Revista Contraste #05

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o meu pensamento sรณ muito mayumi watanabe de souza lima

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devagar atravessa o rio a nado // porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar // procuro me despir do que aprendi // procuro me esquecer do modo de lembrar que me ensinaram // e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos


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a recuperação da cidade para as crianças


Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.

Ilustração: Rodrigo Chedid


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editorial corpo editorial

ninguém educa ninguém paulo freire

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uma experiência pessoal no aprendizado do planejamento urbano guilherme formicki

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escola (des)fazendo a cidade mariana wilderom e luiz recamán

auditório para questões delicadas guto lacaz

o ensino na prancheta: o legado de hélio duarte para a arquitetura juliane bellot

espaço e pedagogia: escolas abertas juliana stendard práticas de reflexão para o espaço educacional infantil leandro okamoto

cozinhas e espaço de formação nó coletivo

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citação louis kahn

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oficina favelas: o lugar da favela na educação universitária lab laje celebração de bodas da razão com o coração eduardo galeano

a educação pela pedra joão cabral de melo neto

o que há, o que se quer gt de ensino

do que é feita uma escola? ana ribeiro da costa

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entrevista álvaro siza

ataques constantes. luta sempre. algumas conquistas. poiesis na educação, por que não? marcia gobbi e natália marpica o mal educado antonia campos, jonas medeiros, márcio ribeiro

aécio egípcio angelo ardonde

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quinta-feira malu cardoso

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citação big fish

a milenar arte de educar dos povos indígenas daniel munduruku

além do (in)visível: um olhar sobre o delírio imagético ana da costa e luisa zucchi gosto de ser gente paulo freire

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mobilizando a cidade como recurso pedagógico: a experiência do coletivo sp safári renato cymbalista e sp safári

a arte das distribuições michael foucault

1984 george orwell

arquitetura e autogestão: (con)formação, form(ação) e (trans)formação isadora guerreiro

mobilidade urbana: circular pela cidade ou viver o espaço? letícia lemos

a construção dos espaços para a educação cássia buitoni

o inferno de dante é aqui: arquitetura, justiça e educação no sistema prisional brasileiro roberto da silva manicômios, prisões e conventos ervin goffman

150 ler palavras. ler o mundo paulo freire

a criança, o espaço e o brincar mayumi watanabe

pé pra fora ape mobilidade

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edi tor ial



Aécio Egípcio Angelo Gabriel Uehara Ardonde1 Ilustração: Teresa Lima B. de Carvalho


1 Angelo Gabriel Uehara Ardonde tem 20 anos. É graduando em Letras pela Universidade Estadual de Campinas, aspirante a escritor e a uma bolsa (se Deus quiser e mesmo se Ele não quiser) para pesquisa em teoria literária.

angelo gabriel uehara ardonde

— O agente vetor — ela disse — é o mosquito Aedes aegypti. A fala da professora ecoava desacompanhada e era captada por todas as canetas. A vermelha escrevia o título; a azul, as informações importantes; o resto ficava com a preta. Todos os copistas vestiam uniforme. Escreviam e escreviam sem parar. Por fora, estampada, a gente lia a fórmula do sucesso e os tantos aprovados em medicina. Por dentro, o sobrenome era disciplina. Prazer, aqui o seu filho vai ter futuro. — O futuro do pretérito se usa para indicar hipótese, incerteza ou irrealidade — agora era a outra que explicava. Se fosse sábado, estaria estudando em casa. Como era sexta, o garoto estava na escola. Ele sabia que às 7:45 tinha gramática. Tinha, além do mais, oito disciplinas até o fim do dia, então ainda era cedo. Mais informação, mais anotação. Ele também sabia que isso era importante — importantíssimo; no superlativo, claro. Afinal, caiu ano passado naquele vestibular, um dos mais concorridos do país. Caía uma chuva controlada lá fora. Mais pra fora, muito mais pra fora, tudo continuava ordenado como sempre: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno. Plutão ele não contava mais. “Minha vó tem muitas joias, mas só usa no…” — termina aí. Coitada da vovó, perdeu o pescoço. Ordenado: também era assim o pensamento do garoto. Para tudo tinha respostas prontas, exatas. Era com exatas que tinha mais afinidade. Ora, tinha seis aulas de matemática e seis de física toda semana. Seis vezes seis, trinta e seis: 1936, ano de assinatura do Pacto Anti-Komintern. Não gostava de história, mas tinha que decorar o que o professor falava. Isso era importante, também caiu ano passado. No pátio havia três monitores. Era preciso vigiar a movimentação. “Vigiar e Punir”, isso era Foucault. O garoto lembrava do nome “Foucault”, mas não sabia muito sobre ele. Só tinha uma aula de filosofia por semana. É, assim mesmo era melhor, nunca caiu filosofia no mais concorrido do país — ou seja, Foucault não era importante. Daqui uma semana seria o dia mais importante. Para isso, o garoto se preparou o ano inteiro. Prédio 2401, sala 6, carteira 21. Se fosse aprovado, teria um futuro garantido. Era isso que a propaganda prometera, não é verdade? Os monitores continuavam observando o movimento. O garoto sabia que o futuro seria ótimo...

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prender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência; IV - liberdade de crença; V - reconhecimento da vulnerabilidade do educa o parte mais fraca na relação de aprendizado; VI - educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de c VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prátic trinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais ou responsáveis pelos estudantes.§ 1º. As escolas confessionais e as particulares cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores mo iosos ou ideológicos, deverão obter dos pais ou responsáveis pelos estudantes, no ato da matrícula, autorização expressa para a veiculação de conteúdos identificados eferidos princípios, valores e concepções. § 2º. Para os fins do disposto no § 1º deste artigo, as escolas deverão apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estuda erial informativo que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados. Art. 4º. No exercício de suas funções, o professor: I - não se aproveitará da cia cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária; II - não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de vicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; III - não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de m ações, atos públicos e passeatas; IV - ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opin rspectivas concorrentes a respeito; V - respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções; VI - não rá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula. Art. 5º. Os alunos matriculados no ensino fundamental e no e médio serão informados e educados sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença assegurada pela Constituição Federal, especialmente sobre o disp rt. 4º desta Lei. § 1º. Para o fim do disposto no caput deste artigo, as escolas afixarão nas salas de aula, nas salas dos professores e em locais onde possam ser lidos por estuda ofessores, cartazes com o conteúdo previsto no Anexo desta Lei, com, no mínimo, 70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível imensões adotadas. § 2º. Nas instituições de educação infantil, os cartazes referidos no § 1º deste artigo serão afixados somente nas salas dos professores. Art. 6º. Professo dantes e pais ou responsáveis serão informados e educados sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que tange aos princípios referidos no esta Lei. Art. 7º. As secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, a ado o anonimato. Parágrafo único. As reclamações referidas no caput deste artigo deverão ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos intere riança e do adolescente, sob pena de responsabilidade. Art. 8º. O disposto nesta Lei aplica-se, no que couber: I - aos livros didáticos e paradidáticos; II - às avaliações pa esso no ensino superior; III - às provas de concurso para o ingresso na carreira docente; IV - às instituições de ensino superior, respeitado o disposto no art. 207 da Constitu eral. Art. 9º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação. ANEXO DEVERES DO PROFESSOR I - O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, co tivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária. II - O Professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções po ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas. III - O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de man es, atos públicos e passeatas. IV - Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma pro de e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito. V - O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educa al que esteja de acordo com suas próprias convicções. VI - O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, da sala de aula. JUSTIFICAÇÃO Esta proposição se espelha em anteprojeto de lei elaborado pelo movimento Escola sem Partido (www.escolasempartido.org) – “uma inicia unta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação políticoideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior” –, cuja rob ficativa subscrevemos:1 “É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudan rminadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual –incompatíveis com os são ensinados por seus pais ou responsáveis. Diante dessa realidade – conhecida por experiência direta de todos osque passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 a ntendemos que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que os recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Trata-se, afinal, de práticas ilícitas, violadoras de direitos e liberdades fundamentais dos e es e de seus pais ou responsáveis, como se passa a demonstrar: 1 - A liberdade de aprender – assegurada pelo art. 206 da Constituição Federal – compreende o direito do estud e o seu conhecimento da realidade não seja manipulado, para fins políticos e ideológicos, pela ação dos seus professores; 2 - Da mesma forma, a liberdade de consciência, ga pelo art. 5º, VI, da Constituição Federal, confere ao estudante o direito de não ser doutrinado por seus professores; 3 - O caráter obrigatório do ensino não anula e não restr erdade de consciência do indivíduo. Por isso, o fato de o estudante ser obrigado a assistir às aulas de um professor implica para esse professor o dever de não utilizar sua disc omo instrumento de cooptação político-partidária ou ideológica; 4 - Ora, é evidente que a liberdade de aprender e a liberdade de consciência dos estudantes restarão violad ofessor puder se aproveitar de sua audiência cativa para promover em sala de aula suas próprias concepções políticas, ideológicas e morais; 5 - Liberdade de ensinar – assegu art. 206, II, da Constituição Federal – não se confunde com liberdade de expressão; não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena d ada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa; 6 - De forma análoga, não desfrutam os estudantes de liberdad lha em relação às obras didáticas e paradidáticas cuja leitura lhes é imposta por seus professores, o que justifica o disposto no art. 8º, I, do projeto de lei; 7 - Além disso, a do ão política e ideológica em sala de aula compromete gravemente a liberdade política do estudante, na medida em que visa a induzi-lo a fazer determinadas escolhas polític lógicas, que beneficiam, direta ou indiretamente as políticas, os movimentos, as organizações, os governos, os partidos e os candidatos que desfrutam da simpatia do profes endo assim, não há dúvida de que os estudantes que se encontram em tal situação estão sendo manipulados e explorados politicamente, o que ofende o art. 5º do Estatut nça e do Adolescente (ECA), segundo o qual “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de exploração”; 9 - Ao estigmatizar determinadas perspect ticas e ideológicas, a doutrinação cria as condições para o bullying político e ideológico que é praticado pelos próprios estudantes contra seus colegas. Em certos ambien aluno que assuma publicamente uma militância ou postura que não seja a da corrente dominante corre sério risco de ser isolado, hostilizado e até agredido fisicamente p gas. E isso se deve, principalmente, ao ambiente de sectarismo criado pela doutrinação; 10 - A doutrinação infringe, também, o disposto no art. 53 do Estatuto da Criança lescente, que garante aos estudantes “o direito de ser respeitado por seus educadores”. Com efeito, um professor que deseja transformar seus alunos em réplicas ideológicas mo evidentemente não os está respeitando; 11 - A prática da doutrinação política e ideológica nas escolas configura, ademais, uma clara violação ao próprio regime democ na medida em que ela instrumentaliza o sistema público de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de determinados competidores; 12 - Por outro lad ável que, como entidades pertencentes à Administração Pública, as escolas públicas estão sujeitas ao princípio constitucional da impessoalidade, e isto significa, nas palavra o Antonio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 15ª ed., p. 104), que “nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosid oais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie.”; 13 - E não é s da máquina do Estado – que compreende o sistema de ensino – para a difusão das concepções políticas ou ideológicas de seus agentes é incompatível com o princípio da dade política e ideológica do Estado, com o princípio republicano, com o princípio da isonomia (igualdade de todos perante a lei) e com o princípio do pluralismo político as, todos previstos, explícita ou implicitamente, na Constituição Federal; 14 - No que tange à educação moral, referida no art. 2º, VII, do projeto de lei, a Convenção Americ e Direitos Humanos, vigente no Brasil, estabelece em seu art. 12 que “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com prias convicções”; 15 - Ora, se cabe aos pais decidir o que seus filhos devem aprender em matéria de moral, nem o governo, nem a escola, nem os professores têm o direit a sala de aula para tratar de conteúdos morais que não tenham sido previamente aprovados pelos pais dos alunos; 16 - Finalmente, um Estado que se define como laico – e anto deve ser neutro em relação a todas as religiões – não pode usar o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade, já que a moral é em regra inseparáve ião; 17. Permitir que o governo de turno ou seus agentes utilizem o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade é dar-lhes o direito de vilipendiar e dest retamente, a crença religiosa dos estudantes, o que ofende os artigos 5º, VI, e 19, I, da Constituição Federal. Ante o exposto, entendemos que a melhor forma de combat so da liberdade de ensinar é informar os estudantes sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados por seus professores. Nesse sentido, o projeto que ora se apresenta perfeita sintonia com o art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que prescreve, entre as finalidades da educação, o preparo do educando para o exercíci dania. Afinal, o direito de ser informado sobre os próprios direitos é uma questão de estrita cidadania. Urge, portanto, informar os estudantes sobre o direito que eles têm ser doutrinados por seus professores, a fim de que eles mesmos possam exercer a defesa desse direito, já que, dentro das salas de aula, ninguém mais poderá fazer isso por e-se por fim, que o projeto não deixa de atender à especificidade das instituições confessionais e particulares cujas práticas educativas sejam orientadas por concepç cípios e valores morais, às quais reconhece expressamente o direito de veicular e promover os princípios, valores e concepções que as definem, exigindo-se, apenas, a c e o consentimento expressos por parte dos pais ou responsáveis pelos estudantes.” Frisamos mais uma vez que projetos de lei semelhantes ao presente – inspirados projeto de lei elaborado pelo Movimento Escola sem Partido (www.escolasempartido.org) – já tramitam nas Assembleias Legislativas dos Estados do Rio de Janeiro, o, Goiás e Espírito Santo, e na Câmara Legislativa do Distrito Federal; e em dezenas de Câmaras de Vereadores (v.g., São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ, Curitiba-PR, Vit Conquista-BA, Toledo-PR, Chapecó-SC, Joinville-SC, Mogi Guaçu-SP, Foz do Iguaçu-PR, etc.), tendo sido já aprovado nos Municípios de Santa Cruz do Monte Car R e Picuí-PB. Pelas razões expostas, esperamos contar com o apoio dos Nobres Pares para aprovação deste Projeto de Lei. Sala das Sessões, em 23 de março de 2

Ataques constantes. Luta sempre. Algumas conquistas. Poiesis na Educação, por que não?



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ataques constantes. luta sempre. algumas conquistas. poiesis na educação, por que não?

Marcia Aparecida Gobbi1 e Natália Salan Marpica2 Ilustração: Flora Próspero

Um furacão se forma. Contrariando imagens mais comuns, esse vai se tecendo vagarosamente. Ainda assim, pega-nos de surpresa devido ao tamanho e força. Carrega muitos por onde passa e, num misto de contrariedades e resistências, outros tantos vão lutando contra o que passa. Difícil resistir a esse fenômeno. Mas nesse cenário aparentemente catastrófico, não há silêncio: ouvem-se rumores e vozes que rompem com um suposto mutismo. Esse pequeno artigo foi elaborado como no olho de um furacão, em que escrevemos entre tumultos, rápidas tréguas e à procura por compor resistências. Não se trata, contudo, de um chamado fenômeno da natureza como se prestaria um furacão. Não. Nada natural. A escrita desse texto versa sobre recentes propostas educacionais urdidas em pequenos grupos e que atingem a muitos estudantes, professores e professoras, e demais segmentos componentes dos campos escolares. Referimo-nos a ataques a propostas e práticas pedagógicas, a currículos já criados entre diferentes profissionais e considerando múltiplas vozes, e outros ainda pouco debatidos ou materializados, tais como Orientações Curriculares Nacionais, Diretrizes Curriculares Nacionais, mecanismos de avaliações externas constrangedoras e impositivas de conteúdo, tempos e práticas para a construção de conhecimento, entre outros. Estamos vivendo atualmente sob reformas educacionais de caráter conservador a regular conteúdos e práticas pedagógicas em diferentes setores e contextos. Toma a todos de súbito e apresenta à Educação no país perversas lógicas empresariais.


marcia gobbi e natália marpica

Carecemos, com isso, da participação de todos os segmentos da escola considerando as Ensino e Educação Comparada da comunidades externa e interna a compor voFaculdade de Educação da USP. zes construtoras de projetos educacionais e curriculares que tenham estudantes de todas 2 Natália Salan Marpica é Prof.ª de as idades, bem como professores e professoSociologia do IFSP e Doutoranda ras, como componentes principais a ensejar da Faculdade de Educação da USP. projetos e refletir sobre os contrastes e lacu3 FREITAS, Luis Carlos de. Os nas existentes nesse campo. Essa prática, de reformadores empresariais da caráter fundamentalmente democrático, é Educação e a disputa pelo controle garantia de algumas transformações sociais do processo pedagógico na em que não perfilem avaliações externas soescola. IN: Educação e Sociedade, madas a modelos apostilados de ensino, junCampinas, v. 35, nº. 129, p. 1085-1114, out.-dez., 2014. tando-se práticas punitivas relativas àquelas que contrariem temáticas e assuntos que devem vigorar em cadernos e demais recursos didáticos e, principalmente, na organização escolar. A presença de reformadores empresariais, como tem afirmado Luis Carlos de Freitas3, tem estrangulado a Educação e procurado transformá-la em bem rentável e pouco afável a poiesis docente e discente, tão cara à Educação — ­ poiesis aqui tomada como ato de criação, ato criativo fundamental à prática e ao ser docente, com a qual possa operar com a imaginação criativa não apenas no processo de elaboração de aulas, como também, nas relações estabelecidas entre todos na escola — comprendendo os diferentes segmentos que a compõem e seu entorno, a chamada comunidade. 1 Marcia Gobbi é Prof.ª Drª do

Departamento de Metodologia do

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ataques constantes. luta sempre. algumas conquistas. poiesis na educação, por que não?

Toma-se aqui, como mote para iniciarmos nossa breve proposta de reflexão, alguns aspectos que avaliamos como furtos diários à Educação brasileira e a todos que a compõem. Entre as pilhagens presentes nos discursos e propostas educacionais figura o chamado movimento Escola Sem Partido que postula contra uma Educação a que chamam de doutrinadora ideologicamente4. Suas tramas vêm sendo tecidas desde 2003 e ganharam recentemente assustadora inserção entre políticos — o que preocupa, já que tornou-se projeto de lei e conquista estados e municípios com propostas castradoras de conteúdos presentes em distintas disciplinas escolares, em especial Sociologia e História. Professores são vistos como militantes político-partidários a fazer uso de suas aulas e livros didáticos como armas a fomentar processos revolucionários entre alunos. Evidencia-se que esses não são compreendidos como atores ativos nos distintos processos de aprendizagem. A concepção torna claro que alunos e alunas não passam de meros seres vazios de conteúdos e acríticos a deixar-se levar somente pelas aulas assistidas. A afirmação “meu filho, minhas regras”, proferida pelos integrantes do referido movimento, apresenta cunho moralista e ganha espaço ao mencionar a família como local privilegiado de Educação, desqualificando a escola e as fecundas relações sociais nela existentes, bem como o vital aprendizado de convívio com as diferenças. Ao apregoar a neutralidade na Educação querem fazer crer a existência de algo impossível. Todos temos inscritos, desde nossos corpos, textos a narrar condições de classe social, étnicas, de gênero e inclusive religiosas. Nossas falas e escolhas, incluindo a de não escolher,


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expõe opções e de que lado nos encontramos nas tramas da vida, portanto, é inexequível um relações de gênero, sexualidade em ensino neutro. Que bom! seu conteúdo. Temos como Temáticas há tempos presentes em exemplo o inominável ato do intensos debates acadêmicos aliados à forvereador Fernando Holiday, mação de professores, recentemente têm do DEM, visitando escolas em estado no encalço desses mesmos projetos. descumprimento de seu papel junto à Câmara, a verificar o que Homofobia, transfobia, desigualdade entre os professores/as realizavam nas homens e mulheres, violência contra as musalas de aulas concernente aos lheres passaram a ser compreendidos como conteúdos mencionados. A ideia é assuntos que devem estar fora da escola. São coagir, inibir práticas democráticas chamados de ideologia de gênero e, segundo de ensino. Há que atentar-se alguns políticos, entre eles senadores e depara isso que, como pensamento ratazana, invade mentes e constrói putados federais, tais como Jair Bolsonaro, ninhos nefastos. Marco Feliciano e Magno Malta, podem influenciar negativamente alunos e alunas no que se refere à vida e orientação sexual. Aprovada no Senado e na Câmara dos Deputados com ampla maioria de votos, a Reforma do Ensino Médio, proposta pelo então vice presidente Michel Temer, constitui outro ponto a ser tocado. Essa reforma parece ser uma medida de combate à igualdade. É uma colcha de retalhos mal desenhada, mas que tende a garantir que estudantes de escola pública fiquem distantes dos conteúdos escolares tradicionais, os quais, ainda que sejam discutíveis, representam uma ferramenta socialmente válida de inserção no mundo – dominá-los oferece ao estudante, em 4 Proposta essa que pretende inibir

práticas pedagógicas que abordem

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especial ao estudante pobre, maiores chances de inclusão social. Mas não é só. A Reforma do Ensino Médio, já sancionada, é um conjunto de afrontas à comunidade escolar e à democracia. Figura, ter sido elaborada em forma de Medida Provisória, ou seja, sem contemplar o debate que precede a elaboração de uma lei. E estamos nos referindo a uma lei complementar à Constituição Federal de 1988 e que reforma todo o Ensino Médio, que somente em 2008 passou a ser obrigatório no Brasil pela primeira vez na história do país. Uma medida provisória é um recurso utilizado como forma de agilizar a apreciação e votação de uma lei, contudo esta reforma é baseada em um documento, a Base Nacional Comum Curricular - BNCC, a qual não está ainda elaborada. Assim, além de ficar incompreensível o porquê da pressa em aprovar uma reforma educacional via medida provisória baseada em um documento que ainda não existe, o próprio conteúdo da reforma fica ininteligível. Ainda no que tange a um processo antidemocrático associado à Reforma do Ensino Médio, podemos nos ater a detalhes e sutilezas do texto que denotam o caráter autoritário dos sujeitos que ocupam os cargos políticos neste momento. Ao longo de toda a LDB, em nenhum outro artigo da lei aparece referência alguma ao “Ministro de Estado de Educação” e seus “atos”, mas que na reforma, ou seja, com a lei 13.415/2017, passa a eclodir, gritar no texto da lei, como neste artigo referente aos recursos financeiros destinados às escolas de tempo integral : “A transferência de recursos será realizada anualmente, a partir de valor


marcia gobbi e natália marpica

único por aluno, respeitada a disponibilidade orçamentária para atendimento, a ser definiDiretrizes e Bases da Educação da por ato do Ministro de Estado da Educae institui a Política de Fomento ção.” (BRASIL, 2017, art. 14, grifo nosso)5. à Implementação de Escolas de Além da vaidade evidente em centraEnsino Médio em Tempo Integral. lizar somente “O Ministro” e não o Ministério em seu conjunto, este artigo fere o processo democrático de discussão, que deveria passar pelo Legislativo, e ignora também o Plano Nacional de Educação (PNE), que estipula uma série de normas e cálculos para definir o custo aluno/qualidade, demanda antiga dos movimentos pela Educação, mas que agora passa a ficar à mercê do bom humor do Ministro. Aliás, o PNE, fruto de intenso debate nos últimos anos e aprovado em 2014, foi completamente deixado de lado, esquecido, abandonado. A grande vitória do PNE, o de atrelar 10% do PIB à Educação, ainda que não somente à Educação pública, já não faz nenhum sentido quando temos a PEC do teto dos gastos públicos aprovada. Outro aspecto que deflagra uma relação ambígua com os processos democráticos se dá em torno da centralização e descentralização das tomadas de decisão a respeito do funcionamento do novo ensino médio, em um jogo que mescla desresponsabilização da União e autonomia dos estados e seus respectivos sistemas de ensino. A trajetória coronelista do Brasil ensina que descentralizar algumas decisões implica em aumentar poderes locais, dos coronéis, dos proprietários, e não o de garantir maior participação popular. A reforma, por sua vez, explora esta lógica 5 BRASIL. Lei 13.415, de 16 de

fevereiro de 2017. Altera a Lei de

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e deixa a cargo dos estados (sistemas de ensino) a decisão de quais “itinerários formativos” serão oferecidos pelas escolas. Os sistemas de ensino poderão oferecer somente um itinerário formativo. Assim, a propaganda de que os estudantes podem agora escolher quais áreas querem seguir no ensino médio é falaciosa, pois não há garantias de que haverá opções disponíveis aos estudantes. A autonomia dos sistemas de ensino significa negligência da União. Segundo a lei, os vestibulares deverão se orientar pela BNCC, mas como já mencionado, não se sabe ainda o que é este novo currículo. A priori, o que se pode compreender é que Português, Matemática e Inglês serão disciplinas centrais para todos os “itinerários formativos”, separados em quatro áreas do conhecimento. O aluno do ensino médio não estudará mais História, nem tampouco Geografia, Física, Química, etc., somente o que for designado dentro do itinerário formativo em que está matriculado. Artes e Educação Física, que a princípio haviam sido excluídas, voltaram a ser um “componente obrigatório”, e não sabemos ao certo como isso entrará na BNCC. Contudo, Sociologia e Filosofia viraram adereços e entraram para o texto da lei como “temas e práticas”, e não mais como disciplina. A legislação que regulamentava o Espanhol como língua estrangeira foi revogada, excluída, já não existe mais! A possiblidade de as escolas escolherem uma língua moderna também foi eliminada, dando obrigatoriedade ao Inglês, o que representa um grande retrocesso, em especial nos locais de fronteira e daqueles em contato permanente


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com nossos vizinhos hispano-falantes. E para aumentar a angustia, o estudante só poderá cursar outro itinerário formativo após se formar em um deles... e se houver vagas. Não se sabe como isso afetará os vestibulares, mas fica claro que o instrumental que a escola pública pode oferecer ao estudante fica muito empobrecido. É uma redução brutal. Há inúmeros outros problemas na reforma que mereciam ser esmiuçados: o aumento mal definido da carga horária, a invisibilidade do ensino noturno e da Educação de jovens e adultos, os mecanismos aligeirados de financiamento da escola de tempo integral, a retirada da necessidade de formação superior para os professores de ensino infantil e anos iniciais do ensino fundamental, as habilidades socioemocionais que passam a figurar como objetivo educacional (que, segundo o Banco Mundial, significa persistência no trabalho), e o desmantelamento do ensino técnico, que vinha se construindo nos últimos anos como escolas de qualidade baseada na formação integral do trabalhador, e passou a vigorar agora como trabalho não remunerado no lugar das aulas. Um mistura de incompetência e má-fé com quem está diretamente ligado à escola pública. Há quem analise que o objetivo desta reforma é preparar a juventude pobre para o mundo do trabalho alienado e evitar que empresas tenham que investir nisso. Há também quem veja nisso um mecanismo de sucatear a escola pública para promover a iniciativa privada e manter desigualdades sociais que vinham sendo reduzidas por meio da escolarização.

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A Emenda Constitucional 95, que limita por 20 anos os gastos públicos, parece não convergir com os caminhos que vinham sendo traçados no cenário neoliberal da Educação, em que dinheiro público era utilizado para enriquecer a iniciativa privada mediante insumos, recursos humanos, e planos de gestão que empresas privadas forneciam à escolarização gratuita. Neste sentido, quanto maior o gasto do Estado com Educação — ainda que privada, mas gratuita ao usuário — maior o lucro das empresas... Como, por exemplo, quando o MEC comprou, em 2013, 650 mil tablets para professores do ensino médio. Os professores nunca conseguiram usar esta ferramenta, mas o governo gastou 150 milhões de reais que beneficiaram empresas de tecnologia e fabricantes de tablets. Ou o próprio modelo do Plano Nacional do Livro Didático, que gasta quase 1,2 bilhões de reais a cada três anos, valor este que vai diretamente às editoras privadas, inclusive de grupos transnacionais. Assim, limitar o teto dos gastos públicos atinge também a iniciativa privada que esperava enriquecer graças ao dinheiro público injetado nas escolas. Deste modo, não está claro quem são os beneficiários deste conjunto de medidas. Por outro lado, durante este processo, a formação humanística se fortaleceu como um diferencial e agrega valor às escolas privadas. As ações na bolsa de valores das escolas que as oferecem têm subido vertiginosamente. Grandes redes de Educação de elite internacionais têm vindo ao Brasil com a propaganda de oferecer formação integral, artes, liderança, conhecimento dos


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clássicos da Literatura e da Filosofia. O Brasil de hoje vai ficar em débito com sua juventude mais pobre. Associado à reforma do Ensino Médio, tem-se a reforma da Previdência, um desmonte do futuro de todos os que vivem do trabalho, e que ataca fortemente professoras, professores e alunos. Até o momento não foi aprovada, mas, se de fato se viabilizar, a categoria docente perde sua aposentadoria especial, as mulheres perdem sua aposentadoria diferenciada da dos homens e os estudantes não terão emprego ao se formarem, já que as pessoas não irão se aposentar e liberar vagas para o ingresso dos mais jovens no mercado de trabalho. Este momento histórico deixa uma escola e um mundo do trabalho extremamente hostil para a juventude de hoje. Resistências têm ocorrido. Desde 2015, estudantes e professores se organizaram e tiveram algumas vitórias. Secundaristas de São Paulo, ao ocuparem as escolas contra o processo de reorganização escolar promovido pelo governo estadual, conseguiram derrubar o secretário de Educação e frear o fechamento de escolas. No Paraná, ocupações estudantis representaram a mais bonita manifestação contra o golpe presidencial e a Reforma do Ensino Médio. Professores se organizaram e hoje representam a categoria que enfrenta de forma mais organizada a Reforma da Previdência, constrangendo deputados e senadores e forçando o governo a modificar suas propostas. Contudo, nesta avalanche, parece que toda resistência ainda é insuficiente. Por vezes, diante de cenário político tão ausente de boas e justas possibilidades futuras, somos levados à reflexão. Apoiados

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22 ataques constantes. luta sempre. algumas conquistas. poiesis na educação, por que não?

nas palavras do poema concreto de Augusto de Campos que sugere variadas interpretações: Por ora, quis, mudar, tudo. Aparentemente sem vida e sem destino promissor postamo-nos com o silêncio/ação. Mudo. Certo estado de letargia parece subir pelas veias em lugar de sangue que leva à pulsação. Ainda como no olho de um furacão ao término da escrita desse breve artigo nos deparamos com a notícia de que o vereador Fernando Holiday não satisfeito com as intimidações feitas por ele aos professores e as professoras da rede municipal de ensino de São Paulo, durante visita à uma de suas escolas, protocolou projeto de lei favorável à Escola Sem Partido, o qual, em linhas gerais, visa a restrição de opiniões políticas de professores e professoras em sala de aula. Ligado ao MBL, o então vereador não mede esforços e soma-se a outros no aprofundamento de problemas na Educação contrariando processos democráticos que nos são tão caros. Vamos adiante: resistir sempre a essas imposições e projetar outros mundos. ⧊

Poema:

Augusto de Campos, Pós tudo, 1984.


