociedade e espaço mais marcantes. A influência do espaço na prática social, desde a origem das cidades A impressão de um papel do espaço ativo na prática estaria presente já na noção de Aristóteles de synoikismos – uma reunião de fragmentos (“oikos”, lar ou habitação, termo que levou a “economia”; o prefixo “syn”, juntos; e o sufixo “mos”, emergir) – que tratam das condições que emergem de habitar conjuntamente em um lugar, os processos de formação espacial, social e política da polis, envolvendo a criação da sociedade civil e dos conceitos de cidadania e democracia, identidade e criatividade, as fundações da civilização baseada e gerada na cidade.4

Mas a influência do espaço (como extensão) se tornou o objeto explícito de interesse com o nascimento das disciplinas da economia e geografia, e o trabalho de Von Thünen em 1826 sobre a localização da atividade agricultural em relação a um centro urbano, e de Alfred Weber em 1909 sobre a localização da atividade industrial em relação aos trabalhadores, outras firmas, ao mercado e aos custos de transporte. Os efeitos do espaço enquanto “acessibilidade” sobre o desenvolvimento urbano (incluindo a localização residencial e comercial) já eram estabelecidos na época de Hansen, em 1959. 5 Muitas explicações da influência do espaço sobre a sociedade tem de fato sido trazidas pela economia espacial – mais especificamente, sobre a espinha dorsal de qualquer sociedade, urbana ou não urbana: sua reprodução material. Na verdade, o que marca o nascimento da cidade foi a demanda por proximidade de sociedades que incluem 3

Harvey, D. (1973) Social Justice and the City . Baltimore: John Hopkins University Press.; uma observação feita

também por Hillier, B.; Hanson, J. (1984) The Social Logic of Space. Cambridge: University Press, e por Forty, A. (2000) Words and Buildings: A Vocabulary of Modern Architecture. New York: Thames & Hudson. 4

Veja Soja, E. “Writing the city spatiality”, City, Vol.7, No. 3.

5

Weber, A. (1909) Theory of the Location of Industries. Chigago: University of Chicago Press; Hansen, W.G. (1959)

“How acessibility shapes land use.” Journal of the American Institute of Planners . v. 25, Issue 2.


indivíduos se especializando em certas atividades. A especialização aumenta a dependência mútua, demanda e intensifica a troca entre indivíduos. A especialização crescente demanda mais e mais da proximidade e dos espaços densos e acessíveis da troca. Culturas distintas chegaram a cidades como uma nova disposição do espaço construído, aproximando edificações, colocando-as em sequências e anéis na forma de quarteirões cercados por canais de acessos (as ruas) que hoje chamamos redes viárias. A densificação e compactação que caracterizam a espacialidade da cidade, entremeada por canais – diferente de outras soluções, como os espaços rurais e os diversos tipos de aldeias – liberta, intensifica e diversifica a troca. (Lembro do velho ditado medieval, Stadtluft macht frei – “o ar da cidade liberta”). A própria forma do espaço urbano não permite facilmente o pleno controle da cidade: a rede de ruas é uma fantástica criação, capaz de exponenciar possibilidades de acesso entre lugares. A rede de ruas foi inventada para permitir e potencializar a interação, que mantém uma sociedade de atores autônomos e cooperativos – e essas duas coisas não estão em contradição. Hoje a forma urbana é reconhecida em seus efeitos sobre a ação. Outro aspecto do espaço (urbano), a aglomeração, traz um sem-número de efeitos positivos: dos efeitos de localização e escala na produção (a partir de Marshall, em 1920) aos efeitos da urbanização e da diversidade das atividades (as “economias Jacobs”, em homenagem à teórica

Jane Jacobs) como estímulos à interação, aos efeitos da aglomeração sobre a competição por mercados.6 Jacobs trouxe insights sobre a influência de fatores como a densidade, diversidade de atividades e de idades dos edifícios, e o tamanho das quadras sobre vitalidade urbana. Muitos desses insights encontraram evidências empíricas.7 Jacobs ainda 6

Veja Jacobs, J. (1969) The Economy of Cities. New York: Vintage.

7

Glaeser et al. (1992), Henderson et al. (2001), Rosenthal e Strange (2004) e Nakamura (2008) encontram sinais das

externalidades Jacobs [Glaeser, E.; Kallal, H.; Scheinkman; Shleifer, A. (1992) Growth in cities, Journal of Political Economy , 100, p. 1126-1152; Henderson, J. V.; Shalizi, Z.; Venables, A.J. (2001) “Geography and development.” Journal of Economic Geography , n. 1, p. 81-105; Rosenthal, S.; Strange, W. (2004) “Evidence on the nature and sources of agglomeration economies.” In: Henderson, J.V.; Thisse J.-F. (Org). Handbook of Urban and Regional Economics. New York: North Holland, n. 4, p. 2.119-2.171; Nakamura, R. (2008) “Changes in Agglomeration Economies and Linkage Externalities for Japanese Urban Manufacturing Industries: 1990 and 2000.” RIETI Discussion paper]. Schmidt (1977) encontra a densidade como um fator significativo afetando o sucesso de vizinhanças. Weicher (1973) encontra correlações positivas entre tamanho do quarteirão e queda da diversidade. Correlações entre diversidade e “falhas de vizinhança” e taxas de doença e crime foram encontradas em Chicago e Denver, por Weicher e Schmidt, respectivamente, contrariando a teoria jacobiana [Schmidt, C. G. (1977) “Influence of land use diversity upon neighborhood sucess: an analysis of Jacobs’ theory”. The Annals of Regional Science, Volume 11, Issue 1, pp 53-65; Weicher, J. C. (1973), “A Test of Jane Jacob’s Theory of Successful Neighborhoods,” Journal of Regional Science, Vol. 13, No. 1, pp. 29-40].


denunciou os efeitos negativos do urbanismo moderno, obcecado por ordem, “disciplinando” cidades e bairros em sistemas cartesianos, e a complexidade da diversidade de atividades (cuja mistura significavam uma forma profunda de ordem: a da complementaridade e da imprevisibilidade das trocas) em controle das zonas monofuncionais, confundindo ordem com a aparência de ordem.8 Estudos em cidades chinesas sobre impactos sociais e ambientais da compactação urbana sugerem que a densidade populacional até 168 habitantes/ha contribui para aumentar acesso a serviços, reduz consumo doméstico de energia, e a eficiência da infraestrutura e do transporte (em menor grau). Densidades mais altas sem infraestrutura

pode ter impactos negativos sobre o tráfego, a poluição, ruído, habitabilidade e perda de áreas verdes.9 Correlações positivas entre as “densidades Jacobs” – na forma de edificações horizontalizadas –, a imigração de profissionais atuando em áreas de criação (artes, design, mídia e entretenimento), atração de profissionais com pós-graduação e crescimento econômico foram encontradas pelos economistas Gordon e Ikeda. As densidades Jacobs, voltadas à escala do pedestre, estimulam o contato potencial informal no espaço público. Relações causais entre densidade e distâncias intraurbanas (assim como infraestruturas para a mobilidade e a comunicação) e a intensidade de interação em redes, a criatividade (medida por inovações em patentes registradas) e produção econômica foram publicadas há pouco tempo pelo físico Luís Bettencourt, em um exame de dados de milhares de cidades em todo o mundo.10 8

Veja Jacobs, J. (2000) Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes [1961].

9

Chen, H.; Jia, B. e Lau, S. (2008) “Sustainable urban form for Chinese compact cities: challenges of a rapid

urbanized economy.” Habitat International , 32, p. 28-40]. 10 Gordon, P.; Ikeda, S. (2011) “Does density matter?” In: Andersson, D.; Andersson, A.; Mellander, C. (Org.) Handbook of Creative Cities. [S.l.] Edward Elgar Pub; Bettencourt, L. (2013) “The origins of scaling in cities”. Science, Vol.340].


A moldagem do espaço urbano na forma de acessibilidades vai mais longe. A configuração da malha – o desenho da rede de ruas – influencia ainda nossos encontros. A teoria de Hillier e Hanson e centenas de estudos empíricos que a seguiram nos mostram o quanto ela molda encontros. Mais que isso, a teoria propõe que a copresença está no coração da sociedade como “sistemas de encontro”. Nossas interações são baseadas em diferenças entre atores, e em semelhanças (dois princípios de coesão social chamados solidariedades “orgânica” e “mecânica”, uma ideia de Durkheim). Essas interações são baseadas respectivamente no estímulo ou no controle do encontro entre estranhos. E espaços urbanos seriam produzidos para esse fim: desde os espaços mais acessíveis da troca material quanto naqueles mais locais que expressam vidas comunitárias e laços entre semelhantes.11 A relação entre sociedade e espaço ainda ganhou explicações de uma “homologia” entre ambas, encontrada por sociólogos da Escola de Chicago, a partir dos anos 1920,12 e avançada pela recepção do Marxismo na geografia: uma estrutura social na forma de classes que produz e se reproduz a partir de estruturas espaciais – relações entre centros e periferias em diferentes escalas – daquela entre países àquelas internas em nossas cidades. Mandel levou a analogia para a escala das periferias globais, mas foi David Harvey quem fez a virada da geografia humana para a crítica marxista, trazendo

contribuições como o papel do espaço e da localização residencial na geração de renda das famílias, um item de justiça social; a produção do espaço urbano como uma forma de reprodução de processos e contradições sociais, e a possibilidade de superação dessas contradições através do espaço, na sobrevivência do capitalismo. O filósofo Henri Lefebvre inspirou essa virada, reunindo o materialismo histórico de Marx e a ideia 11 Hillier e Hanson (1984). 12 Veja os trabalhos da Escola de Chicago, como de Burgess, E.W. (1928) “Residential Segregation in American Cities.” Annals of the American Academy of Political and Social Science , v. 140, p. 105-115.


(weberiana) da racionalização da experiência por meio da colonização do espaço, e do primado do corpo e do espaço percebido e vivido na integração de uma realidade social contraditória.13 Nas amplas relações entre sociedade, pessoas e espaços, tivemos nos anos 1980 o sociólogo Anthony Giddens falando do espaço e sua importância em sistemas de interação – agora de modo menos estrutural, apontando o papel da ‘canalização da ação humana” no espaço-tempo, como parte da constante estruturação da prática.14 Aprendemos com essas abordagens que a influência do espaço se estende da escala regional, que dá origem às cidades, atravessa as heterogeneidades reconhecíveis nas

estruturas no espaço intraurbano, e chega até a morfologia arquitetônica. Essas tensões seguem inerentes à espacialidade imediata ao ator e envolvem a corporeidade de seus atos na escala local de nossas práticas, nas relações entre edificações e entre elas e o espaço público. A aderência entre ato e espaço e o papel da arquitetura Vejamos mais de perto essa presença do espaço e da arquitetura como lugar da ação e interação. Podemos dizer que ela é sentida na forma de tensões, o inverso da fricção da distância, do impacto da extensão do espaço e da distância entre lugares. Estudos em cidades brasileiras têm tentado capturar os “efeitos sociais da arquitetura” – os impactos de diferentes tipos de edificação sobre seus entornos. Em contextos urbanos onde propriedades como a acessibilidade e a densidade sejam iguais ou suficientemente similares, o tipo contínuo responderia mais adequadamente à vida social e microeconômica na escala local, ao relacionar-se mais diretamente aos 13 Veja Mandel, E. (1975) Late Capitalism. London: Verso; Harvey (1973; [1982] The Limits to Capital. Baltimore: John Hopkins University Press); Lefebvre, H. (1991) The Production of Space . Oxford: Blackwell [1974]. 14 Giddens, A. (1984) The Constituition of Society: Outline of the Theory of Structuration. Cambridge: Polity Press.


espaços públicos e permitir uma relação mais intensa entre atividades e pedestres, por meio de suas fachadas contíguas. Essa hipótese também aponta para a possibilidade de que o tipo isolado teria efeitos opostos ao tipo contínuo, variando como função do quão largos são os afastamentos do edifício dos limites do seu lote, e as distâncias entre ele e seus edifícios vizinhos e à faixa pedestre. Esses fatores afetariam os níveis de movimento pedestre e trariam dificuldades a atividades comerciais, com efeitos potenciais de larga escala quanto ao desempenho urbano, como o aumento da dependência veicular. Quanto mais o tipo isolado for dominante em uma área urbana, menos pedestres e atividades comerciais.15

As correlações que encontramos em cidades brasileiras mostraram que densidades, lotes abertos, a densidade de janelas e portas, o tipo contínuo e a proximidade de fachadas entre si e com a rua aparecem com papel claramente positivo sobre a presença de pessoas no espaço público, o movimento pedestre, a presença de comércios e serviços, diversidade de atividades e a vida microeconômica local. Muros, uso residencial exclusivo, afastamentos lateral e frontal e o tipo isolado aparecem com impactos marcadamente negativos. Gravemente, o estudo empírico nos mostra que os dois tipos arquitetônicos mais presentes em nossas cidades aparecem associados de modo inverso com a vitalidade de nossas cidades. Apontam os efeitos negativos da arquitetura hoje fixada no mercado sobre o uso do espaço público, esvaziando ruas, induzindo o uso do veículo privado, com implicações sistêmicas como aumento de tráfego, poluição, queda de desempenho urbano e da segurança pública. Esses achados permitem que se possa avançar também em uma teoria probabilística dos efeitos sociais da arquitetura. O fato de que, entre todas essas complexidades, encontramos relações consistentes é surpreendente – fortes traços da existência de 15 Veja Netto, V.M.; Vargas, J.C.; Saboya, R.T. (2012) “(Buscando) Os efeitos sociais da morfologia arquitetônica” Urbe – Revista Brasileira de Gestão Urbana , v. 4, n. 2.


relações entre sociedade e espaço operando já na escala do edifício e seu entorno. Parece haver uma tensão muito sutil e frágil aqui: uma tensão socioespacial manifesta entre corpo e arquitetura.16 Mas a influência do espaço não termina em seus efeitos sobre nossa apropriação, nossa condição de acessar situações sociais, ou usar o espaço público para gerarmos copresença e encontros. A influência do espaço na comunicação: o espaço como conexão dos nossos atos Nossas interações não se limitam à copresença: elas são profundamente informacionais, e se viabilizam por meio de trocas comunicativas, mediadas por símbolos. E mesmo essa dimensão da interação tem a mediação do espaço. O espaço, tanto em sua fisicalidade quanto em seus significados (entendidos como “traços de informação e conteúdos” que nele produzimos nos lugares) conectam nossos atos. Esse papel do espaço como conexão dos atos se inicia já no momento da situação social no lugar. Relacionamo-nos a lugares e a edificações como contextos para nossa comunicação e para nossa atuação conjunta, dentro das suas bordas. Ato individual

lugar [contexto]

atos associados via comunicação no lugar

No momento da interação, o lugar instala condições para nosso entendimento mútuo: (i) cruzar as bordas do lugar é um estímulo para a atenção a um novo contexto e situação social, estabelecendo novos códigos de interação e expectativas mútuas de comportamento. (ii) O espaço passa a ter, assim, efeitos sobre a fluidez da interação, reduzindo a necessidade de definir ou redefinir um contexto em comum. Esse papel contextual do espaço implica a redução dos riscos de ruídos na comunicação. (iii) Assim, ao amparar as interpretações dos significados trocados na comunicação, os significados dos espaços da arquitetura tornam-se recursos ativos nas nossas interações. Atos comunicativos passam a envolver a dimensão semântica do espaço tanto quanto sua dimensão sensorial. (iv) O espaço pode, assim, tornar-se parte ativa dos desdobramentos dos atos individuais em tramas de associações no interior da arquitetura ou no lugar. Mas essas tramas não se limitam ao lugar. Como atores, ainda acessamos e nos apropriamos de espaços urbanos como modo de associar nossos atos a atos realizados e a seus resultados também em outros lugares e tempos.

16 Veja o livro de Vinicius M. Netto “Cidade e Sociedade: As Tramas da Prática e seus Espaços”.


Ato individual

lugar

ligações a outros atos e atores, lugares e tempos

Os espaços da cidade conectam os atos de diferentes atores e, assim, têm um papel fundamental na combinação dos nossos atos individuais em complexos de atos. Essas tramas de atos são mediadas por “fios” de significados compartilhados entre atos e espaços – como referências mútuas entre ambos. Temos a produção de sistemas de atos, só visíveis a nossa volta, que dependem do espaço urbano para serem produzidos. A importância da presença do espaço nas interações cotidianas não pode ser minimizado: trata-se da instância da reprodução de uma sociedade. O espaço e a cidade assumem um papel prático e cognitivo central na relação entre atores e na estruturação do mundo social – um papel tão importante quanto o da linguagem. O espaço ainda media nossa experiência do mundo e do outro. É um sistema mnemônico, comunicativo que permite que colemos atos passados aos presentes, gera o contato com alteridades (aqueles diferentes de nós), e nos leva a transcender tais diferenças momentaneamente na experiência da urbanidade – assim como pode limitar tal experiência na forma de segregação, limitando nosso conhecimento do mundo social

Uma nova esfera pública? Os entrelaces das redes digital e urbana Como as novas tecnologias da informação e da comunicação afetam a centralidade do espaço na mediação das nossas práticas e interações? Quando a internet se popularizou nos anos 1990, chegou-se a temer o fim das cidades. Saskia Sassen e outros, no entanto, mostraram que as cidades seguem imprescindíveis mesmo em uma “sociedade em rede”: a boa e velha copresença e o encontro seguem centrais mesmo em uma economia obcecada pela inovação e tecnologias de comunicação à distância. E com eles, o espaço e a cidade seguem centrais. Não temos uma relação de exclusão mútua entre espaços concretos e redes digitais e da comunicação móvel. Temos, antes, bifurcações e entrelaces entre práticas desdobradas em ambas as formas de interação – presencial e à distância.17 As manifestações políticas recentes são excelentes exemplos de como as interações nas redes digitais não dissolveram nossa capacidade de interagir no espaço concreto das cidades, nem o papel da cidade como meio-chave da vida social. As trocas eletrônicas permitem um grau de comunicação nunca antes visto – uma comunicação entre pares, horizontal, não mediada. Longe da pseudo-comunicação da grande 17 Sassen, S. (2001) The Global City. 2 ed. Princeton: University Press [1991].


imprensa e de outras estruturas políticas típicas da modernidade, como os partidos. A comunicação demanda troca, não um fluxo unidirecional, vindo de cima para baixo, de um grupo de pessoas especializadas e suas instituições. A comunicação entre iguais, aberta pelo twitter e facebook, permite que informações se espalhem com imensa velocidade e eficiência, capilarizando-se rapidamente no mundo social, sem controle e com censura dificultada, com capacidade de mobilizar ações. É uma forma de comunicação perfeitamente adequada para a coordenação de ações de coletivos no espaço concreto. Essa nova comunicabilidade nos leva a um potencial enorme para cooperar. A comunicabilidade aumentada dentro e entre grupos nos torna mais capazes de lidar e criar informação, agregações, novos grupos, ideias, propostas que precisam do velho espaço da cidade para se materializar.

ILUSTRAÇÕES MATHEWS VICHR

O lugar do espaço na reprodução da sociedade Vimos um pouco da enorme presença do espaço em nossas vidas e experiências. Essa presença, no entanto, não é facilmente visível. O espaço lembra o que Wittgenstein falava ad linguagem: algo tão presente “que não podemos tocá-lo”.

A natureza física do espaço não pode ser ignorada, mas moldada para que nossa ação conjunta possa emergir. A extensão e a rigidez podem ser superadas na forma de estruturas espaciais de acesso entre formas construídas moldadas para aproximar e permitir nossa ação conjunta. Cidades são meios de dobrar a extensão do espaço em estruturas que ampliam a fluidez da interação. O moldar do espaço na forma urbana adiciona novas possibilidades aos atores, que podem então ampliar suas possibilidades de interação. O espaço urbano permite alargar as possibilidades da prática e gerar diversidade na relação entre ações – uma relação baseada em efeitos causais, mas que abraça também o imprevisível e o contingencial. Essa mistura de estrutura e caos é, na verdade, a essência da relação entre espaço, cidade e sociedade

Vinicius de moraes netto é professor adjunto da escol a de arquitetura e urbanismo da uff. seu livro Cidade e Sociedade: As Tramas da Prática e seus Espaços está disponível nas livrarias, publicado pel a Editora Sulina.



arte que te abriga arte que te habita arte que te falta arte que te imita arte que te modela arte que te medita arte que te mora arte que te mura arte que te todo arte que te parte arte que te torto ARTE QUE TE TURA paulo leminski


CARLOS DRUMMOND poeta

Avaliando o legado e as funções da Copa 2014 e sua relação com o cenário sociopolítico brasileiro.

f oi-se a copa? não f a z m al. adeus chu t es e sis t emas. a gen t e pode, af in al, cuidar de nossos pr oblemas. f alt ou in fl ação de po n t os? per dur a a infl ação de fato. deixaremos de ser tontos se chutar mos no alvo exato. o povo, nou t r o t or neio, h av endo t en acid ade, ganhar á, r ijo, e de cheio, a copa da liber dade.


ILUSTRAÇÃO JÚLIA CONTREIRAS

CORDAS, AMARRAS E ESCARAS Marilia Reis

é aluna de arquitetura na FAUUSP


Conviver com o enjôo, 24 horas por dia, acostumar-se às náuseas, perder a vontade de ingerir qualquer coisa que te preencha o vazio do estômago, que forneça material pro corpo já exausto. Acostumar-se ao barulho constante, e não só; habituar-se à vibração maior do que o normal do corpo, justamente por causa do som tão alto de caminhões, de televisões, de motos, buzinas, propaganda, medo, pressa, o cara tá pedindo dinheiro, o outro quer uma ajudinha pra essa associação que salva os drogados “desse inferno”. E o meu inferno? Ninguém vai me ajudar com meu inferno construído de ponto em ponto, terminal bandeira, terminal dom pedro, terminal santo amaro, terminal. Perdoar as cicatrizes, todas, tantas, muitas... porque você vai afogar sua crueldade, tem que ser piedoso, porque é assim, porque diz na bíblia, porque os astrólogos da revista disseram, porque todo mundo gosta de bonzinho, porque o RH da empresa aprova. Mas ninguém te salva do teu inferno. Esquecer-se das cores, existem tantas e me alegram infinitamente, mas esquecer-se delas, porque a sobriedade se impõe, você tem que se vestir de acordo com a sua idade e ficar de luto esperando a morte chegar com 50 anos, porque bom mesmo é ser criança e a vida exige muito da gente, o trabalho estressa, tem que pagar as contas antes do dia de vencimento e pretinho básico vai com tudo. Desejar se libertar (de quê?), reclamar do dia que tá nublado, porque tá sempre nublado e nessa merda de cidade agora só chove e tem enchente mas eu não ligo porque minha casa fica no alto e tem cerca elétrica, mas eu ligo porque fico no trânsito e eu só quero chegar em casa e ligar a TV, e a cidade continua aumentando a vibração do meu próprio corpo porque tem muito barulho, tem muita sujeira, tem poeira, e a poeira entra nos olhos; não sei se não vejo o pôr do sol por causa dela ou se é só por causa das nuvens mesmo, que insistem e não vão embora. Há uma menina na rua. Segura o guarda-chuva ainda meio molhado, meio fechado, balançando-o numa cadência engraçada, acho que ela está dançando. Mexe a boca, talvez esteja cantando. Aquela garotinha de tantas cores na roupa e nos olhos cria a própria música do seu mundo, não se importa com a Paulista, com as buzinas de motoboy, com a ambulância que fica entalada no meio dos carros e entalado junto fica seu barulho ensurdecedor, com os olhares anônimos de pelos menos 20 estranhos, com a demora de mais de uma hora, o ônibus tá atrasadíssimo, meu deus, ela não se importa que seu pés estejam meio molhados ou que as pessoas estão com as mãos sujas, é tão engraçado... ela canta, e está feliz.


PLANO DIRETOR ESTRATÉGICO Este ano foi aberta a polêmica revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, aprovado em 2002 (Lei 13.430/02). A discussão coloca lado a lado propostas políticas e agentes do espaço urbano. medindo forças na definição do planejamento da cidade estão o governo, arquitetos e urbanistas, o mercado imobiliário, a sociedade civil, movimentos sociais, entre outros. A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SDMU) é a responsável pela condução das quatro etapas do trabalho de revisão participativa dos instrumentos de planejamento urbano: Avaliação Temática Participativa; Oficinas Públicas para Levantamento de Propostas e Contribuições; Sistematização das Propostas e Contribuições Recebidas; Devolutiva e Discussões Públicas da Minuta do Projeto de Lei. sempre prevendo uma participação democrática da sociedade. é oportuna a discussão em diversas frentes: O significado do planejar, as escalas, a gestão de uma cidade, a situação real da metrópole, os projetos políticos por trás dos instrumentos, as disputas entre os agentes, os jogos de poder envolvidos, as apropriações do espaço pelo mercado e também pelas próprias pessoas. neste cenário, buscamos expôr posicionamentos para o enriquecimento do debate.


ilustraçĂ•es pedro adati


por um novo modelo de desenvolvimento urbano em são paulo na revisão do plano diretor

nabil bonduki

professor titular de planejamento urbano na FAUUSP e vereador de São Paulo. Foi o autor do texto aprovado no Plano Diretor Estratégico de São Paulo.

A revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) é uma grande oportunidade para propor novos paradigmas na perspectiva de reverter o modelo insustentável de desenvolvimento urbano de São Paulo, apontando para mudanças necessárias nas cidades brasileiras. A mobilidade, questão central das manifestações de junho, sintetiza inúmeras questões urbanas resultantes do atual modelo. Para além da tarifa, que catalisou a insatisfação popular, a falência da mobilidade em São Paulo é resultado, entre outras coisas, da prioridade ao automóvel; da segregação social que afasta os mais pobres para regiões distantes dos seus empregos; da desigualdade no território, que gera regiões muito bem servidas de infraestrutura, serviços e empregos e outras desprovidas; da reduzida contrapartida oferecida pela ocupação intensa do solo; da especialização do espaço, que gera especulação imobiliária e zonas de grande concentração de empregos e restrição ao uso residencial; da ocupação irregular das áreas de proteção ambiental e a abertura de condomínios fechados no periurbano, que vem estendendo exageradamente os limites da mancha urbana. Essas questões foram enfrentadas no PDE, que relatei na Câmara Municipal em 2002, mas a sua implementação foi interrompida durante os oito anos da administração Serra/Kassab, comprometendo os resultados. Parte significativa do PDE continua válida e deve ser mantida. No entanto, é necessário garantir a aplicação de instrumentos urbanísticos e criar mecanismos para que as ações para alcançar os objetivos sejam


impositivas. Além disso, precisamos incluir temas que ganharam relevância nesses dez anos de vigência da lei: a redução das emissões de carbono, a implementação da política nacional de resíduos sólidos, e a valorização da rede cicloviária e da acessibilidade universal. Algumas intervenções fundamentais precisam ser detalhadas e aprofundadas: radicalizar a aplicação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) para garantir uma massiva produção de habitação social nas áreas melhor urbanizadas; focar o uso dos recursos gerados pela outorga onerosa e operações urbanas na redução das desigualdades socioterritoriais; construir novos equipamentos nos distritos mais carentes; evitar as megaobras, que sugam os investidos públicos e geram uma supervalorização do solo, que gera expulsão e segregação social; reservar o espaço viário prioritariamente para o transporte coletivo e modos não motorizados, como andar a pé, em calçadas adequadas, ou de bicicleta; criar condições de convivência entre as atividades residenciais e não residenciais em uma cidade que precisa ser produtiva e humana; considerar cada vez mais os aspectos ambientais como drenagem, áreas verdes, fundos de vales, para garantir melhor qualidade de vida. É essencial, também atenção especial às intervenções urbanas que estão em curso na cidade, com recursos públicos dos três níveis de governo, para avaliar se são coerentes com o modelo de cidade que deve ser contemplada com a revisão do PDE. E tão ou mais importante do que um excelente Plano Diretor é a sua implementação e a gestão da cidade


Um dos sempre presentes desafios para o planejamento em São Paulo: acesso à terra urbanizada

paula freire santoro

ARQUiteta urbanista e professora da faculdade de arquitetura e urbanismo da Usp. é Assistente Técnica do Ministério Público do Estado de São Paulo nos temas Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente.