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O Mal Educado é uma organização estudantil que surgiu a partir de duas experiências. A primeira, em 2009, foi quando estudantes da EE José Vieira de Morais se mobilizaram contra decisões da diretoria. Após manifestações, a gestão é trocada pelo governo do Estado e, após algum tempo, mostra-se tão autoritária quanto a antiga. O movimento se desmantelou e, apesar da revolta, os alunos se conformaram. A segunda experiência ocorreu entre 2010 e 2011 e diz respeito a articulação entre os grêmios das escolas, chamada Poligremia: “A Poligremia se mobilizou inicialmente em torno de um “festival de curta-metragens” produzidos pelos próprios alunos. E o seu funcionamento se consolidou como “horizontal” (decisões tomadas por meio de consenso coletivo) e “participativo” (abertura para todos os estudantes, independente da posição de seu grêmio), mas com o fim do festival ocorreu um vazio em termos de objetivos práticos e concretos. No começo de 2011, este vazio de identidade foi temporariamente preenchido pela luta contra o aumento da tarifa de ônibus, lançada pelo Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL-SP). Com a volta às aulas, é decidida a realização de manifestações descentralizadas nos bairros de suas escolas. O envolvimento nesta luta potencializou a Poligremia, que atingiu seu auge em termos de grêmios envolvidos: dez escolas, metade de colégios particulares, metade de ETECs. Suas formas de ação coletiva durante a luta contra a tarifa remetem ao movimento dos estudantes em 2015, como o uso do jogral (que também faz parte do repertório do MPL) e os trancamentos de ruas e avenidas (seu primeiro ato descentralizado foi “no cruzamento entre a Faria Lima e a Rebouças”). Também eram realizadas exibições de um documentário sobre o movimento no Chile (A rebelião pinguina) como forma de evocar “experiências práticas [...] numa tentativa de provocar mobilização”, ação que retornou em 2015 quando este filme foi divulgado na fase das manifestações de rua da luta contra a “reorganização”, a fim de demonstrar para os estudantes a eficácia histórica da tática de ocupação. (...) Foi a rede de contatos e a sociabilidade em torno do MPL-SP que permitiu o encontro das duas experiências que resultaram na fundação do coletivo O Mal Educado. A participação

L e u ad o M O A d C O MAL ed ucado

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antonia campos, jonas medeiros, mรกrcio ribeiro 25


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na mobilização pró-grêmio em 2011 no Vieira levou os exmembros da Poligremia a uma reflexão crucial sobre os obstáculos à organização estudantil nas escolas do estado, reconhecendo táticas comuns de desmobilização dos alunos, como a “burocratização da relação entre o grêmio e a escola, personalização e perseguição individual”. Mais do que uma “cartilha pré-fabricada com um passo-a-passo abstrato”, seria necessária “a conexão com outras experiências de mesmo sentido, do presente e do passado”. Os jovens relacionam este imbricamento de experiências, sentido histórico e identidade coletiva no movimento secundarista à teorização do filósofo grego-francês Cornelius Castoriadis acerca do movimento operário: “formular explicitamente, em cada oportunidade, o sentido de empreendimento revolucionário e da luta dos operários; [...] manter viva a relação entre o passado e o futuro do movimento”. A Poligremia deveria ter procurado “o ponto de convergência, o sentido comum entre as experiências destas organizações “ – ou seja, os grêmios – mas a avaliação de seus participantes é que ela acabou pecando por “buscar fora da experiência dos grêmios um sentido para sua unidade, uma vez que o “vácuo de identidade” foi em parte preenchido pela luta contra o aumento da tarifa. (...) No primeiro semestre de 2012, um ex-aluno da da EE José Vieira de Morais é chamado para se juntar a remanescentes da Poligremia e outros jovens que haviam participado de uma experiência auto-gestionária do grêmio da ETESP. Este foi o início do coletivo O Mal Educado, cuja primeira ação foi a criação de um jornal homônimo. (...) Como impedir que o ciclo do Ensino Médio, estruturalmente restritivo para a luta dos estudantes, apague sua história, suas experiências e vivências. Registrar a memória das lutas passadas possibilitaria uma troca de experiências tendo em vista o fortalecimento do movimento no presente e no futuro. (...) O ano de 2013 d’O Mal Educado foi, em grande medida, dedicado justamente à pauta do transporte público. (...) A volta à pauta da educação se dá somente no final do ano. A tradução da cartilha data de novembro de 2013, quando é disponibilizada no blog O Mal Educado. A ideia veio do fato de que um dos


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integrantes do coletivo tinha ido ao Chile em 2011 acompanhar o movimento dos estudantes secundaristas para conhece-lo de perto, como explica o outro integrante do coletivo: [O MAL EDUCADO – ENTREVISTA – 23/01/16] “Foi um negócio, assim, fortuito. Meio que... um dia vai acontecer ocupação de escolas no Brasil e a gente precisa... se a gente traduzir isso vai ajudar bastante gente. [...] Era uma ideia assim: ‘Vamo deixar no gatilho...’ Um dia os estudantes vão usar isso daí. [...] Foi um negócio despretensioso: traduzimos, deixamos lá, quando a gente viu que dava pra usar...” Em outras ocasiões, anteriores ao movimento contra a “reorganização”, o coletivo tentou apresentar a cartilha para outros alunos: logo que traduziram, mostraram para alunos da EE Levi Carneiro, no Grajaú, onde eles estavam assessorando a criação do grêmio estudantil; depois, no 1º semestre de 2015, durante a greve dos professores, também buscaram divulgar a cartilha. Porém, em nenhum dos dois momentos históricos a tática da ocupação fez sentido imediato para os estudantes, como faria no mês de novembro de 2015. (pág 61-66) A preocupação sobre o legado das organizações estudantis pode ser encontrada no próprio blod d’O Mal Educado: “A proposta de “O Mal-Educado” é não deixar essas histórias se perderem. Queremos registrar e divulgar algumas experiências de luta e organização vividas por alunos de diferentes escolas. Acreditamos que essa troca pode inspirar mais estudantes, que poderão aprender com os erros e acertos dos outros e pensar em formas de agir para enfrentar seus problemas.” ⧊

CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas. RIBEIRO, Márcio M. Escolas de Luta. São Paulo: Editora Veneta, 2016 (Coleção Baderna), p. 61 - 66. Ilustrações: Greta Comolatti, Renzo Comolatti e Frederico Luca para o blog O Mal Educado

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e nt re v ista c o m

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รกlvaro siza Lucas Cunha, Renan Prado, Caroline Ribeiro, Cรกtia Carvalho, Elisabetta Magenes, Francisca Pereira e Victรณria Baggio1 Fotos: Lucas Cunha e Renan Prado


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Dentro do escritório do renomado arquiteto português Álvaro Siza Vieira, vencedor do Pritzker de 1992, alunos de diversas nacionalidades da Faculdade de Arquitetura do Porto (FAUP) apinham-se ao redor de uma mesa de reunião em meio a montanhas de maquetes de estudo, paredes forradas com camadas de desenhos, mesas com computadores e pilhas de papel. Estudantes em pé, junto às paredes; no centro da mesa, Siza, e ao seu lado direito, o professor Manuel Graça Dias. Amigo pessoal de Siza e influente teórico de arquitetura e arquiteto com prática em Lisboa, leciona desde 2010 a disciplina “Estudos Críticos Álvaro Siza 2”. É oferecida como opcional na FAUP, onde os estudantes discutem a obra do arquiteto português ao longo das aulas, tendo em vista um tema central desenvolvido pelos alunos. Através do tema definido para este ano, “Contexto e Percurso”, formulamos em pequenos grupos perguntas para uma entrevista coletiva com o arquiteto Álvaro Siza. Segundo o professor Graça Dias, o trabalho se tornará um livro, a ser intitulado “Álvaro Siza: conversas com estudantes de arquitetura”, reunindo as entrevistas que ocorreram ao longo de todos esses anos. Com autorização do professor, publicamos aqui parte da entrevista com as perguntas que elaboramos. Elas fazem referência a FAUP em contraste com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

1 Lucas Cunha e Renan Prado são alunos do quinto ano da graduação da FAU-USP, em intercâmbio na Faculdade de Arquitetura do Porto no período em que a entrevista foi realizada.

2 A entrevista compõe o trabalho final do grupo de alunos composto por Lucas Cunha, Renan Prado, Caroline Ribeiro, Cátia Carvalho, Elisabetta Magenes, Francisca Pereira e Victória Baggio.

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32 entrevista

Corte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São

LUCAS CUNHA De acordo com a publicação brasileira Revista Centro, no final dos anos 1990, após visitar o edifício da FAUUSP do arquiteto Vilanova Artigas em São Paulo, o senhor comentou “Agora entendi como desenhar uma escola”. É curiosa esta declaração, tendo em vista que o edifício de São Paulo e a FAUP são ambos referenciais, mas fundamentalmente diferentes; pode-se dizer até opostos em determinados aspetos. Um dos aspetos mais importantes do projeto do arquiteto Vilanova Artigas é o caráter público de todos os ambientes, outro seria a possibilidade de se ver, sentir e escutar o que acontece em todo o edifício a partir de qualquer lugar. No caso da FAUP, percebe-se uma criação intencional de perspectivas dentro do edifício e uma separação clara dos espaços de uso, restrito e dos espaços públicos. O senhor considera que uma escola de arquitetura deva ter, portanto, esse caráter mais intimista e sóbrio nos espaços letivos?

Paulo (FAU-USP)

ÁLVARO SIZA VIEIRA Eu, eu disse isso? (risos) Não. (risos). É uma escola fantástica, mas não é verdade que tenha sempre... É uma coisa muito brasileira por causa do carácter que tem, não uma coisa universal. O clima por exemplo. Não sei, a própria informalidade, quando estive lá estava tudo sentado no chão. É realmente uma grande obra, devo ter dito qualquer coisa simpática (risos).


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LUCAS CUNHA A questão é mais no sentido de comparar o modo de se usar os edifícios enquanto estudantes. Porque, na FAUUSP os espaços são sempre abertos, ouve-se o que a pessoa está fazendo no outro estúdio, o professor a dar uma aula na sala do lado, enquanto que na FAUP, as salas são separadas... ÁLVARO SIZA VIEIRA Isso dava para responder durante um dia inteiro porque há sempre muitas razões por isto ser assim ou assado, mas procurando a ponta da meada, vamos lá a ver: o primeiro projeto que eu fiz (para a FAUP) era uma construção única maciça e pensava que, como era uma coisa sobre o rio, e eu nunca tinha feito nada sobre o rio, estava encantado e o que eu pensei foi no Palácio do Bispo, no perfil do Porto, aparece de repente um grande cubo, não tem nada a ver com as pequenas construções à volta tem depois a ver com a igreja (Sé do Porto) e com a Torre dos Clérigos - e entretanto havia muito uma conversa sobre integração e havia para alguns a ideia de que, não se podia romper a escala. Um arquiteto alemão, não sei de onde, até explicava o projeto de que estava muito orgulhoso porque era numa pequena cidade, de pequena escala, e ele teve que fazer uma Câmara, então fez o edifício da Câmara todo a imitar as casinhas, apenas pelo respeito pela escala. Eu vinha com aquilo na cabeça... Mas depois vi que não tinha nada a ver. Primeiro, porque o que é interessante no Palácio do Bispo é a complementaridade entre a grande escala deste edifício rodeada por casinhas, cubos, cubos, cubos... Portanto, isto nascia de um tecido e aqui não, não havia nada, no campus da faculdade, portanto passei a organizar por pavilhões.


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Corte da Faculdade de Arquitetura de Porto (FAUP)

Depois há muitas outras questões. Por exemplo, numa escola os espaços de distribuição de espaço livre nunca devem andar abaixo de 30 a 40% da área, os melhores andam pelos 50%. Ali, o gabinete responsável pelos projetos (da Universidade) impunham 20% no máximo, e eu sempre disse que não funciona com 20%. Como vocês veem, há corredores muito estreitinhos para meter aquele programa todo. Com 20% só para distribuição, não havia espaço de comunicação entre quem frequenta a escola, de maneira que pensei que tinha de fazer isso de fora. O clima não é como no Brasil, mas é bastante bom, pelo menos para os estudantes de ERASMUS que são do norte da Europa. Para os brasileiros não, para eles é um frio tremendo! (risos) Mas a propósito dos 20%... Não serviam de nada... E depois havia também a questão da topografia. Antes tinha feito o pavilhão Carlos Ramos - foi o segundo edifício a fazer-se, primeiro a casa cor de Rosa e depois o pavilhão Carlos Ramos - tive muito que pensar por ser um jardim fantástico, uma casa antiga, umas árvores formidáveis, que ainda lá estão - era o famoso ‘redondo rododendro’, que era o receio maior do (Fernando) Távora, sempre que nos encontrávamos dizia “não se esqueça do rododendro!” e depois era aqui o eucalipto, fantástico. Também já ouvi muitas interpretações de um ângulo que há aqui, já ouvi as explicações mais extraordinárias. A raiz normalmente ocupa o mesmo espaço que a copa da árvore, de maneira a que aqui tive de fazer este recorte porque aqui também não podia avançar porque aqui está o rododendro (apontando para o desenho). Mas houve esse problema, de topografia, e de depois eu aqui tinha começado com um edifício assim (desenho),


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depois passei para isto, e vi o interesse do pátio e deste pavilhão. Se vocês virem a faculdade é também um triângulo, de grosso modo. Depois a invenção de programa, também era, especificamente, com salas para dezesseis alunos... Era mesmo uma exigência do programa. LUCAS CUNHA É curioso, porque o senhor levantou o pavilhão Carlos Ramos, perceber que tem esses dois momentos de escola dentro da FAUP. Nas torres, as salas fechadas com os corredores pequenos e no Carlos Ramos, há esse momento de integração, de uma laje única, onde não tem essas divisões formais. MANUEL GRAÇA DIAS É um espaço único sem ser dividido. Programaticamente é assim. ÁLVARO SIZA VIEIRA Programaticamente era muito livre, não se sabia para o que era e continua sem saber... Se vai para lá o primeiro ano, o quarto... Já foi centro de estudos também... MANUEL GRAÇA DIAS Se vai ser uma loja de roupa! (risos) ÁLVARO SIZA VIEIRA Nada melhor do que uma planta aberta que não tenha definição de programa... E é isso. Agora, há uma comunicação, sim, de todas as salas com dois tipos de espaços que é: umas sobre o rio e outras sobre o pátio interior. Isso varia de pavilhão para pavilhão e às vezes de piso para piso. São experiências diferentes que os alunos têm do primeiro ao quarto ano, quem seguir o curso todo a norte ou todo a sul, outro para o pátio, outro para o rio... Eis a razão. Agora, devo dizer que a planta aberta de escola


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Bibliografia El Croquis - Alvaro Siza (68/69 + 95). Disponível em <https://issuu. com/talleralqbo/docs/el_croquis_-_ alvaro_siza> Acesso em julho de 2017

também nunca pensei fazer, não o teria feito porque... É muito problemático. Na altura estive em Harvard e lá havia muito espaço aberto, estive lá uns seis meses, ou quatro meses, e então os estudantes tinham painéis, e ali também era com uma condição muito especial: é caro. Harvard é caro. A maioria dos estudantes, julgo que a maioria eram ou sul-americanos ou asiáticos, muitas vezes chineses, etc. Gente rica e muito exigentes, porque achavam que se estavam a pagar tanto dinheiro, queriam estar sozinhos com os professores. Então dei-me com uns painéis, uns cubículos em que só cabiam o aluno, o estirador e o professor. Aquilo é uma coisa tremenda e eu lembro-me que as primeiras aulas que dei, dei como dava aqui, portanto era em diálogo. Não era criticar o seu trabalho e o resto um a um, não. Quando criticava estavam as pessoas a assistir, intervinham, etc. como julgo que ainda é agora. Isso lá é impossível, ao fim de três aulas ou quatro, veio ter comigo uma comissão a dizer que não era aquilo que queriam, queriam atendimento personalizado (risos). E assim foi e eu meti a viola no saco. Era muito chato, não tinha piada nenhuma. E, aliás eu lembro-me quando o Alvar Aalto esteve a ensinar em Harvard, e contava a não sei quem a história – eu li isso - que saiu... Deu aulas durante um tempo e depois foi-se embora! Porque iam ter com ele, pais de alunos, pais que pagavam muitíssimo dinheiro por aquilo, e diziam-lhe que, “O senhor está aqui, nós chamamo-lo porque o senhor é um gênio” - mais ou menos – “E nós queremos que o nosso filho seja um gênio! E não estamos a ver o senhor a conseguir fazer dele um gênio.” (risos). E ele foi-se embora... (risos). ⧊


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Do que é feita uma escola?

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Ana Ribeiro da Costa1

Qual a forma de uma escola? O quê forma uma escola? Quem forma a escola? Quem a escola forma? É refletindo sobre essas questões que o seguinte ensaio fotográfico apresenta e representa os espaços da Escola de Arquitetura, Urbanismo e Engenharia da Construção do Politécnico de Milão, especificamente do Edifício Onze, joia do modernismo italiano projetado pelo arquiteto Vittoriano Viganò.


A pesquisa se desenvolve na busca de algo que não está ali, explícito, porém, ainda assim, se pode ver: quem preenche aquele espaço.


O vazio do lugar nos causa estranhamento, Ê preciso completar o quebra-cabeças.


O observador é convidado a entrar e explorar o espaço acadêmico, especificamente uma escola de arquitetura, imaginando quem o frequenta e como.


Seria mesmo o espaรงo capaz de formar as pessoas, ou sรฃo as pessoas as formadoras do espaรงo?


1 Ana Carolina Ribeiro Ferreira da Costa ĂŠ aluna de Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP


44 o que há, o que se quer

Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. (...) Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado. Rubem Alves


Greta Comolatti, Isabela Luisi e Maria Isabel Magalhães1

1 As autoras participaram de um grupo de trabalho (GT) formado durante a greve estudantil de 2016. O objetivo era discutir o ensino de arquitetura e urbanismo na FAU USP, tendo em vista a reelaboração do seu PPP que estava por vir.

O QUE HÁ, O QUE SE QUER

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Ao mesmo tempo que é notoriamente reconhecida pelo seu ensino, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU USP) apresenta grande número de estudantes e professores insatisfeitos com sua estrutura pedagógica. A questão da grade horária é recorrentemente criticada, devido à grande quantidade de créditos obrigatórios a serem cumpridos. Dessa forma, o currículo acaba apresentando pouca mobilidade, preenchendo quase que integralmente os horários com disciplinas até o quarto ano da graduação. Além disso, o horário de aula não é suficiente para finalizar os trabalhos exigidos - aliás, a realidade está muito longe disso. A autonomia e emancipação intelectual, ilustradas pelo vôo no texto de Rubem Alves, são frequentemente prejudicadas por conta dessa sobrecarga. O envolvimento dos estudantes em atividades extracurriculares torna-se muito difícil, além de gerar um desgaste e uma desmotivação frente às próprias disciplinas. Também fica prejudicado o exercício da reflexão crítica do ensino, resultando na transformação de trabalhos em meras tarefas; ou na ideia de que se deve eleger quais matérias serão prioritárias ao invés de ter a possibilidade de dedicar-se a todas elas. A formação deixa de ser uma busca autônoma e prazerosa e passa a ser algo exaustivo e frustrante. A estrutura curricular e tantas outras questões não estão presentes apenas no imaginário que rodeia a faculdade, mas estão documentadas e consolidadas no seu Projeto Político Pedagógico (PPP) respectivo para cada curso. Trata-se de um documento exigido pelo MEC no qual, de forma bastante ampla, são requeridas as diretrizes pedagógicas gerais da instituição e os conteúdos mínimos que o curso deve abordar. É, portanto, um instrumento que define tanto a estrutura curricular da faculdade, como o tipo de profissional que ela pretende formar.


gt de ensino 47

o ppp da fau A cada quatro anos é feita uma reelaboração do PPP, que, apesar do seu potencial transformador na estrutura do ensino da faculdade, tornou-se um mero cumprimento burocrático. Isso ocorre não tanto pelo seu conteúdo, que em certos pontos se mostra bastante progressista, mas pela forma que se dá sua construção: geralmente, poucos são os envolvidos nesse processo, chegando só o produto pronto para a comunidade FAU. Sendo assim, é escassa a discussão coletiva e as ideias presentes no documento têm um efeito limitado sobre a realidade. No entanto, é possível um modo de construção alternativo a esse. Nesse sentido, buscamos ao longo deste texto trazer temas e posições levantadas durante a greve de 2016 em rodas de conversa que tinham como foco a discussão da formação que nos é proposta pela FAU. Isso, pela vontade de estimular todos a se envolverem na construção do Projeto Político Pedagógico (Participativo) que está por vir.

formação generalista Um dos principais temas debatidos foi a formação generalista, presente, desde o início, nas diretrizes de ensino da escola. A FAU USP foi a primeira faculdade no Brasil a introduzir este princípio em sua formação. O estudante teria disciplinas que envolveriam projetos sob diferentes abordagens, capacitando o futuro profissional para a solução consistente e criativa de problemas em diversos campos de atuação - da própria arquitetura, do urbanismo, do design de produtos, da comunicação visual, do paisagismo, dos projetos de restauro, em discussões sobre patrimônio, da crítica historiográfica, etc. Isso pode ser bastante positivo, pois proporciona uma visão global e mais complexa ao profissional, mostrando as conexões que esses conteúdos efetivamente estabelecem entre si.


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Dentro do que é uma formação generalista, que pretende ir além do campo da arquitetura, é necessário discutir o que é o campo da arquitetura em si.

No entanto, infelizmente, muitas vezes essa conexão acaba sendo pouco explorada pela estrutura das disciplinas, em que cada conteúdo é tratado de maneira isolada, perdendo a possibilidade de construir a complexidade presente na realidade. A articulação fica a cargo do aluno, não sendo fornecida pelo curso. De forma a fortalecer os elos que unem esses conteúdos, mais disciplinas e pesquisas interdisciplinares poderiam ser articuladas. Em outras instituições de ensino, como a UFRJ, é proposta uma integração em que todas as disciplinas do semestre baseiam-se em um único projeto. Já no projeto idealizado para o Instituto das Cidades, os semestres seriam baseados em temas, como por exemplo: “cidades vividas e imaginadas”, “a caminho das cidades - território rural e territórios híbridos”, “a chegada nas cidades- cidades modernas e moradia”, “cidades em construção: canteiro, construção, sindicatos”, etc. Esses são apenas alguns exemplos de como essa integração pode ser feita a nível institucional, tornando-se mais efetiva. Ainda, a articulação interdisciplinar poderia resultar em um volume menor de trabalhos, amenizando o peso da grade horária sem interferir em algo tão positivo e consolidado como a formação generalista.


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canteiro Dentro do que é uma formação generalista, que pretende ir além do campo da arquitetura, é necessário discutir o que é o campo da arquitetura em si. Existe uma deficiência quanto ao contato do aluno com o processo construtivo da obra, apesar dessa proximidade ser extremamente enriquecedora, se não fundamental na atividade projetiva. Tal conhecimento aproxima o estudante da realidade e também altera a percepção sobre sua própria prática, situando-o em meio aos processos envolvidos na efetivação de seu projeto. Por mais que a FAU hoje possua um espaço experimental de canteiro de obras, ele é pouco utilizado e inserido no currículo estudantil. Adicionar essa temática no PPP seria uma forma de consolidar essa preocupação quanto à nossa formação, e, a partir disso, caminhar para a inclusão desse espaço em mais disciplinas e projetos de extensão.

vocação pública Outra questão também explorada pelos alunos foi a necessidade da FAU, como parte de uma universidade pública, atender às demandas do bem público e não se reduzir a interesses mercadológicos. Isso está de acordo com os três pilares da USP: ensino, pesquisa e extensão. Observa-se, no entanto, que, se por um lado o incentivo à pesquisa já é amplamente feito pela universidade - o que é muito positivo -, por outro, ainda falta um incentivo às extensões que, no caso da FAU, são restritas, pouco conhecidas e divulgadas. Neste ponto, a faculdade perde seu intuito de ligar a teoria à prática, voltando-se muitas vezes apenas para a área acadêmica. A discussão em torno da vocação pública é extremamente relevante em uma PPP pois influencia o tipo de profissional que se quer formar no curso. Por mais que a PPP atual mencione os pilares da USP, essa questão se restringe às diretrizes do curso; na prática, como mencionado acima, o curso acaba criando barreiras para que isso se efetive.


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constante reconstrução Atualmente, a insatisfação com a faculdade é colocada em rodas de conversa entre estudantes, ou até denunciada pela plataforma #FAUnaoénormal - que surgiu em 2016 para expor questões críticas do curso. Além disso, ocorre uma mudança de perfil dos alunos ingressantes, devido à implementação de políticas públicas de inclusão, como o INCLUSP, PASUSP e SISU. Nesse contexto, é mais que necessária uma reestruturação do curso de arquitetura e urbanismo. Os estudantes devem se sentir representados na estrutura do curso, tanto em questão da carga horária, que precisa ser compatível com uma vida saudável além da universidade, quanto na questão dos conteúdos, devendo incluir novos lugares, situações, conflitos e tensões urbanas que façam sentido para os alunos e para as questões postas atualmente nas cidades. Nesse sentido, defendemos uma formação prazerosa, uma formação que estimule e motive os alunos em seus estudos e nas suas práticas. Mudanças nesse sentido poderiam se iniciar com o envolvimento mais amplo, tanto do corpo discente quanto docente, na discussão do Projeto Político Pedagógico do curso de arquitetura e urbanismo. Os debates e tópicos de discussões ficariam mais


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presentes a todos, e o salto que é ir de uma diretriz até sua prática seria menor. O futuro projeto poderia conter, além das diretrizes do curso, caminhos para sua efetivação, e a participação nesse processo fortaleceria o compromisso de todos em sua implementação. Isso não no sentido de desmerecer as existentes ações e iniciativas individuais, mas na vontade de tornar essas questões coletivas, potencializando as transformações possíveis. Por mais que o PPP seja o ponto de partida dessa construção, propomos uma constante reconstrução da faculdade, feita de forma ativa e coletiva por toda a comunidade FAU. Isso, por meio da presença de periódicas avaliações verticais, horizontais e pontuais das disciplinas - de cada uma em seu grupo, de cada uma em relação às demais disciplinas do semestre e de cada uma em si, respectivamente; de rodas de conversa quando necessário; do estímulo a um maior contato e troca entre aluno e professor. Em suma, a construção de uma cultura de permanente construção da faculdade, onde a possibilidade de mudanças em frente a insatisfações esteja sempre clara a todos. ⧊

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52 a educação pela pedra

a educação pela pedra João Cabral de Melo Neto Ilustração: Clara Bartholomeu


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Uma educação pela pedra: por lições; Para aprender da pedra, frequentá-la; Captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria Ao que flui e a fluir, a ser maleada; A de poética, sua carnadura concreta; A de economia, seu adensar-se compacta: Lições da pedra (de fora para dentro, Cartilha muda), para quem soletrá-la. Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, E se lecionasse, não ensinaria nada; Lá não se aprende a pedra: lá a pedra, Uma pedra de nascença, entranha a alma.



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Oficina Favelas: o lugar da favela na educação universitária Felipe Moreira, Lara Ferreira, Paula Oliveira, Victor Iacovini, Vitor Nisida e Rodrigo Iacovini1 Ilustração: Gabriela Gennari Fotos: Coletivo LabLaje

A universidade pública tem sido questionada, e com razão, por interagir de maneira insuficiente com a sociedade e por oferecer contribuições muito aquém daquilo de que nossas cidades precisam. Também não é de hoje que, dentro da própria academia, esta crítica encontra adeptos, os quais, em um esforço militante, muitas vezes esbarrando ou contrariando procedimentos burocráticos, institucionais e suas limitações orçamentárias, conseguem extrapolar a zona de conforto do ensino “regulamentar” para ousar na criação de novas interfaces de atuação que contribuam para consolidar o tripé universitário e assim efetivamente articular iniciativas de ensino, pesquisa e extensão. Ainda que seja um espaço privilegiado para o livre pensar, a universidade tem sido contaminada também por um modelo produtivista que compromete o esforço reflexivo e deprecia injustamente o valor do pensamento crítico. O resultado disso, para citar o mais óbvio, é uma produção acadêmica alienada das questões mais urgentes de nossas cidades e uma formação pouco instrumentalizada para dialogar com a diversidade de espaços que compõem as cidades no Brasil, como, por exemplo, a questão das favelas.

1 Membros do LABLAJE, coletivo formado por estudantes da pósgraduação da FAUUSP que se propõe a estudar o tema da Favela.


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realizado pela parceria entre o Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cepid) e a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab)/ PMSP sobre Favelas e Loteamentos irregulares no Município de São Paulo, a taxa de crescimento anual da população moradora de favelas foi de 1,1%, contra a média de 0,8% no município e de 2,2% dos domicílios em favelas, contra 1,9% da população em geral, no município. Ainda de acordo com os dados levantados pelo CEM e SEHAB, 11,6% da população da cidade de São Paulo vive em favelas.

Ao mesmo tempo, o número de favelas e da população favelada têm crescido nas últimas décadas2 , havendo, inclusive, uma alteração nos últimos anos do perfil dos municípios nos quais elas se tornaram uma alternativa habitacional para a população de baixa renda. Se, antes, eram um fenômeno exclusivo das grandes metrópoles, hoje, apesar de ainda predominarem numericamente nas maiores cidades, ocupações irregulares também têm surgido em municípios de médio porte, tornando-se, assim, uma questão relevante para inúmeros municípios brasileiros. A complexidade e urgência do tema demandam que ele seja abordado e discutido em suas diferentes dimensões pelos vários campos profissionais de maneira integrada. Assim, é de responsabilidade das universidades brasileiras que suas diferentes iniciativas de ensino, pesquisa e extensão contribuam para a produção de conhecimento científico e para a formação de profissionais sensíveis e capacitados para atuar de forma comprometida com a transformação dessa realidade. No entanto, esse compromisso não tem sido assumido pelas diferentes instituições do âmbito acadêmico, nem mesmo por aqueles cursos de graduação cujo objeto está diretamente relacionado à cidade e suas diversas dimensões sociais, jurídicas, econômicas e espaciais. Em cursos como arquitetura e urbanismo, ciências sociais, direito, economia, geografia, dentre outros, temas como a favela - cruciais para a formação de profissionais que se propõe discutir criticamente, planejar e intervir na cidade - sequer compõem o currículo básico obrigatório da graduação. As poucas disciplinas que tratam do tema, geralmente, se concentram nos cursos de pós-graduação ou integram o currículo de disciplinas optativas de algumas graduações, o que limita muito as possibilidades de se problematizar as favelas durante a formação desses profissionais. Na graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, por exemplo, a favela é objeto de discussão em poucos espaços e, com muito empenho de alguns professores para contornar a rígida grade curricular do curso, pode ser tratada por uma ou outra disciplina obrigatória de planejamento urbano. Isso significa que o tema ainda não foi alçado ao mesmo nível dos demais conteú-

A favela, território onde, via de regra, se encontram as situações urbanísticas e habitacionais mais vulneráveis de nossos centros urbanos, não é tema de interesse para formação básica dos arquitetos e arquitetas urbanistas formados pela maior universidade pública do país.