Atualmente está em revisão o Plano Diretor de São Paulo. Este texto foi escrito poucos dias antes da apresentação de uma primeira versão de sua minuta de Projeto de Lei (19 a 22 de agosto de 2013). O atual em vigor, Plano Diretor Estratégico – PDE, data de 2002 (Lei n. 13.430, de 13 de setembro de 2002) está associado à Lei de Uso e Ocupação do Solo – LUOS de 2004 (Lei n. 13.885, de 25 de agosto de 2004). Sua organização é um pouco diferente do Plano anterior, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, que datava de 1971 (Lei n. 7.688, de 30 de dezembro de 1971) e também foi seguido de uma Lei Geral de Zoneamento, a Lei 7.805 de 1972, abrangendo todo o território municipal. Esta última lei organizou a cidade em oito zonas de uso, com aproveitamento e ocupação do solo associados a estas. Passados anos, este foi muito modificado, chegando a ter mais de 33 zonas de uso em 1986 (Nery Jr., 2003) e diversas alterações em lei. Grandes teses reafirmam o lugar deste primeiro instrumento, o zoneamento, como sendo o instrumento que permitiu a manutenção das garantias e a proteção da propriedade das elites (Villaça, 2010; entre outros). A literatura dos anos 1980 faz uma leitura crítica do instrumento a partir do resultado da ocupação das cidades, principalmente metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, nas quais havia uma forte segregação socioterritorial e desigualdade de acesso ao solo urbanizado como elemento estrutural de um modelo de desenvolvimento urbano concentrador e excludente (Kowarick, 1980; Maricato, 1996). O zoneamento, principal regulação urbanística, incidia fortemente para a manutenção destes padrões (Rolnik, 1997; Nery Jr., 2003). Aconteceram algumas tentativas frustradas de modificação deste Plano Diretor e muitas modificações do zoneamento da cidade, mas será nos anos 2000 quando serão modificados mais integralmente. O PDE de 2002 e o Zoneamento de 2004 possuem, além de macrozonas - uma inovação importante - e zonas, assim como o anterior, além de zonas especiais. Há quem tenha descrédito em relação às Macrozonas. No entanto, a forma como foram conce-


bidas em São Paulo associou instrumentos de política urbana e um certo grau de cumprimento da função social da propriedade a cada uma delas, associado não apenas aos instrumentos que pressionam pela utilização da propriedade vazia ou subutilizada, mas a uma porcentagem mínima de ocupação de 0,2 vezes a área do terreno na Macrozona de estruturação e qualificação urbana. Em todas as zonas criadas, o controle da ocupação seria dado através da avaliação da capacidade de suporte da infraestrutura instalada, traduzido através do estabelecimento de uma densidade máxima de construção passível de ser atingida, traduzida para o coeficiente de aproveitamento máximo, não apenas para as zonas mistas, mas aplicado a todo o território. A avaliação do PDE apresentada nas recentes oficinas de debate sobre a revisão do Plano (final de abril, início de maio de 2013) afirmou que isso não se deu na prática, como por exemplo, em relação à água e esgoto, uma vez que estas não foram dimensionadas previamente ao estabelecimento dos coeficientes. Mas é certamente na saturação das vias onde esta variável foi mais sentida. No caso das zonas mistas, o uso, aproveitamento e ocupação do solo estão regrados no PDE por outros instrumentos centrais além da capacidade de suporte: 1. O controle através de parâmetros de incomodidades provocadas pelas atividades, sintetizadas em emissão de ruído, horário para carga e descarga, vibração, emissão de radiação, de odores, gases, vapores e material particulado, fumaça1. Vários destes, de difícil controle e, principalmente, cujo controle é desacreditado pela população, que não imagina que, exercendo sua cidadania, irá conseguir dormir bem vivendo próximo a um bar noturno, ou a uma igreja, para ficar em dois exemplos clássicos do controle por incomodidades. 2. O controle de uso e ocupação do solo através da função e característica das vias, traduzida em uma hierarquização de vias, onde usos mais geradores de tráfego somente poderiam ser instalados em vias mais importantes, geralmente mais largas e com maior capacidade de escoamento. Estas foram dividi-

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Quadro 02C e Quadro

02E anexos à Parte III da Lei nº 13.885/ 2004.


das em vias estruturais N1, N2 e N3; coletoras; e locais (LUOS, art. 145). A avaliação do PDE mostrou que, na periferia, por exemplo, onde predominam vias locais, não foi possível instalar usos de serviço ou mesmo equipamentos, como creches. No entanto, não explicitou as motivações pelas quais as vias não foram sendo reclassificadas, ao longo dos anos de implementação do plano e do zoneamento. Adicionalmente, o Estudo de Impacto de Vizinhança pode ser um instrumento que irá avaliar e propor ações de mitigação e compensação pela implementação de grandes construções em zonas mistas. Mas em São Paulo este não está regulamentado2 . Embora esta decisão do controle face à capacidade de suporte instalada ref lita uma opção técnica, Villaça já sinalizava para o fato de que houve uma decisão política, antes mesmo da opção técnica na definição das zonas adensáveis. Segundo o autor, “a decisão de correlacionar o zoneamento com a capacidade de infraestrutura e de definir as zonas adensáveis foi uma decisão política que não decorreu do diagnóstico técnico. Inúmeras pesquisas foram feitas, nesse particular, para delimitar as zonas adensáveis e não-adensáveis, mas para aplicar a decisão política e não para chegar a ela” (Villaça, 2010, p. 244). Esta opção por si só já valeria um artigo, como bem o fez Villaça, mas aqui apenas gostaria de sinalizar que uma direção foi tomada: uma opção pelo controle do adensamento construtivo, não necessariamente associado ao adensamento populacional e o resultado obtido com o aquecimento do mercado imobiliário tem sido um direcionamento do debate para os impactos, principalmente no sistema viário, deste adensamento sem pessoas, mas com carros. Não se avançou em uma proposta técnica que evitasse o adensamento com baixa densidade populacional, com exceção da opção pelas ZEIS, como argumentarei mais para a frente neste texto. Este direcionamento do debate para evitar o adensamento construtivo, sem compreendê-lo, estimula propostas para o Plano Diretor que vão na direção do engessamento da cidade. Uma delas têm aparecido frequentemente: a tentativa de utilização dos instrumentos do patrimônio histórico e cultural como substituição do zoneamento, engessando os parâmetros atuais para evitar este adensamento (ou será uma troca de instrumento para a manutenção do padrão elitista, Villaça?). E novamente, se esquece que estas decisões têm ref lexos na produção de Habitação de Interesse Social para as faixas de renda que mais necessitam. Proponho aqui que atentemos para, ao menos neste texto, compreender o papel

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Sobre esta observação

vale escrever outro artigo, uma vez que há um Projeto de Lei atualmente em debate na Câmara de Vereadores procurando regulamentar este tema.


Acesso à terra e à moradia: ZEIS e a cota solidariedade

que as normas urbanísticas têm e podem ter em relação à garantia do direito à moradia e à cidade para estes grupos. Traduzido pelo desafio de tornar acessível “terras urbanas para a produção de habitação de interesse social nas áreas centrais e locais adequados, com boa oferta de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas” (documentos que trataram da avaliação do PDE, abr/mai 2013), a preocupação no âmbito do PDE de 2002 parecia ser de que a agenda mais urgente era a de se ter uma política pública que garantisse o repovoamento do Centro, orientando a produção do mercado imobiliário para que produzisse um real adensamento populacional (incrível como a agenda permanece, 11 anos depois!). Se no momento da concepção do PDE a pauta era a garantia da demarcação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), agora se discute o uso de apenas este instrumento do zoneamento para esta garantia, ampliando e trazendo novas possibilidades de oferta de terra e unidades de habitação de interesse social. O instrumento das ZEIS foi formulado no âmbito da luta dos movimentos de moradia e dos assentamentos irregulares pelo reconhecimento e integração definitiva às cidades, na década de 1980 e, após sua inclusão no Estatuto da Cidade, a agenda da Reforma Urbana transformou-o num dos principais instrumentos de política fundiária adotado pelos municípios brasileiros. Isso se deu principalmente pela possibilidade que a demarcação desta zona especial no zoneamento das cidades dá para o reconhecimento de áreas já ocupadas por assentamentos populares precários, informais ou marcados por alguma forma de irregularidade (“ZEIS de regularização”), prevendo que a gestão pública deverá promover programas e projetos habitacionais de urbanização e melhoria da qualidade de vida dos habitam estas áreas, mas principalmente, reconhecendo a posse desta terra, muitas vezes consolidada, antiga e quase nunca questionada por parte dos proprietários da terra. Mas o objetivo principal das ZEIS, porém menos incorporado na agenda pública, é a inclusão, nos zoneamentos das cidades, de terrenos e glebas destinadas à implantação de Habitação de Interesse Social, em áreas vazias ou consideradas subutilizadas, de preferência inseridas em regiões dotadas de infraestrutura (“ZEIS de vazios”). Permite, portanto, o reconhecimento de áreas ocupadas através de processos não formais e sua regularização fundiária e urbanística, mas também (e principalmente!) pode e deve ser um instrumento de política fundiária voltado para a produção


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Dados disponíveis no site <http://

gestaourbana.prefeitura. sp.gov.br/>, acesso 22 de agosto de 2013. 4

O PDE definiu que,

além de Habitação de Interesse Social – HIS, haveria a possibilidade de construir nas ZEIS a Habitação do Mercado Popular – HMP, com parâmetros diversos, ocupando sempre menos de 50% da área da ZEIS, com percentuais variáveis dependendo do tipo de ZEIS (1 a 4). Sinteticamente, os parâmetros previstos para a edificação em ZEIS são: área útil máx. da unidade de 50 m2 para HIS e 70 m2 para HMP; pé-direito mín. de 2,30 m para banheiros, coz. e área de serviço e 2,40 m para os demais cômodos; um sanit. no máximo para HIS e dois para HMP; uma vaga de veículo para HMP; e não exigência de área de estacionamento no HIS. 5

Aqui parece ter havido dupla contagem. Os 18

lotes parcialmente sem uso e subutilizado são contados para compor os 74 perímetros de ZEIS consideradas como “lotes não utilizados ou subutilizados” e também para contar os 53 perímetros de ZEIS consideradas como “lotes sem uso”.

de novas unidades habitacionais destinadas à população de baixa renda (Rolnik & Santoro, 2013). Os estudos que apontavam a segregação socioterritorial e desigualdade de acesso a condições de infraestrutura urbana como elementos estruturais de um modelo concentrador e excludente (Bonduki & Rolnik, 1979; Sampaio & Lemos, 1978; Kowarick, 1980; Maricato, 1996; Rolnik, 1997) foram fundamentais para a proposta do instrumento. Somou-se a estes, a leitura sobre a incidência da regulação urbanística sobre o processo de exclusão socioterritorial (Rolnik, 1997; Villaça, 2010 entre outros) e a possibilidade de inversão dos objetivos desta regulação urbanística que, se historicamente privilegiaria as elites, poderia ser operado no sentido inverso, para ampliar o acesso à terra para populações que não encontram esta possibilidade no mercado. Em São Paulo, mas também em outras cidades onde as áreas centrais estavam perdendo população, pretendia-se inverter a lógica espacial do zoneamento como reserva de terra e proteção de valores de solo para os mercados de media e alta renda além de colaborar para uma boa utilização de áreas subutilizadas e vazias mais centrais (ao menos em tese). Esta aposta viu no zoneamento o instrumento mais adequado para esta previsão. A avaliação da implementação das ZEIS de vazios em São Paulo no período entre 2002 e 2013 é positiva em um contexto de uma gestão pública que não fez apostas no instrumento, ao contrário, ameaçou mudar este zoneamento em algumas oportunidades, como o que foi aventado no âmbito do debate do Plano de Habitação, em 2010. Segundo a avaliação apresentada pela Prefeitura em maio de 20133, em relação às ZEIS 3, áreas subutilizadas na região central, foram realizados 54 empreendimentos habitacionais, sendo 14 de HIS com promoção pública, 24 de HIS/HMP4 com promoção privada e 6 empreendimento de alto padrão. O parecer técnico sobre esta avaliação (Seixas e Santoro, 2013) afirma que, para analisar a situação dos lotes, os 145 perímetros de ZEIS 3 foram divididos em conjuntos de quadras (27), edifícios (9) e lotes (35 em uso, 56 não utilizados ou subutilizados, 18 parte sem uso parte subutilizado). Do total de 1 milhão de m2 de ZEIS 3 considerados como “lotes não utilizados ou subutilizados” (74 perímetros)5, cerca de 51% desta área foi ocupada (550.721,00 m2), o que é extremamente positivo, embora quase a metade continue disponível. Da terra consumida, 29% foi utilizada para equipamentos públicos (8 equipamentos), e 65% para habitação sendo 22% HIS público (10), 20% HIS/HMP privado (5) e 20% alto padrão (apenas 3 empreendimentos). O fato de terem sido construídos equipa-


mentos públicos em ZEIS também pode ser considerado positivo, uma vez que estava previsto que 20% destas áreas tivessem outros usos. E os 3 empreendimentos utilizados para habitação de alto padrão, são apontados como casos onde imperou o “direito de protocolo”, embora o fato não tenha sido comprovado por parte da Prefeitura. Do total de perímetros considerados como “lotes em uso” (53 perímetros), 72,25% permaneceram com galpões industriais (647.298,56 m2), 10,96% estão ocupadas com assentamentos precários (98.162.45 m2) e 16,80% foram utilizados para residências ou comércios (150.498,19 m2). Não ficou claro, nesta avaliação, se estas áreas estavam vazias e foram ocupadas com assentamentos precários ou se estavam com assentamentos precários e a classificação de ZEIS foi feita equivocadamente. Do total de 27 perímetros de ZEIS 3 considerados como “conjunto de quadras”, 56% foi objeto de empreendimentos de HIS ou HMP (15 ZEIS), sendo que 6 empreendimentos de promoção pública de HIS, 16 empreendimentos de promoção privada de HIS/HMP e 1 de alto padrão. Do total de 9 perímetros de ZEIS 3 considerados como “edifícios”, 3 foram adaptados para HIS – Baronesa de Porto Carreiro, Senador Feijó e Hotel São Paulo –; 1 está em obras de adaptação para HIS – Condomínio Novo Horizonte; 1 foi demolido – São Vito; 1 está com obras paralisadas – Casarão do Carmo; 1 está ocupado – Al. Barão de Limeira; e 2 permanecem vazios. No entanto, não foi feita uma avaliação sobre: quantos edifícios hoje estão ocupados, nem tampouco se esta quantidade de ZEIS “edifícios” foi pouca ou suficiente, se deveria ser maior; ou mesmo uma avaliação em relação às dificuldades de se intervir em “edifícios” que impediram uma maior produção desta adaptação para HIS e desafios para esta superação. Ainda, em relação às ZEIS 4, áreas subutilizadas em região de mananciais, 88% segue desocupado, 7% ocupado com assentamento informal e 5% com outros usos. Este certamente foi o tipo de ZEIS com menor efetividade e não foram apresentadas as razões deste resultado por parte do poder público e as hipóteses aventadas tratam do desinteresse do mercado imobiliário e do poder público em promover habitação de interesse social adequando-se às restrições relativas ao fato de ser área de mananciais, geralmente relativas a índices que traduzem uma menor ocupação e aproveitamento do solo. Se por um lado há uma visão positiva da implementação do instrumento, face ao contexto, uma revisão merece ser feita, especialmente considerando os desafios habitacionais que, em 2009, eram: cerca de 88.808 domicílios com situação habitacional inadequada; um déficit habitacional de


aprox. 227.023 domicílios – 133.291 domicílios para substituição de moradia, 93.732 famílias em cohabitação desejada; e 13 mil pessoas em situação de rua (este último, segundo SMADS). Isto totaliza uma demanda por unidades habitacionais (todos os padrões) de aproximadamente 720 mil novas unidades até 2024, que necessitaria de 42 km 2 de recursos fundiários, enquanto que as terras livres em ZEIS são da ordem de 7 km 2, faltando 35 km 2 de terra urbana necessária para a provisão habitacional no município de São Paulo. Ou seja, a própria avaliação da Prefeitura, apresentada no âmbito dos debates públicos, mostrou que as ZEIS atuais não dão conta de responder à escala das necessidades habitacionais, apontando para uma necessária revisão desta agenda. Calavita & Mallach (2009) documentaram experiências internacionais de inclusionary policies e inclusionary zoning que podem ser inspiradoras para uma revisão desta agenda. Segundo estes, estas políticas inclusivas podem se dar de várias formas, desde a inclusão de unidades com preços controlados dentro dos próprios empreendimentos, em outros lugares da cidade ou através de contrapartidas em dinheiro ou terra para a produção de habitação de interesse social. De qualquer forma, tratam de contribuições privadas para a viabilização de empreendimentos de interesse social, que, quase sempre, combinadas a subsídios públicos contribuem para ampliar a oferta de unidades habitacionais para segmentos que estão fora do mercado, ou pelo menos, fora do mercado naquelas localizações. Várias destas políticas partem do pressuposto de que os custos de produção de habitação ref letem, dentre outros, o que é permitido pelas leis de uso e ocupação do solo, e assim a imposição de produção de HIS estaria combinada a incentivos que ampliam a “produtividade” dos terrenos, viabilizando o negócio imobiliário. Por outro lado, estes mecanismos também poderiam ser interpretados como forma de recuperação a valorização da terra

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Ver imperdível artigo de

04 de agosto de 2013 do blog Cidades para quem?, intitulado “plano diretor (parte 2): radicalizar o acesso à terra urbana para todos; mas, o que foi esse tal decreto impedindo habitação em áreas nobres?” Disponível em <http:// cidadesparaquem. org/blog/2013/8/4/ plano-diretor-parte-2radicalizar-o-acessoterra-urbana-paratodos-mas-ento-o-quefoi-esse-tal-decretoimpedindo-habitaosocial-em-reasnobres>. Acesso 20 de agosto de 2013.


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Ver termo na Minuta de Plano Diretor em

discussão, apresentada na semana de 19 a 22 de agosto pela Prefeitura Municipal, criando a cota, sem regulamentá-la. 8

Ver artigo de 06

de maio de 2013 do blog Raquel Rolnik intitulado “Lições de Bogotá para a revisão do Plano Diretor de São Paulo. Disponível em < http://raquelrolnik. wordpress. com/2013/05/06/ licoes-de-bogotapara-a-revisao-doplano-diretor-de-saopaulo/>. Acesso 22 de agosto de 2013.

em benefício da coletividade, sob a forma de produção de HIS (Calavita e Mallach, 2009 apud Rolnik & Santoro, 2013). As propostas de Calavita & Mallach refletem a mudança de discurso de agora. Não é à toa que recentemente dois temas de blogs atualíssimos tocaram na mesma ferida. João Sette Whitaker Ferreira trouxe a experiência francesa que oferece um mínimo de 20% do total das unidades habitacionais para a população de baixa renda, qualquer que seja a modalidade de acesso à moradia (aluguel social público ou privado, compra, etc.)6. Segundo ele, quem não cumprir, paga multa ao Ministério da Habitação para que ele mesmo possa produzir as habitações sociais no município (tenho medo desta opção pois do jeito que o brasileiro é criativo, vai continuar mantendo o padrão periférico de ocupação). E já cita a “lei da solidariedade urbana paulistana”, nomeando o que virá a ser a Cota de Solidariedade7. Raquel Rolnik traz a proposta de Bogotá para o seu Plano de Ordenamento Territorial (POT), o equivalente ao nosso Plano Diretor8. Esse POT atual já inclui um mecanismo que obriga qualquer expansão urbana da cidade a ser precedida de um plano parcial em que ficam estabelecidas as obrigações urbanísticas – traçadas vias principais, áreas de parques, protegidas, de equipamentos – além da obrigatória destinação de 30% dos terrenos para habitação popular. Com custos repartidos entre poder público e promotores privados. A novidade é que esta obrigação deverá se estender a todo e qualquer empreendimento, não apenas para áreas de expansão urbana, incentivando mistura de usos e classes pela cidade. A escala das necessidades habitacionais exige uma revisão da proposta para habitação de interesse social no âmbito do Plano Diretor de São Paulo. E esta proposta não pode ser tímida! Pois neste contexto de mercado imobiliário aquecido, inclusive com a produção imobiliária incentivada pelo Programa Minha Casa Minha Vida, a disputa por terras é enorme.


A regulamentação da Cota de Solidariedade é fundamental nesta direção. No entanto, a proposta apresentada pela Prefeitura adia para uma regulamentação em lei específica, que permitirá a exigência para o licenciamento de empreendimentos imobiliários de grande porte ou implantação de planos e projetos urbanísticos, a doação de áreas ao município para fins de produção de HIS. E, logicamente, a cota solidariedade não exclui a necessidade de demarcação de ZEIS de vazios, uma vez que elas têm outras finalidades, como por exemplo, enfrentar a quantidade de ocupações informais e precárias através da superação dos problemas de exclusão territorial em grande escala; e, principalmente, representam o enfrentamento da lógica de utilização das terras urbanas pautadas pelo bordão do “maior e melhor uso”, possibilitando a ampliação de oferta de HIS em áreas específicas da cidade, tendo um efeito complementar à Cota de Solidariedade

bibliografia BONDUKI, N.; ROLNIK, R. Periferias: ocupação do espaço e reprodução da força de trabalho. Cadernos de Estudo e Pesquisa. São Paulo, vol. 2, p.1-130, 1979. KOWARICK, L. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1980. MARICATO, E. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo, Hucitec, 1996. ROLNIK, R. A cidade e a lei. São Paulo: Studio Nobel, 1997. ROLNIK, R.; SANTORO, P. F. Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) em cidades brasileiras: Trajetória recente de implementação de um instrumento de política fundiária. Versão preliminar de artigo apresentada ao Foro Latinoamericano sobre Instrumentos Notables de Interverción Urbana em Quito, Ecuador 6 a 10 de maio de 2013. Quito, Ecuador: Lincoln Institute of Land Policy, out. 2013. (mimeo) NERY Jr., J. Marinho. Um século de política para poucos: o zoneamento paulistano 1886-1986. Anais do X Encontro Nacional da Anpur. Belo Horizonte, 2003. SAMPAIO, M. R.; LEMOS, C. Habitação popular autoconstruída. São Paulo: FAUUSP, 1978. SEIXAS, A.; SANTORO, P. F.; YANO, L. Relatório sobre participação em audiências públicas do processo de revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo no âmbito do Inquérito Civil 071/2013 – 4ª PJ Habitação e Urbanismo da Capital. São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo/ CAEX / PJHURB, 2013. VILLAÇA, F. “Dilemas do plano diretor.” (2010). Disponível em <http://www.ongcidade.org/site/arquivos/artigos/dilemas436f9e94d59fb.pdf>, acesso 22 de agosto de 2013. Também encontrada nas seguintes obras do autor: Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil (no prelo) e Crise do planejamento urbano, na Revista Perspectiva, v. 9, n. 2, abr./jun. 1995.