2 De acordo com o estudo


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dos tratados por matérias de projeto, de tecnologia e de história crítica da arquitetura e urbanismo. A favela, território onde, via de regra, se encontram as situações urbanísticas e habitacionais mais vulneráveis de nossos centros urbanos, não é tema de interesse para formação básica dos arquitetos e arquitetas urbanistas formados pela maior universidade pública do país. O trabalho de alguns laboratórios de pesquisa e grupos de extensão universitária, apesar de restrito a poucas iniciativas, deve certamente ser celebrado. Assim como as pesquisas que se desenvolvem no âmbito do programa de pós-graduação, que abordam e problematizam as favelas através de diversas perspectivas e dimensões, que vão desde a produção cotidiana do espaço até a escala nacional das políticas públicas voltadas a esses territórios, passando também pelo próprio papel militante de arquitetas e arquitetos urbanistas na complexa e desafiadora tarefa de trabalhar com a intervenção em assentamentos precários. Entretanto, também é importante reconhecer que existe um indesejável, mas constante, afastamento e desarticulação entre o que essas pesquisas de mestrado e doutorado produzem e as ações de ensino e extensão promovidas no âmbito da graduação, principal responsável pela formação dos futuros profissionais da área. A partir dessa reflexão, surgiu a ideia de realização da I Oficina Favelas3. Organizada pelo LABLAJE, coletivo formado por estudantes da pós-graduação da FAUUSP4, foi proposta como um momento para aprofundar o diálogo e a partilha sobre o tema entre estudantes (graduação e pós) de diversas formações. Estruturada em dois módulos, a Oficina contou com um seminário teórico e uma oficina prática, realizados entre os dias 20 e 29 de julho de 2016, em São Paulo. O seminário teórico buscou promover uma discussão diversa, aberta a cerca de 150 participantes, acerca de temas fundamentais para a compreensão das favelas no Brasil, tanto do ponto de vista teórico-conceitual – arquitetura e urbanismo, antropologia, direito, geografia, engenharia - como também das formas de atuar no território - trabalho técnico-social, diagnóstico, infraestrutura, melhorias habitacionais, etc. Este debate foi promovido com a participação de pesquisadores, profissionais

3 Para mais informações sobre a I Oficina Favelas e sua programação, visite o site http://favelaoficina. wixsite.com/oficinafavelas

4 O LABLAJE é formado, desde 2016, pelos mestrandos Felipe Moreira, Lara Ferreira, Paula Oliveira, Vitor Nisida e Victor Iacovini e pelo doutorando Rodrigo Faria G. Iacovini, autores do presente artigo.


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5 Embora tenha-se buscado mobilizar um público multidisciplinar tanto para participação no seminário teórico quanto na oficina prática, os estudantes e demais interessados na I Oficina Favelas foram oriundos, sobretudo, de cursos de Arquitetura e Urbanismo.

independentes, membros de assessorias técnicas, servidores públicos, movimentos de moradia e moradores de favelas, os quais apresentaram suas reflexões com base em suas experiências - acadêmicas, profissionais, militantes ou pessoais - no território das favelas. A oficina prática, realizada na favela do Jardim Jaqueline (Zona Oeste da cidade de São Paulo), e destinada a um grupo de cerca de 35 alunos de graduação, tinha como objetivos: Sensibilizar e aprimorar o olhar dos participantes para o território das favelas, os quais, a partir da imersão no Jardim Jaqueline, deveriam compreender as suas especificidades, identificando tanto potencialidades quanto deficiências existentes; Priorizar e qualificar uma problemática a ser objeto de proposta de intervenção, buscando coletar dados (quantitativos ou qualitativos) e promovendo a escuta a moradores e o aprofundamento dos diferentes condicionantes e impactos sociais, espaciais, jurídicos, etc. incidentes sobre o tema escolhido; Desenvolver uma proposta de intervenção aderente e sensível àquela realidade encontrada, buscando articular as discussões travadas no âmbito do seminário teórico com as demandas locais. A partir de uma primeira visita ao Jardim Jaqueline e da apresentação de uma leitura técnica da sua realidade, os participantes foram divididos em grupos de trabalho para desenvolver um estudo e uma proposta de intervenção, sem que houvesse uma definição prévia de tema e/ou formato. A composição mista dos grupos, envolvendo pelo menos um estudante de curso diferente da arquitetura e urbanismo5,e o acompanhamento de moradores, sempre que possível, foram diretrizes adotadas para o desenvolvimento do trabalho, conforme os objetivos pretendidos. Dentre as várias reflexões que o exercício prático ofereceu, destacamos aquelas que estão intimamente relacionadas com a discussão sobre o lugar das favelas na educação universitária. Primeiramente, é significativo o fato de que foi a primeira vez que muitos dos participantes entraram em uma favela com um olhar comprometido com o território enquanto objeto de reflexão e de intervenção. Isso demonstra o afastamento existente, e apontado anteriormente, entre as realidades urbanas e a formação básica de estudantes de diferentes cursos de graduação, que, mesmo quando colocam a favela enquanto um problema a ser discutido, não proporcionam a vivência deste território aos alunos, tratando-o apenas como assunto dentro das salas de aula. Também ficou clara a importância de se planejar cuidadosamente o envolvimento da população moradora na construção de


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Qualquer exercício acadêmico também deve estabelecer um amplo e permanente diálogo com os moradores. Isso é importante para que os moradores sejam sujeitos ativos em todo o processo e, assim, para que a reflexão e a proposição desenvolvidas estejam de acordo com as demandas locais

qualquer exercício acadêmico no território, não apenas em função das expectativas que podem ser geradas, mas também visando a clareza dos objetivos e das limitações desse mesmo exercício prático para todas as partes envolvidas. Como a oficina prática foi realizada no Jd. Jaqueline, onde já existia uma relação entre a Associação de Moradores local e a FAUUSP, através da professora Karina Leitão e orientandos da graduação, uma das premissas do trabalho foi o fortalecimento das ações e dinâmicas que já aconteciam no local. Da mesma forma como já é consenso que as intervenções públicas têm que ser realizadas de maneira participativa, a Oficina demonstrou que qualquer exercício acadêmico também deve estabelecer um amplo e permanente diálogo com os moradores. Isso é importante para que os moradores sejam sujeitos ativos em todo o processo e, assim, para que a reflexão e a proposição desenvolvidas estejam de acordo com as demandas locais. Neste sentido, foi fundamental que esta etapa tenha sido realizada no CRSANS Butantã6, dentro do Jardim Jaqueline, o que potencializou a aproximação e uma maior imersão dos participantes na comunidade. Uma avaliação que deve ser feita sobre os primeiros dias do exercício diz respeito ao processo de reflexão e formulação de propostas. Foi possível notar que em muitos grupos a ansiedade em se definir, já de início, uma proposição se sobrepunha ao desenvolvimento das fases de diagnóstico e reflexão, necessárias à elaboração de uma proposta mais crítica e aprofundada. Esse comportamento indica uma priorização muito maior da elaboração de soluções em detrimento da construção de uma adequada compreensão dos problemas, o que tem reflexos significativos nas práticas profissionais em torno do tema. Posteriormente, o desenvolvimento das proposições pode ser realizado de maneira livre (não foram definidos formatos ou resultados específicos a serem alcançados), apenas se requisitava que as propostas demonstrassem densidade e aprofundamento crítico sobre os problemas trabalhados. A diversidade dos tipos de intervenções e temas escolhidos e desenvolvidos pelos grupos (que variaram desde

6 Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável.


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espaço público, tratamento dos resíduos sólidos, salubridade, densidade habitacional até saneamento básico) demonstra as inúmeras dimensões e a complexidade que a atuação em favelas pressupõe. O resultado bastante diversificado dos trabalhos se deve tanto à sensibilidade dos participantes quanto à estrutura da Oficina, que deu abertura para a iniciativa dos alunos desenvolverem seus temas de interesse, oferecendo o suporte de um grupo também bastante diverso de monitores. Foram convidados, para isso, especialistas em suas diferentes disciplinas e práticas de atuação, os quais promoveram a troca de experiências e de conhecimento sobre os vários aspectos relacionados à prática de intervenção em favelas, fomentando as discussões das equipes. Essa participação plural e diversificada nos mostra a importância da combinação de várias experiências práticas e saberes no processo de aprendizado de um tema tão complexo. No ensino da arquitetura e urbanismo, por exemplo, a problematização das favelas será mais completa e apropriada quanto maior for o diálogo com outros campos acadêmicos e profissionais, que também oferecem subsídios e instrumentais importantes à compreensão dos problemas e à definição de propostas. A Oficina não objetivava ser um fim em si mesmo e uma de suas principais expectativas era gerar um processo de reflexão que se multiplicasse em novas iniciativas, em outras instituições e com novos atores, fomentando outras possibilidades de extensão e intervenção em favelas que respeitem seus moradores e suas demandas, e possibilitem espaços democráticos para a sua discussão. Nesse sentido vale mencionar que o LABLAJE tem sido procurado por diferentes instituições para pensar e replicar essa experiência em outros âmbitos e localidades. Também é possível medir o êxito da Oficina pela consolidação de um grupo entre os participantes e organização que mantém ativa a troca de conhecimento sobre a intervenção em favelas, demonstrando que os estudantes envolvidos de fato se sensibilizaram com o tema e desenvolveram um olhar questionador e problematizador acerca de sua atuação em relação à realidade das favelas, que ainda está longe de receber a atenção que lhe é devida. Tudo isso demonstra como iniciativas relativamente simples e fora dos padrões do ensino acadêmico tradicional podem, sem


Esta forma de intervenção em favelas propõe, portanto, a efetivação do Direito à Cidade para todos, reconhecendo e consolidando a cidade autoproduzida ao longo do tempo, assim como legitimando seus moradores enquanto produtores do seu habitat.

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demandar grandes investimentos, dar origem a processos de transformação que supram a lacuna existente da temática das favelas na universidade. Isso pressupõe a defesa de uma concepção de intervenção em favelas que, além de dotar e prover acesso à infraestrutura adequada, garanta a intervenção enquanto um processo político de efetivação de direitos. São, obrigatoriamente, aspectos desse processo a promoção da efetiva participação popular, a integração cultural e socioeconômica das comunidades, a preservação ambiental e a melhoria das condições habitacionais, preservando o patrimônio habitacional autoproduzido. Esta forma de intervenção em favelas propõe, portanto, a efetivação do Direito à Cidade para todos, reconhecendo e consolidando a cidade autoproduzida ao longo do tempo, assim como legitimando seus moradores enquanto produtores do seu habitat. Repensar a educação universitária visando novas formas de se refletir e intervir criticamente na cidade passa, necessariamente, pela inclusão da favela como conteúdo básico na formação acadêmica. Entretanto, abrir o espaço da universidade para a favela significa mais do que incluí-la em suas pesquisas e disciplinas, porque se trata de um processo que também pressupõe a democratização da universidade pública. O acesso a ela, mais includente e plural, deve permitir que outras vivências de cidade sejam incorporadas pela produção acadêmica, através de estudantes capazes de problematizar o espaço urbano por perspectivas próprias, olhares diferentes e contribuições que quem produz e mora na cidade das favelas e na cidade das periferias pode dar. Enquanto não se transpuser essa barreira, através da diversificação do corpo discente, cabe a nós - pesquisadores, estudantes e professores desse espaço privilegiado na sociedade - reafirmarmos nosso compromisso, como agentes políticos, de questionar suas prioridades e abordagens e tensionar para que a universidade assuma sua responsabilidade na transformação das cidades brasileiras. ⧊

Para saber mais informações sobre o coletivo do LABLAJE, acesse o site: www.lablaje.org

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CELEBRAÇÃO DE BODAS DA RAZÃO COM O CORAÇÃO

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração. Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade. Um sistema de desvínculos: para que os calados não se façam perguntões, para que os opinados não se transformem em opinadores. Para que não se juntem os solitários, nem a alma junte seus pedaços. O sistema esvazia divorcia a emoção do pensamento como divorcia o sexo do amor, a vida íntima da vida pública, o passado do presente. Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, nos guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces. O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se retem como tragédias. Eduardo Galeano Ilustração: Claudio Luiz



Guilherme Formicki1

QUANDO A TEORIA PROJETA A PRÁTICA E A PRÁTICA GUIA A TEORIA

Ilustração: Miguel Croce

O senhor que nos recebeu naquele dia parecia tranquilo. Sua esposa também. Quem os visse não poderia imaginar que ele, já aposentado, passava por um tratamento contra um câncer e que ela, também de idade avançada, abandonara seu emprego para cuidar da saúde do marido. Ou que o filho mais velho do casal sofria de esquizofrenia e que, em uma crise causada pela doença, quebrara uma costela do pai em um momento de raiva. Ou ainda que o filho caçula tinha se envolvido com o tráfico e que fora morto a tiros algum tempo antes. Aquela seria uma visita de rotina à Favela Viela da Paz, no Morumbi. Enquanto estagiário da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo (SEHAB), eu esperava encontrar pessoas que eventualmente passassem

1 Guilherme Formicki é arquiteto

UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL NO APRENDIZADO DO PLANEJAMENTO URBANO:


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por algum problema familiar ou econômico, mas, sinceramente, eu não estava preparado para conhecer algumas famílias cujas realidades fi zessem muitos dos meus problemas pessoais parecerem quase nada. Conforme meus chefes iam conversando com o casal de idosos que nos recebera, eu fui entendendo o porquê de estarmos ali e qual seria o destino da casa. Ela seria removida para o andamento das obras de urbanização do Viela da Paz. Os meus chefes, arquitetos da secretaria, estavam assegurando ao casal que eles não ficariam desassistidos. A família não poderia ser realocada para um dos apartamentos que estavam em construção, pois o fi lho mais velho – que descobrimos estar desaparecido após ter fugido de casa – tinha constantes crises e, por recomendações de segurança, não deveria viver em um condomínio que abrigasse muitas famílias no seu entorno imediato. Sendo assim, a SEHAB construiria para pai, mãe e fi lho uma pequena casa térrea – chamada de embrião – dentro dos limites da favela. Situações como a desse dia ficam muitas vezes fora da órbita que circunda um estudante de graduação de Arquitetura e Urbanismo no Brasil. Eu à época estava no início do meu quinto ano e acreditava já ter aprendido muita coisa. Mas a experiência prática sempre mostra a um estudante como ainda há muito a ser visto. No ano seguinte, eu iniciei meu Trabalho Final de Graduação, intitulado “Sapé, Favela, Cidade”. Meu tema uniu um objeto de estudo e de interesse pessoal ao meu objeto de trabalho na SEHAB: as favelas paulistanas. Foi extremamente enriquecedor para mim estudar esse tipo de assentamento precário, ainda mais considerando-se que eu tinha dois grandes arcabouços: um teórico, vindo das

MAS A EXPERIÊNCIA PRÁTICA SEMPRE MOSTRA A UM ESTUDANTE COMO AINDA HÁ MUITO A SER VISTO


disciplinas da FAU e, em especial, da minha orientadora, a professora Maria de Lourdes Zuquim, e outro prático, vindo do meu estágio na secretaria. Tanto minha experiência de estágio quanto de TFG permitiram que eu chegasse a certas conclusões sobre o atual processo de aprendizado de Planejamento Urbano no Brasil. Creio que há nesse processo dois lados distintos: o teórico, ligado à universidade, e o prático, ligado aos escritórios e ao setor público. Cada lado relaciona-se com o Planejamento à sua maneira. A universidade adota o método científico, a partir do qual se levantam questionamentos e se criam hipóteses. Já os órgãos governamentais e os escritórios fazem uso de um método mais pragmático, em que problemas são prontamente respondidos dentro das possibilidades existentes. Para ilustrar o que digo, volto a mencionar meu TFG. Como parte do meu exercício de reflexão, propus um conjunto edifícios de habitação social para a Favela do Sapé (localizada na Zona Oeste). Como muitas famílias foram removidas da favela para as obras de urbanização e poucas voltaram para esse assentamento, eu propus condomínios com dez pavimentos e elevador – o que permitiria um número considerável de unidades habitacionais. No entanto, por questões de manutenção, a SEHAB hoje em dia evita implantar projetos residenciais que tenham elevadores, o que limita o número de pavimentos e de unidades. Essa questão suscitou uma grande discussão na minha banca. Não sei se o que propus seria viável algum dia aos olhos de técnicos da secretaria. Mas creio que o meu TFG, ao propor novas práticas – como os elevadores em habitações de interesse social, que podem melhorar e ampliar o atendimento habitacional – tenha valido a

A UNIVERSIDADE ADOTA O MÉTODO CIENTÍFICO, A PARTIR DO QUAL SE LEVANTAM QUESTIONAMENTOS E SE CRIAM HIPÓTESES. JÁ OS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS E OS ESCRITÓRIOS FAZEM USO DE UM MÉTODO MAIS PRAGMÁTICO, EM QUE PROBLEMAS SÃO PRONTAMENTE RESPONDIDOS DENTRO DAS POSSIBILIDADES EXISTENTES

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pena. Afi nal, o que vi naquele dia no Viela da Paz me alertou sobre a questão das remoções sem volta, que atingem diversas famílias vulneráveis e que, no Sapé eram inúmeras. Chego ao fi m desse texto dizendo que concluí que as abordagens da universidade e dos escritórios e órgãos públicos, por mais que sejam muitas vezes distantes entre si, complementam-se imensamente. A academia analisa a prática e faz proposições enquanto projetistas e gestores se encarregam de viabilizar a teoria da melhor maneira. ⧊


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E ESPAÇO DE FORMAÇÃO Ceci Nery, Thiago Flores e Paula Lobato1 Ilustração: Thais Mendes


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1 Ceci Nery, Thiago Flores e Paula Lobato são alunos de arquitetura da Escola de Arquitetura da UFMG, em Belo Horizonte. Eles desenvolvem há um tempo práticas relacionadas ao cozinhar, à alimentação e ao uso do espaço e

ao abrir as portas de seu pequeno apartamento, ele se transformava diariamente em um lugar de encontro

participam do Nó Coletivo.

Começou em 2013 a possibilidade de dividirmos o espaço da cozinha com algumas pessoas; para diferentes contextos, diferentes cozinhas. Neste ano trabalhamos por dois meses no Edifício Maletta, com a proposta de investigar fragmentos de sua história – parte importante da história de Belo Horizonte – através do contato com seus moradores e comerciantes. Conhecemos Dona Esmeralina, senhora que lá reside desde os anos 70. Quando Esmeralina se mudou com seu marido do interior para a capital, fazia almoço para a vizinhança para complementar a renda da casa. Ao abrir as portas de seu pequeno apartamento, ele se transformava diariamente em um lugar de encontro, de partilha de refeições em um ambiente doméstico aberto ao público. Na falta de ambientes de socialização e reunião no Centro, sua residência atendia à demanda daqueles que queriam fazer desse momento algo mais pessoal, em contraposição ao anonimato que se estabelece na maioria dos restaurantes e refeitórios. Nos anos 90 o condomínio do Edifício Maletta proibiu essa prática por trazer um fluxo de pessoas estranhas para dentro do prédio. Hoje ela não cozinha mais.


Em 2014 tivemos a oportunidade de trabalhar junto às mulheres da ocupação urbana Eliana Silva. Elas nos mostraram que no lugar onde hoje fica a creche havia antes uma cozinha comunitária, sempre a primeira construção erguida em qualquer processo de ocupação por moradia. Segundo elas, após ocupar algum terreno, estrutura-se a cozinha nos primeiros 15 minutos e as voluntárias logo começam a produção de refeições diárias para todas as famílias (300 no caso da Eliana Silva), processo que dura enquanto as pessoas não têm suas cozinhas individuais estruturadas. A cozinha se torna o foco de resistência da comunidade em processo de ocupação.

a cozinha se torna o foco de resistência da comunidade em processo de ocupação

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Podemos estabelecer um paralelo entre a cozinha comunitária e a oficina definida por Richard Sennett em sua obra Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação: nesses lugares, o fazer aproxima as pessoas, sem apagar suas individualidades, permitindo trocas informais que aprofundam os laços entre os sujeitos. Evidencia-se o lugar político da cozinha: lugar de reunião, trocas e tomada de decisões em várias escalas. Quando cada pessoa conquista sua cozinha individual, o equipamento coletivo fica em desuso e ganha outra função que atenda uma nova necessidade comunitária.

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A Cozinha Dona Lourdes é um espaço existente dentro da Escola de Arquitetura da UFMG, fruto de construção coletiva, sempre em processo, que pretende a autonomia alimentar dos alunos. Experimentando o espaço no dia-a-dia, a cozinha se configura como um arquitetura viva, reconfigurada e re-imaginada por quem a utiliza no momento. Quando iniciamos a proposição de almoços coletivos, buscamos, como forma de diminuir o preço de produção e ao mesmo tempo inserir a discussão do reaproveitamento na cozinha, utilizar de comidas que um sacolão vizinho considerava descarte, prática chamada xêpa. Muito praticada por quem não tem muitos recursos e coleta restos por questão de sobrevivência, a xêpa levanta uma discussão sobre a forma como se faz a distribuição de alimentos, que restringe seu acesso àqueles que podem pagar por eles. Quando fazemos a xêpa, reunimos o que coletamos e pensamos juntos qual será o preparo do dia, de forma a construir uma alimentação saudável e equilibrada e não deixar que os alimentos se percam, priorizando aqueles que estão mais passados. Cada pessoa consegue pensar diversas formas de preparo para cada ingrediente, e mesmo quando as receitas são de um mesmo prato, dificilmente o modo de preparo é igual. Sendo assim, negociamos receitas e trocamos dicas de cozinha uns com os outros, e junto com elas histórias e saberes. Os almoços foram ganhando mais adeptos e fomos descobrindo que eles permitem muito mais que alimentar os alunos de forma barata e experimentar a coletividade entre nós. Foi por acaso que a Alzira, uma vizinha da Escola, ouviu um aluno comentando sobre a cozinha


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coletiva. Convidamos ela para levar suas receitas para um preparo de almoço. A cozinha à partir de então ganhou uma outra dimensão, começamos a pensá-la enquanto equipamento de vizinhança, que trás outros fluxos para o interior da faculdade, superando fronteiras institucionais e epistemológicas ao propor a troca de experiência, receitas e histórias com outras pessoas. A cozinha no espaço acadêmico é potencializada tanto pelas interações entre os alunos quanto por sua abertura a usuários de fora da faculdade. A partilha e produção do saber na cozinha se dá pela prática, como uma vez falou uma visitante em um dia de almoço: toda atividade do cotidiano é passível de aprendizado. Nessa perspectiva, cozinhar ganha uma dimensão educacional; em ambientes compartilhados, esse aprendizado se dá pela troca e atravessamento das fronteiras entre saberes sempre tão reforçadas pela academia. Assim, as pessoas aprendiam umas com as


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outras num formato de pedagogia livre, onde todos têm o que ensinar, seja alguma dica de receita, forma de preparo, tempero, logística para lidar melhor com o tempo, organização para manter o espaço limpo e para cozinhar para muita gente, etc. De toda essa experiência podemos pensar o potencial político, educacional e relacional da cozinha, em diversos pontos de vista. A alimentação é uma necessidade básica para a sobrevivência humana, e agencia relações dos indivíduos entre si, com o território e o sistema político e econômico no qual se inserem. Cozinhar é também uma forma de se aproximar da alteridade, encontrar um território comum que permite atravessar fronteiras e conhecer outros modos de vida e de fazer. Quem divide receitas afetivas conosco está a dividir sua história, seus trajetos de vida e também muitas outras informações que vêm subentendidas. ⧊


Você recebe uma ordem da diretoria da escola que diz: “Temos uma grande ideia. Nossa escola não deveria ter janelas, porque as crianças precisam de espaço na parede para pendurar suas pinturas, e também, janelas podem distraí-las do professor.” Agora, que professor merece tanta atenção? Eu gostaria de saber. Porque afinal, o pássaro lá fora, a pessoa procurando abrigo da chuva, as folhas caindo das árvores, as nuvens passando, o sol penetrando: são todas grandes coisas. São lições em si mesmas. Janelas são essenciais para a escola. Você é feito da luz e, portanto, você deve viver com a noção de que a luz é importante. Tal ordem da diretoria dizendo qual o sentido da vida deve ser resistida. Sem luz, não há arquitetura.

Louis Kahn Foto: Julia Vannucchi



78 espaço e pedagogia: escolas abertas

ESPAÇO E PEDAGOGIA Juliana Stendard1 A motivação para a realização desse estudo vem de uma inquietação em relação à experiência escolar. Durante minha formação, sempre questionei a relevância dos conteúdos ditos obrigatórios e o modo como são apresentados - existiriam outras formas de aprender? Por que não aprendemos o que nos desperta a curiosidade e que nos cativa? Como devemos aprender? Qual é o espaço mais apropriado para aprender? Apesar de existirem diversos manuais que discutem o projeto do edifício escolar como um todo, raramente são discutidos os espaços de aprendizado em si e a sua relação com os métodos de ensino. Os parâmetros de projeto para esses espaços - representados em sua maioria pelas salas de aula tradicionais, com lousa, tablado e carteiras enfileiradas - são definidos de acordo com o método pedagógico, e o projeto do edifício escolar limita-se a cumpri-los. Através dos anos, os edifícios escolares apresentaram diversas linguagens formais, ilustrando o papel da escola no contexto em que está inserida. Pode representar o poder das classes dominantes, como o Estado ou a Igreja, ou pode representar a identidade do país que se almeja. O programa arquitetônico e os parâmetros de projeto, por outro lado, não sofrem mudanças significativas. Se o espaço físico é a materialização do plano pedagógico escolar, sua reprodução constante é reflexo direto de como os métodos de ensino também permanecem imutáveis. A lógica escolar pressupõe que os estudantes sejam passivos em diversos aspectos: os assuntos expostos, as atividades


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ESCOLAS ABERTAS

desenvolvidas e o espaço onde estas ocorrem são decididos previamente, sem sua participação. As regras impostas sobre a postura no ambiente escolar e a vigilância constante inibem que os estudantes se apropriem verdadeiramente do espaço. Os efeitos resultantes da desconexão entre aluno e vida escolar são variados e podem ser observados nos sinais de depredação dos edifícios – como um efeito mais imediato –, podendo chegar até a situações que envolvem maiores taxas de evasão e violência no ambiente escolar – a longo prazo. É preciso buscar alternativas que incentivem as crianças a protagonizar a própria formação, que permitam a elas descobrir seu próprio ritmo de aprendizado. Paralelamente, a base física da escola precisa refletir essas intenções: que forneça espaços acolhedores para o desenvolvimento individual e que seja totalmente apropriada pelos estudantes.

1 Juliana Stendard é arquiteta e urbanista formada pela FAU USP, escreveu o seguinte artigo baseado em seu trabalho final de graduação “Escola Aberta no Bom Retiro: Espaço e Formação”. O projeto apresentado ao final do texto é o produto final do mesmo trabalho. Este pode ser lido na íntegra em https://issuu.com/jstendard/docs/caderno_final_ internetes.


as escolas abertas

80 espaço e pedagogia: escolas abertas

Como resposta aos meus questionamentos iniciais, encontrei durante as minhas pesquisas um modelo pedagógico alternativo, fortemente baseado na obra do educador pernambucano Paulo Freire: a Escola da Ponte. Concebido em Portugal em 1974, esse modelo pedagógico é centrado na autonomia dos estudantes em relação ao processo de aprendizado. Ao invés de ser apresentado em aulas tradicionais, o conteúdo didático é passado através de roteiros didáticos interdisciplinares. Esses roteiros são elaborados conjuntamente por todos os professores, e são completados pelos estudantes individualmente ou em grupo, na ordem e no ritmo que escolherem. Não há separação de turmas e séries, os estudantes ficam em grandes salões, onde contam com a ajuda dos professores na resolução dos roteiros. As assembleias, que acontecem regularmente, são essenciais para o funcionamento da escola. Nela, são discutidos os rumos do ensino e como se dará o funcionamento da escola de uma forma horizontal, onde todos tem o mesmo poder de fala e voto. Em São Paulo, existem duas escolas públicas municipais que têm métodos pedagógicos inspirados pela escola da ponte: a Campos Salles, no bairro de Heliópolis, e a Amorim Lima, no bairro do Butantã. As duas escolas tornaram-se referência do ensino alternativo no Brasil e seu funcionamento é muito similar ao da Escola da Ponte, com envolvimento intenso dos pais, estudantes e professores na discussão das questões inerentes à vida escolar.