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planos de bairro e participação na lógica de transformação urbana de são paulo

conversa com euler sandeville jr.

professor do grupo

intervenções regionais e bairros periféricos

de disciplinas de paisagismo da faculdade de arquitetura e urbanismo da usp desenvolve pesquisa junto à população de perus

A primeira coisa a se considerar é que a cidade passa por um momento novo. Ao se observar a última década, há certa modificação de sua estrutura, através de investimentos públicos de grande porte, como o Rodoanel e o investimento em transporte público, como as novas linhas de metro. Esses novos investimentos criam vantagens de localização em áreas que até então ficavam afastadas. Antes, havia uma concentração desses investimentos na área central, mas agora operações urbanas, obras viárias e obras de infraestrutura indicam uma mudança nos investimentos públicos. O problema é que está vindo atrelado a investimentos privados e a interesses corporativos de segmentos empresariais na cidade, à manipulação da participação, à remoção de imensos contingentes sem provisão habitacional, à desconsideração de questões ambientais e locais, a uma visão fragmentada dos investimentos no urbano. Outro fator é a determinação e associação do capital privado em relação ao poder público. Regiões periféricas que não eram atrativas de investimento privado se tornaram, seja no negócio das empreiteiras, seja em novas formas de financiamento. Abriram-se linhas de créditos tanto para investimentos públicos quanto direcionados para o consumo da população de média e baixa renda, e acredito que o “Minha Casa, Minha Vida” é um dos exemplos do que estou dizendo. Gera emprego e consumo, dá vazão ao capital imobiliário. Essa situação altera a planta de valores nas regiões periféricas criando a possibilidade de investimentos e novas localizações. O impacto não é somente em uma escala. O Rodoanel contornado a cidade e conectando todas as suas vias, por exemplo, cria ligações industriais ou de entrepostos de logística, ou também de habitação de alta renda e condomínios fechados. Mas não cria acessibilidade para população de baixa renda. A acessibilidade que cria entre as auto-estradas tem um efeito no espaço da “Macrometrópole”, mas não conecta moradia e emprego através do transporte público, por exemplo. A par dessas


escalas regionais também possui impactos locais, como a remoção da população de baixa renda, gerando graves problemas ambientais e desarticulação de estruturas locais. Em nossas pesquisas, encontramos pessoas removidas pela terceira vez ou até mais devido a obras públicas. Esta população está sob grande vulnerabilidade social e sempre começando de novo, em um outro lugar. Não há nem dinheiro nem cuidado social para essa população em situação de fragilidade, são tratadas como um custo da operação. As dinâmicas regionais, quando observadas em escala local, assumem formas que não são vistas à distância por técnicos e investidores. Esses processos têm uma complexidade e uma interdependência muito grande, e precisamos reaprender a olhar e atuar na cidade. É necessário sermos capazes de relacionar as escalas, e reconhecer essas pessoas. Digo aos meus alunos que se um arquiteto risca no papel, embaixo pode ter alguém gritando, e ninguém está ouvindo. Frequentemente, aquele conjunto de pessoas sabe outras soluções para os problemas locais, mas não é ouvido pela ausência de diálogo que acompanha os processos de decisão. Hoje, no momento em que todos esses fatores vigoram, há também um processo de revisão de todos os instrumentos de gestão da cidade. No plano institucional há a revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE), Plano de Metas, e na sequência haverá a Lei de Uso e Ocupação do Solo, Planos Regionais Estratégicos (PRE) e a criação de conselhos. Portanto, há uma sobreposição de estruturas, todas elas em intenso movimento, e todas num prazo muito curto. Vemos o Plano Diretor sendo refeito num prazo quase imediato, que é o prazo político e que não permite um processo participativo como deveria ter. Participação e plano de bairro

A primeira coisa a observar é que não há um processo, nem protagonismo da Prefeitura, na atual discussão de Planos de Bairro. Há uma diversidade grande de possibilidades se anunciando, inclusive com forte influência de setores como Federação do Comércio, SENAC e vereadores. Aqui vou me ater ao de Perus, que é o único até agora finalizado e encaminhado pela Câmara. Ele é uma peça muito complexa, difícil de ler até no âmbito técnico. Existem inúmeros fatores positivos, mas excedem os que mereceriam um questionamento mais frontal. A primeira coisa a se entender do plano de bairro de Perus é que ele não é um plano de bairro. Na verdade é um plano de distrito. Os bairros de Perus foram reunidos sobre uma outra unidade chamada de Unidade Ambiental de Moradia e elas


são articuladas na perspectiva do distrito. A Subprefeitura de Perus conta com dois distritos, Perus e Anhanguera. O plano de bairro é o do distrito de Perus, o que já é um problema: segmentar os dois distritos, e invadir competências que não seriam da escala local (bairro); portanto, de fato está operando é na escala dos Planos Regionais Estratégicos, sem o aparato para isso. O ideal seria esperar os desdobramentos da revisão dos instrumentos mais amplos como o PDE também tramitando na Câmara, para depois analisar esses outros e novos instrumentos. Como é que você vai aprovar planos de bairro se a peça máxima da cidade está sendo resolvida, revista. Então isso funciona como um artifício. Você tem um PDE, e o plano de bairro está em contradição com esse plano estratégico. Portanto, está instaurada uma situação em que o Plano de Bairro é utilizado como meio de revisar o PDE e o PRE anterior, ignorando os meios e as escalas necessárias para se atingir essa dimensão; com isso, esta peça acaba mesclando indevidamente questões de ordem regional com questões de âmbito local. Na hora que o plano de bairro cria alguns anéis na escala do distrito, localiza terminais e outros equipamentos de grande porte, ele se insere nessa lógica que não é local. Está criando vantagens locacionais inclusive em áreas de investimento imobiliário que não são sequer locais, se considerarmos a articulação dos projetos sugeridos com a Bandeirantes e a Anhanguera, além de estar no entrocamento do Rodoanel. Estas questões deveriam ser tratadas no PDE e no PRE. Percebe-se, pois, que o plano de bairro dribla a situação e insere questões de implicações regionais sem os estudos dessas outras escalas. Fica a dúvida a que interesses está favorecendo, na medida em que, claramente, há interesses imobiliários em jogo em alguns desses trechos. Outra questão fundamental é que teremos elaborar pelo menos 90 planos de bairros (Distritais), tendo em vista que a cidade possui por volta de 30 subprefeituras e todas elas são divididas em distritos. Planos de bairros como esse tem um custo muito alto. Esse valor, multiplicado pelo número de distritos de São Paulo, é enorme, sem contar os outros planos setoriais e os PRE previstos. Como se enfrentará essa demanda de recursos quando existem necessidades tão básicas a serem diagnosticadas e atendidas? Haveria que haver uma previsão de como isso irá ser enfrentado no município. Evidentemente a discussão do planejamento local precisa ser revista, a par de uma reforma já tardia das Subprefeituras. Nesse sentido, encaminhamos uma série de propostas alternativas ao Plano Diretor, como criação dos Núcleos Regionais de Planejamento, a integração dos diver-



sos conselhos de representantes em um fórum regional, meios de articulação entre as diversas escalas e entre os órgãos setoriais e concessionárias, entre outras recomendações (disponíveis no portal http://espiral.net.br). Além disso, nesse momento as pessoas participam de inúmeros fóruns e plenárias, o que as sobrecarregam: é preciso ir em vários conselhos para representar suas opiniões. Essas instâncias participativas são um enorme avanço em relação ao ainda recente período autoritário, mas elas não estão funcionando a contento. A população não recebe apoio técnico para analisar as pautas, nem mesmo tem acesso a elas, geralmente é pega de surpresa no processo. Geralmente é convidada a opinar nas fases de levantamento e recebe depois em uma plenária um projeto já fechado, não tem de fato interlocução no processo decisório. Isso não é um processo participativo real, a população é chamada a participar apenas de eventos muito organizados, dinâmicas fechadas, frequentemente com pautas e estratégias já construídas. Parece ter ocorrido exatamente isso no caso do Plano de Bairro e do Parque Linear Perus (este último pude acompanhar o processo e posso asseverar essa afirmação). Além de não ser o momento de se aprovar essa peça na Câmara, até o momento desta conversa não foi retirado o projeto. O atual sistema de participação, que não é participativo e sim consultivo, seus fundamentos e razões de seus desvios, merece uma conversa à parte, que não cabe aqui, mas necessário para o desenho de um sistema digno de gestão da cidade. O argumento de que houve um processo participativo não se justifica, como já exposto, já que é um processo questionável. No caso de Perus, há demandas que começaram a ser formuladas há 40 anos, e movimentos organizados sobretudo na última década, que postularam propostas não contempladas adequadamente no plano de bairro, apesar de virem de uma discussão local bastante sólida. Enfim, o plano não está respondendo bem a esses fatores. Do ponto de vista da forma (no sentido jurídico) também é inadequado: é um relatório técnico com inúmeras impertinên-


cias enquanto projeto de lei. Por exemplo, o plano define como deve ser uma calçada, mas não apenas estabelece parâmetros genéricos, como define o desenho da calçada. Isso não pertence a um projeto de lei: a orientação, a diretriz seria pertinente, mas o desenho e seus detalhes não podem ser matéria de lei. Isso pode causar problemas futuros de gestão, porque o bairro é dinâmico, em cinco anos as necessidades mudam. Há vários equívocos. Há um exagero e uma apropriação partidária e econômica por diferentes interesses na discussão atual de planos de bairro, que não são o melhor instrumento nem o único para esse fim. O Plano Diretor é uma peça longamente elaborada, do ponto de vista político, que conta com interesses políticos e sociais que estão em tensão na cidade, em cima de uma base técnica de discussão. Depois, há a escala de planejamento regional, mais do que necessária. Essas peças são técnicas, políticas e difíceis de serem elaboradas, e ainda precisam de aprovação em forma de lei, que depois engessa. O Bairro é uma realidade diferente dessa, apresenta necessidades imediatas do cotidiano, que precisam de outro enfrentamento: de gestão. O bairro é dinâmico e os recursos são escassos, questões locais não deveriam ser matéria normativa. Na minha opinião, ela devia ser enfrentada através de processos participativos diretos de gestão e ação. O que precisa é uma estratégia de gestão local. Essa estratégia deve ser aprovada em documentos, mas também ser produzida continuamente. Talvez a questão mais importante que eu queira salientar seja essa: o plano de bairro, ainda que possível, é um instrumento caro e insuficiente para gestão estritamente local do bairro, que necessita muito mais de diálogo amplo com as instâncias de decisão, de interlocução com os setores técnicos e de sua articulação, de participação nas decisões de orçamentos, projetos e monitoramento da qualidade dos serviços.


Propostas alternativas

Então, sem uma mudança da estrutura de gestão local não adianta falar em plano de bairro. É importante que a gestão local tenha contato face-a-face com a população, além de preparo para o diálogo técnico e o conhecimento de orçamentos. Os planos multiplicados aos detalhes criam um “estado permanente de elaboração de planos”, de “possibilidades de” sem chegar aos “meios para”, e isso é muito problemático. Há uma fantasia sobre as possibilidades do plano ainda na nossa cultura. Eles são necessários, mas deviam priorizar alguns instrumentos como a questão social da propriedade, dos trechos de interesse social e cultural, áreas ambientais, circulação, etc. É uma peça que precisa haver, mas muitas vezes as decisões não virão dessa peça. Portanto, não adianta multiplicar os planos, mas criar mecanismos eficientes de participação direta e de gestão local. Daí uma coisa que é muito importante e teria que ter no PDE em discussão é: o que esse plano diretor atual pode oferecer de melhor para a cidade? Na minha opinião, pode oferecer a perspectiva de um sistema participativo e de gestão de fato mais participativa e descentralizada, bem como articulação dos setores e serviços, capaz de ser elaborada nos próximos anos. Pensar o PDE nessa direção poderia criar uma primeira experiência que superasse essa atual condição em que patinamos, para que se venha a gerar realmente um processo continuado de participação na cidade. Participação também é uma coisa que se aprende. Então a questão do Plano Diretor nesse momento seria definir uma nova estratégia de participação e uma nova estratégia de participação das instâncias locais. E uma nova forma de conceber a capacitação dos órgãos locais para atuarem com certa autonomia e capacidade técnica mesmo.


Perspectivas e possibilidades

Claro que nunca vamos resolver esse processo. As lutas nunca vão estar resolvidas. E as coisas que queremos avançar sempre vão depender de lutas entre interesses que são antagônicos. As vezes tem um interesse que é social – o que a sociedade sente como corpo social - e há interesses que são privados ou apropriação privadas desses interesses, mas que também geram economia e não podem ser pura e simplesmente desconsiderados. Aprender com esses embates é da natureza da cidade. Então a gente nunca vai superar isso. Temos, como arquitetos e profissionais que atuam no urbano e nas questões sociais e ambientais, de aprender com essa dimensão do real. Formar arquitetos para essa dimensão do real. No entanto, resta um problema. Faz falta em nossa sociedade uma instituição com uma credibilidade maior. Uma das coisas que os movimentos na rua estão falando é que os partidos e instituições não têm a credibilidade que devem ter. As instituições não conseguem cumprir o papel de diálogo com a população, montadas de modo muito arcaico, não conseguem estabelecer a sua relação de diálogo e de confiança: seu papel público na cidade. Essa desconfiança difusa é muito negativa e não é superada por um ato normativo ou propagandístico como tem sido feito. Ela se supera por uma lenta aprendizagem. Aprendizagem não se dá por decreto, mas pela prática. Não podemos deixar de perceber que o modo como estamos avançando não está mais adequado. Sem contar que, nessa forma, o custo para cidade é alto e leva (intencionalmente?) as pessoas a homologar coisas que não entendem que estão homologando.


PLANO DIRETOR E PEQUENAS CIDADES

CAMILA RIBEIRO NOGUEIRA

arquiteta e urbanista. Recém formanda na faculdade de arquitetura e urbanismo da usp. desenvolveu o trabalho final de graduação sobre planos diretores de pequenas cidades.

Com a revisão do Plano Diretor de São Paulo em pauta, muito tem se falado sobre este tema e, São Paulo, por ser uma das cidades brasileiras com maiores conflitos urbanos, é sempre muito estudada por nossos urbanistas. Mas o Brasil, em toda sua imensidão territorial, apresenta realidades urbanas muito variadas e diferentes da paulistana. Segundo dados do IBGE referentes ao ano 2000, 73% dos municípios brasileiros (ou seja, 4017 cidades) possuem população menor que 20 mil habitantes e esses municípios muitas vezes não têm acesso às discussões sobre qualidade urbana que tanto se faz nas grandes cidades. E como se dá a urbanização dessas pequenas cidades? Ela ocorre nos mesmos moldes excludentes e conflituosos das grandes cidades? Apesar de as pequenas cidades apresentarem condições mais favoráveis para uma urbanização democrática, isso não significa que nelas não se encontram problemas já muito conhecidos das nossas metrópoles. Exemplo disso é a prioridade dada ao transporte individual em detrimento do coletivo, e o investimento público em habitação social nas áreas afastadas e desestruturadas da cidade - ações que ocorrem tanto em São Paulo, quanto em várias cidades interioranas de pequeno porte. Mesmo em pequenas cidades a construção de moradias sociais pelo poder público infelizmente apresenta a mesma lógica excludente e irracional que aquela da cidade de São Paulo, fazendo com que os deslocamentos da população sejam maiores que o necessário. Além disso, a monofuncionalidade presente nesses empreendimentos impede que melhores condições de urbanidade se instalem, resultando em grandes bairros dormitórios. Dessa forma, pode-se comparar a periferia de algumas pequenas cidades brasileiras com a periferia de São Paulo, onde a escala da cidade e a tipologia do empreendimento (casas térreas ou prédios de cinco pavimentos) talvez seja a única grande diferença entre o que acontece na expansão periférica de uma grande ou de uma pequena cidade. A lógica por trás dessas ações é a mesma, pois também


nas pequenas cidades as vicissitudes características do nosso sistema político, em que os interesses privados geralmente se confundem com o público, se repetem e afetam bastante a ordenação do território, especialmente em relação à questão da propriedade da terra. Além das questões referentes às políticas públicas habitacionais, algumas pequenas cidades começam a apresentar sinais preocupantes também no que se refere à mobilidade. O carro tido como principal meio de locomoção começa a gerar filas e transtornos para estacionar nas principais ruas de comércio, onde se percebe que a ausência de investimentos em transporte público e de incentivo à utilização de meios de transportes mais sustentáveis para o porte da cidade não ajudam a reverter esse cenário. Porém, apesar dessas semelhanças, algumas diferenças devem ser destacadas entre os casos. Nas pequenas cidades não existe a presença ativa do mercado imobiliá¬rio, representado pela figura das construtoras e incorporadoras que adquirem terrenos e os mantêm vazios para especulação ou lançando novos empreendi¬mentos a cada dia. Nelas, essas ações ainda não fazem parte das principais dinâmicas de apropriação urbana, fazendo com que os instrumentos urbanísticos para garantir uma cidade mais justa não necessitam ser tão complexos como nas grandes cidades, nos levando a acreditar que com um pouco de vontade política pode ser mais fácil democratizar o espaço urbano. Dessa forma, algumas questões devem ser levadas em consideração para a elaboração de um plano diretor num contexto urbano de uma pequena cidade. É importante ter em mente que a cidade e as ações que a cons¬troem não são apenas consequências do acaso. Ela expressa a cultura e os con¬flitos que existem na sociedade e como tal, o espaço urbano brasileiro acaba sendo fruto de sua sociedade desigual, seja numa pequena cidade, onde essas diferenças se apresentam mais discretas, ou numa grande cidade, onde as de-sigualdades são bem mais visíveis. Apesar da importância dada ao Plano Diretor, deve-se entender que a democratização do espaço urbano não virá apenas com a elaboração de planos, diagnósticos ou projetos urbanos. Esses, é claro, se fazem necessários, porém unidos a uma mudança cultural, capaz de incluir nas discussões a população historicamente excluída da cidade. Somente por meio de uma ampla participação popular, será possível chegar mais perto de garantir uma cidade mais justa e democrática, seja ela grande, média ou pequena


Whate ver happened to urbanism Trecho de ARTIGO DE Rem Koolhaas

If there is to be a “new urbanism” it will not be based on the twin fantasies of order and omnipotence; it will be the staging of uncertainty; it will no longer be concerned with the arrangement of more or less permanent objects but with the irrigation of territories with potential; it will no longer aim for stable configurations but for the creation of enabling fields that accommodate processes that refuse to be crystallized into definitive form; it will no longer be about meticulous definition, the imposition of limits, but about expanding notions, denying boundaries, not about separating and identifying entities, but about discovering unnameable hybrids; it will no longer be obsessed with the city but with the manipulation of infrastructure for endless intensifications and diversifications, shortcuts and redistributions – the reinvention of psychological space. Since the urban is now pervasive, urbanism will never again be about the new only about the “more” and the “modified.” It will not be about the civilized, but about underdevelopment. Since it is out of control, the urban is about to become a major vector of the imagination. Redefined, urbanism will not only, or mostly, be a profession, but a way of thinking, an ideology: to accept what exists. We were making sand castles. Now we swim in the sea that swept them away.


Se é para haver um “novo urbanismo”, este não será baseado nas fantasias gêmeas de ordem e onipotência; será o ato da incerteza; não estará mais preocupado com o arranjo de mais ou menos objetos permanentes mas com a irrigação de territórios com potencial; não mais visará configurações estáveis mas sim a criação de campos que possibilitem acomodar processos que se recusam a cristalizar-se em formas definitivas; não será mais sobre definições meticulosas, imposições de limites, mas sobre nações em expansão, negação de limites. Não sobre separar e identificar entidades, mas sobre descobrir híbridos inomináveis; não será mais obcecado pela cidade mas pela manipulação da infraestrutura em prol de intermináveis intensificações e diversificações, alternativas e redistribuições - a reinvenção do espaço psicológico. Já que agora o espaço é difuso, o urbanismo nunca mais será sobre o “novo”, mas sobre o “mais” e o “modificado”. Não será sobre o civilizado, mas sobre o subdesenvolvimento. Por estar fora de controle, o urbano está prestes a se tornar um grande propulsor da imaginação. Redefinido, o urbanismo vai não só - ou sobretudo - ser uma profissão, mas uma forma de se pensar, uma ideologia: de aceitar aquilo que existe. Nós estávamos construindo castelos e areia, agora nós estamos nadando no mar que os dissipou.

Trecho de ARTIGO DE Rem Koolhaas traduzido por Luiza Gomyde

O QUE ACONTECEU com o URBANISMO


movimentos sociais e o plano diretor estratégico

conversa com josé álvaro moisés

Professor Titular do Departamento de Ciência Política da Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da USP. é Membro do

International Social Sciences Council , da UNESCO, e Membro do Comitê Executivo da International Political Science Association.

A primeira questão que devemos falar é que na história de São Paulo, do espaço urbano desta cidade, a presença dos movimentos sociais foi sempre muito importante. Desde os anos 1940 e 50 há uma série de movimentos que, de alguma maneira, se colocam em uma posição de contraposição às políticas oficiais, às políticas do estado e suas ineficiências, suas distorções. Isso apareceu, recentemente, na forma de reivindicações sobre serviços públicos, sobretudo os de transporte. Há poucas experiências de planejamento na cidade de São Paulo. Seu crescimento foi muito desordenado, como regra geral. A cidade já estava crescendo muito nessas décadas (de 1940 e 50) e estava recebendo muita migração do resto do Brasil, em um contexto urbano caótico e desorganizado. Então, os movimentos sempre tiveram um papel de contraponto. Eu acredito que esta fase da política brasileira - que está marcada pelos movimentos recentes de participação, por uma movimentação de rua - tem características de classe média misturada com alguns segmentos de população da periferia. Ao mesmo tempo em que é um segmento jovem que se mobiliza muito rapidamente, principalmente através das redes sociais. Quer dizer, este ator, ao fazer uma crítica principalmente do elemento da mobilidade urbana, acho que vai se converter em uma força não necessariamente organizada, com partidos, mas em uma capaz de ficar e acompanhar os processos através dos quais vem sendo revista nossas cidades. Acompanhar a revisão do PDE, a redefinição de espaços de ocupação urbana; e questionar como este ordenamento foi feito nas últimas décadas - nem sempre levando em conta prioridades da população e muitas vezes considerando prioridades do desenvolvimento empresarial, de setores empresariais ou das grandes empresas que ocupam o espaço urbano. Eu não quero dizer com isso que as empresas não podem ter seu lugar, mas no capitalismo mais avançado e dinâmico, que converge com regimes democráticos, a grande questão é o controle do modo como o mercado opera. O mercado tem que ser regulado, se não a cidade vira um caos, como já é no âmbito do transporte urbano.



Os fluxos de entrada de automóveis para o trânsito de São Paulo que afetam fortemente a vida das pessoas está ligado à perspectiva de lucratividade das indústrias automobilísticas. Este é um fator relevante, mas não é o único, e no contexto atual, os interesses da população devem vir em primeiro lugar. Então, eu penso que os movimentos que já tem uma tradição longa em São Paulo - movimentos de bairro, de reivindicação de certos aspectos dos serviços - em certo sentido foram revigorados com as manifestações de junho. Isso é uma perspectiva que informa muitas pessoas, muitos segmentos da população para acompanharem o que vai acontecer com o plano diretor. Então acho que a influência vai ocorrer por aí. Eu não estou entre aqueles analistas que acham que os movimentos ocorreram, acabaram, morreram e vai ficar por ai. Acho que tem um fator de acumulação de percepções, de acumulação de avaliação da vida na cidade, ninguém vive no Estado, na Federação ou na União, vivemos na cidade e é a partir da cidade que as pessoas percebem os problemas. Veja, poderiamos perguntar, com tanto problema no Brasil, porque o movimento está aparecendo através do transporte? Não poderia ter aparecido pela saúde, educação, segurança?


... ninguém vive no Estado, na Federação ou na União, vivemos na cidade e é a partir da cidade que as pessoas percebem os problemas.

Porque o transporte é a coisa mais imediata, você sai de casa e tem que pegar o ônibus, o metrô, o trem ou o carro para ir para algum lugar. Então isso está de tal modo presente na vida das pessoas que é como se pudéssemos pegar toda a literatura sobre movimentos urbanos e sobre mudanças das grandes cidades, todos os autores, e atualiza-los nos termos da mobilidade urbana. Isso é uma atualização de todo o contexto teórico que evidentemente as pessoas comuns não precisam saber e não sabem, mas é uma atualização de tudo o que alguns anos atrás chamávamos de contradições urbanas derivadas de uma ocupação da cidade por um capitalismo selvagem que de alguma maneira não queria aceitar nenhuma regulação. Com o processo do avanço democrático, o tema da regulação é absolutamente central. Não dá, por exemplo, para empresas de ônibus fazerem o que elas quiserem. Linhas e ônibus tem que ter regras muito claras que são voltadas, vinculadas ao interesse da população, e acho que esse é um tema que apareceu nas manifestações de Junho e o MPL teve a virtude de alguma maneira, embora não totalmente consciente, de colocar esse tema. Acho que este tema vai continuar, não acho que vá morrer



ilustração Jordana Lopes


PEQUENAS TENTAÇÕES EDUARDO ANDRADE DE CARVALHO

“O quarteirão fechado por muros com lazer exclusivo é a anti-cidade”

Uma cidade agradável, civilizada, depende em grande parte da relação entre seus espaços privados e públicos. Um edifício pode convidar o pedestre a passear pelo seu entorno – como o conjunto de torres e da pracinha onde está a Caixa Econômica Federal, na Paulista – ou expulsar esse pedestre da rua: como um condomínio-clube que tranca um quarteirão entre muros e tem apenas uma portaria enclausurada e blindada. Ninguém se sente estimulado a andar sábado à tarde com o cachorro por uma calçada que é inteira acompanhada por uma parede bege. É um passeio monótono, chato e, portanto, vazio e perigoso. A calçada talvez seja o espaço público mais importante da cidade. As nossas melhores experiências nas cidades mais interessantes do mundo geralmente acontecem nelas. Quando pensamos em Paris – para citar uma unanimidade –, uma das primeiras imagens que nos vem à mente é um café na beira da calçada. Mas não é só ao café que esta lembrança nos remete: é ao quão agradável a vida urbana pode ser numa cidade que, em vez de muro bege, oferece à nossa imaginação o conforto e a aventura que podemos desfrutar caso, caminhando com nosso cachorro sábado à tarde, decidamos entrar no café – onde podemos nos proteger de uma garoa ou sentar ao lado da Natalie Portman. Andar pela cidade ideal é uma sequência de pequenas tentações. E o condomínio-clube – a ideia do quarteirão fechado por muros com “lazer exclusivo” – é a anti-cidade: ele esvazia as calçadas e, portanto, acaba com a graça a de caminhar por elas. Esse tipo de projeto deveria ser inibido por uma legislação urbana


inteligente. Mas não é: bairros que foram muito verticalizados nos últimos anos (como Móoca, Vila Leopoldina, Vila Olímpia) receberam vários empreendimentos residenciais totalmente fechados e aprovados de acordo com a legislação em vigor. E o problema desses conjuntos habitacionais não é só a indelicadeza da sua relação com a rua – nem a sua eventual deselegância plástica. Provavelmente até mais grave do que isso é consequência desses empreendimentos na organização da cidade: porque esse tipo de projeto não inclui, por exemplo, embaixo das suas torres, o pequeno comércio que ocupava as casinhas que precisou demolir – e que são fundamentais para que a vida urbana floresça completamente. Um bairro sem uma mercearia, um barbeiro, uma farmácia, por mais central que seja geograficamente, é suburbano: seus moradores precisam pegar o carro e dirigir ao shopping para comprar uma caixa de fósforos. Detroit, inspirada nesse modelo, acabou de falir formalmente, e Alphaville, nossa clássica experiência em edge city, está totalmente engarrafada. A atual Lei de Zoneamento paulistana, quando não estimula o comércio embaixo de edifícios residenciais, está trazendo o subúrbio para o centro da cidade. A consequência será mais Morumbis e menos Higienópolis; mais calçadas vazias e menos Conjuntos Nacionais; mais trânsito e poluição e menos chance de, levando o seu beagle para passear sábado à tarde, reparar, pelo vidro que separa um pequeno café da calçada, que Natalie Portman está lá dentro sozinha, triste.