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Salvo as diferenças culturais e geográficas, podemos destacar alguns pontos em comum na trajetória dessas escolas. Os motivos que impulsionaram as mudanças nas três escolas são similares. Alguns desses fatores incluem: altas taxas de reprovação e evasão, episódios de violência, pouco envolvimento dos estudantes, insatisfação dos pais com o sistema de ensino em vigência. Esses elementos somados à vontade conjunta de buscar soluções, criam o terreno para discussão sobre o ensino e a gestão escolar. O rompimento com o ensino tradicional é fruto da articulação e do diálogo com todos os agentes da escola: estudantes, pais, professores, funcionários e o meio onde estão inseridas (o bairro/a comunidade). É inegável que o envolvimento ativo de todos os agentes da vida escolar é imprescindível na conquista de uma escola mais democrática e apropriada à realidade daqueles que a frequentam. A participação desses agentes é crucial para a gestão e a manutenção da escola aberta como tal. As mudanças no currículo e nas dinâmicas internas da escola são feitas inicialmente sem autorização e, portanto, sem assistência dos órgãos públicos responsáveis pelo ensino. Os órgãos do Estado acabam por validar e reconhecer essas novas experiências, depois de comprovado por meio de provas padronizadas que esses estudantes dominam os conhecimentos esperados para sua faixa etária. As três escolas ocupam edifícios construídos para o ensino tradicional que foram adaptados para atender às novas


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demandas da escola aberta. As reformas geralmente são simples e pontuais: paredes que dividem as salas são derrubadas e são feitos alguns espaços para assembleias. Nos três casos podemos notar que a configuração rígida dos espaços e os elementos construtivos padronizados das escolas públicas não inviabilizam o desenvolvimento de métodos de ensino alternativos ao tradicional. Porém, nessas situações, o espaço perde muito do seu potencial pedagógico e sua configuração não reflete formalmente o partido libertador que as escolas seguem. Os edifícios ainda transmitem as ideias e os valores atrelados ao antigo modelo escolar. Em entrevista para o site Nova Escola em 2012, o coordenador José Pacheco ressalta a importância de um espaço projetado levando em conta o programa específico da escola: “Nosso sonho é um prédio com outro conceito de espaço. Temos uma maquete feita por doze arquitetos, ex-estudantes que conhecem bem a proposta da escola. Esse projeto inclui uma área que chamo de centro da descoberta, onde compartilharemos o que sabemos. Há também pequenos nichos hexagonais, destinados aos pequenos grupos e às tarefas individuais. Estão previstas ainda amplas avenidas e alguns cursos d’água, onde se possa mergulhar os pés para conversar, além de um lugar para cochilar. As novas tecnologias da informação devem estar espalhadas por todos os lados para serem democraticamente utilizadas pela comunidade, o que já conseguimos.” (Acesse em http://novaescola.org.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtml) A partir do desejo de mudança do espaço para adaptá-lo às novas vivências de aprendizagem, passei então a pensar em como preparar esse ambiente. Trata-se da segunda parte da pesquisa, focada em referências de arquitetura escolar para guiar


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e respaldar a concepção do projeto. Foram consultados os manuais do FDE, que estabelecem normas, diretrizes, materiais e métodos construtivos para a construção de escolas estaduais. Na escala municipal, foram estudados os projetos dos Centros Educacionais Unificados (CEUs) e os Territórios CEU. Além das referências de arquitetura pública, foram consultados trabalhos acadêmicos que tratam especificamente do projeto de espaços de ensino, em especial os livros “Arquitetura escolar – o projeto do ambiente de ensino” de Doris C.C. Kowaltowski, “Space and Learning” de Herman Hertzberger e “Arquitetura e Educação” de Mayumi Watanabe de Souza Lima. Com a leitura crítica das referências e o levantamento sobre escolas alternativas em mente, foram elaboradas diretrizes e parâmetros que norteiam o projeto: _ O conjunto escolar deve estabelecer uma relação respeitosa com o entorno, tanto na volumetria como nos materiais utilizados, além de constituir um elemento de identificação do bairro; _ Espaços pedagógicos e espaços de vivência devem ter maior integração, posto que o aprendizado não se limita aos espaços destinados à educação formal; _ Os espaços educativos e administrativos devem permitir modificações para adaptar a escola às novas práticas educativas que possam vir no futuro; _ Incorporar no programa atividades que não são contempladas (ou negligenciadas) no ensino público hoje; A escola deve atender de 360 a 450 estudantes, distribuídos em 3 núcleos. Cada núcleo abriga 4 ou 5 turmas da mesma faixa de idade, de 30 estudantes cada. Os núcleos se organizam de acordo com os ciclos de ensino definidos pela prefeitura de São Paulo: alfabetização, do 1º ao 3º ano; interdisciplinar, do 4º ao 6º; e autoral, do 7º ao 9º.


o projeto

84 espaço e pedagogia: escolas abertas

O objetivo maior desse exercício de projeto é idealizar um edifício que converse formalmente com os valores pedagógicos que norteiam a escola. O complexo escolar é composto de seis volumes prismáticos, implantados em dois terrenos, um de frente para o outro, localizados na rua Newton Prado, no bairro do Bom Retiro. A rua Newton Prado passa a funcionar como uma rua compartilhada entre carros e pedestres na quadra que se localiza a escola. A rua, utilizada como pátio da escola, torna-se elemento de conexão entre os volumes que a compõem. Organizados ao redor de duas pequenas praças, três desses volumes abrigam os núcleos, onde ocorre a maior parte do ensino formal. Em cada núcleo, há duas salas de aula formais para ministrar aulas de disciplinas “axiomáticas”: matemática, redação e inglês. Cada núcleo contém também espaços que compreendem diversos usos: estudo em grupo, estudo individual, espaços de concentração e de expansão. Para incentivar a fluidez do espaço, o mobiliário é flexível e modular, para que os estudantes possam manipulá-lo e adequá-lo de acordo com suas necessidades. É nos núcleos que os estudantes formam comunidades menores, de laços mais estreitos com seus colegas. São locais de familiaridade, onde podem guardar seus pertences durante atividades em outros blocos. A escola se assemelha a uma pequena cidade, e a sala de aula corresponde ao lar. O volume retangular abriga uma quadra poliesportiva e um pátio em sua cobertura. A escadaria de acesso à cobertura abriga também uma arquibancada, que pode ser usada nas atividades ao ar livre e nas assembleias gerais. Os dois últimos volumes correspondem ao refeitório e ao bloco administrativo. No refeitório, os estudantes montam suas próprias refeições e são responsáveis por consumir conscien-


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temente os recursos da escola. No bloco administrativo, existem além das salas dedicadas às funções administrativas (diretoria, secretaria, sala de reuniões e sala dos professores), salas multiuso onde ocorrem aulas extracurriculares. É importante destacar a importância dos espaços dedicados ao descanso e reunião dos professores, pois esse tipo de método pedagógico exige que os professores trabalhem em conjunto harmoniosamente, que muitas vezes dedicam horas além da carga horária normal para planejar e discutir os roteiros pedagógicos. Optou-se por pulverizar o programa de necessidades para que fossem criados entre os volumes espaços de transição, onde ocorre uma parte fundamental do ensino: a socialização. É no encontro com os colegas que as crianças trocam conhecimentos e experiências, ampliando suas visões. Na escala do bairro, a escola deixa de ser um obstáculo gradeado, permitindo que os moradores circulem e usufruam de suas dependências públicas, fortalecendo laços entre comunidade e espaço de ensino. O espaço escolar, aberto e acessível a todos, reflete enfim os valores libertadores que norteiam a pedagogia e o ensino. ⧊

Esse artigo não tem como pretensão apontar as escolas abertas como solução às questões e aos problemas que a educação pública que o Brasil apresenta hoje. O objetivo é ampliar o espectro da discussão e procurar soluções além dos meios tradicionais. Com a rápida análise das experiências da pedagogia da escola da ponte, fica claro que quando há a participação e o comprometimento da comunidade é possível encontrar soluções que sejam apropriadas ao contexto que estão inseridas, mesmo que sejam pouco ortodoxas.






90 práticas de reflexão para o espaço educacional infantil

práticas práticas de reflexão para de reflexão para o espaço o espaço educacional

educacional infantil

infantil Leandro Hideki Okamoto1 Fotos: Laura Almeida


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histórico dos movimentos reivindicatórios por creches

1 Leandro Hideki Okamoto é arquiteto formado pela FAUUSP em 2014. O artigo foi elaborado a partir de seu trabalho final de graduação. Laura Almeida é estudante de arquitetura da FAUUSP

2 Segundo PALMEN, Sueli H. C. A implementação de creches nas universidades públicas estaduais paulistas: USP, Unicamp, Unesp. Tese de Mestrado. 2005.

Em uma sociedade patriarcal como a brasileira, a mulher-mãe sempre esteve restrita às funções de reprodução e responsável também pelo cuidado do “lar”. A creche sempre foi um assunto de conflito e discórdia, pois se chocam a figura e o papel materno com as condições de sobrevivência da mulher trabalhadora e pobre. No Brasil no período entre o final do século XIX e o início do XX, a creche tinha como finalidade de liberar a mão-de-obra da mãe pobre, com a particularidade de que inicialmente a demanda era de trabalhadoras domésticas, pois a industrialização brasileira estava em estágio primário de desenvolvimento. As instituições de assistência social no Brasil se fundamentam no atendimento à infância com viés médico-higienista, jurídico-policial ou religiosa2. No contexto da mulher no ambiente urbano em expansão e da organização da industrialização, as reivindicações das mães trabalhadoras por locais que abrigassem seus filhos foram aumentando, portanto o objetivo principal das primeiras creches foi realmente de atender ao trabalho feminino, sendo reforçado em 1943 com a Consolida-


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3 MARQUES e MORENO em artigo A Luta por Creches e a Autonomia das Mulheres parte do livro Perspectivas feministas para a igualdade e autonomia das mulheres publicado pela SOF Sempreviva Organização Feminista, 2009.

ção das Leis do Trabalho (CLT) que determina que as empresas com mais de 30 Da fotógrafa: As fotos foram tiradas durante um mulhejantar no res trabalhadoras tivessem um lugar a restaurante Come-Come, criado e auto-gerido porpara professores, pais de e alunos Creche Oeste da USP durante a ocuguarda suasdacrianças durante o período pação do local. A refeição foi produzida totalmente por eles, de amamentação. com muitos dos ingredientes colhidos pelas crianças dentro No período pós-Segunda Guerra do próprio campus. Em um esquema de “pague quanto puder Mundial, o cuidado da criança e sua educaou quiser”, o dinheiro arrecadado com o restaurante vai para ção passou a acontecer cada vez mais fora o fundo da ocupação, que na época já durava 2 meses e hoje das casas, em espaços coletivos como as ultrapassa 5. creches, jardins-de-infância e berçários. O espaço das creches no Brasil se transformou acompanhando essa questão, assumindo um caráter universalizante de ampliação dos direitos das próprias crianças e do dever não só das famílias, mas do Estado em prover o bem-estar infantil. Essa transformação se deu com muita mobilização e luta durante as décadas de 1960 e 1970 nos grandes centros urbanos país afora, para fazer valer o direito ao atendimento nas creches tanto


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4 PALMEN afirma que contemporaneamente aos movimentos sociais que lutavam por melhorias nas cidades os grupos feministas atuavam “lutando pela revisão do papel da mulher na família e sociedade e responsabilizando a sociedade pela educação das novas gerações”. 5 GOHN, Maria da Glória Marcondes. A força da periferia: a luta das mulheres por creches em São Paulo. Vozes, 1985.

pelo empresariado quanto pelo poder público. Essa pauta mobilizou e uniu diversas correntes, sendo capaz de articular uma luta conjunta de moradores por vezes muito distantes geograficamente. Como contam em seu artigo3 Léa Marques e Renata Moreno, “A Luta por Creches e a Autonomia das Mulheres” parte do livro “Perspectivas feministas para a igualdade e autonomia das mulheres”, durante a década de 1980, o movimento manteve como reivindicação a abertura de novas unidades e manutenção das existentes, enquanto tentava articular de forma autônoma e voluntária as suas próprias experiências com o auxílio de organizações alheias ao Estado e com práticas pedagógicas alternativas. No processo de redemocratização, a articulação em torno do tema foi decisiva para a inclusão das creches como direito universal à educação na nova constituição que estava em disputa. Especificamente em São Paulo a luta por mais creches se organizou em movimentos sociais, com ativa influência feminista durante as décadas de 1970 e 19804. O Movimento de Luta por Creches, que reuniu mulheres-mães pertencentes às camadas mais pobres e médias foi bastante atuante na cidade, em expansão urbana acelerada, e a pressão feita foi histórica. O Estado ou as empresas deveriam possibilitar que durante o horário de trabalho das mães, as crianças possam ser abrigadas e cuidadas. Muitas creches e unidades de educação infantil pré-escolares públicas foram construídas em regiões periféricas e carentes, como conquistas do movimento. Maria G. M. Gohn em seu livro “A força da periferia: a Luta das mulheres por creches em São Paulo.”5 relata o processo de luta pelas creches, originário de outro


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coletivo, ligado à Igreja Católica: os “Clubes de Mães” que reuniam as mulheres para realização de trabalhos manuais e também para a discussão de problemas cotidiano através de uma leitura com viés social do Evangelho. Destes clubes, criados no início da década de 1970, emergiram importantes movimentos sociais como o Movimento do Custo de Vida (também conhecido como Movimento Contra a Carestia) que surge, primeiramente, na periferia sul da cidade e chega a ter alcance nacional. Com a importante colaboração institucional da Igreja Católica através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o movimento conseguiu se articular e cobrar da Prefeitura a instalação de Unidades Educacionais para as crianças da região ou a instituição de convênios para auxiliar entidades que já realizavam esse trabalho. O movimento por creches não era uma pauta isolada, mas convergia com outras demandas de uma parcela da população muito desatendida pelo poder público, como os movimentos de luta por moradias ou por equipamentos de saúde. A grande parte das creches existentes hoje originam-se desse período. Por exemplo, as projetadas pelo arquiteto Ruy Ohtake, a serviço da extinta Secretaria de Assistência ao Menor, foram criadas nesse contexto, com sua localização determinada pelos locais de trabalho das mulheres, no caso ao lado das estações de metrô na Zona Leste da cidade, assim como as creches nos campi das universidades públicas paulistas. Duas referências de produção do espaço público no mesmo período, que levam em consideração e tem como principal protagonista a criança são Elvira Martins (1945-2001) e Mayumi de Souza Lima (19341996). Curiosamente não existem registros

que possam ter realizado algum trabalho juntas, apesar de militarem na mesma área e terem visões complementares sobre o tema. Elvira Martins, desenhista industrial, teve uma vasta produção. A tônica de seu trabalho era a reutilização de materiais para a elaboração principalmente de brinquedos, ou como ela chamava “esculturas lúdicas”, e instalações para grandes espaços abertos e públicos, com contato e participação popular nos locais onde foram construídos. O material passava por transformações, ganhando um caráter lúdico, e era ressignificado, pelos seus usuários. Há também a questão do figurativo, os materiais assumiam formas que se assemelhavam a outras e deixavam a interpretação destas pela criança de acordo com suas experiências, um brinquedo poderia ser um cavalo ou um cachorro. Almeida apresentava suas obras como “Arte Lú-


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dica”, pois almejava que sua escultura não se restringisse a ser somente contemplativa e o seu público era convidado a uma “interpretação poética”, com o uso do corpo e coletivamente, interagindo entre si sendo adultos ou crianças. Mayumi de Souza Lima foi arquiteta e funcionária de diversos órgãos públicos onde em sua trajetória se dedicou a produzir uma arquitetura que propiciasse uma educação emancipadora dos indivíduos através da educação, para ela, era necessária a transformação do espaço escolar, negligenciado pelos arquitetos, e um dos mecanismos reprodutores da dominação social pelas classes dominantes, detentoras do poder econômico e político (LIMA,1989)6. Para isso é importante dar a criança no processo de produção do seu espaço um protagonismo que antes não tivera.


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Dentro da estrutura estatal, Mayumi trouxe uma importante reflexão sobre os espaços da escola formal e liderou um projeto de construção massificada de equipamentos públicos quando coordenou o Centro de Desenvolvimento de Equipamentos Urbanos e Comunitários (CEDEC), um núcleo de pesquisas e de produção de componentes e equipamentos urbanos, dentro da Empresa Municipal de Urbanização (EMURB) no final da década de 1980 e no início da década de 1990 como relata Tatiane Machado em seu mestrado “Ambiente Escolar Infantil”. As pré-escolas e creches construídas nesse período tinham uma qualidade no seu projeto. Havia uma grande integração entre os ambientes internos e externos que eram fluidos e contínuos, e do edifício com o resto da cidade. A intenção era evitar seu isolamento com a construção de grandes muros, optando por alambrados com cores neutras e em detalhes como resgatar o nome do bairro e destacar a caixa d’água, ponto mais elevado dos projetos destacando-se na paisagem urbana. Para a produção em ritmo industrial dos elementos construtivos, optou-se por usar peças pré-fabricadas de argamassa armada, leves e duráveis e que são uma alternativa viável para obras de equipamentos públicos. O sistema era inspirado nas pesquisas realizadas na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC-USP) e do trabalho do arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé (LIMA, 1993)7. A iniciativa foi descontinuada ao término da gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo. Ambas entendiam como prioridade a transformação da concepção do espaço para a educação infantil, pois suas produções tinham um papel fundamental

6 LIMA, Mayumi Souza. A cidade e a criança. Nobel, 1989. 7 Lima descreve o processo com detalhes em seu livro Arquitetura e Educação, Nobel. 1995.

As reinvindicações incluíam não só sua reabertura, como também o preenchimento de todas as vagas ociosas em creches da USP, a incorporação e matricula imediata de todas as crianças de famílias moradoras do CRUSP, a cessação imediata do processo para reintegração de posse e a não punição dos manifestantes. A ocupação se insere em um contexto muito maior pelo qual a USP passa, com a Reitoria aprovando uma série de cortes não justificados e ameaçando diretamente a permanência estudantil – e, principalmente, da mulher – dentro do campus.


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na conquista de autonomia pela criança ao ser o cenário onde as crianças constroem suas relações, através das interações, com o mundo que as cerca e que o lúdico e a brincadeira são a ferramenta para o alcance da autonomia pelas crianças. O refluxo das lutas se deu após a redemocratização. As pautas foram absorvidas e canalizadas pelos partidos, principalmente, o Partido dos Trabalhadores (PT) ou pelos sindicatos ligado ao partido como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e que proporcionou ações pelas vias institucionais como no mandato da prefeita Luiza Erundina. A política econômica neoliberal nos anos 1990 e início dos 2000 também reduziu drasticamente o poder do Estado, principalmente sobre as políticas sociais. (MARQUES e MORENO, 2009). Já na década de 2000, os arquitetos Alexandre Delijaicov, André Takiya e Wan-


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derley Ariza em uma parceria entre o EDIF e as Secretarias Municipais da Educação e de Cultura do Município de São Paulo implantaram na cidade de São Paulo, a rede dos Centros de Educação Unificados, os CEUs. Os edifícios reuniam num só espaço unidades de Educação Infantil (CEI e EMEI) e Ensino Fundamental (EMEF) e o projeto se tornou uma referência em espaços educacionais inseridos em centros urbanos. Especificamente o edifício da CEI, o único que não pode ser conjugado com os outros módulos, tem uma volumetria específica, circular, com janelas percorrendo toda a fachada, e o acesso realizado pela região central. O térreo livre permite uma analogia do prédio com uma árvore como ressaltam os autores do projeto. A Constituição Brasileira de 1988 e posteriormente a Lei de Diretrizes e Bases para Educação (LDB) de 19968 asseguram


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8 BRASIL, Lei de Diretrizes; DE DIRETRIZES, Lei. Bases da Educação Nacional. Lei, v. 9394, p. 96, 1996. 9 SÃO PAULO, DECRETO Nº 40.268, 31 DE JANEIRO DE 2001.

o reconhecimento da criança como sujeito cidadão, portanto portador de direitos como à educação e transformando o papel das creches como locais de formação, complementar à estrutura familiar, das capacidades cognitivas e socializantes das crianças, não somente um espaço de cuidado. Fator importante é também a própria transformação da concepção sobre a obrigação exclusiva da mulher no cuidado da criança. Assim, a partilha da responsabilização sobre a educação e formação infantil, atividade muito complexa desde cedo, passa a ser coletiva sobre toda a sociedade. No âmbito político-administrativo, em acordo com o pacto federativo, entre Governo Federal, Estados e Municípios, as creches deixam de ser administradas pelas Secretarias de Assistência Social e passam às Secretarias de Educação, como ocorreu no Município de São Paulo9 (MSP) e no resto do país, de acordo com a LDB-96. Na década de 2010, foram lançados alguns programas nas três esferas de poder, voltadas para o amparo a infância que visam auxiliar aos municípios a conseguir oferecer a população esses serviços como o Brasil Carinhoso no âmbito federal, Programa Creche-Escola no Estado de São Paulo e o São Paulo Carinhosa no MSP. Entre outras ações esses programas promovem a construção de mais unidades de creches, seja ao facilitar a obtenção de dinheiro ou do projeto. Ainda assim, se observa um déficit grande de vagas em todo o país10. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) 201011 somente 38,1% das crianças entre 0 e 5 anos estão frequentando estes estabelecimentos de ensino. No município de São Paulo, segundo informações veiculadas nos meios de


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da fotógrafa da fotógrafa

comunicação, e dados do site da Secretaria Municipal de Educação (SME) na cidade de São Paulo, em dezembro de 2016 são 284.179 crianças matriculadas em creches e 215.049 crianças matriculadas na fase de pré-escola e existe um déficit de 65.040 vagas em creches.12 Se a unidade padrão projetada pelo Departamento de Edificações (EDIF) da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP) pode abrigar em média 240 crianças13, é necessária a construção de aproximadamente 291 edifícios novos ou 400.000 m² de área construída. Hoje o Estado é o principal protagonista na oferta de novas vagas, seja diretamente ou por meio de parcerias e convênios com outras instituições, sejam as religiosas ou filantrópicas.

As fotos foram tiradas durante um jantar no restaurante Come-Come, criado e auto-gerido por professores, pais e alunos da Creche Oeste da USP durante a ocupação do local. A refeição foi produzida totalmente por eles, com muitos dos ingredientes colhidos pelas crianças dentro do próprio campus. Em um esquema de “pague quanto puder ou quiser”, o dinheiro arrecadado com o restaurante vai para o fundo da ocupação, que na época já durava 2 meses e hoje ultrapassa 5. A ocupação teve início em janeiro deste ano, quando diversos ataques e cortes foram feitos à Creche e a ameaça de fechamento passou a ser uma realidade. Após diversos vaie-vens jurídicos, a situação atual ainda é de instabilidade e a ocupação continua, até que suas reinvindicações sejam acatadas.


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papel do arquiteto no cenário da educação infantil

As escolas de educação infantil e pré-escolar como concebidas hoje são espelho do processo cheio de conflitos e resistência frente à subvalorização da mulher e da criança. Mesmo assim, não foi possível ainda dar o salto da questão familiar e patriarcal e que supere a ideia de que os cuidados domésticos são exclusivos da mulher. Esse aspecto ainda é muito importante e está presente nos movimentos reivindicatórios por mais centros de educação infantil perante qualquer esfera. Uma política pública de creches pode contribuir para essa transformação ao universalizar a responsabilidade pelas crianças. A pauta do direito à educação infantil tem status de indiscutível, mas a discussão dos métodos e das ferramentas para sua aplicação ainda estão sendo debatidas e aprimoradas. As mudanças são recentes inclusive na legislação que é suficientemente avançada, mas não é aplicada nem considerada com a devida importância nas políticas educacionais. O Estado ainda é no Brasil o principal provedor de instituições de educação infantil e seus modelos são os referenciais. Por isso é importante a retomada dos projetos que visavam e visam ainda hoje um melhor espaço físico para o aprendizado e


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10 Segundo reportagem é um déficit de 10 milhões de vagas em todo país: https://goo.gl/ iebnpP acessado em 20/03/2017. 11 IBGE/PNAD Síntese de Indicadores Sociais. Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira. 2010. Pág.12

12 Infomações referentes ao ano de 2016: https://goo.gl/sDrVC1 acessado em 20/03//2017; https://goo.gl/nthZ52 acessado em 20/03/2017; https://goo.gl/e1xB5r acessado em 20/03/2017; https://goo.gl/Xe6xBx acessado em 20/03/2017; 13 Fonte: projeto-padrão executivo obtido no EDIF.

referências referências

a conquista da autonomia pelas crianças, seu empoderamento. Uma boa arquitetura deve zelar pelo equilíbrio entre as necessidades do adulto que acompanha as crianças e o espaço das crianças para formar um ambiente educador de preferência de maneira lúdica. Brincar é importante para a criança. No cenário onde as cidades são cada vez mais segregadas e violentas, a escola é o espaço cada vez mais raro de liberdade e da brincadeira. Pensar sobre os equipamentos que compõem o urbano significa pensar sobre ele. A creche e a EMEI são a porta de entrada de muitas crianças no sistema educacional, ainda sim um percentual baixo de crianças está efetivamente frequentando esses espaços. Na prática esse sistema é visto para populações em situação familiar frágil como a única estrutura presente em suas vidas. Isto posto, o papel do Arquiteto e Urbanista nesse cenário é claro. Atuar na intersecção entre as demandas ambientais, operacionais, de gestão espacial, programáticas (pedagógicas e de cuidado), institucionais, econômicas e técnicas. E trabalhar junto com uma equipe interdisciplinar para buscar as melhores soluções possíveis. Soluções técnicas e políticas, pois não é possível dissociá-las. ⧊


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http://www.saopaulocarinhosa.prefeitura.sp.gov.br/index.html http://www.femmaterna.com.br/2013/09/pelo-direito-creche.html?spref=tw http://www.mds.gov.br/brasilsemmiseria/brasil-carinhoso http://www.educacao.sp.gov.br/creche-escola/ http://movimentossociaisde1970.blogspot.com.br/ ALMEIDA, Elvira. Arte lúdica. EdUSP, 1997. BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2003. DE CAMARGO PALMEN, Sueli Helena. A implementação de creches nas universidades públicas estaduais paulistas. 2005. FARIA, Ana Lúcia G. O espaço físico como um dos elementos fundamentais para uma pedagogia infantil. In: FARIA, Ana Lúcia G. e PALHARES, Mariana (orgs). Educação infantil pós - LDB: rumos e desafios. Campinas: Autores associados, 4ª edição, 2003, p.067-100. GOHN, Maria da Glória Marcondes. A força da periferia: a luta das mulheres por creches em São Paulo. Vozes, 1985. KRAMER, Sonia. As crianças de 0 a 6 anos nas políticas educacionais no Brasil: educação infantil e/é fundamental. Educação e Sociedade, v. 27, n. 96, p. 797-818, 2006. MACHADO, Tatiana Gentil. Ambiente escolar infantil. Tese de Doutorado. São Paulo: FAU-USP, 2008. NASCIMENTO, A. Z. S. A Criança e o Arquiteto: Quem Aprende com Quem?. 2009. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2009. PALMEN, Sueli H. C. A implementação de creches nas universidades públicas estaduais paulistas: USP, Unicamp, UNESP. 2005. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, Unicamp, Campinas.


O ENSINO NA P R A N C H E TA :

Juliane Bellot Rolemberg Lessa1


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O LEGADO DO ARQUITETO HÉLIO DUARTE PARA A ARQUITETURA EDUCACIONAL

1 Hélio Duarte foi objeto da pesquisa de mestrado de Juliane Bellot Rolemberg Lessa, desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, orientada pela Profa. Dra. Joana Mello de Carvalho e Silva, na área de concentração de História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo, e defendida recentemente, em abril de 2017. 2 Acordo firmado para cumprir com as definições da Constituição de 1946, que determinava que a União, Estados e Municípios deveriam investir um percentual mínimo da arrecadação total na educação primária. Neste acordo, a Prefeitura ficava responsável pela construção das edificações e o Estado responderia por ministrar o ensino, com o objetivo de resolver o déficit do setor. Para saber mais: FERREIRA, Avany de Francisco; MELLO, Mirela Geiger de (Orgs), Arquitetura escolar paulista anos 1950 e 1960. São Paulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 2006. E também: ABREU, Ivanir Reis Neves. Convênio Escolar: utopia construída. Dissertação (mestrado), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

A carreira do arquiteto carioca Hélio de Queiróz Duarte1 se destacou pela sua intensa dedicação ao programa escolar, especialmente pelos projetos e coordenação do Convênio Escolar2 em São Paulo na segunda metade dos anos 1940, deixando como legado um novo paradigma de concepção espacial alinhado a uma nova orientação pedagógica, e de entendimento do uso e das potencialidades da escola enquanto equipamento público. É possível verificar a longevidade das formulações pedagógicas e arquitetônicas que orientaram o conjunto de obras do Convênio até hoje. Elas estão no cerne dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEP) de autoria de Niemeyer, nos Centros Integrados de Atendimento à Criança (CIAC)


106 o ensino na prancheta

home-class

special-class

platoon B

platoon A

manhĂŁ tarde

FIGURA 1: Diagrama de revezamento das unidades educacionais. Fonte: DUARTE, 1973, p.18.


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3 Os profissionais responsáveis pela idealização e realização dos CEUs, que se consideram inspirados pelas propostas do Convênio Escolar, foram: Alexandre Delijaicov, André Takiya e Wanderley Ariza, na concepção e coordenação dos projetos; Luiz Fernando Pires Guilherme, diretor da Divisão Técnica de Projetos do EDIF. Sobre os CEUs ver ANELLI, Renato. Centros Educacionais Unificados: arquitetura e educação em São Paulo. Arquitextos, nº 55.02. São Paulo, Portal Vitruvius, dez. 2004. Disponível em: <http://www. vitruvius.com.br/revistas/browse/arquitextos>. Acesso em: 10/07/2014. E também: TAKIYA, André. Edif 60 anos de arquitetura pública. Dissertação (mestrado) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

4 Escola Nova é o nome dado no Brasil, a um movimento reformador do ensino, uma proposta pedagógica inovadora, progressista, fundamentada nas descobertas das ciências humanas e ligada aos princípios da modernidade, que ocorreu na grande maioria dos países do ocidente.