“A atual Lei de Zoneamento paulistana esta trazendo o subúrbio para o centro da cidade”


“Precisamos trazer as pessoas para perto do trabalho”

Existe certa razão, portanto, na preocupação que algumas pessoas têm quando um empreendimento imobiliário gigante aparece em sua vizinhança. Mas o que pode prejudicar um bairro geralmente não é a verticalização ou o adensamento populacional que o empreendimento trás. Manhattan é prova disso. O problema é a verticalização e o adensamento mal pensados: com projetos que desconsideram o espaço público em seu entorno e estão estufados de tanta vaga em seus subsolos. Vagas que, aliás, de acordo com a legislação atual, precisam ser construídas obrigatoriamente em número mínimo – o que vai na contramão da importância do estímulo à bicicleta e ao transporte público e encarece os imóveis em São Paulo. O Swiss RE Building, em Londres, um projeto do Foster + Partners, com 41 andares e mais de 40.000 metros quadrados de escritório, tem cinco vagas de estacionamento. É esse tipo de anomalia que precisa ser revista na Lei de Zoneamento de São Paulo. Não queremos morar numa cidadesubúrbio e a nossa legislação não pode considerar – ou, pior, incentivar – o carro como principal meio de transporte. Precisamos trazer as pessoas para mais perto do trabalho – e o trabalho para mais perto das pessoas –, evitando desperdício de tempo e dinheiro em locomoções diárias. Pequenos comércios e serviços não podem desaparecer da rua e se esconder na área de conveniência de shopping centers. Todos esses pontos estão sendo discutidos, aliás, na revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br), que final-


mente, anos atrasada, está recebendo atenção do novo prefeito. A Lei de Zoneamento ideal deve considerar a importância que a cidade tem na construção de uma sociedade civilizada: não é à toa que urbanidade é também sinônimo de civilidade. Em suas praças e parques, bares e padarias, uma cidade aproxima pessoas diferentes (em idade, religião, classe social, etc.), e faz com que, compartilhando o mesmo espaço, elas conversem, troquem experiências, se eduquem mutuamente – e se divirtam juntas. E é por isso que a vida urbana é fundamental a uma sociedade civilizada: porque, aproximando pessoas, ela estimula a tolerância, o aprendizado e a imaginação. Estimula a imaginação quando, digamos, um adolescente de 13 anos, voltando a pé da escola, cruza com um saxofonista indiano com o penteado de Kenny G exibindo seu talento na frente de uma livraria especializada em biologia. De uma vez só, uma música, uma nacionalidade, um estilo e uma matéria que ele julgava chata se apresentaram numa combinação inusitada, interessante – o que pode animá-lo a tocar sax, visitar a Índia, deixar o cabelo crescer como o do Kenny G ou estudar biologia. Um dos principais prazeres de se morar numa cidade grande é encontrar pelo caminho esse tipo de novidade inesperada: e na frente de um café, num sábado à tarde, olhar para o seu beagle e com ele decidir consolar, se não a Natalie Portman, alguém sozinho, triste – que acabou de fugir de um condomínio-clube porque desconfiava que o mundo fosse maior do que aquilo

Eduardo Andrade de Carvalho é formado em Administração de Empresas pela EAESP/FGV, é sócio da Moby Incorporadora e editor de Cidades da revista Amarello.

“A vida urbana é fundamental a uma sociedade civilizada”


O dia da criação

Vinicius de Moraes

[…] Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra. Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia, Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula. Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo E para não ficar com as vastas mãos abanando Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança Possivelmente, isto é, muito provavelmente Porque era sábado.


ilustração calixto comporte


T 2, T 3, T4: Plantas destinadas a habitação de aluguel.

Conexão: Passarela entre a T1 e a praça elevada. Praça elevada: Espaços comuns destinados aos vizinhos. Escadas de acesso: Conexão entre o térreo e a praça elevada.

T1: Plantas destinadas a habitação de aluguel.

T 2, T 3, T4: Plantas destinadas a comércio e serviços.

Praça a nível da rua: Espaço público comúm entre as torres.

Praça a nível da rua: Espaço público comúm entre as torres.


HIBRIDO HÍBRIDO E DUPLA YMDOBLE E N T E PÚBLICO PUBLICO Atxu Amann Andrés Cánovas Nicolás Maruri

São arquitetos membros do escritório ACM Arquitectura, de Madrid, e professores da Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid, da Universidad Politecnica de Madrid. Tradução: Luis Guilherme Alves


Situado em uma posição de crescimento recente, no município de Coslada, próximo a Madri, o edifício se constrói a partir do propósito de proporcionar usos diferenciados: garagens subterrâneas, espaços comerciais, escritórios, casas e apartamentos, espaços públicos na cota da rua e espaços públicos nas alturas (em cota elevada). É um edifício híbrido e periférico que duplica o espaço público. Seu desenvolvimento é amparado por uma empresa estatal e seu destino é atender à demanda de habitação de baixo custo da cidade, especialmente a habitação destinada a jovens. 70% das unidades construídas possuem somente um dormitório e se destinam ao aluguel, enquanto o restante, de dois dormitórios, são reservados à venda. O custo de sua construção é limitado pela necessidade de baixos preços dos produtos, que devem ajustar-se aos limites estabelecidos nos planos estatais de habitação social. Os 20.000 m 2 totais foram edificados, no ano de 2012, por um preço aproximado de 8.700.000 euros. O programa pretende oferecer uma situação potencialmente mais atrativa que a simples construção habitacional. Nesse sentido, toma partido de uma implantação singular no contexto da cidade, construindo entre suas quatro torres uma praça pública e coberta, que serve como espaço de reunião, como espaço de atividade proporcionado pelo comércio situado no térreo das torres e como espaço de transição, recepção dos distintos acessos às zonas de


Situado en una posición de crecimiento reciente, en el municipio de Coslada cercano a Madrid; el edificio se construye desde la macla de usos diferenciados: aparcamientos subterráneos, locales comerciales, oficinas, viviendas y apartamentos; espacios públicos a cota de calle y espacios públicos en altura. Es un edificio híbrido y periférico que duplica el espacio público. Su promoción es desde una empresa del estado y su destino es cubrir la falta de vivienda de bajo coste en la ciudad, especialmente la vivienda destinada a jóvenes, un solo dormitorio, así el 70% de las 118 viviendas construidas se destinan a alquiler, reservándose el resto de las viviendas, dos dormitorios a la venta. El coste de su construcción se encuentra limitado por el necesario bajo precio del producto que debe ajustarse a los límites establecidos en los planes estatales de vivienda social. Los 20.000 m 2 totales se edifican por un precio aproximado de 8.700.000 de euros en el año 2012. La promoción pretende ofrecer una situación potencialmente más atractiva que la simple acumulación de viviendas. En ese sentido toma partido por su singular situación en el conjunto de la ciudad, construyendo entre sus cuatro torres una plaza pública y cubierta, que sirve como espacio de reunión, espacio de actividad propor-


cionado por los comercios situados en la planta baja de las torres y espacio previo, vestíbulos de los distintos accesos a las zonas de oficina. Esa misma plaza ofrece una comunicación entre distintas partes de la ciudad, es una rótula. Abierta. Dicha plaza inferior se conecta con una escalera colgada y un ascensor con una segunda plaza que situada a una altura de diez metros sobre la primera plaza, que enlaza las cuatro torres y que sirve de acceso a los espacios de vivienda. Esta plaza elevada separa los usos comerciales y de oficina que quedan debajo de ella de los usos de vivienda. Dicha plaza se constituye en el corazón del proyecto. Todas las comunicaciones se enlazan con este espacio, que debidamente equipado asume una condición de espacio de ocio y socialización de la comunidad. Es un espacio comunitario al servicio de la ciudad. El conjunto de viviendas se articula en base a apartamentos de 40m2 de superficie. Dichos apartamentos se configuran como un espacio continuo separado por puertas correderas de gran formato. Dicho espacio se acolcha al exterior con un sistema de armarios y al pasillo de acceso con una batería de núcleos húmedos que aísla de ruidos las viviendas y centraliza las instalaciones. Todos los apartamentos cuentan con una terraza protegida al exterior de 7m2 que permite un uso permanente. El conjunto se construye básicamente con estructura de hormigón armado; forrándose las cuatro torres con una piel de chapa de acero lacada en distintos tonos de gris y que actúa como fachada trans-ventilada, dicha fachada pasa de ser opaca a perforada según las distintas condiciones de uso, estableciéndose un conjunto de matices de luz y ventilación que construyen un cierre intenso y complejo. Processo projetual através de modelos físicos


Elevação, plataforma e escada

escritórios. Essa mesma praça oferece uma comunicação entre distintas partes da cidade, é uma rotatória. Aberta. Esta praça inferior se conecta por uma escada pendurada e um elevador com uma segunda praça que, situada a uma altura de dez metros sobre a primeira, amarra as quatro torres e serve de acesso aos espaços de habitação. Esta praça elevada se constitui no coração do projeto. Todas as comunicações se relacionam esse espaço, que devidamente equipado assume uma condição de espaço de ócio e socialização da comunidade. É um espaço comunitário a serviço da cidade. O conjunto de habitações se articula com base em apartamentos de 40m 2 de área. Esses apartamentos se configuram como um espaço contínuo separado por portas de correr de grande formato. Esse espaço se volta ao exterior com um sistema de armários e ao corredor de acesso através de uma bateria de núcleos molhados que isolam as habitações de ruídos e centraliza as instalações. Todos os apartamentos contam com uma varanda protegida do exterior de 7m 2 que permite um uso permanente. O conjunto é construído basicamente com estrutura de concreto armado; forrando-se as quatro torres com uma pele de chapa de aço pigmentada em distintos tons de cinza e que atua como fachada trans-ventilada. Ela passa de opaca a perfurada segundo as distintas condições de uso, estabelecendo um conjunto de matizes de luz e ventilação que constroem um fechamento intenso e complexo.


Planta do pavimento tĂŠrreo


Planta do nível da praça elevada


Planta das Torres


Planta tipo Torre 2

Planta tipo Torre 4


A TA A FFO O R MRA M A P L PAL T A escada exterior da Unidade de Habitação de Marselha marca a posição de uma rua comercial no centro de circulações do edifício e assinala este nível, com acesso livre desde o exterior, como a rua elevada deste bairro vertical. Esta solução estabelece a perda da cota zero como lugar de circulações livres e permite adensar com diversos usos uma planta limitada. No projeto de Coslada, a plataforma do quarto pavimento, que conecta todos os edifícios, se converte em um espaço coletivo e de alívio para os pequenos apartamentos, uma vez que compartilha a localização com serviços comuns. A escada de acesso adota uma posição central e de grande visibilidade na ordenação do conjunto da cota da rua, convertendo-se em um signo formal que convida a subir ao espaço público elevado. A escada se converte em um espaço em si, por sua dimensão e desenvolvimento.

Corte Geral


La escalera exterior de la Unidad de Habitación de Marsella marca la posición de la calle comercial en el centro de circulaciones del edificio y señala este nivel, con acceso libre desde el exterior, como la calle elevada de este barrio vertical. Esta solución establece la perdida de la cota cero como lugar de circulaciones libre y permite densificar sobre una ocupación en planta limitada diversos usos. En el proyecto de Coslada, la plataforma de planta cuarta, que conecta todos los edificios se convierte en un espacio colectivo y de desahogo para los pequeños apartamentos a la vez que comparte el emplazamiento con servicios comunes. La escalera de acceso adopta una posición central y de gran visibilidad en la ordenación del conjunto de la planta de calle convirtiéndose en un signo formal que invita a acceder al espacio público elevado. La escalera se convierte en un espacio en si mismo por su dimensión y su desarrollo.

Elevação, plataforma e escada


A confusão sobre a posição do plano do solo na cidade moderna se converteu em um argumento esterilizante em relação a dois possíveis desenvolvimentos espaciais em corte. Talvez algumas das condições que permitam recuperar a potência da seção vertical na cidade possam ser reunidas na clara diferença entre os níveis do solo não só em relação a sua posição, como também em suas condições formais. A plataforma oferece uma posição de apreciação da paisagem, entendida não só como natureza mas também como a paisagem urbana e artificial. Não se trata já de descansar a vista nos suaves perfis montanhosos nem na vegetação que invade tudo, como propunha Le Corbusier. Agora a paisagem é a própria cidade e o que se oferece é a possibilidade de olharmos a nós mesmos em ação.

La confusión sobre la posición del plano del suelo en la ciudad moderna se ha convertido en un argumento esterilizante en relación a los posibles desarrollos espaciales en sección. Quizás algunas de las condiciones que permitan recuperar la potencia de la sección vertical en la ciudad se pueden condensar en la clara diferencia entre los niveles no solo en relación a su posición sino también en sus condiciones formales. La plataforma ofrece una posición de disfrute del paisaje. Entendido no como naturaleza sino como paisaje urbano y artificial. No se trata ya de descansar la vista en los suaves perfiles montañosos ni en la vegetación que todo lo invade como proponía Le Corbusier, ahora el paisaje es la propia ciudad y lo que se ofrece es la posibilidad de mirarnos a nosotros mismos en acción.


L A A CC R ICA RÍÍ T IT CA DRICULADA C U AQ UDA R ICULADA A cidade que estamos construindo na primeira década do século XXI é uma cidade produto de uma crítica pós-moderna dos anos 1980 e 1990, que propõe recuperar os valores urbanos que estão presentes nos traçados do século XIX. Se pretende devolver à cidade suas características morfológicas, paisagísticas e funcionais mediante os traçados retilíneos, os pátios de quadra-bloco, os passeios axiais e as ruas de corte tradicional que proporcionam uma ideia de urbanidade reconhecível. Os novos bairros se constroem desde o espaço da rua, cujo limite é a propriedade privada que garante a manutenção e a segurança. Esses planos são um enunciado crítico aos problemas herdados da cidade de quadra aberta construída ao longo dos anos 60 e 70 do século XX.

La ciudad que estamos construyendo en la primera década del s.XXI es una ciudad producto de la crítica postmoderna de los años 80 y 90 del siglo pasado, que propone recuperar los valores urbanos que están presentes en los trazados decimonónicos. Se pretende devolver a la ciudad sus características morfológicas, paisajísticas y funcionales mediante los trazados reticulares, los patios de manzana cerrados, los paseos axiales y las calles de sección tradicional que proporcionan una idea de urbanidad reconocible. Los nuevos barrios se construyen desde el espacio de la calle cuyo límite es la propiedad privada que garantiza el mantenimiento y la seguridad. Estos ensanches son un enunciado crítico a los problemas heredados de a la ciudad del bloque abierto construida a lo largo de los años 60 -70 del siglo XX

Los ensanches postmodernos se sitúan de manera discontinua en el territorio, ofrecen es su interior una visión regular y estable, y generan una ciudad metropolitana como suma de artefactos entre los que se encuentran espacios indefinidos y abandonados que son el lugar de la utopista y el centro comercial, lugar delimitado para el comercio y controlado por las grandes superficies comerciales. La experiencia contemporánea y cierta cultura de la periferia no tienen cabida en la forma urbana postmoderna. Esta situación provoca la necesidad de buscar nuevos caminos para devolver al ciudadano lugares donde pueda desarrollar su acción colectiva dentro de un marco contemporáneo. Estos lugares surgen en la densidad urbana y dentro de un mundo hibrido


Os planos de crescimento urbano pós-modernos se situam de maneira descontínua no território, oferecem em seu interior uma visão regular e estável. Geraram uma cidade metropolitana como adição de artefatos entre os quais se encontram espaços indefinidos e abandonados que são o lugar da utopia e o centro comercial – lugar delimitado para o comércio e controlado pelas grandes superfícies comerciais. A experiência contemporânea e certa cultura da periferia não tem espaço na forma urbana pós-moderna. Esta situação provoca a necessidade de buscar novos caminhos para devolver ao cidadão lugares onde se possa desenvolver sua ação coletiva dentro de uma perspectiva contemporânea. Estes lugares surgem na densidade urbana e dentro de um mundo híbrido e multifuncional de espaços interconectados. Espaços que tem que se desenvolver como acontecimentos ou em interstícios, lugares descontrolados, onde o rígido sistema do século XIX não foi capaz de oferecer soluções. Deverão ter a oportunidade de reconfiguram e multiplicar a densidade das novas zonas de expansão urbana e ao invés de seguir construindo cidades dispersas, entupidas de piscinas e quadras de tênis e rodeadas de vias de circulação rápida; projetar cidades entrelaçadas e densas, traçadas mediante espaços de pedestres e públicos...

y multifuncional de espacios interconectados. Espacios que tienen que desarrollarse como sucesos o en intersticios, lugares descontrolados, donde no ha sido capaz de ofrecer soluciones el rígido sistema decimonónico. Deberán tener la oportunidad de reconfigurar y multiplicar la densidad de los nuevos ensanches urbanos y en vez de seguir construyendo urbanizaciones dispersas, colmatadas con piscinas y pistas de tenis y rodeadas de vías de circulación rápida, proyectar ciudades entrelazadas y densas, tejidas mediante espacios peatonales y públicos


Itaquera - e toda a Zona Leste - é hoje uma região estratégica para a expansão urbana de São Paulo. Com a chegada da Copa do Mundo a construção do estádio e uma série de obras viárias e de infraestrutura estão em execução em ritmo acelerado e intenso na região, promovendo um suposto “desenvolvimento”. Para nós do Comitê Popular, esse desenvolvimento significa na verdade uma transformação urbana que reforça ainda mais um padrão segregador e beneficiador dos setores da construção civil e imobiliário em detrimento da população, gerando especulação a partir da terra com grandes lucros para os agentes envolvidos - como é o caso da megaempresa Odebrecht. Entendemos que há também uma substituição – através da ação indireta do governo - da população tradicionalmente operária que habita a região, por outra de maior poder aquisitivo. Portanto, vemos que o legado da Copa estará intimamente ligado a uma transformação social, acompanhando um processo mais amplo que é perceptível em todas as regiões da cidade, de expulsão dos mais pobres e exploração da terra urbana como ativo financeiro. Temos também como perspectiva, após o término da Copa, a permanência de inúmeras tecnologias e estratégias de controle e monitoramento para repressão e criminalização de trabalhadores e movimentos sociais. Avaliamos, portanto, que a função social praticamente inexiste diante do gigantesco peso da função econômica, controlada por uma minoria. Isso representa um dos maiores problemas em sediar um megaevento como a Copa do Mundo, que reforça o conceito de cidade enquanto mercadoria. É importante lembrar que, além da cidade, o futebol também se tornou uma mercadoria e vem sendo usado - através das determinações da FIFA - na maioria das vezes, como justificativa para a execução de medidas e ações em um cenário de exceção que pode ser extremamente perigoso para a população.

comitê popular da copa sociedade civil organizada de são paulo

Avaliando o legado e as funções da Copa 2014 e sua relação com o cenário sociopolítico brasileiro.


GUSTAVO DE CAMARGO SOUZA ilustração júlia contreiras


BIENAL DE ARQUITETURA GUILHERME DE SÃO PAULO WISNIK ENTREVISTA COM

Com o tema “Cidade: modos de fazer, modos de usar”, a X Bienal de Arquitetura de São Paulo, que acontece este ano, saiu do pavilhão da bienal no Parque do Ibirapuera e acontecerá em diversos edifícios pela cidade conectados ao sistema de transporte público. Essa é apenas uma das diferenças dessa edição do evento, que se propõe a ser mais reflexiva e alcançar um público maior do que o das anteriores. Guilherme Wisnik é um dos três curadores da exposição, junto com Ligia Nobre e Ana Luiza Nobre. Esta entrevista, realizada em agosto de 2013 na sede do IAB tem como objetivo compreender melhor quais foram as problematizações que permearam a elaboração dessa Bienal e levantar reflexões acerca da arquitetura e do urbanismo contemporâneos.


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A Bienal de arquitetura surge como uma dissidência das Bienais de Arte. Como você vê essa fragmentação?

Foi em 1973, são exatamente 40 anos agora. Isso, quer dizer que desde que a Bienal surgiu, em 1951, a arquitetura estava incluída nas bienais de arte. O Gropius e o Max Bill, ganharam grandes prêmios da bienal de São Paulo no tempo em que arquitetura e arte faziam parte da mesma mostra. O Paulo Mendes da Rocha ganhou o grande prêmio também numa bienal com o projeto do Ginásio Paulistano em 1961. Então, quando segrega-se arquitetura da Bienal de Arte eu acho que foi uma perda, porque a arquitetura faz parte das artes, não vejo muita razão para considera-la como algo separado. Talvez esteja aí o motivo do esvaziamento das Bienais de Arquitetura, que acabaram ficando muito restritas a um público específico de arquitetos e estudantes de arquitetura, minguando cada vez mais até chegar numa situação – na última Bienal – em que ela ficou restrita a público nenhum. Nessa Bienal nós tentamos fazer um movimento na direção contrária, que é voltar a incluir a discussão da arquitetura dentro de discussões artísticas. Incorporar trabalhos de arte dentro da Bienal de Arquitetura, fazer ações na cidade que sejam happenings ou performances. Isso é assunto do meu doutorado, que fiz na FAU. Ele é justamente sobre a aproximação entre a arte e a arquitetura e a ideia que eu sigo é muito baseada num conceito da Rosalind Krauss, teórica da arte americana. Ela chama de campo ampliado, expanded field em inglês. A ideia que ela defende nesse texto é que com o pós-modernismo se rompe a ideia de autonomia da obra de arte, que é uma ideia moderna, de que cada arte deve estar no seu canto. Pintura é tinta sobre tela não deve ter moldura, ela é planar e não deve iludir o nosso olho de que existe uma perspectiva, uma pro-


fundidade, porque isso é fotografia. Pintura não pode ter um tema, porque tema é coisa da literatura e do teatro, por isso a pintura é abstrata. A escultura não deve se confundir com a arquitetura, porque a escultura não tem interioridade e a arquitetura é o espaço no qual você entra. Toda essa discussão que define cada arte dentro da sua mídia, da sua técnica e dos recursos que ela usa, é moderna e explode no pós-modernismo. A explosão do suporte em todas as obras bidimensionais, que vão pro espaço com o Hélio Oiticica e a Lygia Clark, por exemplo, ou os artistas minimalistas americanos. Quer dizer, tudo isso gera uma “grande confusão” entre as artes. Essa confusão é positiva, isso quer dizer que as artes, incluindo a arquitetura, não se separam mais. Tem uma piada feita pelo Barnett Newman, um artista americano dos anos 60: alguém pergunta “o que que é escultura?” e ele responde “eu não sei, eu acho que escultura é aquela coisa na qual a gente tropeça quando anda para trás num museu para ver uma pintura”. Mas porque essa piada? Porque já não tem mais uma definição, não é mais possível dizer o que é uma escultura exatamente. E eu acho que a arquitetura está nesse meio. É um meio contaminado, quer dizer, é um meio impuro, feito das coisas da vida, da mistura do que é uma ação de um artista com o mundo cotidiano. Então, separar arquitetura das artes não faz muito sentido, por isso, de alguma maneira, não é que eu defenda que deve se extinguir a bienal de arquitetura e voltar ela dentro da bienal de arte. Talvez hoje não seja preciso mais isso. Mas o que eu acho é que, numa bienal de arquitetura hoje, precisa-se entender arquitetura dentro de um conceito ampliado.


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Como você entende o papel da Bienal na discussão da arquitetura e do urbanismo contemporâneos?

Então, é muito difícil justamente. Quando você vai organizar uma bienal você tem que se colocar essa questão, porque, hoje em dia, o que é feito em termos de projeto ou de obra de arquitetura todo mundo já conhece. Se vê isso pela internet muito facilmente. Existem as revistas e todos os sites que atualizam essas informações muito rápido. Então, pensar que a bienal de arquitetura será usada para atualizar o público sobre o que tem sido feito não é exatamente o caso. O melhor é pensar que a bienal de arquitetura é uma plataforma para lançar discussões. Nesse sentido, ela tem que formular problemas e conseguir colocar certas agendas em debate, mais do que fazer uma bienal de repertório. Isso tudo faz muito sentido dentro da nossa proposta, que é fazer uma bienal mais aberta, incluindo ativismos, obras de arte, obras de ação na cidade e não tanto projeto. Mas isso não é uma recusa, não é uma bienal contra o projeto de arquitetura. Ela tem a ver com isso que nós estamos falando, os projetos as pessoas já sabem quais são. É preciso agregar a eles certas discussões que eu acho que são importantes, que são políticas, sobre o uso da cidade. Por isso o título da bienal é “Cidade: modos de fazer, modos de usar” é uma vontade de discutir o projeto junto com a dimensão do uso, e ela extrapola o campo específico da arquitetura e envolve a sociedade como um todo, que é algo fundamental para que a arquitetura faça sentido. Acho que o grande problema, a grande perda de significado das últimas bienais – e não só das bienais mas da profissão de arquiteto no Brasil como um todo – é que parece que a sociedade não vê para que serve a arquitetura. Parece que a arquitetura não faz muito sentido. Muitas vezes as pessoas acham


foto thais viyuela

que o arquiteto é um incômodo, que está lá só para encher o saco na hora da obra e exigir certas coisas que não eram necessárias. Então, no fundo, quando nós queremos que a Bienal de Arquitetura sirva como plataforma de reaproximação da sociedade em relação as questões que os arquitetos pautam, o objetivo é conseguir fazer com que essas questões voltem a ressoar. É muito mais importante pensá-las na escala urbana do que na escala do edifício. Isso é interessante, porque, hoje, a sociedade está entendendo que a cidade é fundamental.

GUILHERME WISNIK DURANTE ENTREVISTA para REVISTA CONTRASTE


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Como você avalia a repercussão das últimas bienais de arquitetura? Você acha que elas cumpriram o seu papel?

Elas cumpriram muito pouco. As últimas bienais de arquitetura tiveram muito pouco público. Os seus seminários e debates tiveram também muito pouco público, mesmo às vezes com nomes importantes que vieram – porque a Bienal de Arquitetura de São Paulo ainda tem muito prestígio internacional, milagrosamente, mesmo com todo esse processo recente de descrédito. Por exemplo, eu lembro de assistir um debate com o Jaques Herzog. Na FAU, estava lotado, já na bienal tinha metade do auditório, e acho que foi o debate mais cheio daquela bienal. Isso espelha essa falta de credibilidade e essa incapacidade de colocar os problemas. Mas eu não culpo só as pessoas que estiveram à frente dessas bienais, que eu nem sei bem como é que se sucederam. Agora que eu estou na frente dessa, vejo o quanto é difícil de fato fazer tudo isso. O IAB é um órgão muito enfraquecido, com pouca infraestrutura, então de fato é difícil conseguir reverter um processo tão grande. Mas eu acho que os arquitetos tem culpa em geral no sentido de que muitas vezes nós temos uma tendência a reclamar da sociedade, a reclamar do mundo e ficar achando que o arquiteto é um grande injustiçado no Brasil, e que as pessoas não veem e não dão a devida importância que nós merecemos. Mas nós não conseguimos fazer nada mais efetivo para mudar essa situação. Além disso, existe um mercado imobiliário, especulação e uma série de problemas. Mas o mercado não pode ser um inimigo. É preciso saber atuar dentro da sociedade real. É preciso também se envolver nas dimensões políticas que constroem a cidade, quer dizer, não é possível ficar numa posição só defensiva – que eu acho que tem sido a marca dos arquitetos no Brasil nas últimas décadas. En-


tão, eu acho que a falta de representatividade da bienal espelha essa situação que tem que ser mudada. Nós estamos tentando fazer uma bienal mais propositiva, para traçar questões para o futuro. O Rem Koolhaas tem tiradas muito interessantes sobre muita coisa. Eu acho que o Koolhaas é o grande pensador do mundo contemporâneo no campo da arquitetura. Ele diz uma coisa que eu gosto muito: “a profissão de arquiteto é uma mistura venenosa de duas correntes opostas: a onipotência e a impotência”. Acho que isso é muito bem percebido, porque no fundo é muito esquizofrênico, é quase bipolar. Por um lado, o arquiteto fica entre a onipotência, quer dizer, a iminência de mudar o mundo de fazer obras muito grandes e muito fortes que mudam a vida de muita gente, que envolvem grandes somas econômicas, que envolvem forças políticas, que removem pessoas, etc. Por outro lado, fica sempre na angústia de que no fim não deu cero, que o cliente mudou, que a legislação não deixou, que uma série de coisas aconteceram e aquilo não foi para a frente. Isso é o Koolhaas falando, então não é só no Brasil, no mundo inteiro é assim de certa forma. No Brasil é pior – não sei se é pior do que no mundo inteiro, mas é pior que na Europa e nos EUA –, porque, no Brasil, de alguma maneira o mercado imobiliário foi muito avassalador e, com isso, o pensamento arquitetônico quase saiu do mercado. Eu acho que a tentativa dessa bienal, de alguma maneira, é conseguir recolocar a discussão da arquitetura, mas não pelo gosto. Nós não vamos reclamar que as pessoas gostam de fazer um prédio neoclássico, não é esse o problema. A questão é entender como é que funciona o pensamento da construção da cidade.