5 Sobre o Sistema Platoon ver: DUARTE, Hélio de Queiroz. Escolas Classe Escola Parque, uma experiência educacional. São Paulo, FAU USP, 1973. ROCHA, Angela Maria; RUAS, Dalton Bertini. A constituição de um projeto tese escolar: as duas hipóteses não-construídas da escola-parque de Hélio Duarte. Arq.Urb. São Paulo, n. 15, p. 51-68, 1º semestre 2016. FERRAZ, Artemis Rodrigues Fontana. Arquitetura moderna das escolas “S” paulistas, 1952-1968: projetar para a formação do trabalhador. Tese (doutorado), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2008.

de João Filgueiras Lima, e nos Centros Educacionais Unificados (CEU) projetados pelo Departamento de Edificações (EDIF)3 da Prefeitura de São Paulo. O cabedal de soluções arquitetônicas, seja do ponto de vista dos arranjos do programa, dos elementos estruturais, ou dos recursos técnicos empregados durante o Convênio é reconhecido em tantos outros projetos escolares da atualidade. Os projetos das escolas paulistas traziam na bagagem as propostas, conceitos e formulações pedagógicas do educador baiano Anísio Spínola Teixeira, um dos principais personagens da história da educação brasileira e um dos representantes mais importantes do movimento Escola Nova4, grande defensor de uma educação pública, laica e gratuita. As ideias de Teixeira foram inspiradas nas experiências educacionais norte-americanas, especialmente pelo Sistema Platoon5, desenvolvido com base na fi losofia de John Dewey, pedagogo considerado o expoente máximo da escola progressiva americana. Com tempo de uso mais extenso, as escolas Platoon norte-americanas podiam oferecer atividades extras-curriculares e a educação para o trabalho, que era a peça fundamental do sistema. Para fazer frente às demandas satisfazendo os novos programas, foi proposto pelo sistema Platoon uma racionalização dos períodos, com alternância de turmas de alunos, maximizando o uso dos espaços e, assim, evitando uma excessiva ampliação da área construída e dos custos para construção das instalações. Divididas as disciplinas em dois conjuntos, estes eram ministrados em períodos invertidos, o que permitia que os alunos se revezassem de modo que aqueles que estavam nas aulas de disciplinas fundamentais — home room subjects ou home-class — passassem no período seguinte para a realização das


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atividades especiais — special subjects. Eram quatro períodos de noventa minutos para o ensino básico e doze, de trinta minutos para as disciplinas especiais. Foi com base nessas experiências que Teixeira idealizou — em conjunto com o movimento escolanovista — uma metodologia reformadora de ensino que propunha a introdução de novos conteúdos pedagógicos que somavam conhecimentos das áreas de ciência, artes e técnica. Para dar conta da extensão curricular proposta, defendiam a educação em tempo integral. Dessa forma, não somente as novas disciplinas, com suas exigências de laboratórios, oficinas, bibliotecas, ginásios, espaços para hortas e viveiros, etc., mas também o funcionamento em período estendido — solicitando refeitório, vestiários, salas de atendimento médico — requisitavam edificações diferenciadas e maiores do que aquelas que antes atendiam a escola tradicional. Apenas a alternância de períodos e maximização do uso dos espaços não seria suficiente no caso brasileiro, carente de unidades escolares e onde o estabelecimento de um sistema de ensino público ainda enfrentava oposições. Para escapar da objeções usuais e conseguir edificar as escolas seguindo as orientações da Escola Nova, Anísio Teixeira propôs, durante suas passagens por cargos públicos, dividir o programa em edificações distintas e com horários de funcionamento alternados: as unidades escolares para o ensino fundamental e os parque escolares, que concentrariam as demais atividades, como as artísticas, esportivas, médicas, etc. Estava criado o conjunto Escola Parque Escolas Classe. Os alunos frequentariam ambas escolas diariamente, em turnos separados e revezados, de modo que as turmas que frequentavam os


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ensino 58%

administração 17% recreação 25% FIGURA 2: Gráfico da distribuição do programa escolar. Fonte: DUARTE, 1951, p. 5.

ensino básico pela manhã, passariam a tarde na Escola Parque, e vice-versa. Apesar dessa solução ampliar o número de edificações, a soma dos custos compensava, pois se mostravam inferiores ao valor total das obras somados aos preço dos grandes lotes exigidos pela implantação conjugada. Foi Hélio Duarte quem realizou os estudos iniciais para Escola Parque no bairro da Liberdade, em Salvador, que o arquiteto soteropolitano Diógenes Rebouças acompanhou e nos quais depois fundamentou o projeto que foi edificado. A realização do conjunto de Escola Parque e Escolas Classe de Salvador — o único edificado de um plano de sete conjuntos para a capital, realizado quando Teixeira foi secretário da educação da Bahia


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FIGURA 3: Plantas da E. E. Visconde de Taunay (1949). Fonte: FERREIRA; MELLO (orgs), 2006, p. 110.

— fundamentou uma série de soluções arquitetônicas e pedagógicas estabelecendo um novo patamar de entendimento do potencial do programa escolar enquanto equipamento público amplificadas pela forma de enfrentamento do programa pela arquitetura. Interessa destacar que os desenhos de Duarte para Salvador foram realizados simultaneamente à coordenação e participação do arquiteto no Convênio Escolar em São Paulo, e o próprio arquiteto (1973, p. 49) afi rma o rebatimento da experiência baiana sobre os projetos das escolas paulistanas. Apesar de realizados por arquitetos diferentes, os projetos das unidades escolares do Convênio apresentavam certa unidade nas implantações, na distribuição do programa, nas volumetrias e em outros aspectos que o caracterizavam como um conjunto distinguível. Há elementos arquitetônicos e/ou construtivos das obras que se tornaram fortes referências, presentes em muitos projetos de arquitetura escolar até hoje. Alguns desses elementos tinham sido testados por Duarte no estudos preliminares para o conjunto da Escola Parque em Salvador. Do ponto de vista espacial, nas unidades paulistas jardins e vazios são incorporados às implantações, garantindo à escola espaços mais amplos e convidativos. Aliados a uma disposição mais acolhedora, as edificações, menos imponentes, tinham uma escala mais condizente com a da criança. Outro aspecto marcante nessa produção era a separação volumétrica do programa escolar. A determinação de princípios norteadores para os projetos das escolas foi uma das primeiras etapas do plano de construção, e se transformaram em uma espécie de manual até hoje utilizado. Com relação ao programa das unidades, este foi dividido em três grupos: ensino, recreação e administração. A


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juliane bellot 113 FIGURA 4: À esquerda, vista noroeste da E.E. Almirante Barroso (1949). Fonte: Habitat, n.3, 1951. FIGURA 5: Abaixo, vista do acesso da E.E. Orville Derby (1949). Fonte: FERREIRA; MELLO (orgs), 2006, p. 105.

estratégia de fracionar o programa era parte de uma tática de racionalização construtiva que se associava a idealização dos parâmetros norteadores comuns aos projetos que garantisse certa unidade ao programa. O agrupamento funcional orientava, mas não era determinante da forma fi nal da implantação, de modo que os volumes poderiam ser organizados conforme as possibilidades dadas pelo lote. Por essas razões, as escolas do Convênio se assemelham entre si, mas também se destacam por características independentes. Ao longo dos anos as escolas sofreram modificações e adaptações, a maioria determinadas por mudanças nas legislações. As transformações nos aspectos formais não foram tão expressivas a ponto de tornar as edificações irreconhecíveis, mas elas atingiram o âmago das


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propostas do Convênio ao descaracterizarem os ideais sobre os quais se alicerçavam os projetos. Apesar disso, o entorno das escolas modificou-se consideravelmente e, em geral, os bairros progrediram economicamente. É fato que Duarte acreditava que a escola, enquanto equipamento público, teria uma ação efetiva sobre as possiblidades de progresso da comunidade na qual foi inserida. Entretanto, de modo adverso do que acreditava Duarte, a arquitetura inovadora proposta para as escolas não estimulou uma renovação pedagógica, ao contrário, visitando as unidades do Convênio notamos que a maior parte das críticas dos profissionais de ensino esta antes na proposta educacional que embasava as escolas do que na solução dada pela arquitetura. Na pesquisa desenvolvida, portanto, não nos foi possível precisar o papel da inserção das escolas nas transformações entornos, apesar disso, verificamos que a aposta nas potencialidades do programa escolar enquanto força motriz de transformação socioeconômica orienta os arquitetos e alguns projetos políticos até os tempos mais atuais. ⧊


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FIGURA 6: Um diagrama de Hélio Duarte mostrando as forças centrípetas e centrífugas inerentes, segundo seu ponto de vista, à atuação da escola sobre a sociedade. Fonte: Habitat n.4, 1951, p. 5.


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audit처rio para quest천es delicadas Guto Lacaz 1

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Na inauguração deu tudo cer to. No dia seguinte, saiu uma foto no jor nal da obra boiando e o título “Cadeiras de Guto Lacaz naufragam”


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1 Guto Lacaz é artista multimídia, ilustrador, designer, desenhista e cenógrafo.

<

Detalhes construtivos

< Implantação

Meu auditório afundou. Minha relação com os erros é de ódio, mas também de aprendizado. Meu trabalho é muito experimental. Aprendo com a prática. Já cometi todos os deslizes possíveis. Entreguei cartão de visitas com o nome errado, quase fiz o cartaz de uma exposição com a foto invertida, e por aí vai. Meu erro mais marcante foi um que virou público. Em 1989, a prefeitura de São Paulo me convidou para participar de um evento sobre os direitos humanos. Marilena Chauí era a secretária da Cultura. Decidi que faria um trabalho flutuante no lago do Parque do Ibirapuera. Queria transformar o lago num auditório com cadeiras que ficassem na superfície, o nome da obra era Auditório para questões delicadas. As cadeiras seriam apoiadas em um X feito de madeira e isopor. Na inauguração deu tudo certo. No dia seguinte, saiu uma foto no jornal da obra boiando e o título “Cadeiras de Guto Lacaz naufragam”. Não me dei conta de que a instalação teria de aguentar os ventos e a correnteza. Artista é vaidoso, acha que vai lá, faz e dá tudo certo. Quando li, morri de vergonha. Mas tive de colocar o rabo entre as pernas e resolver o problema. Durante dois meses, ia todos os dias ao lago para experimentar materiais e chegar a uma solução. Não foi fácil. Houve um momento em que tive de admitir que não sabia o que fazer. Busquei ajuda. Um amigo me emprestou um macacão de mergulhador, porque a água do lago era muito suja, dava dermatite. Outro conhecido cedeu a piscina da casa dele para fazer testes. Me aconselharam a usar alumínio e poliuretano, empregado em pranchas de surfe, na armação das cadeiras. Comecei a trabalhar com materiais que não conhecia. Passei a estudar o lago. Agrupava quatro

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cadeiras e voltava no dia seguinte para ver o que tinha acontecido. Foram vários testes até eu conseguir neutralizar o efeito do vento e da correnteza. Ancorar as cadeiras também foi um desafio. No começo tentei bater uma estaca na água, mas ela ficava molenga. Decidi que precisava de uma âncora. Peguei dois paralelepípedos, amarrei com arame, joguei e ficou perfeito. Foi um trabalho marcante pra mim. Quando pronto, dava a ilusão de que as cadeiras estavam flutuando. O mesmo jornal que apontou o erro publicou uma notinha, dizendo “cadeiras voltam a flutuar”.

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Depois desse projeto, fiquei mais cuidadoso com a elaboração das instalações, mas não tem jeito, é normal algo sair errado. Fiz outra obra no lago e também tive de repensar os materiais, porque o plástico que usei ficou enrugado. Ao ar livre, a natureza se impõe. O erro é um grande professor. Thomas Edison dizia que experimentou 80 materiais diferentes para fazer o filamento da lâmpada até chegar ao tungstênio. Ele brincava: “Não é que errei 80 vezes. Apenas aprendi 80 jeitos que não dão certo”. É uma questão de como você encara o erro. ⧊

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1 Luiz Recamán é cientista social, arquiteto e professor da FAU USP. 2 Mariana Wilderom é arquiteta pela FAU USP e atua sobre o estudo de história e crítica da arquitetura.

escola (des)fa zen do a cidade

Luiz Recamán1 e Mariana Wilderom2 Muito se discutiu sobre a devida relação entre a arquitetura escolar e as cidades, especialmente em São Paulo. Podemos mesmo dizer que o projeto de “escola” foi sobrecarregado de funções bastante ousadas no contexto do subdesenvolvimento. Como se não bastasse sua ousadia moderna inerente ao programa educacional – formar cidadãos autônomos –, no caso de São Paulo, as escolas tiveram de ajuizar sobre as difíceis condições da metropolização. Para refletir sobre isso, devemos buscar compreender os termos dessa equação: a escola, na realidade da modernização brasileira, e a cidade e a sua urbanização acelerada durante o século XX. Mas essas polaridades não devem ser essencializadas, na medida em que ambas se referem diretamente ao mundo


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[...] a cada projeto de escola, dada a sobrecarga de expectativas que gerava, afirmou-se uma possibilidade urbana.

3 Cf. JULIÃO, Mauri Freitas. Atividades da Comissão de Construções Escolares. Engenharia Municipal, São Paulo, .2, p.17-19, março 1956.

social em que foram produzidas. Trata-se, portanto, pelo menos do ponto de vista desta breve reflexão (A&U), de discernir uma possível relação entre elas. Ou seja, a cada projeto de escola, dada a sobrecarga de expectativas que gerava, afirmou-se uma possibilidade urbana. Isso é válido para quase todas as circunstâncias de projeto de arquitetura, mas no caso em destaque, a expectativa de cidade era um dado fundamental da estratégia disciplinar. A escola republicana, por razões já bastante discutidas, reunia um programa muito básico – as salas – em uma localização urbana de destaque. Tal economia de funções do edifício monumental contava e gerava relações diretas com espaços urbanos adjacentes, como praças e parques infantis. Ou seja, sua função educativa era completada na cidade que a continha, ou pelo menos, em suas representações republicanas. Esse esquema contava com duas condições principais: a excepcionalidade do privilégio da educação e um espaço urbano consolidado nos moldes da cidade burguesa (o que historicamente não se estabeleceu). Esse modelo foi rejeitado quando o país reclamou diferentes ideologias de modernização. A educação passa então por pressões universalizantes; e o contexto urbano ultrapassa as representações espaciais de estruturas urbanas previamente definidas. Essa última, aliás, é feição basilar das contradições de nossa modernização durante o século XX. O urbanismo da República, em geral baseado no desenvolvimento e adaptação de morfologias urbanas européias nas áreas mais nobres da cidade, cede lugar ao planejamento essencialmente viarista que tornava, a cada desdobramento da legislação, o lote como estrutura independente


O programa escolar se complexificou e se decompôs em volumes funcionais que conviviam no grande espaço, formando um conjunto arquitetônico.

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que tendia a conformar todas as novas construções, dar-lhes sentido suficiente. Tal condição estava diretamente implicada nas tipologias da Escola Nova e, mais ainda, no seu ponto cego: 70 edifícios do Convênio Escolar contra 500 galpões provisórios construídos . O espaço nos quais os edifícios escolares estavam inseridos emulavam a neutralidade dos parques e vazios que eram índice da extensão totalizadora da planificação moderna. Mas não podiam ultrapassar sua condição deslocada, na medida em que essa vaguidão chocava-se com uma estrutura urbana loteada e fragmentada – ou seja, nos termos da espacialidade proposta, desordenada. O programa escolar se complexificou e se decompôs em volumes funcionais que conviviam no grande espaço, formando um conjunto arquitetônico. Para além desse arranjo arquitetônico pontual


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– ainda que com pretensões de extroversão socioespacial – essas escolas reforçavam sua dessemelhança com a cidade real ao criarem um sistema de espaços e equipamentos dispersos no bairro, de tipologias similares, que deveriam estabelecer uma relação funcional e estética direta. Uma boa maneira de constranger a urbanidade real criando clareiras modernas provocadoras. Estratégia impotente, no entanto, que produziu, com o desenvolvimento da cidade, glebas cercadas com espaços restritos mais ou menos bem-sucedidos. Pelo menos do ponto de vista da relação aqui discutida. A consciência dessa restrição urbana e social – uma cidade que resiste à ordenação moderna e brutaliza as relações humanas – é a peça chave do esquema espacial renovador criado pelo arquiteto Vilanova

Artigas. Esse esquema tem na casa sua base espacial e humana, na medida em que ela se tornou um contraponto a relações servis que iam se perenizando em nosso processo de modernização conservadora. O esquema da casa desenvolvido por esse arquiteto estava baseado em uma grande dinâmica interna tensionada pela volumetria sintética que tendeu a semelhar a partição abstrata do lote. As possibilidades estéticas e críticas dessa relação conflitante entre interior e exterior já foram discutidas, tendo sido a base de profusa produção de uma arquitetura paulistana que daí resultou. A sociabilidade fraterna da casa, permitida e potencializada por esse esquema espacial, possui um dilema trágico: sua generalização. E vai ser no programa da escola, desse esquema decorrente, que um escape será provisoriamente ensaiado. É como se a


casa alcançasse uma potência de generalização, inalcançada em seus próprios termos – já que é um fragmento não totalizador do espaço da cidade – por meio de um programa mais abrangente e ideologicamente mais eficaz, a escola. A escola de Artigas reuniu, então, sob um mesmo teto, o programa abrangente que a Convênio Escolar havia distribuído no conjunto e nos conjuntos. Toda a complexidade da formação integral e universal dos pequenos cidadãos passa a ser organizada sob uma grande cobertura que inclui, e aí um ponto a ser destacado, os espaços livres. Esses mesmos que não são mais encontráveis na cidade que se privatizara. Toda a experiência educacional, e social, poderia ser realizada nesse grande espaço acolhedor que se torna, se considerarmos seu momento histórico, espaço de proteção e recolhimento. Os impulsos formais generalizantes e universalizantes, que a escola permite figurar mais consistentemente que a "casa", acentuavam assim os contra-vetores

[...] sua destacada qualidade social (do CEU), inscrição em meio urbano fragmentado e conflitado, impediu, caso isso tenha sido uma preocupação tipológica, qualquer tipo de relação espacial que não seja sua excepcionalidade.

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das contradições sociais dessa modernização. Isso, na medida em que a educação universal moderna, um fato inalcançado mas alcançável dentro dessas mesmas contradições, choca-se com as estruturas arcaicas que moldavam as relações sociais no período que antecedeu o golpe militar. As escolas de Artigas, em especial a própria FAUUSP, levam essa tensão espacial, que está em sua forma, a níveis inéditos na cultura brasileira, mais afeiçoada a adoçamentos. Mesmo reativa, tal introversão espacial radical não pôde conter o assédio que a cidade real e seus processos políticos, dia a dia mais autoritários, consumava. A amplitude das questões urbanas sumariamente apresentadas acima reapareceriam na experiência dos CEUS – Centros Educacionais Unificados – construídos no


O esquema a seguir foi inspirado no “Diagrama com implantações dos CEUs, e mostra a implantação de 16 dos 21 CEUs existentes. Fonte: REATO, Marina. CEU, desenho, cidade. São Paulo: Trabalho final de graduação. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2011.

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início do século XXI na capital paulista. Isso quer dizer apenas que a tradição totalizadora – do ponto de vista social e espacial – que o projeto de escolas públicas adquiriu em São Paulo, foi retomada nessa experiência inovadora. Porém, não se pode desconsiderar a radical alteração da conjuntura social do país e, principalmente, das expectativas de seu processo de metropolização. Essa restrição estética não pôde ser eliminada nesse momento mais recente. Isso implicou uma alteração substancial naquilo que vimos de denominar “conjunto” nas experiências do Convênio Escolar, fonte evidente de inspiração da nova proposta dos CEUs. Se naquele momento desenvolvimentista o “conjunto” exercia uma função de exemplo, de expectativa e de contraposição, os


128 escola (des)fazendo a cidade

centros educacionais recentes não lograram uma unidade própria. Os edifícios isolados – concebidos para a pré-fabricação – não puderam desenvolver uma conexão entre si, que não fosse apenas o difícil arranjo topográfico nos fragmentos urbanos periféricos, com pouco espaço para a criação mais integral. Os CEUs se localizam em áreas urbanas precárias, desprovidas de equipamentos públicos. Seu programa educacional ousado previa diversas atividades culturais e sociais, que extrapolaram a ideia de uma escola pragmática. Essa sua destacada qualidade social, inscrição em meio urbano fragmentado e conflitado, impediu, caso isso tenha sido uma preocupação tipológica, qualquer tipo de relação espacial que não seja sua excepcionalidade. Dificuldades dos novos tempos que não puderam ser evitadas nem mesmo na própria configuração interna do "conjunto", agora impossível. A experiência escolar datada de um século em São Paulo não pôde, portanto, realizar sua tarefa mais ousada, ou seja, induzir, produzir, interferir ou mesmo atritar o espaço da metrópole. Se esta for considerada uma anomalia socioespacial, não logrou alterá-la. Se esta puder ser considerada uma realidade contraditória, talvez devamos começar a pensar uma relação. ⧊

CEU NAVEGANTES

CEU CIDADE DUTRA

CEU INACIO MONTEIRO

CEU PAZ


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CEU TRES LAGOS

CEU ALVARENGA

CEU MENINOS

CEU SÃO RAFAEL

CEU VILA CURUÇÁ

CEU PERUS

CEUVILA TLÂNTICA

CEU CASA BRANCA


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A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS PARA A EDUCAÇÃO Cássia Buitoni1 Ilustração: Victória Sanches Bruna Martins Luiza, 4 anos Lucas, 9 anos


“Não há espaço vazio, nem de matéria nem de significado; nem há espaço imutável. Nada é mais dinâmico do que o espaço porque ele vai sendo construído e destruído permanentemente, seja pelo homem, seja pelas forças da natureza. Também nada existe nem se articula fora dele. Justamente porque ninguém escapa à inevitabilidade de viver e de se relacionar com pessoas e objetos num espaço material e concreto, carregado de significado, é que o espaço se mascara na rotina familiar e passa desapercebido da maioria das pessoas. É no espaço físico que a criança estabelece a relação com o mundo e com as pessoas; e ao fazê-lo esse espaço material se qualifica. (...) Parece-nos importante insistir em que espaço, entendido apenas enquanto elemento neutro organizado ou construído por peças ou componentes materiais, é um ente que, apesar de sua concretude, paradoxalmente, só existe na abstração, quando ele passa a ser um objeto-mercadoria ou um objeto-estudo. Em qualquer outra situação, o espaço organizado ou construído é mediado, qualificado, completado ou alterado pela relação que nele estabelece o indivíduo consigo próprio ou com outros indivíduos.” 2

1 Cássia Buitoni é arquiteta 2 LIMA, Mayumi W. Souza. A cidade e a criança. São Paulo, Nobel, 1989, pp.13-14.

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NADA É ABSTRATO, NEUTRO OU INDIFERENTE NO ATO DE PRODUÇÃO DA ARQUITETURA DOS EQUIPAMENTOS COLETIVOS.

Este artigo é fruto de Dissertação de Mestrado (FAUUSP, 2009) sobre a obra da arquiteta Mayumi Watanabe de Souza Lima (1934-1994). Mayumi formou-se arquiteta pela FAUUSP em 1960 e dedicou sua carreira ao planejamento, projeto e construção de equipamentos públicos para a educação de crianças e de jovens. Atuou em diversos órgãos públicos (municipais, estaduais e federais) e foi professora em cursos de arquitetura (em Brasília, São José dos Campos, Santos e São Carlos). Ao longo de sua trajetória, desenvolveu estratégias específicas de atuação, tendo como premissa a compreensão de que, além de projetar e de construir o espaço físico, era preciso trabalhar também na formação da população para construir o espaço da cidadania. Um espaço se define a partir de seu uso cotidiano e, se queremos construir espaços democráticos, é preciso primeiro romper o condicionamento passivo da educação tradicional e criar o espaço para a participação ativa do usuário, para então possibilitar a livre expressão de adultos e crianças na apropriação dos equipamentos coletivos. Mayumi partia sempre de uma visão crítica da realidade para a leitura do espaço construído: como a segregação espacial urbana e as condições precárias dos equipamentos públicos refletem a organização da sociedade capitalista,


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baseada na exploração do trabalho; o modo como são construídos e usados esses equipamentos, por quem, para quem; o lugar das crianças na sociedade; o vandalismo e o descaso da própria população contra o patrimônio público. Reconhecer o território em que se trabalha era fundamental para todos os envolvidos, e no início de cada projeto Mayumi promovia leituras e reflexões para que a equipe estivesse em sintonia, em especial sobre o significado do projeto público: “Nada é abstrato, neutro ou indiferente no ato de produção da arquitetura dos equipamentos coletivos. Nele, o traço nunca é um risco: é um material, é uma dimensão, é um custo, é uma resposta a demandas que são concretas em um tempo histórico.” 3 Mayumi denunciava a falta de cuidado na construção e no uso dos equipamentos públicos destinados às crianças. As creches e escolas padronizadas, “frias”, desinteressantes, voltadas para a disciplina e o “policiamento” das crianças, são um reflexo de como a sociedade dá pouca importância a esses pequenos seres. O espaço construído pode ser usado como elemento ativo de condicionamento da criança para a constituição do futuro adulto passivo, do-


mesticado, obediente e disciplinado – como por exemplo escolas cheias de grades. Ou, o edifício pode ser um instrumento para o uso da criatividade, laboratório onde as crianças tenham liberdade para experimentar e criar, apropriando-se do espaço e transformando-o. No entanto, não é apenas uma questão de se projetar um espaço adequado para as crianças. É necessário descondicionar o adulto de sua atitude de controle, para então poder deixar espaço para a ação natural da criança, permitir que ela tenha a oportunidade de descobrir o mundo por si mesma, de explorar os espaços das escolas e parques (ou mesmo de casa), de apropriar-se dos lugares e objetos e de poder criar suas próprias histórias: “(...) existe o espaço DA criança, aquele que a criança conquista, se apropria, constrói, de fato ou pela imaginação, e por isso lhe pertence; e o espaço PARA a criança, pensado pelos adultos como aquele que melhor se presta às necessidades da criança. Lamentavelmente, quase sempre o espaço elaborado para a criança não consegue ser “espaço da criança”, mostrando-se ao contrário, limitador e padronizador de comportamentos; o adulto pré determina o que a criança pode e deve fazer naquele e com aquele espaço, não lhe dando liberdade para construir o novo. Tudo já é encaminhado para o uso passivo, ainda que acompanhado de muitos movimentos.” 4 E como seria então o projeto do espaço para a criança? Ao pensar esses espaços, é preciso criar estímulos para a curiosidade e a imaginação e deixar em aberto as possibilidades de apropriação pelas crianças:

3 LIMA, Mayumi W. Souza. Arquitetura e Equipamentos Sociais. São Carlos: EESC-USP, 1992. pp.57-58. (apostila de apoio para o curso de projeto na Faculdade de Arquitetura). Fonte: Acervo Mayumi Watanabe Souza Lima.

134 a construção dos espaços para a educação


4 LIMA, Mayumi W. Souza. “Espaço para a Educação Pré-Escolar”, texto preparado para o seminário do CEDATE/MEC – Brasília, outubro 1985, pp.2-3. Fonte: Acervo Mayumi W. Souza Lima. 5 Idem, pp.15-16.

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“O projeto do espaço educativo para criança é, portanto, um projeto necessariamente inacabado – intencionalmente incompleto – isto é, o projeto se completa somente com e pela ação da criança; isto não significa falta de projeto ou de proposta do educador ou do arquiteto, mas uma intenção claramente contida no projeto de fazer da criança o elemento ativo de construção do espaço. Esta criança, porém, não será de novo a abstração padronizada, criança na cabeça de quem projeta ou educa, mas cada criança real que pertence a determinado grupo social, mora em determinado local e condição. O espaço deverá permitir, portanto, a interpretação variada que cada criança dará. Não serão tubos montados para ser somente e exclusivamente um trem, mas os mesmos tubos, de diâmetros e aberturas variáveis, compostos abstratamente virarão caverna, castelo, carro ou mesmo o próprio trem, conforme momento e a disposição de cada criança.” 5 O espaço da criança não precisa ser restrito aos locais confinados (casa, escola, parque). A cidade pode e deve ser usada por todos os seus habitantes, adultos e crianças. O desejo de um espaço de qualidade para as crianças é também o desejo de uma cidade para todos. Aprender a observar como é construída a cidade, quais são as ideias representadas em cada edifício, quais os materiais utilizados, cada muro com grades e câmeras – aprender a “ler” o espaço de maneira crítica, como um reflexo da nossa sociedade, nos torna aptos a batalhar por espaços públicos onde seja possível um uso mais livre e transformador.


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Mayumi desenvolveu com sua experiência uma maneira bastante particular de trabalhar na construção de equipamentos públicos, com estratégias de participação e de formação para a cidadania, que pôde aplicar em um de seus últimos projetos, o Cedec – Centro de Desenvolvimento de Equipamentos Urbanos e Comunitários, durante a gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1992). Além de desenvolver pesquisas sobre a produção de equipamentos urbanos, o Cedec incluía uma fábrica de elementos pré-fabricados de argamassa armada6 que produziu equipamentos como lixeiras, abrigos de ônibus, bancos e componentes para a construção de edifícios como escolas, creches e centros de convivência. Com isso, a prefeitura buscava reduzir custos e prazos e aumentar a qualidade das obras públicas (em contraponto às obras construídas por empreiteiras). Partia-se da premissa de que a qualidade do espaço e sua manutenção interferem na qualidade de vida da população usuária, portanto: “Isso significa uma nova postura de projeto e de manutenção, porque significa uma mudança radical de enfoque dos investimentos municipais: o ponto de partida será o usuário e o ponto de chegada, a melhoria da qualidade do ambiente que a ele é oferecido. Por isso, uma creche ou escola não é mais uma construção de baixo custo a ser inaugurada. Ela é a arquitetura de um lugar destinado às crianças, e portanto, necessariamente alegre, clara, com áreas projetadas para as necessidades específicas das crianças.” 7

6 Fábrica baseada no projeto de João Filgueiras Lima, o Lelé. 7 LIMA, Mayumi Watanabe Souza. Arquitetura e Educação. São Paulo, Nobel, 1995, p.138.

O CEDEC:


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8 O conteúdo das reuniões foi descrito aqui a partir de documento manuscrito de uma das pautas e do relato da pedagoga Marta Grosbaum à autora em 21/10/2009 . Marta fazia parte da equipe do Cedec e acompanhava a Mayumi em muitas dessas reuniões.

A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA As atividades do Cedec eram orientadas com o propósito de alterar as relações tradicionalmente autoritárias e paternalistas do poder público com a população e com os trabalhadores envolvidos na execução de obras públicas. Além de fornecer o equipamento, havia o propósito de incentivar a gestão democrática do espaço urbano, envolvendo a população nos processos de decisões e na demanda por maior qualidade nos serviços públicos. Mayumi realizou no Cedec um trabalho inédito de formação para a cidadania que incluía, dentre outras atividades, aulas de alfabetização pra os operários e divulgação de informações para a população. Antes do início de cada obra, eram distribuídos folhetos para a comunidade local, um convite para a reunião de apresentação do projeto. Mayumi ia pessoalmente nessas reuniões para conversar com a comunidade, em geral acompanhada por algum membro da equipe. A reunião8 começava com a discussão sobre os conceitos de periferização, exploração imobiliária, espoliação urbana – para fazer a comunidade entender sua situação histórica na cidade – e em seguida apresentava o trabalho do CEDEC e como eles pretendiam mudar essa situação. Era apresentado o projeto do equipamento comunitário para que a comunidade soubesse o que seria feito no bairro. Mayumi se preocupava em transmitir a mensagem de que “este equipamento é de vocês, dos seus filhos, está sendo construído com todo o cuidado e vocês precisam acompanhar o processo, fiscalizar as obras. A escola não pertence ao diretor, ela é da comunidade e todos devem zelar por ela.”


As reuniões terminavam sempre com o agendamento de um próximo encontro – Mayumi queria estabelecer o compromisso com a população, que eles soubessem que ela não desapareceria, como um político populista faria. Ao final da obra, eram distribuídos folhetos apresentando o novo edifício e pedindo à população que cuidasse desse espaço coletivo conquistado. Todos os folhetos eram elaborados em linguagem acessível, de forma simples e convidativa, com desenhos e chamadas instigantes como “Não fiquem por fora!” ou “Entre: a casa é sua”. “O projeto das escolas tinha como partido a sua abertura para a comunidade. A entrada possuía um pórtico coberto para que os pais pudessem aguardar as crianças, uma pequena gentileza urbana. A implantação dos equipamentos externos, como playground, quadra de esportes, vestiários e anfiteatro era feita de forma a possibilitar o uso pela comunidade, independentemente do edifício das salas de aula. Como fechamento, um alambrado transparente para que se visse o movimento dentro da escola. Mayumi argumentava

9 Conforme depoimento de Reginaldo Ronconi na banca de qualificação em julho 2008.

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10 Escolas – Manual do Usuário. Publicação CEDEC/ Emurb, p.16. Fonte: Acervo Mayumi W. Souza Lima. 11 O projeto de comunicação visual das escolas do Cedec é de Francisco Homem de Mello.