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dA formA como você vêm elABorAndo A BienAl, quAl é o púBlico que elA pretende Atingir? o Alvo são somente os Arquitetos e urBAnistAs ou todos os cidAdãos?

É um público amplo e irrestrito, é a sociedade como um todo. São todas as pessoas que possam entender que a cidade é o grande problema de hoje. O que envolve a noção de espaço público, de mobilidade, de densidade e de infraestrutura. São esses 4 critérios que nós levantamos como essenciais, e acho que qualquer pessoa que vive em uma cidade como São Paulo deve entender que isso é uma discussão fundamental.


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foto nicolAs le roux

As BienAis costumAm ApresentAr muito mAis exemplos do que proBlemAtizAções. o que podemos esperAr do que será ApresentAdo nA x BienAl?

Isso é uma diferença que eu vejo, por exemplo, entre arquitetos e artistas. Normalmente, o arquiteto oferece uma solução para o problema, um remédio. O artista, muitas vezes, o aumenta, porque o problema é o pensamento de como a sociedade vai enfrentar aquilo. Às vezes, é melhor, ao invés de remediar, fazer aquilo gritar, porque só assim é que se consegue de alguma maneira metabolizar aquilo. Então, às vezes, a noção de projeto significa um pouco colocar por debaixo do pano certas coisas. Mas, muitas vezes, o projeto é de fato uma proposição construtiva interessante


1930

oCuPação do Parque d. Pedro ii, em são Paulo, Pelo sistema de transPorte automoBilístiCo para se enfrentar certos problemas. De qualquer maneira, é verdade que nessa bienal nós não vamos apresentar só projetos nem só obras, nós vamos tentar trazer muitos questionamentos. Eu tenho um livro que reúne os textos que eu escrevi na Folha de São Paulo durante dois anos. Ele se chama “Estado Critico”. Esse título é muito ambíguo, porque “estado” é tanto uma situação de ser – você passa por um estado de alguma coisa – quanto é o próprio Estado, o poder público. E “crítico” é o exercício do juízo crítico, mas também é o estado de crise. Eu acho que o estado de crise é sempre muito produtivo, porque é nele que se formula possibilidades. O mundo vive, hoje, um estado de crise muito forte depois da crise financeira de 2008 e uma série de paradigmas que são essenciais. As manifestações nas ruas no Brasil inteiro demonstram, digamos, uma segunda volta dessas crises, onde está se repensando muita coisa. Então, acho que a bienal tem a vontade de potencializar a crise mais do que oferecer uma solução. Nesse sentido, o que eu vejo é que, normalmente, as bienais tem sido situações em que a curadoria trazia exposições prontas


2008

1958 de diversos lugares e aí as juntava no espaço do pavilhão da bienal (ou a última na Oca). Agora não. Nós temos algumas exposições assim, mas muitas, e as mais importantes, são todas exposições que nós pautamos. Elas não existiam em lugar nenhum. Eram questões que nós achamos importantes e constituímos um grupo de pesquisa dentro da curadoria da bienal que foi as investigando para inventar essas exposições do zero. Então, eu acho que essa é a grande contribuição. Não são soluções para nada, são reflexões. Acho que as duas exposições mais fortes nesse sentido são, “A cidade do automóvel” e “O espetáculo do crescimento”. A primeira vai discutir o quanto o carro se tornou um protagonista das cidades do pós-guerra para a frente, sobretudo em São Paulo. O quanto as cidades passaram a ser construídas para um cidadão que é o carro – e não a pessoa – e como ele foi suburbanizando a cidade e destruindo espaços públicos. A segunda é sobre o brasil contemporâneo e o título “O espetáculo do Crescimento” é a frase do Lula no começo do seu primeiro mandato, quando ele anunciou que o Brasil iria viver um espetáculo do crescimento. Todo

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mundo riu naquela época, mas de fato esse espetáculo aconteceu em alguma medida. Então, essa exposição – que tem um grupo nosso agora viajando pelo norte e nordeste do país para levantar material para ela – é toda focada nessa outra geografia, nesse outro crescimento das cidades médias do Brasil. Cidades cujo PIB mais cresceu nos últimos 10 anos. Todas na faixa de Pernambuco, Pará e Mato Grosso, que é soja, que é agronegócio e as grandes obras de infraestrutura do governo: minha casa minha vida, usina Belo Monte, transposição do rio São Francisco, o porto de Suape no Recife. Então, é uma exposição que vai identificar essa nova geografia do crescimento urbano no Brasil. A nossa vontade é trazer discussões que hoje em dia você lê nos jornais nos cadernos de política, de economia e de agrícola para a pauta de urbanismo. E ver que cidades são essas novas e médias que estão virando grandes, que estão crescendo e estão bombando. Esses são dois exemplos, tem outras. Tem sobre o declínio de Detroit que agora entrou em falência: a cidade industrial do automóvel que entrou em colapso. Sobre uma cidade fantasma na China que foi construída inteira com dinheiro de capital financeiro e não tem nenhum morador. Exposição sobre as transformações do Rio de Janeiro para as Olimpíadas. Sobre segurança na cidade, que é um tema fundamental. A exposição se chama “Segurança como direito à cidade”. A ideia de tratar o tema da segurança não como isolamento, nem como proteção, nem como guaritas e muros e encarceramento. Ao contrário: como ocupação do espaço público como maneira de criar uma cidade mais segura, como no caso de Medellín.


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Como o sistema de mobilidade de São Paulo foi ou não limitante do projeto de espraiamento da Bienal pela cidade?

Limitante não, ele foi incentivador. Eu não usaria a palavra espraiar, porque ela vem de sprawl em inglês, que é justamente a palavra que define a cidade do automóvel. Sprawl define Los Angeles, que é essa cidade de super baixa densidade e infinita horizontalmente, criada pelo automóvel com os condomínios fechados no subúrbio. Quando nós falamos sobre a bienal, eu defino como uma bienal em rede. Ela não é fragmentada nem espalhada, está na cidade e está toda conectada a rede do sistema de transporte, que é o que a integra. Então, não foi um limitante, ao contrário. Essa rede de metrô de São Paulo, que não é muito grande, permitiu que nós constituíssemos esses pontos e articulássemos essa trama da bienal. Mesmo com essa rede pequena, foi possível encontrar uma série de lugares que pudessem hospedar com dignidade exposições e que estão conectadas à rede. O Centro Cultural São Paulo tem uma estação dentro dele praticamente, o MASP também. Só o Sesc Pompéia, infelizmente, que é mais difícil, mas tem o trem de alguma maneira.


7 sinalização na praça roosevelt

No texto “Arquitetura: modos de usar”, você menciona que São Paulo possui dois espaços comoventes do ponto de vista de seus usos: o Sesc Pompéia e o Centro Cultural São Paulo. Na sua opinião, o que está por traz destes espaços em termos de “modos de fazer”, que deveria ser incorporado ao nosso vocabulário urbano?

É fundamental essa pergunta, porque ela incide diretamente sobre o projeto [da bienal]. Que critérios você deveria ter ao fazer o projeto de um edifício público de grande escala? Isso é justamente uma das coisas que eu tenho dito nas discussões sobre a bienal. Nós vivemos décadas de total abandono da arquitetura na cidade. São décadas em que não foi feito nada de relevante, praticamente, em grande escala com arquitetura com impacto na cidade. Quer dizer, foi feito o CEU – que é uma rede de edifícios importantes – não faz tanto tempo. A pinacoteca foi uma reforma, o MuBE – duas obras do Paulo – é pequeno e quase que destruído pela sua gestão. Então, temos que voltar para trás. Assim, a última grande obra de arquitetura que tenha sido feita com uma escala razoável talvez tenha sido o Memorial da América Latina em 1987, do Niemeyer. E é um desastre. Inclusive o total fracasso do Memorial fala muito sobre o “modo de fazer”. Então, o Memorial também não pode ser considerado. Assim, temos que voltar mais ainda para trás, chegamos no Centro Cultural


São Paulo e no SESC Pompéia. Os dois foram inaugurados em 1982, são mais de 30 anos. É muito interessante que os dois tenham sido inaugurados e projetados ao mesmo tempo e são como que o réquiem de um momento histórico, o canto do cisne, o ponto final de um processo que veio desde o Ministério da Educação no Rio e de certa forma a formação da Arquitetura Moderna brasileira. E aí, 30 anos de vazio que agora nós precisamos retomar, e acho que a bienal quer sinalizar essa retomada desde uma incorporação das formas de uso. A Praça das Artes é um sinal positivo em todos os sentidos: como modo de fazer, como desenho, como projeto e como sinalização do poder público que encomendou e fez essa obra. Acho que agora deve vir uma nova safra de possibilidades. Mas o CCSP e o SESC [Pompéia] são desenhos muito abertos, eles não restringem o modo de usar, eles mantém uma indeterminação que é muito fundamental, pode-se fazer muita coisa dentro daquele desenho. Por outro lado, ele também não é genérico, não é que “pode de


sesc pompéiA: plAntA e uso

mais”. Tem personalidade ao mesmo tempo. É uma coisa difícil de conseguir: que seja ao mesmo tempo autoral e que, por outro lado, não seja uma camisa de força. Veja bem, esses dois prédios são estruturados ao longo de uma rua pública. Você tem uma rua que não fecha e que dá acesso aos ambientes. No Centro Cultural isso é muito bonito: ele é todo aberto para a avenida e tem uma rua interna que é paralela a ela que conecta todos os espaços e nada daquilo tem porta. Às vezes, tem uma de vidro que fecha na hora que o Centro fecha, mas, fora isso, aquilo tudo está sempre aberto. A biblioteca está conectada com as áreas de exposição, o teatro é um aquário de vidro que se vê de fora. Tudo isso é muito rico e resulta que em todas as horas do dia está lotado de gente. No SESC é a mesma coisa: tem aquela rua pública aberta no meio que conecta os edifícios com vários usos diferentes. Isso sem falar nas instituições. O SESC é uma maravilha como instituição. Sem ele muita coisa cultural em São Paulo seria pior. Mas restringindo ao projeto dos arquitetos, eu acho que é isso. O plano de acessibilidade é fundamental. É o que dá pra ver na Praça Roosevelt também. Ela passou a ser um espaço muito legal na cidade por causa disso. O projeto atual da praça não é nada demais, é até meio ruim, mas ele librou os acessos. Aquela praça tinha umas lajes, era um lugar todo difícil de ser acessado, era toda fechada, cheia de espaços escuros e bloqueados. Agora não, só há pisos escalonados que você acessa pelas ruas de maneira muito fácil. Isso tornou ela um espaço público que não era. A natureza do espaço público é ser conflituosa. Nele tem contradição, tem conflito, quando não tem, é um mau sinal. É um sinal de que, por alguma razão, não é público de verdade, é controlado, é vigiado, é fechado. Quando é espaço público, tem conflito, porque as pessoas querem usar e elas são diferentes, tem intenções diferentes. Isso é da natureza dos espaços públicos, que ele traga a tona os conflitos. Isso é um sinal muito positivo da Roosevelt, que é um dos únicos espaços públicos de verdade que tem essa nova fase de São Paulo em que as pessoas querem espaços públicos.


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A lógicA dA x BienAl é dAr um pAsso em direção Ao esprAiAmento dA culturA pelA cidAde. por outro lAdo, os grAndes centros culturAis de são pAulo representAm umA centrAlizAção de progrAmAs culturAis em um único ponto (“sHoppings de culturA”), AindA que sejAm distriBuÍdos pelA cidAde. como você enxergA esse modelo de equipAmento?

Eu não concordo. Ao contrário, o SESC é uma rede. Existem muitos SESCs em São Paulo. As Fábricas de Cultura do Governo do Estado também são muitas. Os CEUS acabam sendo, pelo lado da prefeitura, também isso. Então eu acho ao contrário. Vocês até falam de “shoppings de cultura”, mas não concordo. O CCSP, você poderia chamar de um “shopping de cultura”? Não. O SESC Pompéia? Tudo do que estamos falando é o contrário disso. Sendo o contrário, a Bienal tenta reforçar exatamente isso, o conceito de rede. mAs quAndo se entrA no sesc pinHeiros, por exemplo, é necessário suBir 5 AndAres de escAdA rolAnte e isso distAnciA completAmente o individuo dA cidAde. seriA muito diferente de umA ruA com um cinemA, um teAtro...

Bom, o SESC Pinheiros, Vila Mariana e todos os outros Sescs são “shoppings de cultura” como arquitetura. Aí sim, é um desastre total. Nesses casos, é uma decorrência de projeto, porque o SESC como implantação na cidade é a melhor rede que nós temos. Então eu não faria essa crítica ao SESC como situação urbana. Agora, quanto aos edifícios, todos menos o Pompéia, praticamente – e espero que o 24 de maio – são assim.


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Você diz que, em São Paulo, a vitalidade urbana tem surgido mais pela apropriação da população do que pela implantação de projetos. Na sua opinião, por que a arquitetura e o urbanismo não tem sido as protagonistas desse efeito?

Por um lado, isso é muito cruel. Foi isso que eu falei sobre uma situação nostálgica dos arquitetos no Brasil de ficar melancólico reclamando. Imagine, por exemplo, na construção de Brasília o papel que a arquitetura tinha na sociedade. O país queria saber o que os arquitetos pensavam sobre a arquitetura do Brasil. Não só pensar; os arquitetos fizeram isso na prática. Isso é o total oposto da situação atual na quão ninguém quer saber o que os arquitetos estão pensando e estão se lixando pra nossa opinião e nos tirando do mercado. Então, agora, nós temos que entender de maneira fria esse processo sem essa vontade de que fosse igual Brasília, porque não vai ser daquele jeito e nem é desejável que seja. Acontece que, quando foi construída Brasília, o Brasil era mais rural que urbano e não tinha os problemas de periferia que a gente tem hoje. A grande escalada da miséria urbana e do crescimento das grandes cidades e da periferização foi nos anos 1960 e 1970. Nesse mesmo momento, o mercado imobiliário deixa de ser esclarecido como as construtoras que fizeram Higienópolis, onde o desenho do arquiteto carregava uma vontade, uma inteligência e uma opinião sobre o que seria o morar. Isso deixou de ser um valor e passou a ser o custo, a rapidez e tudo que está ligado ao valor de espacialidade da construção. Nessa situação, parece que o discurso dos arquitetos parou de ser ouvido. Mas, hoje, São Paulo parou de crescer em números absolutos. Temos uma cidade mais estabilizada e um mercado imobiliário aquecido, mas que está entendendo finalmente que é preciso dar ouvido a


outros valores. O fenômeno da Idea Zarvos é intimamente ligado a isso. Assim, certas pautas do debate arquitetônico voltam a ser importante dentro do mercado. A arquitetura ficou fora do mercado e se passou 30 anos em que não foi encomendado nada de relevante. No entanto, nos últimos 5 anos, houve uma mudança muito forte nos modos de usar. Parece que por uma série de razões as pessoas estão entendendo que discutir a mobilidade, discutir espaço público, é fundamental. Que a falta de espaços públicos ou transporte caro é ruim e afeta gravemente a vida de todos. De certa forma, as manifestações foram o estopim de uma coisa que já vinha ficando evidente antes. E aí, nós temos a Virada Cultural, o minhocão transformado em parque aos domingos – que vem cada vez mais se tornando importante. A nova Praça Roosevelt estoura um monte de conf litos ligados ao uso que, como eu já disse, espelham um espaço público que está nascendo. Tem muitos outros exemplos, mas tudo isso são sinais de amadurecimento do lado dos “modos de usar”. Se do lado dos “modos de fazer” a nós temos razão para sermos pessimistas, dos “modos de usar” nós temos, ao contrário, razões para sermos muito otimistas. E eu acho que, agora, é impossível (e idiota) pensar a cidade só por um lado ou pelo outro, porque os dois tem que ser conectados. É possível dizer, de modo simplificado, que o “modo de fazer” é o pensamento moderno e o “modo de usar” é o pensamento pós-moderno. Hoje, é necessário articular essas duas forças de maneira a construir a cidade.


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em frente Ao gABinete do secretário de desenvolvimento urBAno foi picHAdo “o urBAnistA de são pAulo é o cApitAl”. você fAlA dA morte do urBAnismo. como você relAcionA esses dois posicionAmentos?

Eu vejo isso pichado aqui na General Jardim, em frente ao escritório do MMBB. [risos] Quando eu vi isso aqui, eu não relacionava ao Fernando Mello Franco, eu relacionava aos arquitetos todos que estão nessa rua. E tudo bem, acho válido para ambos os casos. Agora, se nós pensarmos isso em relação o Fernando, eu acho um pouco sacanagem, porque não é culpa dele. Evidentemente há muito tempo que o urbanista de São Paulo é o Capital, e ele está lá posto numa posição justamente para se contrapor a isso. O Haddad entrou com uma pauta urbana muito forte. Uma das grandes virtudes da campanha dele foi colocar essa discussão num plano muito importante. E colocar o Fernando como secretario foi muito bom, porque ele é alguém com quem eu me identifico muito. Eu acho que tudo isso que nós estamos discutindo aqui é muito afinado com as ideias dele. mAs, em Alguns textos seus, você fAlA muito dA morte do urBAnismo nos últimos Anos e nós querÍAmos sABer se você relAcionAriA com essA picHAção.


Essa afirmação [a pichação] se relaciona a São Paulo, e o texto do Koolhaas1 se relaciona ao contexto internacional. Ele escreve esse texto de maneira bem provocativa, lidando com uma questão ampla que na verdade tem relação com a passagem do moderno ao pós-moderno: a geração dele. Na verdade ele esta fazendo uma mea culpa da própria geração. A geração de 68, dos situacionistas do Team 10. É a geração que matou o urbanismo moderno e a Carta de Atenas. De um pensamento do projeto do pequeno e que dissolvia os grandes planos e passava a enfocar a escala local, a vizinhança. É toda uma via alternativa que criticou os grandes projetos, a ideia de totalizante e totalitária do urbanismo. Com isso morre o urbanismo acusado de ser tecnocrático, mas não surge nada no lugar. Daí surge umas frases muito engraçadas no texto como: “estamos tentando nadar num mar que já arrastou todo mundo” ou então “os arquitetos são doutores especializados em dores de

membros amputados” (risadas) São muito boas essas metáforas. Os problemas já mudaram, mas ele está culpando os arquitetos em grande medida por isso, porque essa geração colocou problemas fundamentais – “modos de usar”, na bienal, remete aos situacionistas, ao Team 10, à Jane Jacobs, a todos esses arquitetos que romperam com o “modo de fazer” moderno. Isso foi fundamental para a crítica da arquitetura, só que aconteceu exatamente no momento em que as cidades explodiram no mundo. Então, as cidades estão “bombando” e não há mais a figura do urbanista. Não há mais um pensamento e uma ciência que possa abarcar aquilo e apontar caminhos. Só há soluções sempre muito parciais. Ninguém consegue dar conta desse fenômeno voraz, e isso é um problema. O Koolhaas, quando escreve isso, defende a volta do urbanismo. Não é o urbanismo moderno, aquele de Brasília ou da Carta de Atenas. Mas é uma possibilidade, uma capacidade do arquiteto voltar a enxergar a cidade como um organismo onde são estabelecidas diretrizes e planos para dar conta daquela totalidade. Não é possível ser apenas parcial. O que o Koolhaas está tentando defender é que nós precisamos enxergar problemas essenciais em grande es-

1 KOOLHAAS, Rem, “What Ever Happened to Urbanism?”, S,M,L,XL, OMA, (with Bruce Mau), The Monicelli Press, New York, 1995, pp. 959/971


cala e atuar sobre eles. E no fundo, isso é a infraestrutura. O urbanismo do Koolhaas é baseado na infraestrutura. Essa ideia influencia muito a nossa maneira de pensar aqui em São Paulo. Nesse sentido, eu acho que o Fernando Mello Franco é o autor de uma das melhores propostas de urbanismo na escala de São Paulo nos últimos tempos. E é a proposta com a qual eles (o MMBB) ganharam, sobretudo sob comando do Fernando, a bienal de Roterdã com o trabalho Vazios de Água. Ele propunha discussões sobre a grande cidade, que ações de escala sistêmica poderiam ser eficazes. O Fernando escolheu os piscinões, identificou quantos estavam sendo construídos em São Paulo e viu que eles eram feitos pela Secretaria de Saneamento sem diálogo com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano nem com a de Habitação. Cada um fazia sua obra isolada. Ele propõe, então, que os 40 piscinões que iriam ser construídos nos anos seguintes seriam espaços públicos articulados às águas e aos parques lineares com transporte, etc. Ele raciocinou com a infraestrutura: pegou as grandes obras que são os piscinões, por exemplo, e pensou parques a partir disso. O Koolhaas faz isso também. Os projetos urbanos dele tentam definir certos princípios de infraestrutura. Ele sabe que não adianta desenhar o lote e o gabarito. É bobagem achar que você vai construir Paris uniforme. Isso não vai se fazer mais hoje. Mas se definirmos certos parâmetros globais, é possível garantir uma qualidade de eficiência numa cidade com a escala de São Paulo. Mesmo com todas essas mudanças, nós vemos que, na realidade, o que constrói a cidade hoje, seja no ponto de vista da edificação, seja no ponto de vista das operações urbanas, é mais a iniciativa privada. Sendo assim, você acha que o espaço do planejador foi retomado como uma figura importante na liderança das reformas urbanas?

Não foi em absoluto. Justamente, o urbanismo morreu e o planejador está sete palmos abaixo da terra. A discussão é essa. Não é possível deixar as cidades todas na mão do mercado e pronto. É preciso ter regulação pública pautada por certos princípios que vem de um pensamento urbano. E por isso que também não é possível que os técnicos que trabalham nas secretarias sejam trocados a cada administração. É preciso – como é em algumas outras cidades do mundo – que exista um pensamento do poder público independente dos partidos que continuam certos trabalhos. Que não estejam sujeitos a essa sazonalidade da política. Ninguém constrói uma cidade em quatro anos.


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Bienais possuem funções diferentes de museus? Na sua opinião, porque não existe um museu de arquitetura em São Paulo? O que seria necessário para que existisse?

As bienais são muito diferentes de museus com certeza. Museu é um lugar que guarda acervo. A bienal, ao contrário, se renova a cada dois anos. Acho até que São Paulo deveria ter uma trienal ou quadrienal, porque nós não temos estrutura pra conseguirmos organizar a cada dois anos um evento desse porte. Agora, eu acho que São Paulo deveria ter um museu de arquitetura, porque o acervo da arquitetura brasileira é importantíssimo no mundo. Inclusive, por exemplo, o MoMA e o Beaubourg (Georges Pompidou) estiveram muito fortemente aqui e levaram os principais desenhos do Paulo Mendes da Rocha. Acho que da Lina não levaram porque existe o Instituto Lina. E se você me perguntar se eu acho ruim que levaram? Não, eu não acho. Eu acho bom, porque vai ficar na guarda de uma instituição séria, que vai ficar no seu acervo e que vai mostrar pra um público. Isso é um sinal de valorização da nossa arquitetura. Mas se antes de isso acontecer nós tivéssemos um museu bom, teria ficado aqui. E isso ainda pode ser feito. Tem muita coisa ainda para ser documentada. Só que pra ter um museu assim, nós teríamos que estar mais evoluídos do ponto de vista da organização institucional e política. Uma coisa é um museu de arquitetura, outra coisa é um Urban Center, como se fosse um centro de referências da cidade – que também não tem e também é fundamental que tivesse. Alguém que quer entender certas coisas fundamentais sobre São Paulo, sobre a cidade, o crescimento e a história dela procura o que? Na maioria das cidades importantes do mundo existe, em SP não. Esse é um projeto do José Armênio como presidente do IAB. Ele queria que essa bienal na cidade servisse de ponto de partida para se construir e se consolidar, à partir do IAB, um centro de referência urbana. Por enquanto não vai dar tempo de fazer isso, mas pode ser que na próxima administração do IAB, seja lá quem for, e se a bienal for bem sucedida, alguém consiga levar esse projeto adiante


ANUNCIADOS


raquel rolnik

A própria ideia de legado foi construída a partir do momento em que as copas do mundo e os megaeventos esportivos de uma maneira geral começaram a se transformar cada vez mais de um evento, uma competição esportiva, em uma grande abertura de frente de expansão imobiliária e transformação urbanística nas cidades sede. Isso não foi sempre assim. Na história dos megaeventos esportivos – que é uma história antiga, inclusive na era moderna – eles tiveram diversos sentidos. Na guerra fria teve um sentido de cotejar o bloco socialista com o capitalista para ver quem ganhava a competição. Uma função ideológica, portanto, muito forte. Na segunda guerra, também, mobilizou grandes estratégias nacionalistas. A relação mais forte entre grandes corporações e a copa do mundo e as olimpíadas é um fenômeno mais recente, que tem a ver com o processo de globalização e com o aumento da importância das estratégias de comunicação, inclusive internacional (redes de televisão, facilidades de transmissão simultânea em todos os países do mundo), na medida em que a copa se transforma numa espécie de grande stand de vendas e de marcas. Nesse momento a copa vai sendo capturada por essas marcas – pois o megaevento esportivo é aquele que consegue mobilizar isso em escala global - e a partir principalmente da experiência de Barcelona em 1992 começamos a ter um novo layer, no qual o papel da copa como promoção de negócios globais e estratégia de exposição de marcas se soma à ideia de uma intervenção no espaço urbano que, associado à marca e ao evento, tem a capacidade de promover a cidade. Isso ocorre em um contexto de crise fiscal e do desmonte da ideia do Estado como condutor da política urbana em função de um Estado facilitador de negócios (as ideias da privatização de serviços e da abertura de frentes para empreendimentos privados), no qual as cidades começam a competir entre elas pra atrair os excedentes de capital internacional. Nada melhor do que um megaevento pra fazer isso. Ele tem, por carregar a imagem do país, a capacidade de articular as esferas federativas união, estados, municípios e outras esferas públicas que normalmente têm dificuldade em serem articuladas. Ao mesmo tempo, esses eventos têm um aspecto emocional muito forte, por tratarem de esporte, ou seja, luta, vitória, derrota e superação. Quando ele entra em um campo emocional é muito mais difícil desmontar seu sentido, ainda mais no caso específico do Brasil, por se tratar de futebol, que tem um significado cultural e espiritual quase unânime no país. Ele serve de verdade para meia dúzia de caras ganharem muito dinheiro! Esses mecanismos permitem que se constitua na preparação do megaevento um verdadeiro estado de exceção.

urbanista, professora da fauusp e relatora especial da onu

Avaliando o legado e as funções da Copa 2014 e sua relação com o cenário sociopolítico brasileiro.