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que “ao desenhar o contorno da escola, no fundo a gente está desenhando o contorno da sociedade. A construção de um muro de alvenaria com 2 metros de altura parte do pressuposto que a sociedade é irrecuperável e violenta por si só. O gradil transparente denota a fé numa sociedade passível de transformação.” 9 A área externa era organizada ao longo de um caminho, elemento lúdico e de exploração pedagógica, percorrendo diversos ambientes, como “cidades” do imaginário infantil, com brinquedos alternativos criados a partir da composição de elementos de argamassa armada desenhados pela equipe do Cedec, tais como cubos, escadas, triângulos, cambotas de lixeiras, peças de canalização e divisórias; da utilização de troncos de eucalipto e cordas e da utilização de sucata da construção. O caminho oferecia aos alunos a oportunidade de percorrer e reconhecer todos os espaços da escola: “Para que se tenha domínio sobre um determinado espaço, é preciso que se conheça cada uma de suas partes, enquanto território


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[...] ERAM ESTRATÉGIAS PARA A CRIAÇÃO DE ESPAÇOS MAIS DEMOCRÁTICOS, COM INCENTIVO À PARTICIPAÇÃO DA POPULAÇÃO.

no qual é possível movimentar-se sem restrições. Assim, no prédio escolar, as instalações, as salas, as áreas externas devem ser desveladas para cada aluno, localizando-o no espaço, indicando-lhe direções, funcionamento, limitações e destinações.” 10 A comunicação visual das escolas11 reforçava o partido de identificação do usuário com o equipamento público: a logomarca de cada escola era concebida com a função de resgatar a origem do nome do bairro. No Jardim Curuçá, cujo nome significa cruz em guarani, o logotipo foi desenhado a partir de diferentes formas de cruz ao longo da história (egípcia, celta, latina). Essa explicação aparecia no folheto de apresentação da escola. O logotipo era aplicado na caixa d’água, local de grande visibilidade, para identificar a escola no bairro. A comunicação visual interna era pensada em função da faixa etária das crianças, com cores fortes e alegres, de modo que elas pudessem facilmente reconhecer e se apropriar do espaço escolar. Na parede ao lado de cada sala de aula, números grandes em cores primárias mostravam a preocupação com a falta de familiaridade das crianças com informações escritas na paisagem dos bairros periféricos – onde algumas vezes não havia placas com nome de ruas ou números nas casas.


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Todos estes detalhes e uma série de outros cuidados na concepção e na execução desses equipamentos públicos tinham a intenção clara de fortalecer as relações com a comunidade do bairro, fazer com que as pessoas se identificassem e pudessem se apropriar daquele equipamento, zelando pelo patrimônio delas. Eram estratégias para a criação de espaços mais democráticos, com o incentivo à participação da população no uso e no cuidado com o equipamento público, de maneira crítica e consciente. As atividades do Cedec funcionaram de forma íntegra durante três anos e foram covardemente encerradas na gestão posterior. Perdeu-se a oportunidade de continuar (e ampliar) um programa consistente e inédito dentro do poder público. Hoje, 25 anos depois, a cidade ainda carece de espaços democráticos. E alguns coletivos batalham pela construção da cidadania e pela ocupação ativa dos espaços “abandonados” pelo poder público ou mesmo pela iniciativa privada, na tentativa de criar novas formas de uso do espaço urbano. O que poderia ter acontecido se o Cedec tivesse continuado suas atividades de construção de espaços democráticos em São Paulo? ⧊


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PÉ PRA FORA

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Caminhar é o ato primordial de deslocamento dos seres humanos2. É a primeira forma a que recorremos, logo em nossos primeiros passos, na infância, para conectar pontos no espaço que nos cerca, e, para além disso, descobri-lo e ocupá-lo. Desde pequenos aprendemos a jogar constantemente com o equilíbrio, transformando essa dança cotidiana no movimento de ir e vir e, principalmente, perceber. Percorrer lugares caminhando faz do corpo instrumento de exploração, meio pelo qual conseguimos desvendar tamanhos, texturas, resistências, confortos e dificuldades. É a maneira também de termos consciência de nossa disposição, velocidade


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Percorrer lugares caminhando faz do corpo instrumento de exploração, meio pelo qual conseguimos desvendar tamanhos, texturas, resistências, confortos e dificuldades. e alcance, o que a faz tão essencial para experimentarmos contatos com o meio e, consequentemente, com os outros que o dividem conosco. A experiência atual de cidade, no entanto, parece ter perdido toda essa possibilidade que o caminhar propicia. Os centros urbanos proporcionam constante fluxo, porém garantem muito pouco do andar a pé. A cotidianidade, permeada de muitas atividades, gerada pelo sistema em que vivemos e aliada às estruturas urbanas construídas para ser seu suporte, impõem às pessoas a necessidade de grandes deslocamentos, no menor tempo possível, tornando o transporte motorizado meio mais comum de circulação em detrimento da caminhada3. O planejamento da cidade moderna - e contemporânea, como em muitos casos de cidades brasileiras - priorizou e celebrou as estruturas do automóvel. Tornar o espaço cada vez mais acessível ao transporte motorizado é fazê-lo cada vez menos confortável às pessoas. A distância criada entre corpo e espaço, assim, faz com que cidadãs e cidadãos sejam menos disponíveis a ele, então desconhecido, estranho e inseguro. Deixar que os passos nos guiem enquanto observamos o entorno e damos asas à imaginação é hábito de poucos, que deveria ser reaprendido por todos, inclusive como ferramenta de aprendizagem.


“E cada passeio cruza o espaço como a linha atravessa o tecido, costurando-o numa experiência contínua, tão diferente da maneira como aviões, carros e trens truncam o tempo e o espaço. Essa continuidade é uma das coisas que, a meu ver, nós perdemos na era industrial, mas podemos optar em recuperá-la, repetidas vezes, e há quem o faça. Os campos e as ruas estão à espera.”4 A ausência de contato direto com o espaço público, que só pode ser experimentado na velocidade e disponibilidade do andar, priva a todas e todos de preencher o lugar em suas várias dimensões e sensibilidades. Estar na rua é essencial para construir relações, testar, usar e, principalmente, subverter a lógica utilitarista da cidade, resgatando seu caráter lúdico e humano5. Por todas estas formas de descoberta, andar a pé também é possibilidade de educação. Educar para o próprio corpo e seus tempos, para os sentidos, para o convívio e a cidade. No entanto, se a cidade nem sempre se mostra aberta às pessoas, como propor que a caminhada seja considerada educadora? Nosso primeiro convite é: descubra-a. Conheça o bairro, suas calçadas, seus vizinhos, as lojas, árvores, casas e cores. É sempre esta a proposta, quando conversamos com mães, pais, professores, coordenadores de escolas: adultos, lembrem-se dos caminhos, das potencialidades - muitas vezes também dos lugares impróprios - e das pessoas que estão à sua volta. Agora, reflitam: por que não ocupamos estes lugares? E mais, porque impedimos as crianças de estarem neles? A cidade é direito de todas e todos, inclusive delas, e temos muito a aprender com este ambiente. Ela é local do inesperado e dos encontros com várias condições humanas com

No entanto, se a cidade nem sempre se mostra aberta às pessoas, como propor que a caminhada seja considerada educadora?

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por que não ocupamos estes lugares? E mais, porque impedimos as crianças de estarem neles?

as quais nos identificamos, ou não, mas que são apresentadas enquanto caminhamos. Vemos pessoas chorando, rindo, gritando. Pessoas comendo, rezando, correndo, caindo e se machucando. Também presenciamos abraços, beijos e brigas - verbais ou físicas. E, assim, vivenciamos e entendemos diferentes meios de nos relacionarmos, nos deparando com questões éticas e de cidadania, e descobrindo a nós mesmos também. “(...) porque geralmente se imagina que pensar não é fazer nada numa cultura voltada à produtividade, e não fazer nada é difícil. A melhor maneira de conseguir isso é fingir que se está fazendo alguma coisa, e a coisa mais próxima de fazer nada é caminhar. O próprio caminhar é o ato intencional que mais se aproxima dos ritmos involuntários do corpo, da respiração e da pulsação. Estabelece um equilíbrio delicado entre o trabalho e o ócio, entre o ser e o fazer. É um esforço físico que nada produz além de pensamentos, experiências, chegadas”. (grifo próprio)4 E se nós, adultos, podemos todo dia aprender algo com as ruas e o espaço público, por que não as crianças? É caminhando que elas terão contato com o diferente e observarão diversos conceitos: a mudança das estações do ano, estampada nas árvores; as letras, recém aprendidas na escola, grafadas nas fachadas; a evaporação da água da chuva em contato com o asfalto quente; o que é desigualdade social; as diferentes liberdades permitidas a homens e mulheres no espaço urbano e assim por diante. São aprendizados que vão além daquilo que é passado nas escolas e que ao mesmo tempo completam e complementam os currículos escolares e de vida.


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“O adulto anda para chegar a uma meta externa e segue diretamente para ela; além disso, tem no passo um ritmo já estabelecido, que o transporta quase mecanicamente. A criança anda para elaborar suas próprias funções e, portanto, tem um objetivo criativo por natureza.”2

Acreditando em todos estes potenciais de aprendizagem pelo caminhar, desenvolvemos com quatro escolas públicas da região central de São Paulo o projeto Exploradores da Rua, entre 2015 e 20166. A atividade, construída em conjunto com a comunidade escolar, tem como finalidade levar as crianças às ruas para experimentá-las e expandir o território educativo para além dos muros da escola. Durante nossas experiências, entre a proposição inicial e o pé pra fora, discutimos os bairros, os caminhos, os projetos para as salas de aula, as inseguranças, as facilidades e outras questões relacionadas à cidade e às infâncias nela inseridas. E, ao sairmos com os grupos de alunas e alunos para dar uma volta no quarteirão, visitar o mercado e o restaurante, registrar as fachadas das casas, conhecer o ateliê do alfaiate vizinho, construir o mapa do bairro, entre outros, descobrimos, no inusitado das perguntas e observações, nos tropeços, nos afetos, sempre novas possibilidades da cidade como aprendizado, muito além do que inicialmente levantamos com os outros adultos envolvidos.


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As crianças nas ruas nos mostram que, por meio de seus olhares, os detalhes podem virar objeto de estudo e investigação. Elas demonstram consciência de todos os combinados implícitos à condição de habitantes da cidade, circulam com naturalidade, localizam-se, trabalham em equipe e conhecem tudo o que lhes é negado quando relegadas, pela cultura da insegurança, aos espaços confinados. Despertam o olhar umas das outras para os lugares e personagens de seus caminhos e, para além disso, mostram a estes personagens - os adultos - que podem e devem ocupar a cidade. Colocamo-nos a pensar: quando e como nos habituamos aos espaços públicos sem a presença de crianças? Tratava-se de uma presença comum não muitas décadas atrás. Fomos, pouco a pouco, sobrepondo o medo e a insegurança à liberdade, ao convívio com a vizinhança e às brincadeiras espontâneas. E o que a cidade ganhou com isso? Facilidade de deslocamento e aumento de velocidade, pais menos preocupados com seus filhos, protegidos dentro de suas casa, podendo dedicar-se mais a seus trabalhos, em tempo integral. “Vantagens” visando à produtividade constante, elemento muito valorizado na sociedade em que vivemos. A presença de crianças nas ruas de algumas localidades tornou-se um episódio tão espaçado na vida cotidiana da cidade que, quando vistas fora de seus lugares comuns escola, carro, casa, shopping center -, instigam os passantes. É notável o estranhamento: há aqueles que se encantam, os que sorriem, os que se irritam com a movimentação. Há quem pare o carro para observar o espetáculo que é um grupo de crianças cruzando a rua, e aqueles que não podem perder nem mais um minuto e fazem questão de avançar. Na maioria das


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vezes, no entanto, o saldo é positivo: mais cores, movimentos e sorrisos são acrescentados à paisagem, e a cidade, dominada por adultos, indo e vindo de seus trabalhos, ganha vida. “A infância que determina as práticas do espaço desenvolve a seguir os seus efeitos, prolifera, inunda os espaços privados e públicos, desfaz as suas superfícies legíveis e cria na cidade planejada uma cidade “metafórica” ou em deslocamento, tal como a sonhava Kandinsky: ‘Uma enorme cidade construída segundo as regras da arquitetura e de repente sacudida por uma força que desafia os cálculos’.”7 Se a cidade por si contribui na educação, a presença das crianças nela reforça a troca que podemos, e devemos, ter entre as gerações, de maneira com que nós, adultos, aprendamos continuamente com elas também. O encantamento/estranhamento gerado com a presença de um grupo de crianças no espaço público garante reflexões. As crianças e suas formas de ver e utilizar a cidade, por muitas vezes inusitadas, acabam adicionando visões sobre nossos espaços, tornando-nos mais criativos e dispostos. A partir do momento em que saem às ruas, muitos olhos se voltam às crianças. Afinal, há um “combinado” comum sobre o fato de elas serem responsabilidade de todas e todos e, no caso de uma delas passar, automaticamente prezamos por sua segurança e bem estar. Andamos mais devagar, respeitamos faixas de pedestres, buscamos que não haja buracos e outros elementos que ponham em risco sua saúde. Assim, além de mais educadora, uma cidade com crianças é também uma cidade mais segura para os adultos.


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Neste sentido, mães, pais, professores, a comunidade escolar e a sociedade civil como um todo, devem rever sua presença nas ruas, sendo reais agentes de mudanças ao incentivar e propor novas e melhores formas de ocupá-las e construir uma nova cultura urbana com a presença das crianças. Em São Paulo, no contexto de intensa discussão sobre a mobilidade como direito à cidade, o andar a pé precisa ser recuperado como forma de preenchimento dos espaços das pessoas e ferramenta de construção da cidadania. Estender este direito a todas e todos, inclusive - e principalmente - às infâncias, garante que o uso da cidade esteja, cada vez mais associado também à educação. ⧊

1 ape - estudos em mobilidade é um grupo que se reúne desde 2012 para debater a cidade sob diversas perspectivas - mobilidade, território, antropologia e educação, entre outros - em forma de encontros para estudos, palestras, textos, intervenções e projetos. 2 MONTESSORI, Maria. A Criança (tradução de Luiz Horácio da Mata). São Paulo: Nórdica, s.d. 3 SÃO PAULO (Estado), Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos: Pesquisa Origem e Destino 2012 – Região Metropolitana de São Paulo: Síntese das Informações Pesquisa Domiciliar. São Paulo: STM, 2013. 4 SOLNIT, Rebecca. A História do Caminhar. São Paulo: Martins Fontes - Selo Martins, 2016. 5 CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2013. 6 O projeto foi realizado nas seguintes escolas e períodos: EE Brasílio Machado, Pinheiros: abril a junho de 2015; EMEI Armando Arruda, República: junho a julho de 2015; EMEI Antonio Figueiredo Amaral, Barra Funda: setembro a novembro de 2015 e setembro e outubro de 2016; e EMEI Alberto Oliveira, Glicério: março a novembro de 2016. 7 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1998


AA RR EECC UU PP EE RR AACÇ Ã ÃOO DDAA CC II DDAA DD EE PPAA RR AA AASS CC RR II AA NN CÇ AA SS Mayumi Watanabe de Souza Lima1 Ilustração: Luisa Kon


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Durante a organização do seminário da qual tivemos oportunidade de participar, mudamos vários títulos das palestras para adequá-los melhor ao perfil dos palestrantes, e também pelo exato sentido que queríamos dar a cada tema. O nosso tema é um desses casos e mesmo com duas mudanças não encontramos o termo apropriados, pois “recuperar “ pressupõe que em algum momento a cidade pertenceu às crianças e ela foi perdida. Há aí o perigo de colocações nostálgicas de retorno a um passado supostamente mais feliz e tranquilo, frente a um presente terrível, o que não é nossa intenção. Assim, ao se falar em “recuperar a cidade para as crianças”, cabe colocar duas questões prévias: - Quando e como as crianças se apropriaram do espaço urbano? - Que aspectos positivos deveriam ser recuperados dessa apropriação nos dias de hoje, numa cidade do porte e complexidade de São Paulo? Para responder a estas questões, tomamos como indiscutível que a apropriação do espaço pela criança se faz pelo jogo, pela brincadeira, pela simulação e encenação que ela inventa e vive, e que através deles vai desenvolvendo o seu conhecimento sobre o mundo concreto, a realidade social e seus papéis. Sem qualquer pretensão de abordagem histórica, é preciso lembrar o que eram esses jogos e brincadeiras infantis no passado. Segundo autores como Philippe Aries e Jacques Donzelot, as crianças do século XV e XVI misturam-se aos adultos nos espetáculos de lutas, de corrida de cães, de brigas de galo,

1 Mayumi Watanabe de Souza Lima é arquiteta, nascida no Japão em 1934. Seu trabalho em arquitetura educacional foi, e ainda é, imprescindível para todo o campo disciplinar. Ela faleceu em 1994, mas ainda hoje é referência em arquitetura e pedagogia. Esse artigo é a transcrição de uma palestra dada por Mayumi no Seminário Sesc — Abrinq “A criança, o espaço e o brincar”.



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como por exemplo, os jogos de roda em que entram mímicas, adivinhações, simulações e os piqueniques no campo. Ainda mais intensa era a participação das crianças das festas coletivas, sazonais; essas festas constituíam um dos principais meios de que uma sociedade dispunha para estreitar a unidade dos seus membros. As festas da cidade eram várias, correspondendo a inúmeras comemorações; ocorriam entre cidades ou ainda os divertimentos coletivos aglutinavam idades, gênero e procedências diversas. Os jogos e as festas nessas sociedades tinham função social, num certo sentido conservadora, para transmitir costumes, tradições, valores, identidade coletiva. E onde se davam esses jogos e festas? Dado que as habitações eram geralmente escuras e pouco espaçosas, a maioria dos jogos, festas, divertimentos e até mesmo as brincadeiras mais simples das crianças ocorriam nos espaços públicos. A rua, mais ainda do que a praça, era o lugar das crianças, por excelência. As crianças viviam na rua, corriam, brincavam. Os relatos do século XVI e XVII citados por Arlete Farge dão-nos conta dos reclamos que alguns adultos apresentava às autoridades pelos estragos em suas roupas e chapéus, por causa das brincadeiras infantis com bolas de terra, de neve ou baldes de água sobre os transeuntes, ou mesmo quedas de adultos, atropelados por crianças em jogos de pega-pega. Os reclamantes criticavam a excessiva liberdade que, aos seus olhos, davam às crianças na cidade, à educação dita


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“viciosa e despudorada” que se dava aos filhos do povo. Mas esta liberdade —, positiva ao ponto de vista do aprendizado cotidiano da realidade —, era sem dúvida cheia de problemas, principalmente relacionados com o sexo e a moral cristã. É preciso entender que esta nova moral foi se fortalecendo ao longo de todo o século XVII, coincidindo com o deslocamento da população rural para os aglomerados urbanos. As ruas enchiam-se de novas levas de trabalhadores — ou de candidatos ao trabalho — a serviço dos nobres e burgueses que, deixando suas terras, instalavam-se na cidade. As famílias consideravam-se em risco, pelo aparecimento de mães solteiras e de crianças abandonadas, legítimas ou não, e de pobres e mendigos sem certificados de estado civil. Dessa época em diante, até o século XIX, as crianças foram gradativamente sendo alijados do convívio com os adultos e do espaço urbano. As ruas passaram a ser vistas como local de perdição da inocência, de vadiagem e de risco. Por isso, era preciso separar as “crianças das famílias” daquelas “crianças de rua” (ou “menores”). Não eram mais livres, umas e outras, pois o novo preceito de educação infantil evoluía para uma disciplina rigorosa, dentro das habitações e das instituições. A liberdade das crianças punha em perigo a “alma dos pequenos ainda impregnada


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de inocência batismal e morada de Cristo”. Era preciso vigiá-las continuamente. O regulamento para as crianças de Port. Royal, de 1711, é explícito. Diz ele: “é preciso vigiar as crianças com cuidado e jamais deixá-las sozinhas, em nenhum lugar, estejam elas sãs ou doentes”. Esta vigilância, contudo, deveria ser feita de modo a não parecer opressiva: “é preciso ainda” — diz o regulamento “que essa vigilância contínua seja feita com doçura e uma certa confiança, que faça a criança pensar que é amada, e que os adultos estão a seu lado pelo prazer de sua companhia. Isso faz com que elas amem essa vigilância, em lugar de temê-la”. Foi durante esse período que os jogos e as brincadeiras passaram a ser classificados de bons e maus, permitidos aqueles considerados de bom tom ou de disciplinamento do corpo e condenados aqueles que atentam “contra o pudor e levam a decadência física ou moral”. A ginástica e a educação física do 1º grupo e cada vez mais incluídas entre as atividades da vida escolar. Os exercícios físicos são admitidos primeiramente como jogos tolerados para serem, em seguida, reconhecidos como necessidade do corpo humano, em crescimento. Até mesmo os gritos dos torcedores e dos jogadores tinham utilidade para esse crescimento, por exercitar os pulmões.


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Em fins do século XVIII, os jogos de exercícios físicos receberam um outro apoio forte: eles serviam também para a preparação dos jovens para guerra, isto é, para a instrução militar. Na história das relações entre cidade e a população infantil e juvenil, os três séculos haviam introduzido profundas mudanças por influências contínuas de médicos, pedagogos, religiosos, autoridades e militares. As crianças das “famílias” e do “povo” passaram a ter espaços separados especializados, segundo faixas etárias, classes sociais e tipo de atividade, organizados, controlados e vigiados por profissionais igualmente especializados. As áreas públicas privatizaram-se cada vez mais, as cidades também se estenderam para além da visualidade imediata e a sua extensão foi acompanhada não só pela especialização dos espaços, mas pela fragmentação do próprio espaço urbano, através da ocupação especulativa e segregadora do solo, que afasta e separa os moradores da cidade. As crianças constituem o segmento mais frágil da população e por isso mesmo simples e espectadores das mudanças boas ou más que ocorreram à cidade e aos seus moradores, agora transformados em meros produtores e ocupantes. Os jogos e as festas sazonais perderam o sentido coletivo de união para se transformarem em espetáculos vendidos ou oferecidos, trocados entre os que os organizam, os que realizam e os que simplesmente assistem. O espaço das crianças foi se limitando cada vez mais até se tornar esse conjunto de pequenas áreas, existentes em qualquer


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cidade, restos invendáveis dos parcelamentos comerciais do solo urbano ou, quando maiores, em locais de consumo. Mesmo nas instituições voltadas para as crianças, como as escolas e creches, as áreas livres para o brincar das crianças tendem a ser tratadas como áreas abandonadas, simples terreno de chão batido ou invadido pelo mato. Os parques infantis, utilizando e fechando parte de praças, organizam e constroem seus espaços segundo a ótica disciplinar e de segregação. Fecha-se para e contra o mundo externo, constroem-se instalações que só estimulam os movimentos. Separam-se os ambientes para os exercícios que envolvem o pensar; a fantasia limitase à hora das histórias contadas. O contato com adultos, excetuados aqueles que o fazem por obrigação profissional ou salarial, diminui assustadoramente rompendo o elo de ligação que unia no jogo e na brincadeira conjunta, pais e filhos, adultos e crianças, substituída a função social da festa e do divertimento, pelo trabalho fracionado, como valor absoluto e individual. Os espaços urbanos em São Paulo denunciam bem o que acabamos de apontar. Há uma absoluta urgência de recuperar a cidade, enquanto lugar de encontro, do brincar coletivo, da relação lúdica de adultos e crianças e de crianças entre si. Sem qualquer nostalgia ou equivocada valorização do passado, há que assegurar na cidade e para a cidade os espaços públicos, hoje privatizados pelo automóvel, pelas grades, pela segregação econômica e social que se faz em nome da segurança.


A escolha e o tratamento desses espaços públicos por decisões coletivas não são propostas utópicas ou demagógicas. São antes de tudo necessidades não explicitadas, porém concretas, de uma sociedade que inconscientemente destrói o seu patrimônio, implode os elementos culturais que permitiria a identificação dos moradores com a sua cidade e pior ainda, deteriorar o ambiente em que suas crianças vão crescer. Conquistar coletivamente as áreas públicas para as crianças, levando em conta as condições atuais de urbanização segregada e de insegurança, significa a introdução do conceito de habitação e de priorização do interesse comunitário para dentro do bairro em que se mora. As super quadras de Brasília e as quadras japonesas, para citar apenas dois exemplos, mostram que as áreas comuns, nelas incluindo-se as ruas internas, podem criar uma prática social mais coletiva, respeitando-se a privacidade e a


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individualidade de cada morador, mas ao mesmo tempo garantindo os espaços abertos de uso comum. As ruas nesses espaços permitem o acesso e a movimentação seletivas de veículos, porém, em velocidade correspondente a quem manobra dentro do seu terreno, possibilitando, portanto, que as crianças delas se apropriem. As praças e os jardins hoje transformadas em pedaços de terra abandonadas, ou em selva de concreto, ou no máximo em floreiras de acesso proibido, precisam ser conscientemente assumidas pela população como território que pertence aos seus moradores, crianças e adultos. Esta apropriação está vinculada à conquista real dos direitos de cidadania e da responsabilidade que os moradores de uma cidade têm com o seu desenvolvimento. Significa também que todos terão de refletir sobre o compromisso que assumem com as crianças e o futuro delas, na prática cotidiana de lhes mostrar o respeito que tem com o ambiente e com o


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espaço público através da forma como se desfaz do seu lixo pessoal, do estacionamento em fila dupla, dos dejetos dos seus animais de estimação, da importância que dá aos filhos na atenção e no tempo que a eles dispõem. A recuperação do espaço urbano é, portanto, a construção de uma nova prática social onde todos têm voz e vez e, em consequência, responsabilidade individual e coletiva. Os projetos que decorrem desta concepção voltam-se para estimular e desenvolver justamente esta prática social coletiva, muito pobre em nossa cidade. Os projetos elaborados nestes dois anos pela Prefeitura de São Paulo buscam desenvolver esta forma de ver e viver os espaços públicos. São exemplos o Espaço-Criança que ocupará o lugar da favela Nova República de triste memória, o Jardim São Francisco construído com os moradores, o projeto Arco-Iris de reforma das escolas infantis ou da Praça da Criança em Santo Amaro e das ruas locais, sempre com a participação dos futuros usuários ou moradores da cidade, reconquistando o espaço público hoje, lugar de ninguém, para que se construa o lugar para todos. ⧊


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BRONOWSKI, Jacob - Arte e Conhecimento. São Paulo - Martins Fontes - 1990 CHATEAU, Jean - O Jogo e a Criança. São Paulo - Summus Editorial - 1987 S. LIMA, Mayumi - A Cidade e a Criança. São Paulo - Nobel - 1990 CALVINO, Ítalo - Cidades Invisíveis. São Paulo - Companhia das Letras - 1990 HADJINICOLAOU, Nicos - História da Arte e Movimentos Sociais. São Paulo - Martins Fontes - 1987 COUTINHO, Nelson - A Cidade Como um Jogo de Cartas HARNEY, David - The Urban Experience. Oxford - Basil Blackwell - 1989


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QUINTA-FEIRA

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Naquela quinta-feira, em especial, decidi sair sozinha. Me restavam apenas algumas semanas na cidade, e precisava refletir. Mesmo que o destino da vez fosse um pouco distante, optei pela bicicleta. Percorri a Avinguda del Paral-lel em um tiro. Plana, barulhenta, grafitada. Cheia de imigrantes em seu vai e vem apressado. Já de cara dava pra reconhecer sua referência principal: as três enormes chaminés de alvenaria da companhia elétrica. Mas elas nunca me chamavam tanto a atenção quanto a incrível pracinha ao lado, onde se misturavam vendedores, skatistas, cachorros e senhores aposentados espantosamente despreocupados com as brincadeiras arriscadas de seus netos, mesmo estando tão próximos dos carros. Contornei todo o Bairro Gótico, cruzando suas ruelas labirínticas salpicadas por peças de roupa recém caídas dos varais coloridos. Acompanhei com o olhar seus edifícios apertados de cinco pavimentos, cheios de cicatrizes e marcas de infiltração. À primeira vista a atmosfera podia até parecer obscura, hostil, insalubre... Mas aquelas paredes grossas e ásperas, seus batentes de pedra e seus balcões ornamentados com ferro retorcido emanavam uma beleza vigorosa. Cada elemento daquelas fachadas guardava ao menos um século de história e abrigava uma vida pulsante. Como estudante de arquitetura e urbanismo, não tinha como escapar às frequentes comparações entre as tipologias construtivas de Barcelona e as de São Paulo, nem como não refletir sobre as tendências projetuais atuais. Até que ponto


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o recuo frontal e lateral das edificações conformaria uma vida melhor para seus habitantes? De fato, os perímetros livres favorecem projetos de unidades habitacionais mais arejadas e iluminadas. Mesmo assim, o que a cidade tem a perder com essa e outras limitações normativas, em termos de densidade, composição e estética? Durante toda a graduação, muito marcada por um pensamento modernista, fui quase doutrinada a pensar que a questão estética deveria vir em segundo (ou terceiro) plano. A forma deveria ser pensada juntamente com a estrutura, e sempre em função do programa. Se o resultado era visualmente interessante ou não, era quase uma consequência. Na verdade, em nenhum momento do curso me lembro de discutirmos, efetivamente, estética. Assim, nunca desconfiei muito dessas prerrogativas. Até começar a caminhar todos os dias por Barcelona, quando passei a repensar uma série de antigas convicções. Depois de alguns minutos, alcancei o Parc de la Ciutadella, um típico parque em estilo europeu, com seus caminhos de areia, jardins perfeitamente podados e eixos visuais que enquadravam ora plátanos enfileirados, ora grandiosos monumentos. Apesar de sentir falta das árvores frondosas do Brasil, gostava bastante daquele parque, já que, mesmo existindo uma enorme quantidade de espaços livres públicos pela cidade, era um dos únicos locais das proximidades verdadeiramente rodeado de verde. Alí também era palco de calorosos protestos, em geral relacionados à independência da Catalunha ou à críticas contra o “turismo predatório” que massacrava o centro da cidade. Cruzei o parque pela diagonal e segui pedalando pela extensa ciclovia da Av. Meridiana. Percorria o famoso bairro do Eixample, com seus quarteirões chanfrados estudados por urbanistas do mundo todo. Mesmo sendo um bairro absolutamente regular, em nenhum momento o considerava monótono, dada a diversidade de usos, cores e detalhes de seus edifícios. Durante o ano, tinha lido textos de autores catalães que tematizavam desde o Plano Cerdà até as melhorias urbanísticas de Barcelona a partir das Olimpíadas de 1992. No entanto, o que trouxe mais luz aos meus frequentes questionamentos sobre a qualidade dos espaços foi o livro de um americano, Kevin Lynch, e suas teorias sobre “a imagem da cidade”. Lynch destaca a maneira como nós percebemos as cidades, procurando entender