Quer dizer, passa-se por cima de qualquer legislação, qualquer ordem jurídica, qualquer ordem urbanística, em nome de poder realizar aquilo: todos os impedimentos e resistências que normalmente existem para fazer grandes transformações urbanísticas são alisados! Ao mesmo tempo - e por isso ele é tão perfeito – automaticamente, sem as empresas investirem um tostão em comprar espaço na televisão e na mídia internacional, toda a mídia internacional vai ficar falando da cidade, do estádio e da copa durante meses ou anos antes. Portanto, a exposição que aquilo vai ter no cenário internacional é uma exposição para bilhões, imediata, gratuita e o projeto urbanístico vinculado à copa se vende nesse mercado global, atraindo esses investimentos. É aí que vem o legado. O legado é uma bela de uma falácia, que justifica a ideia de que as ações que se fizer em torno da copa vão além do próprio estádio. São investimentos em infraestrutura, são outros investimentos agregados em torno disso, que vão ficar. O legado também é uma forma de venda do evento internamente, na medida em que convence a população de que o estado de exceção que vai se implantar - no qual literalmente estão suspensos os direitos e garantias duramente conquistados - se justifica em nome de um ganho que todos terão. É a ideia do legado que vai ficar pra sempre, que a partir dali nós vamos mudar radicalmente o nosso patamar de urbanidade, de qualidade da cidade, etc. Como essa operação em termos de intervenção de uma grande reforma urbanística foi muito bem sucedida em Barcelona, isso passou a ser uma espécie de modelo reproduzido e imitado pelas outras cidades e outros países que tentaram fazer o mesmo. No caso específico do Brasil (também da África do Sul e da Índia) tem mais um agravante, porque estamos promovendo esse evento num contexto onde um grau básico de urbanidade não foi garantido para todos. Um contexto de cidades precárias, de cidades que não tem sistema de mobilidade que funcione de forma alguma, de cidades que não tem habitação adequada para todos, de cidades com assentamentos precários, cidades com déficits tremendos em matéria de educação, saúde. O que é muito diferente de situações como a da Alemanha (que sediou a copa do mundo) ou mesmo de Barcelona. Ninguém conta o pedaço dessa história, que a administração de Barcelona durante 20 anos investiu em uma requalificação da periferia, na implantação de sistema de transporte coletivo para todos e na implantação de um grau básico de urbanidade antes de fazer o projeto olímpico! São situações muito diferentes, e no contexto em que nós vivemos é mais discutível ainda o quanto vale a pena e se vale a pena investir bilhões e


toda essa energia na montagem desse grande circo, que tem como grandes ganhadores evidentemente poucos, quando prioridades absolutamente urgentes nas cidades estão requerendo recursos. Mesmo se levarmos em conta que a copa gerou projetos de mobilidade - o Rio de Janeiro está fazendo BRTs, que é uma melhoria no transporte coletivo, assim como está sendo feita a ligação do estádio do Morumbi com o aeroporto de Congonhas através do monotrilho - a pergunta que se faz é se seria esse o investimento prioritário no transporte coletivo. Quer dizer, os BRTs são feitos pra levar para a Barra da Tijuca, para Jacarepaguá, para o Recreio dos Bandeirantes. Não são esses os fluxos no Rio de janeiro que mais necessitam de um transporte coletivo e que precisariam mais urgentemente ter um BRT e um metrô. A Barra da Tijuca é frente de expansão do mercado imobiliário de classe média e alta do Rio de Janeiro, é a frente de expansão da zona sul. Nunca esteve, inclusive, no plano diretor do rio de janeiro nem nos planos estratégicos que foram elaborados a necessidade deste tipo de sistema de transporte pro Rio de Janeiro. Então o desenho dessa mobilidade não necessariamente está atendendo às prioridades. Não é a toa que, apesar de toda essa operação e apesar dessa história estar absolutamente blindada, um dos conteúdos das manifestações de junho era uma grande contestação das operações copa do mundo e dos projetos copa do mundo, ou seja, o povo manifestou claramente a sua consciência de que não seriam essas as nossas prioridades, além de que esses projetos - ao contrário inclusive do plano urbanístico de Barcelona e de outras experiências - não foram discutidos com ninguém! Nunca estiveram presentes em planos urbanísticos que tiveram algum nível de discussão, eles foram formulados e pensados em conversa entre as corporações, a FIFA - que é uma das instituições mais corruptas do planeta, que exigiu a construção de novos estádios porque precisava ter um lucro de 100 milhões por estádio e isso só poderia se justificar com gastos muito mais altos por estádio do que uma pequena reforma - e empreiteiros, mais ninguém. Nesse processo estamos privatizando áreas públicas, passando ativos fundiários importantes para a mão de consórcios feitos por empreiteiras que estão fazendo os estádios. Os BRTs vão ligar cidade com o estádio e no entorno dele vão haver novos empreendimentos imobiliários lançados por essas empresas. A mesma coisa em torno da Vila Olímpica no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca. Essa segunda questão de vocês poderia ser sobre a possiblidade de se pensar um projeto de copa e olimpíada em uma outra


direção que pudesse ter uma incidência social maior. Acho que essa é a pergunta que não quer calar. É da natureza do megaevento esportivo estar associado a essa máquina globalizada e financeirizada? - Sim. Diante disso, é possível pensar um outro projeto? - Em tese sim. É viável do ponto de vista político econômico da esfera internacional? - Não sei. Do ponto de vista da força política dos atores envolvidos? - No próprio caso do Rio de Janeiro, a primeira proposta de localização da área olímpica era no fundão, pensando na estratégia de planejamento territorial do Rio de reequilibrar o sentido do desenvolvimento urbano deslocando do sul pro vetor noroeste que historicamente é o vetor mais pobre, mais desqualificado, com menos emprego, com menos oportunidade. Então, de alguma maneira, a primeira proposta era incidir nesse outro ponto, mas só incidir nele não bastaria. Teria que pensar quais são os mecanismos de promoção de inclusão territorial dentro disso. Por exemplo: por que a vila olímpica não é habitação de interesse social quando acabado o megaevento? Nada disso foi feito. Orientei um TFG que pensou como poderia ter sido uma intervenção em Itaquera. Em tese a localização do estádio – o “Itaquerão”- não é uma má localização do ponto de vista mais global da cidade, mas que intervenção que está sendo feita lá? - Nada! Um espaço que foi totalmente autoproduzido, fragmentado, desconectado, de loteamentos que não se conversam, com vazios, subequipados, etc. Aquela intervenção que vai ser feita em Itaquera não vai ter um sentido redistributivo, de recuperação, de ganho para quem está lá. E não é por acaso que ela também não é discutida com, por exemplo, o fórum da zona leste, a rede de organizações de instituições que há anos estão lutando por melhorias na zona leste. Porque a visão desse evento não é do território para cima, é totalmente de cima pra baixo, inclusive numa esfera transnacional.


“ACÉRQUENSE “NO PODEMOS. TENEMOS MIEDO “ACÉRQUENSE “NO PODEMOS. NOS CAEREMOS “ACÉRQUENSE Y SE ACERCARON Y ÉL LOS EMPUJÓ Y VOLARON Poema de Guillaume Apollinaire

CADA UNO QUE DESCUBRA SU CAMINO AL BORDE é um escritório colaborativo e experimental equatoriano que enfoca em resolver necessidades reais com base em materiais disponíveis, sejam estes recursos sociais ou materiais físicos. A equipe é constituída por David Barragán, Pascual Gangotena, Marialuisa Borja e Esteban Benavides. Tradução: Luis Guilherme Alves


Não podemos construir um conceito coletivo sem antes conversar entre todos. Quando as opiniões são pessoais, todas são válidas, mas ao desenvolver projetos, estas não contam. Esta é a razão pela qual necessitamos entrevistar os clientes, inclusive quase em tom de interrogatório, para retirar deles toda a informação possível e, a partir disso, começar a construir o projeto.

No podemos emitir un criterio colectivo sin antes conversar entre todos. Cuando son opiniones personales, todas son válidas. Cuando se desarrollan los proyectos, estas no cuentan. Esta es la razón por la que necesitamos entrevistar a los clientes incluso casi en un tono de acoso, absorberles toda la información posible y a partir de eso, empezar a construir el proyecto.

CIUDADES DE CIUDADANOS

C I D A D E S

D E

C I D A D Ã O S

¿No son acaso los intereses económicos intereses ciudadanos? Esteban piensa que la respuesta es obvia: “Hasta que los ciudadanos no tengan otro interés que no sea el económico, los intereses de los ciudadanos estarán dirigidos a fortalecer el modelo económico”. ¿Quiere decir que si me incomoda el sistema tengo que esperar que los intereses de millones de personas cambien para poder vivir en ciudades donde los derechos ciudadanos sean los que guíen el desarrollo? La respuesta no puede ser tan catastrófica. Debe existir algo más que se pueda hacer. Pero, cuando uno quiere criticar el sistema, puede meterse en callejones sin salida y no encontrar respuestas claras, tratando de justificarse de alguna manera. En fin, es muy complejo juzgar. “Cuando uno se pone a juzgar algo, uno debe ponerse en una plataforma absolutamente limpia y pura para poder emitir un criterio y eso es complicado. En nuestra vidas tenemos seguro muchos más

Não são por acaso os interesses econômicos interesses dos cidadãos? Esteban pensa que a resposta é óbvia. “Enquanto os cidadãos não tiverem outro interesse que não seja o econômico, seus interesses estarão direcionados a fortalecer o modelo econômico”. Quer dizer que se o sistema me incomoda tenho que esperar que os interesses de milhões de pessoas mudem para poder viver em cidades onde os direitos das pessoas sejam os que rejam o desenvolvimento? A resposta não pode ser tão catastrófica. Deve existir algo mais que se possa fazer. Mas, quando alguém quer criticar o sistema, pode acabar em becos sem saída e não encontrar respostas claras, acabando por se justificar de alguma maneira. Enfim, é muito complexo julgar. “Quando alguém decide julgar algo, deve colocar-se em um patamar limpo e puro para poder emitir um critério, e isso é complicado. Em nossas vidas certamente temos muito mais erros que acertos. O que posso fazer é enfrentar


errores que aciertos. Lo que puedo hacer es enfrentarme a mi vida y tomar decisiones sobre mi vida y hacer que las decisiones más importantes nunca sean las económicas, sino que, cuando hay que tomar una decisión que afecte a un grupo, esa decisión es tomada en base a la participación y la opinión de la gente, por eso trabajamos en equipo”, señala Pascual. Si tuviéramos que decidir cual es el mejor modelo para la ciudad latinoamericana y nos lo tomamos tan en serio como un proyecto de AL BORDE, lo que haríamos sería preguntar a la mayor cantidad de personas: ¿qué piensan? Las decisiones que involucran a muchas personas se resuelven con la opinión de muchas personas, no con el criterio único e individual, ni con el de un colectivo de cuatro arquitectos. Lo que sí hacemos como individuos es tomar decisiones sobre nuestro camino. La reflexión de David expresa la intención a una escala global: “Que los modelos económicos modelen el desarrollo no sucede solo en las ciudades latinoamericanas, es un fenómeno mundial. El capital modela al planeta. El problema

Se queremos mudar essa atitude de descrença, poderíamos começar por realizar ações públicas de ocupação do espaço por parte dos cidadãos.” minha vida, tomar decisões sobre ela e fazer que minhas escolhas mais importantes nunca sejam as econômicas. Quando tiver que tomar uma decisão que afete a um grupo, que ela seja tomada com base na participação e na opinião das pessoas, por isso trabalhamos em equipe” assinala Pascual. Se tivéssemos que decidir qual é o melhor modelo para a cidade latino-americana - e tomaríamos isso tão seriamente como um projeto do AL BORDE - o que faríamos seria perguntar para a maior quantidade de pessoas: O que pensam? As decisões que envolvem muitas pessoas se resolvem com a opinião de muitas pessoas, não com o critério único e individual, nem com o de um coletivo de quatro arquitetos. O que fazemos como indivíduos é tomar decisões sobre nosso caminho. A reflexão de David expressa a intenção de uma escala global: “O fato de os modelos econômicos guiarem o desenvolvimento não acorre somente nas cidades latino-americanas, é um fenômeno mundial. O capital modela o planeta. O problema de tudo seguir como está pode ser a falta de inte-


de que todo siga como está puede ser la falta de interés o la desesperanza de la gente por cambiar esas estructuras. Se lo asume como normal, nadie se queja. No hay esperanza en los políticos. Si se quiere cambiar esa actitud de desesperanza, se podría empezar por realizar acciones públicas de toma del espacio por parte de los ciudadanos”. No se cambian los modelos a menos que sean sus ciudadanos los que tengan una intención de cambiarlos. Este cambio no sucederá a menos que esas personas, incomodas e inquietas, empiecen a cuestionarse su lugar en el mundo y a vivir en coherencia con su pensamiento. “No debe existir un solo camino establecido a seguir”, es la reflexión de Marialuisa. Ni si quiera deberíamos plantearnos el seguir algún camino pre-establecido sin antes tomarnos el tiempo de reflexionar”. Para el colectivo no hay verdades absolutas y cada persona tiene el derecho y el deber de decidir sobre su camino. Cuando la decisión involucra a muchas personas, no se la toma individualmente. La responsabilidad es sobre todos y las decisiones se toman en conjunto, discutiendo entre todos.`

Proyecto Ufff! Tapamos nuestras bocas para protestar. Nos cubrimos con mascarillas, para hacernos visibles; para exigir de las autoridades acciones que mejoren la calidad del aire de Quito y de los conductores respeto hacia los ciudadanos que no nos transportamos dentro de la cabina de un vehículo. Fotos AL BORDE

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CUE S T IÓN

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“¿Por qué debería existir alguna distinción entre el rol de un arquitecto en la sociedad y el de cualquier otro? El rol del arquitecto es como el de cualquier otra persona”, dice Esteban. Pero señala que hay una diferencia entre el rol general del arquitecto y el rol específico de AL BORDE. Buscar una respuesta al rol del arquitecto es complicado. Si esa fuera la premisa para desarrollar el trabajo del colectivo, estaríamos tratando de entender eso toda la vida y no haríamos arquitectura hasta no tener eso claro. Si ese rol es errado o no,


resse ou a desesperança das pessoas por transformar essas estruturas. Se assumirmos isso como normal, ninguém se queixará. Não há esperança nos políticos. Se queremos mudar essa atitude de descrença, poderíamos começar por realizar ações públicas de ocupação do espaço por parte dos cidadãos”. Não se mudam os modelos se os cidadãos não forem os interessados em mudá-los. Essa transformação não acontecerá a menos que as pessoas, incomodadas e inquietas, comecem a se questionar sobre seu lugar no mundo e a viver em coerência com seu pensamento. “Não deve haver um só caminho estabelecido para seguir”, é a reflexão de Marialuisa. “Nem sequer deveríamos propornos a seguir algum caminho pré-estabelecido sem antes pararmos para refletir”. Para o coletivo não há verdades absolutas e cada pessoa tem o direito e o dever de decidir sobre seu caminho. Quando a decisão envolve a muitas pessoas, não é tomada individualmente. A responsabilidade é sobre todos e as decisões são tomadas em conjunto, discutindo entre todos.

Projeto Ufff! Cobrimos nossas bocas para protestar. Colocamos máscaras para fazermo-nos visíveis, para exigir às autoridades ações que melhorem a qualidade do ar de Quito e aos condutores respeito pelos cidadãos que não se transportam dentro da cabine de um veículo. Fotos AL BORDE

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“Por que deveria existir uma distinção entre o papel do arquiteto na sociedade e o de qualquer outro indivíduo? O papel do arquiteto é como o de qualquer outra pessoa”, disse Esteban. Mas destaca que existe uma diferença entre o papel geral do arquiteto e o papel específico do AL BORDE. Buscar uma resposta sobre o papel do arquiteto é complicado. Se fosse uma premissa para desenvolver o trabalho do coletivo, estaríamos tentando entender isso toda a vida e não faríamos arquitetura até ter isto claro. Se esse papel é errado ou


no nos importa, lo que nos importa es enfrentarnos a los proyectos, dice Pascual. ¿Cuál es entonces la respuesta que buscamos? Lo que nos interesa en cada proyecto es la oportunidad de exploración y experimentación que se pueda tener con cada uno. La oportunidad de escuchar y diseñar en conjunto con los involucrados. Generalmente esto sucede en territorios informales, pero que no se mal entienda que somos arquitectos sociales. Es una coincidencia que se asuma nuestra postura como tal. ¿Para que cuestionarnos el rol del arquitecto? En eso David es muy claro: “hay que cuestionarse el rol del arquitecto desde la academia, que es el espacio donde se forman arquitectos. Las univer-

sidades construyen un rol del arquitecto bastante marginal. Promueven que se trabaje para las élites, promueven el rol individual y exclusivo del arquitecto, el rol de híper creativo trabajando solo para los que pueden pagar. Son escasos los ejemplos que no trabajan de esta manera: Escuela de Arquitectura de la Universidad de Talca o el proyecto Rural Studio dirigido por la Universidad de Auburn. Pero en general, la academia no esta relacionada con lo que pasa en la sociedad, con su entorno; la búsqueda es muy genérica”. La consecuencia de esto es que Latinoamérica no se tiene casi referentes locales, la mayoría son referencias de afuera. Es como si no quisiéramos vernos a nosotros mismos. Se supone


Proyecto: Vecinos Barrio 11 de Mayo, estudiantes y docentes de la Facultad de Arquitectura de la Universidad Católica de Ecuador ¿Qué sucedería si sumamos esfuerzos? El estudiante sigue estudiando otro semestre más en la universidad, pero esta vez la problemática a resolver es real y el proyecto se construye. La comunidad sigue trabajando los fines de semana en mejorar su barrio, pero esta vez con gente que asesora y ayuda a resolver los problemas. El profesor sigue enseñando en el taller de arquitectura, pero esta vez soy consultor de un proyecto real. La universidad forma profesionales, pero esta vez con compromiso social. NO trabajar más, NO hacer un esfuerzo extra, solamente juntar esfuerzos individuales en uno colectivo hacen una gran diferencia y el beneficio se multiplica para todos los involucrados. FOTO: AL BORDE

Projeto: Vizinhos do Bairro 11 de Maio, estudantes e docentes da Faculdade de Arquitetura da Universidade Católica do Equador O que aconteceria que somassemos esforços? O estudante segue estudando outro semestre a mais na universidade, mas desta vez a problemática a resolver é real e o projeto é contruído. A comunidade segue trabalhando aos fins de semana na melhoria de seu bairro, mas desta vez com gente que assessora e ajuda a resolver os problemas. O professor segue ensinando no escritório de arquitetura, mas desta vez é consultor de um projeto real. A universidade forma profissionais, mas desta vez com compromisso social. NÃO trabalhar mais. NÃO fazer um esforço extra, somente juntar esforços individuais em um coletivo faz uma grande diferença e o benefício se multiplica pra todos os envolvidos. FOTO AL BORDE

não, não nos importa, o que nos importa é enfrentar os projetos, disse Pascual. Qual é, então, a resposta que buscamos? O que nos interessa em cada projeto é a oportunidade de exploração e experimentação que possamos ter. A oportunidade de escutar e desenhar em conjunto com os envolvidos. Geralmente isso acontece em territórios informais, mas que não se entenda mal que somos arquitetos sociais. É uma coincidência que se assuma nossa postura como tal. Para que questionarmos o papel do arquiteto? Nisso David é muito claro: “há que se questionar o papel do arquiteto desde a faculdade, que é o espaço onde se formam arquitetos. As universidades constroem uma ima-

gem de arquiteto bastante marginal. Promovem que se trabalhe para as elites, promovem o papel individual e exclusivo do arquiteto, o papel super criativo trabalhando somente para os que podem pagar. São raros os exemplos que não lidam dessa maneira: Escola de Arquitetura da Universidade de Talca ou o projeto “Estúdio Rural” dirigido pela Universidade de Auburn. Mas em geral, a universidade não esta relacionada com o que acontece na sociedade, com seu entorno: a busca é muito genérica.” A consequência disso é que a América Latina quase não tem referências locais, a maioria delas são estrangeiras. É como se não quiséssemos ver a nós mesmos. Se supõe que


que las universidades son espacios donde los estudiantes experimentan, aprenden y se construye oficialmente el rol del arquitecto, pero en la mayoría de los casos es una oportunidad desperdiciada porque no se cumplen estas premisas. Para Marialuisa la respuesta nunca viene desde afuera: “Plantearme el rol del arquitecto no es de mi interés. Como he dicho antes con el tema de los modelos de ciudad, cada uno tiene que buscar su propio camino. Me interesa más cuando las personas descubren por ellos mismos las cosas y eso solo sucede cuando hay acción. El proceso es más enriquecedor cuando una persona decide explorar eso que le está inquietando. Valoro más eso que la actitud de quedarse quieto e inconforme.” Las soluciones que buscan ser globales pocas veces satisfacen las necesidades individuales. El interés del colectivo es de animar a la gente a que busque su propio camino. Jamás pretenderíamos ser ejemplo de nadie. MIR Á NDOSE EL OMBLIGO En una cosa coincidimos los cuatro: tomamos decisiones en coherencia con nuestra forma de vivir. No hay parámetros establecidos a los que nos aferremos sin antes reflexionar sobre ellos. Las decisiones que se toman en colectivo se discuten entre todos y las particulares se reflexionan individualmente. Tomamos decisiones sobre las cosas que nos gustan, los proyectos que nos interesan, la gente con la que queremos trabajar y de qué manera queremos desarrollar el oficio. Siempre que los proyectos lo permitan, nos gusta compartir los proyectos con personas de otras disciplinas que enriquezcan la discusión: antropólogos, músicos, gente que hace teatro, etc.

Proyecto: Vecinos Barrio 11 de Mayo, estudiantes y docentes de la Facultad de Arquitectura de la Universidad Católica de Ecuador Dinámicas para la integración y participación de los vecinos, estudiantes y profesores en el proceso de diseño. Es importante que todos nos conozcamos y generemos un clima de confianza para poder involucrarnos en el proceso de diseño. Estos talleres son planificados en conjunto con una antropóloga. MONTAGE. FOTO AL BORDE


as universidades são espaços onde estudantes experimentam, aprendem e se constrói oficialmente o papel do arquiteto, mas na maioria dos casos é uma oportunidade desperdiçada porque não se cumprem essas premissas. Para Marialuisa a resposta nunca vem de fora: “ Propor-me o papel do arquiteto não é do meu interesse. Como disse antes, com o tema sobre os modelos de cidade, cada um deve buscar seu próprio caminho. Me interessa quando as pessoas descobrem por si as coisas, e isso só acontece quando existe atitude. O processo é mais enriquecedor quando uma pessoa decide explorar o que está deixando-a inquieta. Valorizo mais isso do que a atitude de ficar quieto e inconformado.” As soluções que buscam ser globais poucas vezes satisfazem as necessidades individuais. O interesse do coletivo é de animar as pessoas a buscarem seu próprio caminho. Jamais pretenderíamos ser exemplo de ninguém. O L H A R I N T R O S P E C T I V O

Projeto: Vizinhos do Bairro 11 de Maio, estudantes e docentes da Faculdade de Arquitetura da Universidade Católica do Equador Dinâmicas para a integração e participação dos vizinhos, estudantes e professores no processo de desenho. É importante que todos se conheçam e gerem um clima de confiança para poder envolver-se com o processo. Essas oficinas são planejadas em conjunto com uma antropóloga. MONTAGEM. FOTO AL BORDE

Em uma coisa concordamos os quatro: tomamos decisões em coerência com nosso modo de viver. Não há parâmetros estabelecidos aos quais nos prendamos sem antes refletir sobre eles. As decisões que tomadas coletivamente são discutidas entre todos e as particulares se reflete individualmente. Tomamos decisões sobre as coisas que gostamos, os projetos que nos interessam, as pessoas com quem queremos trabalhar e de que modo queremos desenvolver o trabalho. Sempre que os projetos permitem, gostamos de compartilha-los com pessoas de outras disciplinas que enriqueçam a discussão: antropólogos, músicos, gente que faz teatro, etc.


Disfrutamos el camino, encontramos que el proceso es lo enriquecedor, es lo que más nos gusta. El resultado es una consecuencia del proceso, nunca el objetivo. No hay miedo al éxito ni al fracaso, no se busca el reconocimiento, ni ser dueños de la verdad. Cuando no hay miedo al resultado final, hay mas libertad de pensamiento y de diseño. No se trata de agradar o buscar la aceptación del otro, sino que es una búsqueda con uno mismo. Ser honestos con el trabajo. Decidimos que proyectos queremos hacer, a cuales encargos nos queremos enfrentar. Sin temor (al fracaso) y sin esperanza (de ser exitoso). Cuando se resuelven los proyectos la postura como colectivo es defender las decisiones que se van tomando con razones. Cuando la problemática aterriza en proyectos concretos: una casa, un centro comunitario, una escuela, etc., no son las opiniones personales subjetivas lo que importa, sino las razones que van a hacer que esa búsqueda sea lo más objetiva posible, tratando de ser lo más rigurosos que se pueda. Esto hace que los resultados sean siempre distintos e inesperados. Nos tomamos muy en serio lo de la rigurosidad. Llegamos a extremos de obsesiva disciplina para encontrar respuestas lo más argumentadas y lógicas posibles, a través de un sistema de toma de decisiones lo más pragmático posible. De todas maneras, hay unos princi-

A consequência disso é que a América Latina quase não tem referências locais, a maioria delas são estrangeiras.”

Proyecto: AL BORDE Ladrillos, Bloques y otros elementos abandonados y Parches. Transformación de un establo para vacas en vivienda. En la arquitectura para animales, no hay decoración. Las vacas no tienen caprichos estéticos. Sumado al abandono, el establo cumple con lo mínimo: no caerse. El bajo presupuesto y la urgencia de habitarlo son parte vital del proyecto. Utilizamos la vieja y conocida fórmula del que no tiene más remedio: trabajar con lo que hay a la mano. Foto Francisco Suarez.


Projeto: AL BORDE Tijolos, Blocos e outros elementos abandonados e Ladrillos, Bloques y otros elementos abandonados y manchados. Transformação de um estábulo para vacas em habitação. Na arquitetura para animais, não existe decoração. As vacas não possuem caprichos estéticos. Somado ao abandono, o estábulo cumpre com o mínimo: não desabar. O baixo e a urgência de habitá-lo são partes vitais do projeto. Utilizamos a velha e conhecida fórmula do que não tem mais remédio: trabalhar com o que temos à mão. Foto Francisco Suarez.

Aproveitamos o percurso, descobrimos que o processo é o enriquecedor, é o que mais gostamos. O resultado é uma consequência do processo, nunca o objetivo. Não há medo do êxito nem do fracasso, não se busca o reconhecimento, nem ser os donos da verdade. Quando não há medo do resultado final, existe mais liberdade de pensamento e de desenho. Não se trata de agradar ou buscar a aceitação do outro, é, por outro lado, uma busca consigo mesmo. Ser honesto com o trabalho. Decidimos os projetos que queremos fazer, quais serviços queremos enfrentar. Sem medo (do fracasso) e sim esperança ( de obter sucesso). Quando se resolve um projeto, a postura como coletivo requer defender as decisões que vão sendo tomadas com razão. Quando a problemática aterrissa em projetos concretos: uma casa, um centro comunitário, uma escola, etc., não são as opiniões pessoais subjetivas que importam, mas sim as razões que vão fazer que essa busca seja o mais objetiva possível, tentando ser o mais rigoroso que se possa. Isso faz com que os resultados sejam sempre distintos e inesperados. Levamos muito a sério a rigorosidade. Chegamos a extremos de obsessiva disciplina para encontrar respostas o mais argumentadas e lógicas, através de um sistema de tomada de decisões o mais pragmático possível. De qualquer forma há alguns princípios que,


pios, que por más que tratemos de ser objetivos, van a estar ahí. Para nosotros, esos principios están tan asimilados que se traducen en sentido común: que los proyectos se resuelvan de la manera más sencilla, barata, simple, y lógica posible. No hay una respuesta tipo. Cada vez que nos enfrentamos a un encargo, partimos de cero, sin prejuicios. La búsqueda de AL BORDE esta en encontrar respuestas especificas para cada caso. Nos preguntamos el por qué de todo. Tratar de entender la verdadera razón de cada requerimiento, no asumir nada por inercia o que no este pensado. Preguntar es el sistema de toma de decisiones. No es innovación, es una búsqueda direccionada y definida de soluciones. La mayoría de las veces los modelos importados no funcionan. Las soluciones híper tecnificadas desarrolladas en contextos distintos a los de Ecuador rara vez se adaptan a las necesidades locales del país o son muy costosas. Tampoco es la solución innovar por innovar, no tiene sentido. A veces, este pensamiento hace que los proyectos del colectivo se lean como una búsqueda ética de sostenibilidad, no lo son. Para nosotros es nuevamente sentido común. No hacer ni gastar más de lo que se necesita. Regresemos la mirada hacia nosotros, veámonos un poco más a detalle, tomándonos el tiempo que sea necesario, no hay prisa. Exploremos, descubrámonos a nosotros mismos, busquemos nuestras propias respuestas y construyamos nuestras propias referencias

Proyecto: AL BORDE - Esperanza Dos Lógica constructiva en función de un trípode que se adapta a las condiciones del lugar y los recursos que hay a la mano y aprovecha el conocimiento constructivo de la mano de obra local. El trípode se repite y se coloca en varias posiciones para generar espacios en función de lo que necesite la comunidad. No hay levantamiento topográfico, no se dibujan planos arquitectónicos, ni detalles constructivos. FOTO Esteban Cadena


por mais que tratemos de ser objetivos, estarão presentes. Para nós, esses princípios estão tão assimilados que se traduzem em um consenso: que os projetos sejam resolvidos da maneira mais humilde, barata, simples e lógica possível. Não há uma resposta padrão. Cada vez que enfrentamos um desafio, partimos do zero, sem prejuízos. A busca do AL BORDE está em encontrar respostas específicas para cada caso. Nos perguntamos o por que de tudo. Tratar de entender a verdadeira razão de cada pedido, não assumir nada por inércia ou que não esteja pensado. Perguntar é o sistema de decisões. Não é inovação, é uma busca direcionada e definida de soluções. A maioria das vezes os modelos importados não funcionam. As soluções super técnicas desenvolvidas em contextos distintos do equatoriano raramente se adaptam as necessidades locais do país, ou são muito caras. Tampouco é a solução inovar por inovar, não faz sentido. As vezes, este pensamento faz com que os projetos do coletivo sejam lidos como uma busca ética de sustentabilidade, mas não são. Para nós é novamente um consenso: não fazer nem gastar mais do que é necessário. Retornemos o olhar para nós, vejamo-nos com um pouco mais de detalhe, tomando-nos o tempo que for necessário, não há pressa. Exploremos, descubramo-nos, busquemos nossas próprias respostas e construamos nossas próprias referências Proyecto: AL BORDE - Esperanza Dos Lógica construtiva em função de um tripé que se adapta as condições do lugar e aos recursos que se tem à mão, aproveitando o conhecimento construtivo da mão de obra local. O tripé pode ser repetido e colocado em várias posições para gerar espaços em funçnao das necessidades da comunidade. Não existe movimento de terras, não se desenham planos arquitetônicos nem detalhes construtivos. Foto Esteban Cadena.


ILUSTRAÇÃO ODYR BERNARDI


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Parte de ensaio fotogr谩fico de Martim Passos, estudante de arquitetura e fot贸grafo amador.


OS ESPACOS LIVRES E A ESFERA DE VIDA PUBLICA CONTEMPORANEA EUGENIO QUEIROGA

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Foto Ilka Apocalypse

INTRODUÇÃO Miranda Magnoli, em sua tese de livre docência, definiu o espaço livre como todo o espaço livre de edificação ou livre de urbanização (MAGNOLI, 1982). O espaço livre (de edificação) se coloca na escala do tecido urbano, e não é apenas a praça, jardim ou parque urbano, mas também as ruas, os rios, os quintais privados, os lotes desocupados, as praias, mangues e florestas urbanas, enfim, todos os espaços abertos zenitalmente do meio urbano. Já os espaços livres de urbanização são aqueles de escala regional, afetos à produção do setor primário ou às áreas de conservação ambiental. Os espaços livres (de urbanização) eram facilmente identificáveis como “rurais” há décadas atrás, porém no presente, com as diferentes formas de urbanização e da expansão do modo de vida urbano, tornam-se mais complexos, tornando difícil distinguir nas regiões mais densamente urbanizadas do país os espaços livres de edificação dos espaços livres de urbanização. Na contemporaneidade, importa menos a distinção entre espaços livres de edificação e espaços livres de urbanização e sim reafirmar a importância dos espaços livres (espaços abertos) como objeto fundamental da área de Paisagismo (muito além do jardim). Deve-se salientar a responsabilidade da formação paisagística para a atuação dos arquitetos e urbanistas brasileiros, uma vez que a legislação atual do país estabelece a exclusividade do arquiteto e urbanista para a reali-

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Foto Nicolas Le Roux

zação de propostas no campo do Paisagismo, seja no âmbito do plano ou do projeto. Esse artigo discorre sobre especificidades intrínsecas dos espaços livres que lhes capacitam serem os principais espaços para a esfera de vida pública. São sínteses reflexivas e proposições conceituais que visam contribuir ao debate para a construção de cidades brasileiras melhores para seus vivenciadores. Em boa medida procurei demonstrar, aqui, apenas o que apresento em dois capítulos inicias de tese de livre docência (QUEIROGA, 2012).

OS SISTEMA S DE ESPAÇOS LIVRES Para Morin (2008), o conceito de sistema exprime ao mesmo tempo unidade, multiplicidade, totalidade, diversidade, organização e complexidade. Um sistema é um objeto complexo, suficientemente aberto, pois estabelece relações com outros sistemas, e suficientemente fechado, caso contrário não se caracterizaria como um objeto. Um sistema implica não somente a relação de seus elementos, mas tais relações constituem organização e estrutura relativamente estáveis, que caracterizam o objeto complexo. A organização, por sua vez, contém dialeticamente as relações que definem o sistema e que o transformam, possibilitando sua permanência e contendo a possibi-

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Foto Ilka Apocalypse

lidade concreta de sua dissolução. Um sistema é sempre um “sistema de sistemas”. Milton Santos (1996) conceitua o espaço (humano) como um híbrido, formado a partir da indissociável interação entre sistema de objetos e sistema de ações. Desta maneira o espaço é instância da sociedade, participando com as demais instâncias – economia, cultura-ideologia e política – do processo dialético da formação sócio-espacial de determinada sociedade. A dialética não se dá apenas sobre o espaço, mas, também, com o espaço. Tendo como referência os conceitos de sistema, espaço e espaço livre apresentados acima, pode-se afirmar que toda cidade possui um sistema de espaços livres, o que não significa dizer que tal sistema é mais ou menos adequado à esfera pública, ou que seu desempenho ambiental contribui, mais ou menos, para a drenagem, fluxos gênicos, amenização microclimática, mitigação de impactos urbanos etc. Não se pode reduzir a discussão dos sistemas de espaços livres aos sistemas de áreas verdes, esses são apenas subsistemas dos primeiros. De maneira análoga o sistema viário, o sistema de espaços livres de lazer e convívio público e o (eventual) sistema de unidades de conservação ambiental são apenas subsistemas do sistema de espaços livres de uma cidade, município ou região. Muitos são os espaços livres que integram vários subsistemas, a multifuncionalidade é mais frequente nos espaços livres do que nos espaços edificados, dando maior complexidade ao sistema de espaços livres geral, tornando redutora e limitada as abordagens de planejamento setorial referentes a subsistemas específicos. Nas proposições para o sistema de espaços livres de

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uma área urbana deve-se considerar também o conjunto de espaços livres privados, sua contribuição ambiental e mesmo seus diferentes graus de acessibilidade pública merecem ser potencializados. Compreender a complexidade processual dos sistemas de espaços livres permite propor ações que estimulem, inclusive, o imprevisto, seja em processos mais participativos de planejamento, projeto e gestão, seja nas apropriações dos elementos do sistema. Diferentemente da maioria dos espaços edificados, a liberdade é característica inerente aos espaços livres de acesso público.

A S E S F E R A S P Ú B L I C A S E O S E SP A Ç O S L I V R E S

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Foto: Ilka Apocalypse

O avanço dos condomínios residenciais e loteamentos fechados, o crescimento do uso e do número de shopping centers, fizeram diminuir formas tradicionais de apropriação de praças na escala de vizinhança, mas não impactaram negativamente as atividades de lazer e convívio públicos em parques e outros espaços livres na escala das cidades e metrópoles. Também a comunicação pela internet não retirou o povo das ruas e praças mais simbólicas, pelo contrário, basta lembrar os recentes eventos pelo mundo, da primavera árabe ao movimento occupy e às manifestações ocorridas no outono/inverno de 2013 em centenas de cidades brasileiras. Segundo Arendt (1991), a esfera pública é constituída pelas ações políticas. O viver em público se transforma, observa-se crescente complexidade da vida em públi-


A DIALÉTICA NÃO SE DÁ APENAS SOBRE O ESPAÇO, MAS TAMBÉM COM O ESPAÇO. A DIALÉTICA NÃO SE DÁ APENAS SOBRE O ESPAÇO, MAS TAMBÉM COM O ESPAÇO.

A DIALÉTICA NÃO SE DÁ APENAS SOBRE O ESPAÇO, MAS TAMBÉM COM O ESPAÇO.

.OÇAPSE O MOC MÉBMAT SAM ,OÇAPSE O ERBOS SANEPA ÁD ES OÃN ACITÉLAID A .OÇAPSE O MOC MÉBMAT SAM ,OÇAPSE O ERBOS SANEPA ÁD ES OÃN ACITÉLAID A

.OÇAPSE O MOC MÉBMAT SAM ,OÇAPSE O ERBOS SANEPA ÁD ES OÃN ACITÉLAID A

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co, o que denomino esfera pública geral (QUEIROGA, 2012). Tal esfera pública envolve todas as ações em espaços de acesso e visibilidade públicos, sejam eles propriedades públicas ou privadas, além das comunicações públicas em meios virtuais. Essa esfera potencializa, dentro dela, a esfera pública em sentido estrito, arendtiano, ou, como denominou Habermas (1984), a esfera pública política. Não há dúvida de que os espaços livres de acesso público, sejam eles de propriedade pública ou não, são os principais espaços da esfera pública geral. As ruas são os principais espaços públicos do cotidiano, não por sua capacidade de suportar a circulação de veículos, mas como espaço de convívio público, do ver e ser visto, espaço de maior percepção da cidade; são também, seguidas das praças, o lugar preferencial das manifestações e comemorações públicas.

A I M P O R TÂ N C I A D O S E SPA Ç O S L I V R E S PA R A A QUALIFICAÇÃO DA s c idade s B R A S I L E I R A s O espaço é um híbrido em movimento, mesmo quando sua materialidade se conserva por mais tempo. Entre os espaços urbanos, são os espaços livres os que mais facilmente podem acolher mudanças. Essa característica dos espaços livres permite evidenciar aspectos da dialética sócio-espacial por meio da qual contradições e conflitos, riqueza e po-


REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A condição humana. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. MAGNOLI, Miranda. Espaços livres e urbanização: uma introdução a aspectos da paisagem metropolitana. 1982. 116 p. Tese (Livre Docência em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1982. QUEIROGA, Eugenio. Dimensões públicas do espaço contemporâneo: resistências e transformações de territórios, paisagens e lugares urbanos brasileiros. 2012. 284 p. Tese (Livre Docência em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Unversidade de São Paulo, São Paulo, 1982. ROCHL IT Z, Rainer (Coord.). Haber mas: o uso público da r azão. Rio de Janeiro: Tempo Br asileiro, 2 0 05. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.

EUGÊNIO QUEIROGA é professor associado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e bolsista do CNPQ.

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Foto Vitor Nisida

breza, força e fragilidade, violência e solidariedade são manifestações acolhidas o tempo todo pelos espaços livres urbanos, notadamente os de maior apropriação pública. A dialética sócio-espacial inclui dinâmicas capazes de reduzir espaços livres públicos à utilização privada, bem como espaços privados, ou propriedades públicas destinadas a usos bastante restritivos, podem se “publicizar” fortemente. Não se tratam de desafetações ou desapropriações, mas da dinâmica das apropriações sociais de tais espaços ao longo do tempo. O espaço livre vivido se transforma, superando planos inicialmente estabelecidos pelo Estado e pelos agentes imobiliários. As relações estruturais entre Estado, capital e trabalho se estabelecem, e se transformam, ao longo do processo dialético, o futuro não se determina a 9,5 produção e apropriação dos espaços livres de nossas cidades e metrópoles. Um processo participativo assim estabelecido permite o reconhecimento da alteridade, da troca de saberes e da construção coletiva de conhecimento novo. Potencializa-se uma pedagogia do espaço público, crítica, participativa, criativa e cidadã. O dissenso e o consenso se constituirão dialeticamente, enriquecendo a esfera pública política. A melhoria dos espaços livres constitui-se, portanto, tanto em fim quanto em meio para a qualificação das cidades e metrópoles enquanto lugares, por excelência, da vida pública, contribuindo para o desenvolvimento de uma sociedade mais crítica e solidária


O TAMANHO DO ESPAÇO

A medida do espaço somos nós, homens, Baterias de cozinha e jazz-band, Estrelas, pássaros, satélites perdidos, Aquele cabide no recinto do meu quarto, Com toda a minha preguiça dependurada nele... O espaço, que seria dele sem nós? Mas o que enche, mesmo, toda a sua infinitude É o poema! - por mais leve, mais breve, por mínimo que seja...

ILUSTRAÇÃO FELIPE RIGHI

Mário Quintana


CERTOS HÁBITOS

ILUSTRAÇÃO MICHEL MORENO LARA

ESTEVÃO SABATIER


Estevão sabatier é aluno de arquitetura na FAUUSP Ilustração baseada na instalação da exposição “A casa é o corpo” (1968), de Lygia Clark

Quando pensamos no que engloba uma profissão como a arquitetura e o urbanismo, poucos temas projetuais parecem ser tão próprios ao arquiteto e urbanista como a questão da residência. Porém isso não é só uma questão profissional; também na vida humana cotidiana e histórica poucos temas parecem tão icônicos e passíveis de entender uma sociedade como as questões relativas à casa e a cidade; como vivem e como se relacionam os cidadãos tanto no espaço público como no privado. De maneira geral se debruçar sobre o habitat, sempre foi e possivelmente sempre será um ótimo estudo de caso para uma análise social e essas relações humanas podem e devem ser vistas pelo seu viés espacial, como agente e produto do espaço. “Você praça acho graça. Você prédio acho tédio”1.

Apesar de atualmente as discussões estarem focadas principalmente nas questões coletivas, o objetivo desse texto é justamente falar do seu contrário, do individual, da esfera do pessoal e principalmente compilando diferentes autores e trazendo-os para a esfera da arquitetura. Esse stencil que encontramos pela rua sintetiza esse momento, chamando o povo para sair de seus apartamentos e ir para o espaço público. Em meio a manifestações que tem tido como alvo os graves problemas da organização comunitária brasileira, na qual a participação do indivíduo para a grande maioria das pessoas é muito limitada enquanto uma minoria desfruta de podres poderes. Pretendo falar justamente de outro âmbito. Especificamente do espaço do individual, do espaço íntimo, de um espaço indefinido por definição, que se molda e se adapta (ou deveria) às manifestações mais íntimas do imaginário de cada um. Resumirei esse espaço como a casa, porém a casa não é um dado onipresente na história, porém a imagem psicológica do abrigo existe das mais variadas formas, tanto objetivas como subjetivas. “A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. [...] Nós vivemos na época da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso. Julgo que ocupamos um tempo no qual a nossa experiência do mundo se assemelha mais a uma rede que vai ligando pontos e se intersecta com a sua própria meada do que propriamente a uma vivência que se vai enriquecendo com o tempo”2.

No seu texto, Foucault analisa o espaço trazendo o conceito de heterotopia, como um espaço presente em todas as sociedades, um local onde são previstas manifestações fora do co-


mum, um espaço especializado que permite certas visões, usos, práticas ou manifestações que transcendem ao tempo, à moral, a lei, entre outros. Foucault, porém, traz um pensamento espacial voltado diretamente ao espaço público, não tratando diretamente do local privado. E é a esse ponto que quero abarcar. Antes de nos debruçar sobre os aspectos mais subjetivos da morada creio que é importante estudar também os sentidos mais vulgares que a casa possui, principalmente por uma análise etimológica de cada palavra ligada à habitação. Nenhuma palavra sozinha parece conseguir abarcar todos os sentidos desse local, porém uma análise de cada uma dessas palavras dá uma grande contribuição ao cercamento dessas questões, já que nenhum termo parece compreender todos os sentidos. Lar - Palavra que tem origem no “local onde se acende o fogo”: a lareira. É local privilegiado onde é possível se acolher, se esquentar, cozinhar e realizar ritos religiosos ou produtivos. Talvez um dos usos mais primitivos da casa. O fogo é um dos elementos mais vitais ao desenvolvimento do homem e não faltam exemplos e mitos de sua importância, como o mito de Prometeu. É um dos grandes símbolos do progresso e talvez o segundo elemento do abrigo. Primeiro se faz uma cobertura ou se aproveita uma existente como a caverna e depois se coloca o fogo. Apesar de muito clara e totalmente presente nas habitações primitivas, essa tática arquitetônica é muito cara a um arquiteto moderno em especial: Frank Lloyd Wright tinha uma visão muito definida da casa no sentido de abrigo, seja abrigo das intempéries, do tempo ou dos males sociais. A centralidade de suas residências é sempre definida pelo local do fogo e as lareiras são sempre criadas e pensadas como coração da casa3. Assim podemos dizer que Wright projetava “lares”. É visível o quanto desse fator continua presente até os dias de hoje na cozinha. Casa - Seu significado é encerrado em si mesmo. Porém dela deriva tanto à palavra a-casa-lamento quanto casa-mento, assim a casa se define e indica sua função como o lugar ideal para se ajuntar, gerar e criar filhos numa certa segurança e abrigo. Essa necessidade talvez hoje não faça tanto sentido num mundo tão urbanizado onde os perigos da natureza estão atenuados. Por outro lado o ato sexual sempre teve seu espaço fortemente regulado ou escondido pelas sociedades, o mesmo se pode dizer das crianças, que habitualmente possuem espaços separados na sociedade. Habitação - Ocupar como morada, residir ou viver em. A palavra “habitação” provém de “Hábitos” - Uso, costume, maneira usual de ser, traje, vestimenta. Uma casa não nasce somente de hábitos, mas é uma certa

Trabalho do Jornalista Dafne Sampaio, que teve a ideia após assistir ao documentário “Exit through the gift shop”(2010) sobre Banksy.

1.

FOUCALT, Michel. De Outros Espaços. Extraído de uma conferência no Círculo Francês de Estudos Arquitetônicos realizada em 1967

2.

VIRCHES, José Marcelo Souto

3.


Sobre o princípio do prazer e sua impossibilidade de realização plena na civilização, Freud afirma que [...]“esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz 4.

objetividade e repetição de hábitos que potencializou a experiência da habitação. Os hábitos não são autônomos, e geram espaços especializados no seu entorno: os hábitos sanitários que criam o banheiro ou o hábito de ir de carro para o trabalho que cria a garagem. Moldam as habitações, mas também são um reflexo do ambiente, sendo submetidos à fatores externos, como o clima, demandando hábitos específicos necessários à sobrevivência. Os diversos hábitos pessoais que diferem culturalmente também são uma fonte de conflitos pessoais e a tentativa de delimitar os hábitos e consequentemente as habitações entra diretamente no terreno da ética e também do Ethos. Ethos - Esse é um conceito complexo, mas de maneira superficial: Ethos está para a Ética do mesmo modo que Hábito está para Habitação; se o hábito é individual e gera a habitação, a ética é coletiva e também gera um espaço coletivo; que não é só espacial, mas também conceitual e filosófico: o ethos. Não pretendo filosofar sobre a ética, nem fazer uma elaboração filosófica sobre suas características e definições, mas sim indicar uma questão, de que a habitação também é uma questão ética. Onde os hábitos geram conflitos éticos e precisam ser debatidos. A arquitetura de maneira geral levanta inúmeras questões espaciais como a forma, a função em diferentes escalas, a estética de variados elementos e também as interações entre essas áreas, mas normalmente a relação mais introspectiva que determinado indivíduo estabelece com sua morada e com o ambiente é quase sempre deixada de lado. Existe uma difícil contradição colocada no espaço quando relacionamos o privado com o público, resumindo vulgarmente: “o seu direito vai até onde o direito do outro começa”. Esse equilíbrio, pesado na balança da justiça sempre gerou inúmeros debates, sobretudo nos postos do judiciário, mas também todos nós, que medimos nossas atitudes, ou não; dependendo de relações pessoais e sociais. Essas regras de conduta apesar de continuamente revistas socialmente criam uma contradição trabalhosa e nem sempre consciente para o indivíduo. Freud em um de seus textos mais conhecidos: “O mal-estar na civilização” criou um grande paradoxo na questão de que: “A civilização se inicia na repressão” situando a repressão como uma necessidade intrínseca à sociedade para haver civilização. O ser humano, regido pelo instinto e pelo prazer no seu estado de natureza precisa reivindicar do seu desejo para poder viver em sociedade e entrar no que chama de estado de realidade. É no conflito dessas duas formas inconscientes que começa a surgir a diferenciação entre o externo e o interno. Freud revela a existência de um inevitável mal-estar ine-


rente. Para ele a liberdade não é uma conquista civilizatória; muito pelo contrário. A civilização nasce da capacidade de com mecanismos regulatórios restringir a liberdade individual4. O homem se constitui como um ser social, aprisionado a um dilema que parece insolúvel: enquanto no seu estado original de natureza o ser humano era totalmente livre de regras e padrões, essa liberdade pouco valia, uma vez que sem as normas sociais reguladoras do comportamento todos os indivíduos ficavam vulneráveis e à mercê de suas fraquezas. O mais forte sempre vence. Sua afirmação se torna portanto uma contradição inexorável para a sociedade e também para o espaço, principalmente o público, onde determinados prazeres devem ser reprimidos para o bem comum, pois numa plena liberdade os instintos agressivos existentes dentro de todo ser humano destruiriam a si próprio e ao outro num contato sem renúncia. “Observando os desdobramentos da sociedade atual em que os indivíduos encontram-se cada vez mais conduzidos pelo imediatismo e autobenefício, torna-se perceptível uma ênfase no princípio do prazer, conceito desenvolvido na teoria freudiana que se baseia na incapacidade de se contrapor à realidade por um ego forte, autônomo e, em nome de uma autopreservação falsa, o indivíduo adere ao exterior identificando-se com ele, procurando estar distante do sofrimento imposto pelo processo civilizatório. Nessa sociedade, o indivíduo parece não precisar mais reprimir-se, pois a felicidade, ainda que apenas como promessa, é apresentada como algo possível de ser realizado nas mais diferentes situações como, por exemplo, na ideia de democracia, no consumismo e nas coletividades.”5

Essa contradição básica, muito discutida e questionada, está dada sob formas espaciais. A realização humana é extremamente conflituosa e o contato com o outro (essencialmente no espaço público) traz uma possibilidade de conflito atordoante. Na arquitetura esse assunto costuma nem ser levantado, mas é de essencial validade pra grandes dilemas arquitetônicos que acabam se tornando tabus. Numa sociedade historicamente voltada à repressão (ou alienação do desejo, como no capitalismo), o indivíduo se insere em constantes julgamentos, principalmente quando se relaciona publicamente com outros. A tomar contato com o outro e sua visão de mundo, a identidade no espaço do público é constantemente questionada e reprimida de formas veladas, na maior parte do tempo arraigadas na realidade psíquica so-

tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue” (FREUD, 2002, p. 24). 5. SILVA, Lenildes Ribeiro. Educação Repressão e Princípio do prazer.