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como estruturamos sua imagem em nossa cabeça e como nos localizamos. Uma das conclusões de seus estudos foi a de que cada cidadão cria determinadas associações com “partes” da cidade, e que a figura que ele constrói de cada uma delas está impregnada de memórias e significados. Esses aspectos visuais contribuem, ou prejudicam a sua “legibilidade”, isto é, a facilidade com que cada pedaço e elemento da cidade pode ser reconhecido e organizado em um padrão coerente. Segundo essa teoria, a capacidade de estruturar e identificar um ambiente seria vital para gerar uma sensação de conforto, orientação e segurança, o que influenciaria diretamente em uma experiência e apreensão mais intensa da cidade. Achei que toda a leitura fazia muito sentido. Me dei conta de que, inconscientemente, compreendi o que Lynch queria dizer, antes mesmo de entrar em contato sua obra, ao questionar-me do porquê eu era tão mais encantada por Barcelona do que por São Paulo. Do porquê sentia conhecer muito melhor uma cidade em que havia vivido por dez meses do que a outra que havia passado toda a minha vida. Do porquê tinha uma vontade infinitamente menor de passear por São Paulo, de viver em São Paulo. Já podia ver a curiosa Torre Agbar, do Jean Nouvel, o que indicava que eu estava próxima. Nunca me decidi se gostava ou não daquele edifício. O formato fálico e sua brusca aterrisagem na calçada me causavam uma certa apreensão. Por outro lado, achava o jogo cromático da fachada bem interessante e, para o horror de meus colegas arquitetos, adorava aquela sua estridente iluminação noturna. Desde o “Barcelona Llum”, um festival de luzes urbanas que acontece todo mês de fevereiro na cidade, percebi que projeções e focos de luzes coloridos, articulados em ritmo e combinados com sons, tem um enorme potencial como instrumento orientador, lúdico e, inclusive, emocional. Além de serem incríveis para as crianças. Enfim, estava no Mercat dels Encants, meu destino daquela quinta-feira. Como primeira impressão, não tinha como negar; era sensacional! A cobertura espelhada e craquelada cumpria ser exatamente o que se propunha: reconhecer e dar visibilidade ao mercado, rejeitando o modelo fechado dos centros comerciais e relacionando-se com louvor ao espaço público da cidade. Confesso que me surpreendi com seu




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1 Malu Cardoso é estudante de arquitetura e urbanismo e estudou um ano em Barcelona, na Espanha.

caráter absolutamente popular. Não é exatamente comum que as prefeituras apoiem a construção de uma estrutura tão onerosa para abrigar um mercado de segunda mão. Era incrível olhar para os espelhos acima e acompanhar a dança da multidão que acontecia embaixo. Centenas de comerciantes que vendiam desde rolos de tecidos finos até os objetos mais ordinários, como óculos com a haste danificada e bonecas sem couro cabeludo. Alguns comiam suas marmitas atrás do balcão, enquanto outros barganhavam o preço de um processador de alimentos usado. Era como uma ilusão de ótica, ou um filme, só que real e passando naquele exato momento. Afinal, não era muito complicado entender as razões pelo meu deslumbramento por Barcelona. Uma delas, sem dúvida, vem da mudança do olhar e de ânimos decorrente de uma experiência de intercâmbio. A quebra da rotina decorrente do morar, sozinho, em um território inexplorado, nos deixa muito mais suscetíveis a abrir a mente e experimentar outras situações. Nessas condições, é natural acabarmos usufruindo ao máximo dos espaços, e cada novo aspecto do dia-a-dia, da cultura local, e dos lugares e pessoas que conhecemos, nos trazem um enorme aprendizado. Mas a questão urbana também importa. E muito. São Paulo é uma metrópole vibrante. Tem atividades e eventos para todos os públicos, de todos os gostos. Tem um potencial enorme. Entretanto, ao meu ver, sua conformação é demasiadamente caótica. Sua dimensão e falta de lógica são angustiantes. As fileiras de carros são infinitas. As calçadas são tão estreitas e esburacadas que não convidam o andar. Fios emaranhados obstruem o céu, enquanto buzinas e motores calam os pássaros. O cheiro mais comum é o da fuligem. Os edifícios são pesados, cinzas, descomunais, padronizados pela especulação imobiliária. Caminhar pela rua à noite dá medo. Os deslocamentos são longos demais. As praças são escassas demais. São Paulo é feia, e por mais que existam muitos problemas a serem resolvidos antes que a sua questão estética e sensorial, eu compreendi ao longo desses meses o quanto esta está relacionada à qualidade de vida e ao modo com o qual apreendemos a cidade. Peguei a bicicleta e iniciei o meu retorno. Por um caminho diferente, é claro. ⧊


mobilidade urbana: circular pela cidade ou viver o espaço?

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1 Letícia Lindenberg Lemos é arquiteta e mestranda na FAU-USP, especializada em mobilidade ativa pela United Nations Institute for Training and Reserarch e faz parte da equipe observaSP.

Fotos: Tamara Klink

Mobilidade urbana é um termo relativamente recente, que foi proposto no Brasil na época da criação do Ministério das Cidades (Gomide e Galindo, 2013), na primeira década do século XX, ampliando o campo temático a ser estudado ou debatido, progressivamente deslocado o olhar muito centrado em transporte para focar em pessoas. Apesar dessa mudança, os debates sobre esse tema ainda são demasiadamente centralizados no deslocamento, quantidade de viagens ou em chegar o mais rápido possível da origem até o destino. Esse último se mostrou na recente disputa sobre as velocidades das vias marginais, com uma preocupação sobre quanto tempo seria economizado com limites de velocidade mais elevados, como se alguns minutos a menos naquela via fossem fazer grande diferença se pensarmos no tempo médio que o cidadão paulistano “perde” diariamente para se deslocar. O debate também se orienta frequentemente pela tentativa de resolver os problemas de mobilidade urbana a partir de soluções técnicas, que respondem fundamentalmente a problemas como emissão de dióxido de carbono, mas não tratam de problemas sociais. Um exemplo disso é o foco na mudança de matriz energética, como o carro elétrico, amplamente incentivado por diversos países europeus através de, por exemplo, políticas fiscais. Especialmente em países de capitalismo periférico, como o Brasil, com problemas gritantes de decadência da infraestrutura e ampla desigualdade socioespacial, e onde somente cerca de 20% da população usa automóvel, esse foco nas soluções técnicas é muito perigoso, pois reforça a exclusão e as disparidades sociais. É necessário discutir a mobilidade urbana de outra forma, não limitada ao ato de se deslocar, mas como algo que ocorre na cidade, e durante o qual as relações sociais são construídas. Com isso vamos à pergunta que fez surgir esse texto: pessoas com mais acesso à mobilidade apreenderiam a cidade de forma mais ampla? Para debatermos essa questão é necessário ponderar antes o que seria uma forma “ampla” de experimentar a cidade? Tem a ver com quantidade de viagens, abrangência espacial, ou condições dessa mobilidade? A quantidade de viagens é muito frequentemente utilizada por pesquisas quantitativas como principal índice para medir a mobilidade ou imobilidade da população, quanto maior o número de viagens por dia, mais móveis seriam essas


pessoas. Abrangência espacial vai na mesma linha, pois mostra que os indivíduos não estariam contidos no espaço. A mobilidade, nesse sentido, está sendo vista como viabilizador de acesso às oportunidades e, assim, poderia ser empoderadora. Ao debater abordagens desses estudos de mobilidade sob a ótica de gênero, entretanto, Hanson (2010) pontua que a questão central não é a mobilidade por si, mas o que isso e o acesso às oportunidades significam para cada pessoa. Isso leva ao questionamento sobre as condições da mobilidade, ou seja, qual é o tipo de mobilidade que está sendo experimentada? Muitas das viagens realizadas pelas mulheres, por exemplo, são para cumprir com funções atribuídas social e culturalmente a elas, como transporte dos filhos ou abastecimento da casa, e não para elas mesmas. Nesse caso, a mobilidade não é “empoderadora” e não está ampliando a relação delas com a cidade, mas reafirmando um lugar recortado na sociedade. A questão da abrangência territorial das viagens vai na mesma linha, se a distância é uma imposição social, por exemplo, por não ter condições econômicas de morar mais perto, essa mobilidade reflete na verdade uma restrição à liberdade individual. Como contraponto, uma pessoa com baixíssima mobilidade quantitativa (considerando quantidade de viagens diárias e abrangência territorial), pode ter uma mobilidade mais localizada no bairro, e essa “restrição” de movimento não necessariamente decorrer

É necessário discutir a mobilidade urbana de outra forma, não limitada ao ato de se deslocar, mas como algo que ocorre na cidade, e durante o qual as relações sociais são construídas.

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de uma opressão. Essas questões, entretanto, só podem ser percebidas a partir de análises qualitativas sobre essas experiências. Já os usuários de automóveis realizam, de modo geral, mais viagens diárias, por isso têm maior mobilidade – no quesito quantitativo. Eles, entretanto, estão se movendo pela cidade dentro de cápsulas de metal, plástico e vidro, dissociados do meio ambiente ao seu redor tanto pelo isolamento físico do próprio veículo, como pela velocidade do deslocamento, incompatível com a capacidade fisiológica do aparelho visual humano (adaptado para velocidades de caminhada – 4 a 5 km/h – ou corrida – 10 a 12 km/h). Assim, apesar de terem mais acesso à mobilidade, ao estarem isoladas e se deslocando com velocidades altas, as pessoas dentro dos carros não apreendem a cidade de forma tão ampla. Esses exemplos mostram que essas duas questões – mobilidade e vivenciar a cidade amplamente – não necessariamente estão diretamente vinculadas. Apreender a cidade de forma ampla não tem a ver com questões quantitativas, mas sim qualitativas – como é realizada a mobilidade e o que ela significa para os indivíduos se movendo.


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Adotar o máximo possível os modos ativos (“não motorizados”) é uma maneira de ampliar a relação com a cidade, permite viver mais plenamente seus espaços comuns, mas as condições da metrópole de São Paulo não contribuem para que isso seja uma opção da população. Uma pesquisa realizada recentemente pelo CEM sobre a metrópole de São Paulo mostrou, dentre outras questões de segregação social, que os locais com maior quantidade de viagens a pé na Região Metropolitana de São Paulo – territórios fora do centro expandido da capital – são exatamente aqueles onde as calçadas são mais precárias ou inexistentes (Marques, 2015). Claramente essas pessoas não estão andando a pé por escolha individual, mas pela falta de opção. Além disso, os empregos e as residências estão distribuídos no território de modo não casado para a maior parte da população. Isso é especialmente grave para pessoas com rendimento familiar mais baixo, pois além de os locais com maior concentração de empregos serem economicamente inviáveis para essas famílias (Itaim, por exemplo), muitos dos empregos possíveis para essas pessoas ficam dispersos no território – como o setor secundário –, impedindo que todos de uma mesma família possam morar próximo ao local de trabalho. As políticas públicas de mobilidade urbana precisam se orientar de forma multidisciplinar (incluindo questões habitacionais, de saúde pública, resíduos etc.), a partir de uma visão de futuro pautada por uma maior igualdade socioeconômica e sustentabilidade ambiental, mas também olhando para a cidade como um lugar comum dos cidadãos, produto das nossas relações sociais e o local por excelência onde essas relações ocorrem – ou deveriam ocorrer. Isso seria uma continuação do deslocamento que veio com o termo mobilidade, focando nas pessoas e, também, no lugar onde elas vivem e convivem, as ruas, praças, parques e, por que não, nas margens dos nossos rios. ⧊

GOMIDE, Alexandre de Ávila; GALINDO, Ernesto Pereira (2013) A mobilidade urbana: uma agenda inconclusa ou o retorno daquilo que não foi. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 79, p. 27-39, 2013. Disponível em <http:// www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340142013000300003&script=sci_ arttext>. Acesso: 15 março 2015. HANSON, Susan (2010) Gender and mobility: new approaches for informing sustainability. Gender, Place & Culture, v. 17, n. 1, p. 5–23, fev. 2010. ISSN 0966-369X. Disponível em: <http://www.tandfonline.com/doi/ abs/10.1080/09663690903498225>. Acesso: 10 março 2016. MARQUES, Eduardo (org.) (2015). A metrópole de São Paulo no século XXI: espaços, heterogeneidades e desigualdades. São Paulo, Editora Unesp, 2015. METRO. Pesquisa de Origem e Destino Região Metropolitana de São Paulo de 2007: Síntese das Informações Pesquisa Domiciliar. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, Secretaria dos Transportes Metropolitanos, 2008.


“O que é que eu quero dizer com dicotomia entre ler as palavras e ler o mundo? Minha impressão é que o mundo da educação norte-americana, a escola, está aumentando a distância entre as palavras que lemos e o mundo em que vivemos. Nessa dicotomia, o mundo da leitura é só o início do processo de escolarização, um mundo fechado, isolado do mundo onde vivemos experiências sobre as quais não lemos. Esse mundo escolar, onde lemos palavras que cada vez menos se relacionam com nossa experiência concreta exterior, tem-se tornado cada vez mais especializado, no mau sentido da palavra. Ao ler palavras, a escola se torna um lugar especial que nos ensina a ler apenas as “palavras da escola”, e não as “palavras da realidade”. O outro mundo, o mundo dos fatos, o mundo da vida, o mundo no qual os eventos estão muito vivos, o mundo das lutas, o mundo da discriminação e da crise econômica (todas essas coisas estão aí!), não tem contato algum com os alunos na escola através das palavras que a escola exige que eles leiam. Você pode pensar nessa dicotomia como uma espécie de “cultura do silêncio” imposta aos estudantes. A leitura da escola mantém silêncio a respeito do mundo da experiência, e o mundo da experiência é silenciado, sem seus textos críticos próprios.” Paulo Freire — Medo e ousadia: O cotidiano do professor Ilustração: Rodrigo Chedid



arquitetura e autogestão: (con)formação, form(ação) e (trans)formação

e autogestão:

(con)formação, form(ação) e (trans)formação

“Tal é a Comuna – a forma política de emancipação social (...). Ela inaugura a emancipação do trabalho – seu grande objetivo (...).” 2 Falar da relação entre arquitetura e educação para além do espaço escolar pode parecer estranho. Esta vinculação tão direta, na verdade, nos parece uma visão bastante redutora – tanto da arquitetura, quanto da educação. Para ampliar a discussão precisamos tirar os conceitos das gavetas naturalizadas das suas formas institucionais, que tendem a cristalizar disposições históricas como se fossem objetos acabados de um processo evolutivo que chegou a termo – e alcançou a “verdade”. Antes de ser conteúdo e forma escolar e, portanto, avaliável e mensurável, a educação deve ser entendida como o processo de construção da subjetividade e sua inserção social. Portanto, é antes uma relação social do que um conjunto de conteúdos didáticos, ou de objetos consumíveis em livros. É a generalização da forma mercadoria que transforma processos e relações

Isadora Guerreiro 1 Fotos: Coletivo Usina

arquitetura

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A educação para a emancipação só pode ser construída por meio do enfrentamento cotidiano da classe trabalhadora, nas suas relações objetivas de trabalho e reprodução social.

sociais em coisas, fazendo da educação algo que se “tem”, que se avalia. Antes de ter falta ou excesso da coisa “educação”, todo sujeito de conhecimento é uma construção histórica que se dá não por meio das ideias (ideologia), mas pelas condições objetivas de reprodução da sua vida. Sua consciência, portanto, só pode ser uma consciência de classe, pois é formada a partir das condições objetivas do processo histórico e, portanto, a subjetividade e inserção social dos sujeitos de conhecimento são construções que partem da totalidade do ser social – para muito além do conteúdo, da forma e do espaço escolar. A “educação” aqui ganha outros contornos e se aproxima da noção de formação do sujeito social que, numa sociedade de classe, não é o Homem Vitruviano ou o Modulor Corbuseano. Esta sociedade específica necessita de sujeitos diferentes entre si, formados (ou seja, que têm forma determinada) de acordo com sua função social: con-formados. É impossível, neste aspecto, falar em educação escolar universal para a autonomia, para a emancipação do sujeito social. Ainda mais no nosso país, no qual o ensino público não é para todos, mas para a formação da classe trabalhadora – vide a reforma do ensino médio em curso. A educação para a emancipação só pode ser construída por meio do enfrentamento cotidiano da classe trabalhadora, nas suas relações objetivas de trabalho e reprodução social. Quando se fala sobre o “espaço educador” (na medida em que o uso do espaço pressupõe relações sociais), é necessário levar em conta que a construção, percepção e uso do espaço não são aspectos “ontológicos”, mas históricos: sua apropriação é diversa pelas diversas classes sociais. O espaço “público e democrático”, requerido por inúmeros grupos de ativistas urbanos, não se faz por decreto institucional: antes de tudo ele é uma relação social que, na nossa sociedade historicamente determinada, é definida pela relação de classe, expressa na divisão social do trabalho. Isso incide diretamente na discussão da arquitetura enquanto produção social: o desenho, feito por aqueles “que pensam” (pois o desenho é o


arquitetura e autogestão: (con)formação, form(ação) e (trans)formação

marco mais definitivo da expressão da ideia), é um instrumento ideológico ao definir o uso e a produção do espaço do ponto de vista específico desta classe social, que ainda o reivindica como racional ou universal. Como falar em “espaço educador” a partir destas relações? Fica claro que a “educação” promovida por este espaço só pode ser a formalização da classe trabalhadora, por aqueles que a dominam. Não tem nenhuma proximidade com formação emancipatória, muito pelo contrário. Exercer a arquitetura como instrumento político passa pela disposição de enfrentamento da forma do capital, e não apenas dos seus conteúdos (ainda que estes tenham um caráter tático importante). Assim, é fundamental o entendimento de que o capital é uma relação social. Uma relação social conformada pelo fetiche, ou seja, que transforma subjetividades em objetividades, trabalho vivo em valores intercambiáveis, qualidades em quantidades, relações sociais em objetos fechados. A arquitetura como objeto fechado para ser consumido (em imagem ou espaço de uso), neste aspecto, pode enfrentar conteúdos do capital: seu caráter privatizante, ostensivo ou excludente. No entanto, esta maneira de encarar o processo político permanece dentro da mesma forma do capital: uma forma de dominação das relações sociais a partir da divisão social do trabalho. O espaço como objeto é tal qual o capital como dinheiro: confunde-se a relação social com sua expressão material objetiva. Não é à toa que a “arquitetura pública” fracassa diante da sociedade de classe: não deram manual de instruções da cidade aos excluídos. A experiência das assessorias técnicas na construção de moradia junto a movimentos populares aponta para esta perspectiva de ação política: a formação da classe trabalhadora por meio do seu engajamento organizado na produção da cidade. Estrategicamente, trata-se de uma práxis (combinação dialética entre ação e reflexão) que combina enfrentamento direto para abertura

Assim, é fundamental o entendimento de que o capital é uma relação social. Uma relação social conformada pelo fetiche, ou seja, que transforma subjetividades em objetividades, trabalho vivo em valores intercambiáveis, qualidades em quantidades, relações sociais em objetos fechados.

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e proteção de espaço de ação, junto à produção cotidiana deste mesmo espaço. Desta perspectiva, há um entrelaçamento orgânico entre a base do movimento e sua vanguarda, se distanciando da divisão de “educadores” e “alunos” (etimologicamente, “aquele que não tem luz”). Segundo Zibechi: “Nesses movimentos a organização não está separada da vida cotidiana, é a vida cotidiana implantada como ação insurrecional; a divisão do trabalho é mínima, já que não existe quem dá ordens e quem as executa, nem quem pensa e quem faz, já que é o coletivo em reunião que cumpre todas essas funções; o chefe não tem poder e o exercício de sua função se inscreve numa situação cuja única arma instituída é o seu prestígio, cujo único meio é a persuasão, cuja única regra é o pressentimento dos desejos do grupo (...)”.3

Mística com os mutirantes: leitura do poema Operário em construção”, de Vinícius de Moraes

O conceito de Educação, deste ponto de vista, é transformado ou, ainda, desnaturalizado. Educação para quem, por quem, como, por quê? Inclusive, ao sair do campo exclusivo da constituição da linguagem e adentrar no da produção, desloca-se a noção


Processo de projeto junto aos moradores

de política como prática discursiva (Hanna Arendt) para aquela da formação subjetiva por meio do trabalho, que é uma relação historicamente determinada (Marx). A vinculação do trabalho com a produção do espaço ganha relevância principalmente num contexto de precarização do trabalho, situação que dificulta a organização dos trabalhadores pela via sindical. Desta maneira, parte-se do pressuposto de que a cidade como valor de uso (Henry Lefèbvre) difere radicalmente da cidade mercadoria – seu desenho, produção e reprodução são ouros. Para que o trabalhador, autor dessa cidade “do uso”, possa se ver enquanto sujeito social autônomo, ele antes precisa se entender como sujeito de conhecimento e não como parte do capital (mão-de-obra). É necessário diminuir as distâncias provocadas pela divisão social do trabalho. Paulo Freire ajuda aqui: a partir do reconhecimento da sua condição de sujeito produtor de conhecimento, o trabalhador pode acessá-lo fora da condição de oprimido. Daí a importância que têm os processos de autogestão na produção da casa e da cidade: são diversas fases que, no seu conjunto, resignificam o lugar reservado ao trabalhador pelo capital. E isso não é feito em nome dele, mas por ele mesmo – daí a perspectiva de formação subjetiva.


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Abraço coletivo do terreno pelas famílias sem teto

Sucintamente , o processo de autogestão na produção da casa e da cidade envolve quatro momentos: 1. A luta pela terra e pelo financiamento; 2. O projeto; 3. A construção; e, por fim, 4. A pós-ocupação. Cada um deles é caracterizado por um tipo diferente de negação da realidade dada pelo capitalismo, fato que aponta para o processo emancipatório: respectivamente, a negação 1. À exclusão dos trabalhadores da cidade e da riqueza social; 2. À divisão social do trabalho (trabalho intelectual e manual) e à cidade mercadoria; 3. Ao trabalho enquanto produtor de valor (que envolve assalariamento, produtividade e heteronomia nas relações de trabalho); e 4. À terceirização da gestão da vida e à separação do trabalhador do seu produto de trabalho. Retroativamente, estas negações devem subsidiar uma resignificação da própria arquitetura quanto ao seu poder de afirmação do sistema, seja no campo do ordenamento urbano, da autonomia do projeto, da heteronomia do canteiro prescrita pelo projeto e sua tecnologia construtiva, além das maneiras de uso e apropriação do espaço. Pensar a arquitetura e o urbanismo não como técnicas, nem como produtos, mas como relações sociais, traz à tona sua vívida relação com a educação e a política, vistas desde o ponto


180 arquitetura e autogestão: (con)formação, form(ação) e (trans)formação

de vista da construção subjetiva por meio do trabalho e do enfrentamento social (a luta de classes). Deste lugar, fica bastante clara a crítica que deve ser feita em relação à produção em massa de moradia e de cidade pelos meios do capital (gerenciados por ele mesmo ou por Entidades): ao fazer da arquitetura um instrumento ou uma mercadoria de troca política, o que se pode fazer, no máximo, é a integração da classe trabalhadora no sistema espacial do capital – de excluídos a incluídos como mãode-obra. É um processo de con-formidade, não de forma-ação. A produção da cidade como reprodução da forma urbana capitalista, neste aspecto, é colada à noção de conformação social e não de transformação. Por isso Harvey entende que

Mulheres compuseram a maior parte dos trabalhos em mutirão ao longo de toda obra

“o direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de acessar os recursos urbanos: trata-se do direito de mudarmos a nós mesmos mudando a cidade. É, ademais, um direito comum antes que individual, já que esta transformação depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização”. 4


5 Texto originalmente publicado no livro “Usina: entre o projeto e o canteiro”/organização Ícaro Vilaça e Paula Constante; prefácio Sérgio

4 HARVEY, David. “The Right to the city”. In: New Left Review, nº 53, set-out 2008, p. 23 – tradução livre.

A USINA 5

Fundada em junho de 1990 por profissionais de diversos campos de atuação como uma assessoria técnica a movimentos sociais, a Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado tem atuado no sentido de articular processos que envolvam a capacidade de planejar, projetar e construir pelos próprios trabalhadores, mobilizando fundos públicos em um contexto de luta pelas Reforma Urbana e Agrária. A Usina CTAH já participou da concepção e execução de mais de cinco mil unidades habitacionais, além de centros comunitários, escolas e creches em diversas cidades e em assentamentos rurais, principalmente nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná. Também atuou no desenvolvimento de planos urbanísticos, projetos de urbanização de favelas e auxiliou a formação e organização de cooperativas de trabalho. Nos últimos anos a Usina ampliou sua atuação para o campo das Artes Visuais, desenvolvendo vídeos, projetos expositivos e oficinas de educação popular – ligados direta e indiretamente aos trabalhos de concepção e construção do espaço habitado. A equipe da assessoria tem intenção de superar a produção autoral e estritamente comercial da Arquitetura e do Urbanismo e busca, para tanto, integrar e engendrar processos alternativos à lógica do capital através de experiências sociais, espaciais, técnicas e estéticas contra-hegemônicas. ⧊ Ferro. São Paulo: Edições Aurora, 2015.

3 ZIBECHI, Raúl. Dispersar el poder: lós movimientos como poderes antiestatales. Buenos Aires: Tinta Limón, 2006, p.77. Tradução livre.

2 Marx, Karl. A Guerra civil na França. São Paulo: Boitempo Editoral, 2011, p. 131.

1 Isadora Guerreiro é doutoranda pela FAUUSP e ex-coordenadora do Coletivo Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado.

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George Orwell1 Ilustração: Greta Comolatti


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Todo o clima de pensamento será diferente. Na realidade não haverá pensamento tal como o entendemos hoje.

“Como vai o dicionário?”, perguntou Winston, elevando o tom de voz para que o outro pudesse ouvi-lo. “Devagar”, disse Syme. “Estou nos adjetivos. Fascinante.” Ele se animara todo ao ver Winston mencionar a Novafala. Empurrou a marmita para um lado, segurou o naco de pão com uma das mãos delicadas e o queijo com a outra, depois inclinou-se por cima da mesa para conseguir falar sem ser obrigado a gritar. “A Décima Primeira Edição é a edição definitiva”, disse. “Estamos dando os últimos retoques na língua — para que ela fique do jeito que há de ser quando ninguém mais falar outra coisa. Depois que acabarmos, pessoas como você serão obrigadas a aprender tudo de novo. Tenho a impressão de que você acha que nossa principal missão é inventar palavras novas. Nada disso! Estamos destruindo palavras — dezenas de palavras, centenas de palavras todos os dias. Estamos reduzindo a língua ao osso. A Décima Primeira Edição não conterá uma única palavra que venha a se tornar obsoleta antes de 2050.” Deu uma dentada faminta no pão e engoliu duas colheradas de ensopado, depois continuou falando, como uma espécie de paixão pedante. Seu rosto escuro e afilado se animara, seus olhos haviam perdido a expressão zombeteira e adquirido um ar quase sonhador. “Que coisa bonita, a destruição de palavras! Claro que a grande concentração de palavras inúteis está nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que também podem ser descartados. Não só os sinônimos; os antônimos também.


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“Você não sente muita admiração pela Novafala, Winston”, disse ele, quase triste. “Até mesmo quando escreve, continua pensando em Velhafala. Li alguns daqueles artigos que você publica no Times de vez em quando. São muito bons, mas são traduções. No fundo você preferiria continuar usando a Velhafala, com todas as suas inexatidões e nuances inúteis de significado. Não compreende a beleza da destruição de palavras. Você sabia que a Novafala é a única língua do mundo cujo vocabulário encolhe a cada ano?” Winston sabia, claro. Sorriu com simpatia — esperava — , sentindo-se inseguro quanto ao que diria, se abrisse a boca para falar. Syme arrancou com os dentes outro fragmento de pão escuro, mastigou-o depressa e continuou: “Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo. Todo conceito de que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com significado rigidamente definido, e todos os seus significados subsidiários serão eliminados e esquecidos. Na Décima Primeira Edição já estamos quase

Afinal de contas, o que justifica a existência de uma palavra que seja simplesmente o oposto de outra? Uma palavra já contém em si mesma o seu oposto. Pense em “bom”, por exemplo. Se você tem uma palavra como “bom”, qual é a necessidade de uma palavra como “ruim”? “Desbom” dá conta perfeitamente do recado. É até melhor, porque é um antônimo perfeito, coisa que a outra palavra não é. Ou então, se você quiser uma versão mais intensa de “bom”, qual é o sentido de dispor de uma verdadeira série de palavras imprecisas e inúteis como “excelente”, “esplêndido” e todas as demais? “Maisbom”resolve o problema; ou “duplimaisbom”, se quiser algo ainda mais intenso. Claro que já usamos essas formas, mas na versão final da Novafala tudo o mais desaparecerá. No fim o conceito inteiro de bondade e ruindade será coberto por apenas seis palavras — na realidade por uma palavra apenas. Você consegue ver a beleza da coisa, Winston? Claro que a ideia partiu do “G.I.”, acrescentou, como alguém que se lembra de um detalhe que não havia mencionado. Uma espécie de ansiedade inconsistente perpassou o rosto de Winston ao ouvir falar no Grande Irmão. Mesmo assim, Syme detectou instantaneamente uma certa falta de entusiasmo.


atingindo esse objetivo. Só que o processo continuará avançando até muito depois que você e eu estivermos mortos. Menos a menos palavras a cada ano que passa, e a consciência com um alcance cada vez menor. Mesmo agora, claro, não há razão ou desculpa para cometer pensamentos-crimes. É pura e simplesmente uma questão de autodisciplina, de controle da realidade. Mas, no fim, nem isso será necessário. A Revolução estará completa quando a linguagem for perfeita. A Novafala é o Socing, e o Socing é a Novafala”, acrescentou com uma espécie de satisfação mística. “Alguma vez lhe ocorreu, Winston, que lá por 2050, no máximo, nem um único ser humano vivo será capaz de entender uma conversa como a que estamos tendo agora?” “Só os...”, começou Winston, vacilante, depois se calou. Estava a ponto de dizer “Só os proletas”, mas voltou atrás, sem saber com certeza se o comentário não seria de alguma forma inortodoxo.

george orwell 185

Syme, contudo, adivinhou o que ele ia dizer. “Os proletas não são seres humanos”, disse, despreocupado. “Lá por 2050 — ou antes, talvez — todo conhecimento real de Velhafala terá desaparecido. Toda a literatura do passado terá sido destruída. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron, existirão somente em suas versões em Novafala, em que, além de transformados em algo diferente, estarão transformados em algo contraditório com o que eram antes. A literatura do Partido será outra. Os slogans serão outros. Como poderão ter um slogan como “Liberdade é escravidão”, quando o conceito de liberdade foi abolido? Todo o clima de pensamento será diferente. Na realidade não haverá pensamento tal como o entendemos hoje. Ortodoxia significa não pensar — não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é inconsciência.” Um dia desses, pensou Winston, assaltado por uma convicção profunda, Syme será vaporizado. É inteligente demais. Vê as coisas com excessiva clareza e é franco demais quando fala. O Partido não gosta desse tipo de gente. Um dia ele vai desaparecer. Está escrito na cara dele. ⧊

1 George Orwell foi um escritor, jornalista e ensaísta político inglês, nascido na Índia Britânica. Atualmente suas obras são publicadas, no Brasil, pela Companhia das Letras. ORWELL, George. 1984. Tradução Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 67-70



O INFERNO DE DANTE É AQUI Roberto da Silva1 Ilustração: Ian Scheufler

ARQUITETURA, JUSTIÇA E EDUCAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO


188 o inferno de dante é aqui 1 Roberto da Silva é Professor Livre Docente do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo 2 SILVA, Roberto da . O fim do inferno: compromissos assumidos. O Estado de São Paulo, São Paulo, 15 mar. 2002.