Para Winicott a constituição de um si-mesmo pessoal é a o princípio da conquista de poder se relacionar com o mundo, ter confiança, ser responsável e ter liberdade pessoal e interpessoal. Processado de modo gradual e abrigado conforme a necessidade. 6.

cial e também espacial de cada um. Na forma de um projeto arquitetônico esses conflitos às vezes são resumidos por questões técnicas como a acústica de uma residência para outra, a ergonomia, a térmica e até a eficiência energética de determinados sistemas, mas se tornam paliativos, flertando com o desastre. A casa e as formas espaciais (e as não espaciais também) nas quais se desdobram seus valores, não podem ser encarados como um simples objetos, objeto do morar ou como local objetivo do habitar; ou seja, a casa não deve ser tratada somente de forma objetiva, pois a relação do indivíduo com sua habitação guarda sentidos e valores de ordem subjetiva muito importantes e influentes nas suas interações sociais e que possuem um grau de importância preponderante frente à relações simplesmente formais, funcionais ou estéticas. A casa, seus significados psicológicos e símbolos são muito complexos e estão ligados subjetivamente à possibilidade de estabelecer uma consciência funcional, aberta a novas ideias e se configura como condição primordial da liberdade individual6. O arquiteto possui na ponta da lapiseira uma responsabilidade muito complexa. Seu desenho possui agravantes financeiros, formais, sociais e também psicológicos. Cabe então enfatizar o quão grave é a negligência dos aspectos psicológicos referentes a cada indivíduo e sua visão de mundo. A arquitetura deve estar verdadeiramente ciente das dificuldades da vida em sociedade e dos conflitos internos do indivíduo permitindo na forma da casa a superação desses paradigmas e não o constrangimento à formas standard pré-estabelecidas. Essa atitude empática com o usuário é muito raramente percebida no exercício de projeto; que muitas vezes se mostra tendendo a um protecionismo infantil ou pendendo para um transtorno atordoante do morador. Criando projetos que de maneira geral tendem ou a um romantismo coletivista ou um individualismo capitalista fundado na exaltação do existente: a fetichização ou coisificação da vida. “Ao longo de alguns séculos, o indivíduo se tornou para nós mais importante do que a comunidade. Esse período teve seu ápice no começo da modernidade. Paradoxalmente, logo quando o indivíduo passou a encabeçar nossos valores, a gente começou a idealizar o amor romântico como doação perfeita de cada um ao outro. Da mesma forma, quando começamos a inventar as regras e as formas de uma sociedade de indivíduos separados e autônomos, logo naquele momento começamos a sonhar com o abraço de comunidades unidas e fraternas. Ou seja, quanto mais


prezamos o indivíduo, tanto mais sonhamos com o amor e o ideal comunitário. Esse paradoxo nos define. Estamos em conflito permanente entre nossa aspiração individual e nossos sonhos amoroso e comunitário.”7

Apesar desse pêndulo conflitante do privado x público, é dentro dessa esfera que reside a função da casa. Os significados simbólicos da casa são tão arraigados à consciência e a individualidade que podemos dizer que sua necessidade e importância se mostram presentes no indivíduo antes mesmo de sua definição. Afinal moramos espacialmente muito antes de entendermos o que é e onde o fazemos. O abrigo já é uma realidade para um feto, mesmo que esteja ainda muito longe de conseguir definir conscientemente que necessita de abrigo, mesmo que essa necessidade seja inegável e essencial para o seu desenvolvimento. Os cuidados dos quais ele depende vêm de ‘não-se-sabe -onde’, confundindo-se até com o próprio bebê, mas de fora. Podemos dizer que o porto inicial dessa trajetória é sempre o útero, todos viemos do útero e essa condição parece sempre ser recordada como símbolo do abrigo ideal do ser humano. Várias civilizações como os Berbere do norte da África ou os índios Matis do Amazonas enterram seus mortos em posição fetal, como que simbolizando uma volta à serenidade do útero. Mesmo assim o destino inexorável no útero é de que seremos literalmente e inevitavelmente lançados para fora desse abrigo nutritivo e acolhedor frente a um mundo que sucessivamente devemos encarar, mundo esse cheio de conflitos, frustrações e angústias. Essa condição irreversível de perda do útero materno muitas vezes pode acabar se tornando um ideal de conforto perseguido obsessivamente, sobretudo quando a criança (ou o adulto) não consegue estabelecer novos laços de morada e abrigo com e no mundo. Assim pode-se afirmar que as atribuições de moradia ou do lugar de abrigo variam expansivamente conforme o entendimento espacial e a segurança do individuo vai crescendo. O bebê que inevitavelmente perdeu sua morada, o útero, vai estabelecendo relações de segurança sucessivamente. Primeiro com o colo e com o seio da mãe8 caminhando para a identificação do pai, da mãe e de outros portos seguros como avós, tios, babás, e num certo futuro sucessivo, do berço, da casa, do prédio, do bairro, da cidade, do país. O sentimento de “estar em casa” não necessariamente precisa estar relacionado com um espaço físico especifico, mas também pode se estabelecer na presença de figuras de segurança como normalmente acontece com pai e mãe, mas também com figuras com quem essa relação vai se estabelecendo. Uma situação verossímil9 que acredito que é interessan-

CALLIGARIS, Contardo. Sonhos de Calor Humano. Coluna 20 de junho de 2013. Folha de S. Paulo.

7.

Inicialmente o seio nem consegue ser entendido como outro ser, sendo visto pelo bebê como parte dele mesmo, surgindo conforme sua vontade, visto por Winnicott como a gênese da criatividade. Ver Natureza Humana. WINNICOTT, D. W.

8.



CENA DO FILME PLAYTIME, DE JACQUES TATI


Apesar de ser uma cena cada vez mais rara, dado os poucos espaços de lazer e o crescente “encarceramento” da infância. 9.

MALACO, Jonas Tadeu. Da forma urbana: o casario de Atenas. Malaco no seu trabalho sobre a Atenas Clássica coloca durante os seus três livros essa nuance de caminho do indivíduo delimitado na sua intimidade até o espaço público da democracia: a assembléia. 10.

te nesse sentido é a de uma visita por um bebê que acaba de aprender à andar, mais ou menos com 1-2 anos. Tendo chegado inicialmente com a mãe (ou outra figura de segurança) ele é colocado no chão e começa certa “exploração”, dá alguns passos, vira de costas para a mãe e anda pela caixa de areia, cai, mexe nas folhas, anda um pouco para longe, coloca a mão suja na boca, mas sempre procura se sentir amparado, sempre que lembra volta a restabelecer contato visual com a mãe, à procura de garantir que ela ainda está ali e que sua segurança ainda está garantida. Sua aventura não é desgarrada e ele sabe que é dependente em suas necessidades. Apesar de banal essa aventura do cotidiano é imprescindível, ao longo da vida, cada indivíduo vai criando e enfrentando novas e sucessivas “aventuras” que se vão colocando na vida, essas porém retornam ao porto seguro, reestabelecem as energias em segurança e abrigo, é nesse ponto que se torna importante o estudo da casa, ela é o porto seguro para onde se pode voltar logo após se aventurar no espaço público, ela está totalmente relacionada com a independência do sujeito e não se desfaz de um momento para o outro, pode se desfazer materialmente, mas nunca mentalmente. “Protegida estava a intimidade familiar. As casas na concretude de sua própria realidade material, cuidavam de preservar a intimidade. Cuidavam disso por meio de suas paredes e muros, pela ciência de ventilar e clarear os cômodos por um pátio central, pelo recurso às aberturas externas muito elevadas em relação aos passantes, pela disposição da porta de entrada de modo a não permitir olhares indiscretos; por toda esta série de cuidados, a casa, em sua própria concretude material, era usada como resguardo. Cada uma das casas em seu interior, e cada uma das famílias que nelas habitavam, constituíam-se em opacidade para os que lhe fossem estranhos.[...] Tal opacidade era garantia de não-interferência, de liberdade em relação à terceiros. O que pertencia a cada qual era efetivamente dado de forma tal que só poderia ser preocupação exclusiva sua, não podendo os demais em nada interferir. Ninguém podia imiscuir-se, cuidar do que era dos outros.[...] As casas não se deixavam conhecer seu interior, e talvez por isto, por serem um espaço de liberdade que as famílias se davam com exclusão das demais, pudesse ser entendida [como] problemática a forma de seu relacionamento urbano, pois: Como umas e outras poderiam relacionar-se se a cada uma e a todas faltavam o conhecimen-


to das demais? Nisto mesmo de as casas não se deixarem conhecer em seu interior, no entanto, já se está definindo um certo modo de relacionamento, um modo e regra de relacionamento dado pela definição de que a intimidade de cada um deve ser considerada negócio exclusivo seu.”11

A casa enquanto objeto psíquico não muda muito de função pelos séculos e continua na sua forma onde será gradativamente mais aberta conforme mais elaborada a relação com o mundo e com os outros seja. Uma casa aberta demonstra menores medos e conflitos com o mundo e vice versa. Portanto em São Paulo, os cárceres privados que alguns habitantes impõe a si próprios e suas famílias estão relacionados com a capacidade limitada e insegurança de seus moradores em lidar com a realidade externa e elaborar sua relação. Juntando ao fato de São Paulo ser a cidade com maior índice de perturbações mentais no mundo11 não é de se estranhar que sua forma urbana seja tão desconexa, labiríntica e cheia de pequenos burgos. A figura da casa de vidro, portanto, esse ente arquitetônico sacralizado que surgiu no movimento moderno, só pode ser possível numa mente “sadia” continuamente elaborando sua relação de pertencimento ao mundo, um ideal sem medo e sem conflitos. E então escancarado cada vez mais as portas e janelas até que a casa some chegamos no andarilho, que nem casa mais possui. A aventura do ser que não tem destino também se estabelece num porto seguro, mas no caso é nele mesmo e também no mundo, numa consciência própria, firme e responsável de suas batalhas, o aventureiro solitário não pode ter muitos planos, sua firmeza está na criatividade que ele confia à si mesmo de conseguir lidar com os problemas que não podem ser previstos, e este só parte rumo à aventura na certeza de si mesmo na capacidade de resolvê-los. Sua casa é o mundo. A casa, os espaço da vida estão intrinsicamente ligada à esse abrigo inicial ou esse porto seguro que é necessário para o crescimento. A metáfora mais clara dessa necessidade é a navegação, sobretudo a era onde as navegações eram uma grande aventura, nelas sempre existe a figura do porto, da metrópole para onde voltar. Na obra “O herói de mil faces” de Joseph Campbell, onde ele cita a jornada do herói em 12 fases, que sempre começa no cotidiano e após a batalha possui o retorno transformado para o seu mundo anterior12. Essa imagem também está muito próxima de Foucault13 no qual a Heterotopia por excelência é o navio, possuindo o abrigo da casa (que é gregária) e a liberdade da aventura (que não tem proteção): “Um navio é um pedaço flutuante de espaço, um lugar

O relatório São Paulo Megacity Mental Health Survey mostrou que a região metropolitana de São Paulo possui a maior incidência de perturbações mentais no mundo. O estudo feito pela OMS (Organização Mundial de Saúde) revela que 29,6% dos paulistanos, e moradores da região metropolitana, sofrem de algum tipo de perturbação mental. Entre elas: ansiedade, mudanças comportamentais e abuso de substâncias químicas.

11.

12. Passo 5 e Passo 12 respectivamente.

Hetero = outro + Topia = espaço. Ou seja o espaço do outro, o espaço da diferença. Foucault usa o termo heterotopia para descrever espaços que têm múltiplas camadas de significação que permitem a um ser ou vários uma experiência fora dos parâmetros normais. 13.


14.

FOUCAULT, Michel. De Outros Espaços.

sem lugar, que existe por si só, que é fechado sobre si mesmo e que ao mesmo tempo é dado à infinitude do mar. E, de porto em porto, de bordo a bordo, de bordel a bordel, um navio vai tão longe como uma colónia em busca dos mais preciosos tesouros que se escondem nos jardins. Perceberemos também que o navio tem sido, na nossa civilização, desde o século dezesseis até aos nossos dias, o maior instrumento de desenvolvimento económico, e simultaneamente o grande escape da imaginação. Nas civilizações sem navios, os sonhos murcham, a espionagem substitui a aventura e a polícia toma o lugar dos piratas.”14

É justamente nessa dimensão última colocada por Foucault que a casa toma seu sentido último e mais potente, a casa é muito mais do que um abrigo ou um espaço das lamentações do indivíduo, Gaston Bachelard talvez seja o maior estudioso desse imaginário sobre a casa e faz um trabalho minucioso, ao qual não pretendo me estender, mas que é de uma forma tão poética que tanto não quero tentar resumir como prefiro usar as palavras dele próprio: “Assim, abordando as imagens da casa com o cuidado de não romper a solidariedade da memória e da imaginação, esperamos fazer sentir toda a elasticidade psicológica de uma imagem que nos comove a graus de profundidade insuspeitos. Pelos poemas, talvez mais do que pelas lembranças, tocamos o fundo poético do espaço da casa. Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz. Somente os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele desfruta diretamente seu ser. Então os lugares onde se viveu o devaneio se reconstituem por si mesmos num novo devaneio. É justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como devaneios que as moradias do passado são em nós imperecíveis. Nosso objetivo está claro agora: é necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que frequentemente intervém, às


vezes se opondo, às vezes estimulando-se um ao outro. A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser “atirado ao mundo”, como o professam os metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado esse fato, esse simples fato, na medida em que esse fato é um valor, um grande valor ao qual voltamos em nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa.”15

Bachelard dá muita importância à solidão de cada um, a solidão que a casa permite e ao momento solitário que cada pessoa se abriga para pensar como a possibilidade do indivíduo, no coletivo o indivíduo perde sua identidade, é na solidão que ele se define. Mas essa solidão não se coloca como um antagonista do espaço público encarcerando o indivíduo no espaço privado, mas sim como um potencializador da vida: “A psicanálise situa frequentemente as paixões “no mundo”. Na verdade, as paixões cozinham e recozinham na solidão. É encerrado em sua solidão que o ser de paixão prepara suas explosões ou seus feitos. [...] O inconsciente normal sabe estar à vontade em qualquer lugar. A psicanálise ajuda os inconscientes deslocados, inconscientes brutalmente ou insidiosamente deslocados. Mas a psicanálise prefere colocar o ser em movimento a tranquilizá-lo. Ela convida o ser a viver fora dos abrigos do inconsciente, a entrar nas aventuras da vida, a sair de si.”16

A casa, como metáfora do mais íntimo, como representação do interior de cada indivíduo é então muito mais do que apenas paredes, do que apenas um espaço no qual a vida se inscreve nos momentos improdutivos, do que a pura tectônica, do que os discursos hipócritas da arquitetura ou do que um dicionário consegue descrever. Aceitar e respeitar a complexidade de cada um e de sua morada, deveria ser portanto um ideal para a arquitetura, um paradigma a ser trilhado, criando uma ligação e um cuidado constantes em sua formas. A casa é muito mais do que arquitetura

BACHELARD, Gaston. 15.

16.

Idem.



Bibliografia BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. CALLIGARIS, Contardo. Sonhos de Calor Humano. Coluna 20 de junho de 2013. Folha de S. Paulo CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. DORON, Roland; PAROT, Françoise. Dicionário de Psicologia. São Paulo: Àtica, 1991. FIGUEIREDO, Luis Cláudio. Revisitando as Psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. São Paulo: Vozes-Educ, 1995. FOUCAULT, Michel. De Outros Espaços. 1967. Tradução de Pedro Moura. Disponível em http://www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt.html FREUD, Sigmund. O mal estar na Civilização. Disponível em http://issuu.com/estevaosabatier/docs/mal_estar MALACO, Jonas Tadeu. Da forma urbana: o casario de Atenas. São Paulo, Alice Foz, 2002. SILVA, Lenildes Ribeiro. Educação Repressão e Princípio do prazer. Disponível em www. revistas.ufg.br/index.php/interacao/article/download/1402/2569 VIRCHES, José Marcelo Souto. Frank Lloyd Wright do ponto-de-vista de um Conto de Fadas. Trabalho de Graduação Individual. FAUUSP.1996. WINNICOTT, Donald Woods. A Natureza Humana. Rio de Janeiro, Ed Imago,1990. WINNICOTT, Donald Woods. A Criança e o seu mundo, Rio de Janeiro, LTC Editora, 2008. WINNICOTT, Donald Woods. A Família e o desenvolvimento Individual, São Paulo, Martins Fontes, 2005. SpressoSP – “São Paulo é a cidade com maior índice de perturbações mentais no mundo” Publicado em 10 de julho de 2013. disponível em http://revistaforum.com.br/spressosp/2013/07/sao-paulo-e-a-cidade-com-maior-indice-de-perturbacoes-mentais-no-mundo/; consulta em 15 de julho de 2013


TEXTO SELECIONADO POR GABRIEL FELTRAN



NOTAS SOBRE FICÇÃO DE BEATRIZ BRACHER EDU TERUKI OTSUKA*

O espaço na narrativa literária é possivelmente um dos elementos menos estudados pela crítica. Elaborado na literatura, o espaço quase sempre é mais do que a mera localização ou cenário e frequentemente cumpre função formal como espaço social e simbólico. Antonio Candido1 observa que o romance do século XIX, sobretudo o naturalista, tende a mostrar a influência do meio social sobre os grupos e as personalidades, estabelecendo um “vínculo determinante entre meio e personagem”. Mesmo ali, no entanto, a organização interna da obra pode ultrapassar o nexo determinista rígido e fazer com que os espaços irradiem significados simbólicos mais amplos.

Por esse motivo, os espaços podem, à primeira vista, parecer pouco expressivos, mas exigem antes um esforço de elevar à consciência os significados históricos que neles estão entrelaçados. Assim, mesmo quando a apresentação de lugares e coisas se desvincula dos homens ou parece ser escassa, como muitas vezes ocorre na literatura contemporânea, o espaço continua a ser um elemento importante na configuração das obras. É o que se verifica em um breve conto de Beatriz Bracher, em que as relações entre ambiente, ação e personagens compõem uma narrativa que capta aspectos significativos da experiência histórica atual.

* Professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas -FFLCH, da USP.

O conto Ficção, de Beatriz Bracher 2 , trabalha com elementos mínimos: além das reflexões da personagem-narradora, que ocupam cerca de metade do texto, a ação propriamente dita transcorre nos limites de uma situação em que tudo se concentra no tempo e no espaço exíguos do carro parado em um engarrafamento. Na primeira parte do conto, vemos a personagem-narradora explicando seus escrúpulos em adotar o carro blindado e afinal cedendo ao uso desse aparato de segurança como uma necessidade imposta pelo medo da violência na grande cidade. As reflexões funcionam como uma espécie de preâmbulo para o aconteci-

Antonio Candido, “Degradação do espaço”, in: O discurso e a cidade, São Paulo: Duas Cidades, 1993, pp. 55-94. 1

Na prosa de ficção posterior, a relação simbólica entre os espaços e a ação continua a atuar, ainda que não se acentue a vinculação determinista difundida pelo Naturalismo. Contudo, quanto mais as narrativas se aproximam de nossa experiência presente, tanto mais os ambientes e as coisas nos aparecem como elementos “naturais” do mundo.

1. 1.


mento que será narrado em seguida e têm papel fundamental na caracterização social e psicológica da personagem. Na segunda parte, conta-se o evento central que institui a narrativa. Fechada em seu carro em um congestionamento, a personagem-narradora é interpelada por um homem armado que pretende roubá-la, ameaçando matá-la se ela não lhe entregar o dinheiro. A mulher permanece impassível, observando os gestos do homem e ouvindo seus gritos de ameaça. O vidro blindado dá a ela a convicção de estar livre de qualquer risco, ao mesmo tempo em que inflige no homem certa hesitação e perplexidade. Mas então se grava no rosto da mulher uma súbita expressão de terror: ela se dá conta de que é o dia do rodízio, e que não está no blindado, como imaginava. O homem percebe o que se passa, quebra o vidro e esmurra a mulher, desaparecendo em seguida. O único rastro que ele deixa, na frase que fecha a narrativa, é “o revólver de brinquedo no meu colo manchado com nosso sangue”. Em toda sua simplicidade, e fazendo render ao máximo os poucos elementos narrativos que elabora, o conto apreende significados amplos em que ressoam traços de uma situação histórica precisa. E é sobretudo no tratamento do espaço, conjugado à caracterização social da personagem, que as marcas da história contemporânea se inscrevem.

2

Beatriz Bracher, Meu amor, São Paulo: Ed. 34, 2009, pp. 51-52.


2. 2.

O carro (supostamente) blindado em que a personagemnarradora se fecha é como uma extensão dos enclaves fortificados em que a elite passou a se refugiar, nas últimas décadas, em metrópoles como São Paulo – cidade que é inevitavelmente evocada na imaginação do leitor do conto. A cena já pressupõe a militarização do espaço urbano, a qual é visível nos complexos de segurança de certos redutos residenciais e é indicada, no conto, pelo carro blindado – palavra incorporada ao idioma através do francês blinder, derivado do alemão Blinde, “instalação militar que protege seus ocupantes” (Houaiss). A blindagem do carro de uso privado implica, pois, mais amplamente, toda uma ambiência de segregação urbana e de guerra social promovidas para defender as ilhas de suposta tranquilidade construídas nas cidades contemporâneas.3 Decerto, a segregação atual reproduz e aprofunda antigas segregações sociais 3 Sobre a segregação urbana e seu fundamento econômico, ver Mike Davis, Planeta favela, trad. Beatriz Medina, São Paulo: Boitempo, 2006. Sobre o caso de São Paulo, ver Teresa Pires do Rio Caldeira, Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo, trad. Frank de Oliveira e Henrique Monteiro, São Paulo: Ed. 34 / Edusp, 2000.


que há muito marcam a organização das cidades, em particular as de passado colonial. No mundo-favela de agora, entremeado de enclaves fortificados, o que se normalizou nas práticas da elite parece ser uma crueldade social que se manifesta em uma gradação que vai da indiferença ao ódio.4 Ao mesmo tempo em que, nas cidades, a vizinhança física entre condomínios de luxo e favelas se estreitou, tudo se passa como se as possibilidades de contato entre as vidas de ricos e pobres tivessem se reduzido drasticamente, e não apenas por causa dos muros eletrificados e vigiados.

3. 3.

Voltando ao conto de Bracher, no espaço dividido pelo vidro do carro, os personagens encontram-se em uma situação de proximidade física extrema e distância social absoluta. O homem, inquieto, aponta a arma para os olhos da mulher, apoia as mãos no vidro e aproxima o rosto vociferando ameaças, enquanto a personagem-narradora, imperturbável, assiste a tudo como se fosse cinema. Para ela, o vidro enquadra uma cena a ser contemplada que apenas lhe provoca uma “curiosidade apática” com o desenrolar da ação (“Eu mirava calma e hipnotizada, intrigada com o fim”). Nem mesmo o evento do assalto parece retirá-la do mundo de sonho erigido sobre o separatismo social consumado.5

4 Aproveito livremente observações de Paulo Arantes, Extinção, São Paulo: Boitempo, 2007.

“Mundo de sonho” (dreamworld) é um mote que atravessa um ensaio de Otília B. F. Arantes, “Ruínas do futuro”, in: Chai-na, São Paulo: Edusp, 2011, pp. 13-55. 5

A certa altura, o homem furioso barrado pelo vidro faz a personagem-narradora pensar em um animal enjaulado, “um fila brasileiro latindo e pulando atrás das grades enquanto caminhamos na calçada”. Curiosamente, a imagem inverte as posições das personagens, não só porque é a mulher que está enclausurada em sua fortaleza sobre rodas, tal como parte da população se trancafia atrás de grades e cães de guarda, mas também porque a raiva que até então parecia estar apenas do lado das classes (tidas como) perigosas se manifesta também, metonimicamente no cão feroz, do lado daqueles que são tomados pelo medo. A personagem-narradora mostra uma acentuada autoconsciência a esse respeito: “O medo dirige e transforma em hostilidade todo o humano, torno-me uma idiota”. Toda a reflexão inicial, aliás, indica a particularidade desta narradora, que se afasta da truculência da elite tradicional e arrola argumentos racionais, apresentando os motivos para a adoção do carro blindado, que ela considera “ideologicamente nefasto”. Muito além da auto-


preservação, que entretanto permanece decisiva, ela invoca seu papel e preeminência sociais para justificar sua decisão: observa que tem responsabilidade com os filhos, diz exercer “uma liderança produtiva na sociedade” e pesquisar “as origens de nossa desarmonia social”. Ela compreende, ainda, que o uso do aparato de segurança a isola do convívio com o mundo (“Se protegida, blindada, perco o contato”), mas o mundo que ali aparece já é segregado, como se o único contato possível com a vida fosse intermediado pelo medo (“Sem medo não há vida, afastado o mal, o bem se vai, não faço parte”). E, no entanto, como a narrativa do evento acaba por mostrar, o isolamento é apenas aparente: “Tudo deixa sua marca.”

4. 4.

A “ficção” do título pode ser entendida de várias maneiras. Além do sentido evidente de que o conto é uma ficção e não um documento ou testemunho de uma pretensa verdade factual, o próprio acontecimento narrado envolve algumas ficções. Primeiro, e também obviamente, o assalto com arma de brinquedo implica uma espécie de encenação, que no entanto mobiliza raiva

e medo reais. Por sua vez, a segurança privada, essa nova mercadoria que o carro blindado materializa, se alimenta de, e promove, o mesmo medo que reforça na consciência coletiva a ilusão da impossibilidade de transformar as relações – ilusão que se instalou no lugar outrora ocupado pela imaginação de outras formas de vida coletiva. Por isso mesmo, os redutos fortificados são espaços sem vir a ser, como um carro parado no eterno engarrafamento de um presente sem futuro. Rompido o vidro que separava as personagens, o contato possível é o golpe na face e a revelação do jogo de enganos (o carro não era blindado, a arma era de brinquedo, o assaltante não rouba nada). A frase final, ideologicamente dúbia, explicita a tensão social irresolvida que atravessa o conto desde o início. O “nosso sangue” (grifo meu) que mancha o colo da mulher parece unificar as experiências do homem e da personagem-narradora, cujo sofrimento, embora real em ambos os lados, não é simétrico. Ao mesmo tempo, a imagem do sangue, que, nas reflexões da narradora, é associada às vias da cidade e à própria vida, não deixa de sugerir algo como um desejo oculto de contato, no entanto só realizável em vista de outro ordenamento social


Ilustra ções HU GO GUEDE S


Carta ao Leitor


A Contraste quer discutir novas propostas para as cidades, mas não apenas da forma funcionalista como tem sido feita. É necessário entender que tudo que é construído no espaço urbano apresenta, além de sua função específica, um desdobramento sobre seus habitantes, suas formas de pensar e de agir. Ao segregarmos o pensamento funcional do formal, construímos a cidade sem considerar o âmbito das relações humanas. As reformas conturbadas do edifício Vilanova Artigas não passaram por um processo de compreensão dessas relações. O fato disso ocorrer numa faculdade de arquitetura e urbanismo, lugar de entendimento das implicações que o espaço construído tem na formação do ser humano, é preocupante. Se existe essa dificuldade em uma escola de arquitetos, como são feitas nossas cidades? Como serão feitas nossas cidades? Na universidade devem surgir as ideias para uma cidade melhor, para um futuro de possibilidades desejáveis. É na vida estudantil que temos a liberdade de pensar alternativas para os problemas urbanos, pois é o momento em que projetamos livres das implicações econômicas, políticas e burocráticas. Para isso, por mais que trabalhemos com os pés no chão, se faz necessário romper paradigmas, construir novos posicionamentos e dar espaço a loucuras, sonhos e utopias. Com isso em mente, a Contraste possui o desejo intrínseco de ser uma ferramenta dos estudantes para promover e expor essa ref lexão. Mais do que isso, existe aqui um espaço para os estudantes de arquitetura e design exporem seus projetos, que são a forma desses profissionais expressarem o que pensam. Aqui sempre será um espaço para a expressão poética, escrita e ilustrada de pessoas de todos os campos do conhecimento, e isso não deve mudar. Contudo, deve ser também o espaço onde o estudante se sente confortável para expor seus projetos arquitetônicos, urbanísticos, paisagísticos e de design com a mesma credibilidade que um profissional o faria. Fica aqui um convite para todos que quiserem construir esse espaço. O corpo editorial da Contraste é fluido e mutante: deve se renovar constantemente, como os alunos da universidade. Da mesma forma, seu conteúdo e suas funções devem ser redesenhados e experimentados. O mais importante é que os alunos se sintam livres para participar da Contraste, seja através de sua editoração ou do envio de conteúdo. Aqui é o lugar de discutir e expor as ideias.

CORPO EDITORIAL


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foto Luis Guilherme Alves Rossi




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