4 Dante Alighieri nasceu na Itália no ano de 1265 e morreu em 14 de setembro de 1321 aos 56 anos de idade.

No começo do ano de 2017 o noticiário nacional nos relembrou que o Inferno ainda existe e que estava pegando fogo.

3 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução de José Pedro Xavier Pinheiro 1822 – 1882. Versão para Ebook. ebooksbrasil.com

Em 15 de março de 2002 escrevi para o Jornal O Estado de São Paulo o artigo intitulado O fim do Inferno: compromissos assumidos2 , relatando a decisão do governo do Estado de São Paulo de demolir definitivamente a Casa de Detenção de São Paulo, o antigo Carandiru, então o maior presídio da América Latina e símbolo maior das mazelas possíveis de serem cometidas contra a pessoa humana em uma prisão. A implosão do Carandiru efetivamente aconteceu em 8 de Dezembro de 2002 e o fato foi comemorado no mundo inteiro. No começo do ano de 2017 o noticiário nacional nos relembrou que o Inferno ainda existe e que estava pegando fogo. Revendo o artigo de 2002 e considerando tudo o que aconteceu no sistema prisional brasileiro desde então, conclui que o Carandiru era apenas uma das sucursais do Inferno e voltei à leitura da Divina Comédia3, de Dante Alighieri4, para entender a analogia que o Inferno descrito por ele tem com o sistema prisional brasileiro. Sem muito esforço é possível encontrar no Inferno de Dante as referências da Arquitetura, da Justiça e da Educação, conforme veremos aqui. Dante descreve o Inferno (regime fechado para os condenados) o Purgatório (regime semiaberto para quem cumpriu parte da pena) e o Paraíso (regime aberto para quem volta à liberdade).


roberto da silva 189

O sistema prisional brasileiro é constituído por cerca de 1.800 unidades prisionais nos 26 estados e Distrito Federal que custodiam mais de 600 mil presos, com superlotação e precariedade nas condições de trabalho em quase todas as unidades, abrigando uma população predominantemente jovem, de baixa escolaridade e sem qualificação profissional, a maioria como presos provisórios. O fluxo clássico da ida para a prisão é mais ou menos assim: prisão em flagrante, Delegacia de Polícia, Cadeia Pública ou Centro de Detenção Provisória (CDP), audiência judicial, sentença de condenação, prisão preventiva ou prisão provisória, regime fechado, regime semiaberto e regime aberto, geralmente em liberdade condicional. A via crucis a ser percorrida pelo réu tem todos os elementos da comédia dantesca, pois para ele o Inferno não é apenas um lugar, mas um universo com todo um aparato jurídico, policial e administrativo conformado por uma estrutura arquitetônica integrada, segundo Dante, por um vestíbulo, nove círculos, três vales, dez fossos e quatro esferas. O Portal do Inferno descrito por Dante não tem portas ou cadeados, somente um arco com um aviso que adverte: “uma vez dentro, deve-se abandonar toda a esperança de rever o céu, pois de lá não se pode voltar” (ALIGHIERI, 2003, p. 31). A alma só tem livre-arbítrio enquanto viva, portanto, enquanto vivo é que se decide pelo céu ou pelo inferno. Depois de morto (condenado), perde-se a capacidade de raciocinar e tomar decisões. A passagem pelo Portal é feita por Caronte, o barqueiro do Inferno que exigia que os mortos tivessem uma moeda (multa judicial) depositada na boca para pagar o transporte. A Justiça do inferno, apresentada no Canto 11 da Divina Comédia (Artigo 18 do Código Penal Brasileiro) considera que “a alma incontinente tem culpa, mas a culpa (crime culposo) é menos grave que o dolo (má-fé), a vontade de pecar (cometer o crime). Esta vontade, quando se origina como manifestação da natureza animal é ainda menos grave que aquele pecado (crime) que é cometido de forma premeditada, usando a inteligência do ser humano para o mal, mesmo assim, é menos grave um indivíduo planejar e executar um crime contra um desconhecido, que pode se defender do estranho que o ameaça, que ele fazer o mesmo com alguém que confia nele, e por isto está indefeso, por isso a traição (caguetagem, delação), é considerada o maior pecado, que recebe a punição máxima no local mais profundo do inferno (o seguro nas prisões. A justiça


190 o inferno de dante é aqui 5 Regime Disciplinar Diferenciado, criado pela Lei nº 10.792 para conter as principais lideranças das facções organizadas dentro das prisões e que significa rígidas restrições aos direitos da pessoa privada da liberdade. 6 GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1986.

divina retratada no livro é cabal, racional e definitiva, o que torna o inferno dantesco uma espécie de “caos impiedosamente ordenado” O Vestíbulo do Inferno ou a antessala do Inferno (o sistema de Justiça?) é onde estão os mortos que não podem ir para o céu nem para o inferno. O vestíbulo é a morada dos indecisos, covardes e que passaram a vida “em cima do muro”. Eles nunca quiseram assumir compromissos, tomar decisões firmes, por acharem que assim perderiam a oportunidade de fazer alguma coisa. Os covardes são condenados a correr em filas atrás de uma bandeira (autonomia do Judiciário, Ministério Público e Defensoria) que corre rapidamente, enquanto são continuamente torturados pelas picadas de vespas e moscões (mídia e opinião pública), enquanto vermes (corrupção) roem suas pernas. O Portal do Inferno e o Vestíbulo são descritos no Canto III da Divina Comédia. Os Nove Círculos do Inferno são assim nomeados: 1. Primeiro Círculo, o Limbo; 2. Segundo Círculo, Vale dos Ventos; 3. Terceiro Círculo, Lago de Lama; 4. Quarto Círculo - Colinas de Rocha; 5. Quinto Círculo - Rio Estige; 6. Sexto Círculo, Cemitério de Fogo; 7. Sétimo círculo, Vale do Flegetonte; 8. Oitavo círculo, o Malebolge; 9. Nono Círculo, lago Cocite. O primeiro dos círculos – o Limbo - é o mais emblemático para entender a condição de cerca de 90% dos presos que não precisariam estar na prisão porque não cometeram crimes hediondos nem usaram de violência. Cerca de 50% deles são presos provisórios, sem condenação e que não usufruíram dos benefícios acumulados pela Cultura Universal nem da Educação.


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O sétimo circulo tem analogia com a necessária separação dos presos por grau de periculosidade, regime disciplinar5, prisão especial e prisão para quem tem foro privilegiado. Dante (IDEM, p. 88) diz que o próximo círculo (sétimo) que nós encontraremos é o dos violentos, que se divide em três compartimentos, classificados de acordo com a vítima da violência praticada. No primeiro estão aqueles que praticaram violência contra o próximo ou contra os bens do próximo. Lá sofrem os assassinos, assaltantes e tiranos em grupos diferentes, de acordo com a gravidade de seus crimes. No segundo estão aqueles que praticaram a violência contra si próprios ou contra seus próprios bens. Os suicidas e gastadores que arruinaram suas próprias vidas (no jogo, por exemplo) se encaixam neste grupo. No último compartimento do sétimo círculo estão aqueles que praticaram violência contra Deus. São os que, orgulhosos, não acreditaram nele ou que o atacaram com blasfêmias, através da destruição e desprezo pela sua criação ou pela exploração da criação dos seus filhos através da usura. Dante relata que no Limbo estão aqueles que morreram antes da chegada de Jesus ao mundo, os pagãos virtuosos e os não batizados, principalmente crianças. As almas são fadadas a vagar sem destino na mais completa escuridão - onde não é possível enxergar nada, segundo Dante - que representa a mente que nunca foi iluminada pela mensagem do Evangelho (Educação). Ao contrário dos outros círculos do Inferno, no Limbo as almas não gritam de dor; aqui só podem ser ouvidos os seus suspiros (ou aliciados e explorados pelas facções que dominam as prisões). No Limbo está situado o Castelo das Ciências Humanas, com Sete Muralhas (Linguagens e suas tecnologias): O Trivium (Lógica, Gramática e Retórica) e o Quadrivium (Aritmética, Astronomia, Geometria e Música), ao redor do castelo está o Rio Eloqüência. Neste castelo estão os personagens virtuosos e bondosos que morreram pagãos: Electra, Heitor, Eneias, César. Também estão Bruto e Saladino, os filósofos gregos Platão e Sócrates, perto deles está Demócrito, Diógenes de Sínope, Anaxágoras, Tales, Empédocles, Heráclito e Zenão, Dioscórides, Orfeu deTrácia, Túlio, Lino, Sêneca,Euclides,Ptolomeu, Hipócrates, Avicena, Galeno e Averróis. O Limbo é descrito no Canto 4. Erwin Goffman disse que a prisão é uma instituição total, ou seja, “estufas onde se faz experiências com o eu” (1986, p. 18)6, mas fazer experiências com vistas à obtenção de resultados


192 o inferno de dante é aqui

O trabalho – exploratório – serve a cerca de 50% dos presos em todo o Brasil e a Educação Escolar não alcança mais do que 12 ou 13% de todos os presos.

significa empregar os conhecimentos disponíveis para a consecução de determinados fi ns. As prisões brasileiras, tal como o Limbo do Inferno de Dante, são espaços de trabalho de diversas ciências – Administração, Direito, Psicologia, Psiquiatria, Medicina, Serviço Social, Pedagogia, etc – mas não é visível a contribuição destas ciências na melhoria das condições de encarceramento nem na transformação qualitativa do preso. Lá dentro estão também diversas manifestações artísticas, esportivas e culturais – música, percussão, dança, teatro, cinema, pintura, escultura, desenho, artesanato, futebol, fisiculturismo, atletismo, etc – mas elas não são organizadas para elevação da cultura geral dos presos porque acredita-se que apenas a Educação Escolar seja a redentora de todas as deficiências que assolam os presos. O trabalho – exploratório – serve a cerca de 50% dos presos em todo o Brasil e a Educação Escolar não alcança mais do que 12 ou 13% de todos os presos. A visão de Dante no século XII era a de que o Inferno seria o destino inexorável de uma orda de seres humanos que se afastaram de Deus ou que não o aceitaram em seus corações. Em um pais do século XXI que nunca conseguiu se livrar de sua fundamentação religiosa ser jogado ao Inferno ainda é a pior das condenações. A Lei vira sinônimo da própria ordem e a violação intencional ou não da Lei constitui tanto o pecado mortal quanto o pecado venial. Em um país de miseráveis, pobres, incultos e iletrados o encarceramento


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em massa, principalmente da juventude pobre, negra e periférica é a única resposta que a sociedade consegue pensar, já que não pode simplesmente exterminar a todos eles. Com a superlotação que caracteriza as prisões brasileiras, colocar ordem no Inferno significaria, minimamente, conceber o trabalho penitenciário nos moldes de um projeto político pedagógico por meio do qual todas as ciências, todos os profissionais que lá trabalham, bem como todas as manifestações artísticas, esportivas e culturais fossem aproveitadas em seu potencial pedagógico no processo de humanização e de habilitação dos presos para voltarem à liberdade, o Paraíso de Dante. ⧊


II Manicômios, Prisões e Conventos Erving Goffman1

Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição tem tendências de “fechamento”. Quando resenhamos as diferentes instituições de nossa sociedade occidental, verificamos que algumas são muito mais “fechadas” do que outras. Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome de instituições totais, e desejo explorar suas características gerais. As instituições totais de nossa sociedade podem ser, grosso modo, enumeradas em cinco agrupamentos. Em primeiro lugar, há instituições criadas para cuidar de pessoas que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse caso estão as casas para cegos, velhos, orfãos e indigentes. Em segundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não-intencional; sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários. Um terceiro tipo de instituição total é organizado para proteger a comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato: cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de Guerra, campos de concentração. Em quarto lugar, há instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, , escolas internas, campos de trabalho, colônias e grandes mansões (do


ponto de vista dos que vivem nas moradias de empregados). Finalemente, há os estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos; entre exemplos de tais instituicões, é possível citar abadias, mosteiros, conventos e outros claustros. Esta classificação de instituições totais não é clara ou exaustiva, nem tem uso analítico imediato, mas dá uma definição puramente denotativa de categoria como um ponto de partida concreto. Ao firmar desse modo a definição inicial de instituições totais, espero conseguir discutir as características gerais do tipo, sem me tornar tautológico. Antes de tentar extrair um perfil geral dessa lista de estabelecimentos, gostaria de mencionar um problema conceitual: nenhum dos elementos que irei descrever parece peculiar às instituições totais, e nenhum parece compartilhado por todas elas; o que distingue as instituições totais é o fato de cada uma delas apresentar, em grau intenso, muitos itens dessa família de atributos. Ao falar de “características comuns”, usarei a frase de uma forma limitada, mas que me parece logicamente defensável. Ao mesmo tempo, isso permite usar o método de tipos ideais, através do estabalecimento de aspectos comuns, com a esperança de posteriormente esclarecer diferenças significativas. ⧊

1 Erving Goffman (1922 – 1982) foi um cientista social, antropólogo , sociólogo e escritor canadense. Seus trabalhos se concentravam no estudo da interação social, da construção social do eu e na organização social da experiência.


196 os corpos dóceis

A ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço. Para isso, utiliza diversas técnicas.

I

II

ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES 1 — A disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo. Local protegido, da monotonia disciplinar. Houve o grande “encarceramento” dos vagabundos e dos miseráveis [prisões]; houve outros mais discretos, mas insidiosos e eficientes: colégios, quartéis, fábricas.

ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES 2 — Mas o princípio de “clausura” não é constante, nem indispensável, nem suficiente nos aparelhos disciplinares. Estes trabalham o espaço de maneira muito mais flexível e mais fina. E em primeiro lugar segundo o princípio da localização imediata ou do quadriculamento. Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa.


michel foucault 197

III

IV

ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES 3 — A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco, nas instituições disciplinares, codificar um espaço que a arquitetura deixava geralmente livre e pronto para vários usos. Lugares determinados se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil.

ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES 4 — Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série, e pela distância que o separa dos outros. A unidade não é portanto nem o território (unidade de dominação), nem o local (unidade de residência), mas a posição na fila: o lugar que alguém ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna. A disciplina individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações.

Michel Foucault - Vigiar e Punir Ilustração: Flora Próspero


Ilustração: Julia Vannucchi

198 a educação pela pedra


WILL (V.O.) Ao contar a história do meu pai é impossível separar os fatos da ficção, o homem do mito. Nós OLHAMOS PARA BAIXO, onde há o rio. O reflexo de Edward tremula na água, e a medida que surgem ondulações, algo muda. Enquanto SUBIMOS, novamente, nos deparamos com um EDWARD BLOOM mais novo, com 20 anos, olhando para a água. Ele não é apenas bonito, não apenas encantador. É como se todas as forças da natureza tivessem conspirado para criá-lo. WILL (V.O.) (cont.) Nem sempre faz sentido, e a maior parte nunca aconteceu. O melhor a fazer é contá-la como ele me contava. De repente, este Edward empurra ambas as mãos na água, agarrando A BESTA. Ele traz o peixe-gato até o rosto. O olha bem nos olhos. Há uma batida, e então, a Besta escuta o som do anel de ouro de Edward. Sorrindo, Edward pega o anel, depois lança a Besta de volta à água. WILL (V.O.) (cont.) Essa foi a piada final do meu pai, eu acho. Um homem conta suas histórias tantas vezes que ele se torna as histórias. Eles continuam depois dele. Um peixe-gato obeso e faceiro nada em nossa direção. WILL (V.O.) (cont.) E dessa forma, ele se torna imortal. O peixe salta a nossa frente com um SPLASH.

BIG FISH • Estados Unidos • 2003 • Direção de Tim Burton Baseado no romance de Daniel Wallace


SP Safari1 Renato Cymbalista, Amanda Vieirá, Paula Janovitch, Rebeca Lopes Cabral

a experiência do SP Safari

Mobilizando a cidade como recurso pedagógico:

200 mobilizando a cidade como recurso pedagógico


sp safari 201 1 SP Safari é um coletivo que promove jornadas de conhecimento na cidade de São Paulo. Os passeios guiados promovidos pelo grupo passam por um intenso trabalho de pesquisa e pela mobilização de fontes históricas no percurso, que levam visão da cidade para além do contemplativo.

Renato Cymbalista Em 2014 ministrei pela primeira vez na FAU-USP a disciplina optativa “Lugares de Memória e Consciência”. A ideia é problematizar lugares específicos que, por conta de sua história, oferecem possibilidades especiais para a sociedade. Alguns territórios expressam de forma emblemática a memória de grupos sociais específicos, outros consagram-se como estratégicos para a construção de identidades nacionais ou regionais, outros são palco de experiências individuais ou coletivas de sofrimento, outros ainda revestem-se de significados específicos para a narrativa histórica de grupos religiosos. Tais espaços constituem desafios específicos, que merecem tratamentos arquitetônicos e urbanísticos também específicos, e sobre isso constrói-se a disciplina. Ricardo Assumpção, um dos alunos, me procurou após o curso e expressou o desejo de trabalhar com essa temática. Não havia um campo constituído de trabalho para isso, mas eu me dispus a pensar juntamente com ele como viabilizar um projeto nesse sentido. Assim nasceu o SP Safari, um coletivo que realiza percursos de conhecimento na cidade e tem três objetivos: realizar pontes entre o conhecimento produzido na Universidade e a sociedade; viabilizar campos de atuação para estudantes e jovens recém formados; e mobilizar a cidade


como ferramenta pedagógica e de construção de conhecimento. Estamos avançando nessas três frentes. Alguns percursos são fruto de pesquisas realizadas na USP, outros são propostos por parceiros, outros são idealizados por nós e desenvolvidos como processsos coletivos de pesquisa. Trabalhamos com diferentes parceiros e com todos os tipos de público, incluindo aqueles que têm posições distintas das nossas. É um projeto profissionalizante, e muitas vezes o trabalho é remunerado a partir de contratos firmados entre os estudantes e os parceiros. Cada lugar, temática e público traz desafios específicos, e o pressuposto geral é: queremos fazer diferença, colocar ideias e perguntas novas em circulação, e não apenas repetir as narrativas consolidadas e os lugares comuns. Não há tema tabu nem desafio impossível: o SP Safari faz percursos em lugares bacanas como Higienópolis, em cartões postais da cidade como o Obelisco do Ibirapuera e o Pátio do Colégio, mas trata também de temas difíceis como quilombos urbanos, prostituição, territórios da diversidade sexual, ou até traumáticos, como os lugares de memória da Ditadura. A metrópole é sempre interessante com uma boa mediação. Trazemos material de apoio que nos ajuda a mostrar aquilo que foi destruído, o que não chegou a ser construído ou o que foi muito modificado; as leituras sociais já realizadas; aspectos da cultura material que complementam a experiência: imagens antigas, cartões postais, projetos cópias de processos judiciários, trechos literários, um anel dado em troca de uma doação para financiar a luta paulista em 1932... encontrar esse material é um dos trabalhos mais estimulantes. Em alguns percursos usamos jogos de papeis. No local da assassinato de Carlos Marighella com alunos do ensino médio, distribuímos “carteiras de identidade”, com personagens que esatavam no local ou imediações no momento do crime. Em um conjunto de percursos sobre a memória LGBT no Centro de São Paulo, cada participante assumia o papel de uma personagem relevante para a história da existência das minorias sexuais na cidade. O SP Safari é pensado como um coletivo. Buscamos decisões e gestão coletivas, o crescimento e a autonomia intelectual de todos. Após dois anos de trabalho, tenho segurança que todos temos crescido e nos qualificado. Mas os pontos de partida são muito diferentes. Como docente, tenho um conjunto de vantagens que não podem ser ignoradas: a capacidade de proposição e de

A metrópole é sempre interessante com uma boa mediação.

202 mobilizando a cidade como recurso pedagógico


sp safari 203

mobilização de parceiros, o prestígio de minha posição na USP, a experiência e o conhecimento de fontes e arquivos. Assim, a horizontalidade é uma meta, mas não é possível operá-la como fórmula indiscriminada. As assimetrias não podem ser ignoradas enquanto existirem, é necessário reconhecê-las e a partir disso operar com responsabilidade. O trabalho de professor e de orientador exige desprendimento, pois o objetivo final é tornar-se desnecessário e permitir vôos autônomos. Existem também algumas desvantagens. Para o público, aprender com um professor de meia idade é menos fascinante do que com um jovem. Já tentei “programar” os estudantes para fazerem falas ou discursos em determinadas situações, o que não funciona. Já fui criticado por interferir nas falas durante os percursos, atrapalhando assim a atuação dos estudantes. Nem sempre nós, professores, damos conta de confiar. A experiência com o SP Safari trouxe para minha atuação na FAU-USP um reenquadramento — irreversível, eu diria — das relações entre ensino, pesquisa e extensão, apontando novos caminhos para a Universidade e seus sujeitos. Amanda Vieirá Minha interação com o SP Safari iniciou por meio de um convite para participar da construção dos percursos em torno da memória LGBT em uma programação proposta ao Centro de Formação e Pesquisa do SESC. Era um desejo antigo trabalhar ou estudar a temática LGBT. Entrei inicialmente como colaboradora para a pesquisa para o projeto, que era também um tema novo para o SP Safari e pressupunha um grande trabalho prévio à realização dos percursos. Mas o meu lugar de fala me tornou uma das coordenadoras do projeto, à frente de um dos percursos, o L (das lésbicas). Era a primeira vez que eu me deparava com a minha história, eu mesma enquanto lésbica não sabia praticamente nada sobre o passado das minhas semelhantes, pois nossa história foi invisibilizada. No início eu não achava fontes, me perguntava: onde estiveram as lésbicas no território? Onde se escondiam suas trajetórias? Quem eram essas mulheres? Uma entrevista definiu o caminho. Marisa Fernandes, lésbica e militante, mostrou a indissociabilidade entre história lésbica e militância lésbica. A partir daí pude construir o


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percurso, em que a ausência também falava. O percurso relata inicialmente a história da repressão aos grupos LGBT nos anos 1970 e 1980, quando ser LGBT já não era mais considerado uma doença, mas era visto pela sociedade da época e pelos órgãos públicos como crime. Relata algumas histórias para ilustrar como a polícia agia em suas “batidas” ou como era a estadia na prisão. O movimento LGBT começou a se manifestar contra a represssão no final dos anos 1970. Traz a história da primeira passeata LGBT contra a repressão policial em, que partiu das escadarias do teatro municipal. Nessa passeata as militantes lésbicas fizeram o cordão frontal. Outra importante passagem do percurso é a história da maior escritora de romances das mulheres lésbicas, Cassandra Rios: ainda que suas obras tivessem tiragens recordistas, foi uma das mulheres invisibilizadas, de quem poucos sabem da existência, e assim como muitos outros autores também sobfreu com a censura. A história de Cassandra Rios é relatada nas imediações da Galeria do Rock, região onde funcionou uma livraria de sua propriedade. Por fim o percurso chega no “gueto” histórico das lésbicas, localizado na Bela Vista, onde se localizavam diversos bares alimentados pela chama do Ferro’s Bar, ponto noturno das lésbicas até os anos 1990. Espaço de militância, o Ferro’s foi palco do que é considerado o nosso pequeno Stonewall, o chamado “Levante do Ferro’s Bar” em 23 de julho de 1983, quando militantes se revoltaram contra a proibição da distribuição do zine das lésbicas, o “Chana com Chana”. Foi grande o interesse dos participantes, que também desconheciam a história. Paula Janovitch Para mim a cidade é uma sala de aula sem paredes. Nem sempre contar e caminhar acontecem em sincronicidade. Sair das quatro paredes da sala de aula e ganhar as ruas com participantes que nem sempre te escutam ou tampouco estão olhando para você o tempo todo já é um grande desafio. De certa forma a cidade rouba a cena, seja por conta das interferências próprias das ruas, seja porque no ambiente urbano estamos numa condição mais dinâmica e ativa do que sentados numa sala de aula. A rua não é confortável, a calçada é estreita para tanta gente andar junto ou se agrupar nas paradas, os barulhos interferem. Ao mesmo tempo, a


presença da cidade gera questões e instiga reflexões. Por isso penso que fazer um percurso é sempre um movimento compartilhado, a cada deslocamento e parada, questões surgem da observação/reflexão dos diversos participantes através da passagem do conteúdo ou mesmo da combinação de estar no lugar onde os fatos ocorreram, mesmo quando este lugar já tenha sofrido grandes transformações. O esforço de mostrar o que já não é mais visível provoca um impacto fundamental no mediador e nos participantes. Mais do que a narração de uma história da cidade perdida no tempo, ganhamos a experiência de percorrer algo que resignifica o lugar, prende-se a ele. O percurso exerce a mágica de amarrar tempo e espaço num só nó. Para mim isto é algo revolucionário na forma de aprender, ensinar e compartilhar. A minha experiência se deu em 2017 com a proposta do SP Safari e Sesc Santana de contar a história de um grupo de imigrantes de origem judaica que viveu e morreu em São Paulo — sendo que, tanto na vida como na morte, por participarem do universo da prostituição, foram estigmatizados e deixaram poucos registros materiais de sua presença na cidade. O desafio estava em percorrer estes lugares com poucas referências restantes, a fim de contar esta história que envolvia imigração, prostituição, estigma e apagamentos. Foi necessário desenvolver estratégias que colocassem os participantes em contato com o assunto. De partida introduzi a história da prostituição estrangeira na cidade e fizemos um brinde como se estivéssemos num antigo bordel. Então iniciamos o percurso com a proposta de que os participantes trocassem de identidade assumindo a de algum personagem deste grupo de imigrantes de origem judaica. Com um crachá com nomes em idiche (lingua falada pelos judeus do leste europeu) e rostos inventados, cada um escolheu sua nova identidade. A experiência de ser parte da história que iriamos contar, criou uma unidade e interesse com o que cada um “foi“ ou poderia ter sido no passado. Perguntas e reflexões surgiram tanto nas ruas comerciais do Bom Retiro, como na antiga sinagoga deste grupo — hoje uma mecância de carros —, facilitadas pelo fato de estarem todos de certa forma curiosos com o seu próprio passado. Nos dois cemitérios que visitamos, o mesmo efeito se deu. Acrescentamos alguns rituais judaicos significativos nos cemitérios, como a colocação de pedras nas sepulturas para marcar as visitas e a lavagem de mãos para a saída do mundo dos mortos. Foi um dia intenso em que senti que todos nós tivemos que caminhar no tempo e no espaço da cidade, ninguém voltou o mesmo pra casa.

Para mim, a cidade é uma sala de aula sem paredes

sp safari 205


206 mobilizando a cidade como recurso pedagógico

Rebeca Lopes Cabral Ingressei no SP Safari pela pesquisa de IC-FAPESP realizada na Escola da Cidade sobre lugares de memória da ditadura, que continua como mestrado na FAU-USP. Os lugares de memórias difíceis — memoriais, monumentos, placas comemorativas – vêm sendo reivindicados e construídos como provas jurídicas, espaços de significância política e simbólica. Encarando esses locais, questionamos nosso desconforto. Nessa medida tornam-se ferramentas poderosas de atuação política. Mobilizando o passado nos ajudam a questionar o presente e nos levam a pensar futuros possíveis. A memória não “se dá” no tempo/espaço, ela é construída e desconstruída num constante devir, a partir de disputas. É agenciada como ferramenta política, estando na maioria das vezes em prol dos interesses daqueles que tinham voz nos distintos contextos. Nessa medida estão os esquecimentos, fatos históricos que, por terem sido colocados em escanteio, foram capazes de conformar as lembranças que interessavam em determinado tempo/espaço. Trabalhamos com as histórias e memórias que estiveram na penumbra, encontradas através de nossas pesquisas em livros, documentos ou depoimentos. Associadas aos lugares e transmitidas, essas memórias ampliam significados e mostram a dimensão pedagógica dos espaços cotidianos. Me envolver no coletivo significou sair do lugar de conforto da academia. Fui desafiada a estabelecer novas conexões entre a teoria e a prática, transmitir conhecimento a pessoas de diferentes idades, histórias e ideias, que se inscrevem nos percursos. Significou a transformação da pesquisa, centrada nos lugares de memória da ditadura, em porta de entrada para pensar e mobilizar outras temáticas. Aprendi também que todos os lugares podem nos dizer algo. É preciso perambular pelas ruas com óculos de arqueólogo, juntando aquilo que vemos com o que sabemos que desapareceu. Tem sido grande o crescimento em pouco mais de dois anos, mas o projeto não teria sido concebível sem a universidade pública. Ela reuniu o material humano que é a essência do projeto. A fluidez entre as atividades de docência e monitoria e a concepção e realização dos percursos é fundamental: algumas ideias saem da sala de aula, outras a alimentam, outras desafiam a hegemonia da sala de aula como local único


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de aprendizado. A pesquisa realizada na universidade, pelos integrantes do projeto e por terceiros, é outro insumo básico. O tempo de elaboração intelectual foi também dado pela nossa presença na Universidade, assim como o acesso a acervos e bibliotecas. Pensada como plataforma de interlocução com a sociedade, abrindo-se à maior diversidade possível de públicos, a Universidade pública revela-se um instrumento mais do que importante, é incontornável. ⧊



A MILENAR ARTE DE EDUCAR DOS POVOS INDÍGENAS Daniel Munduruku1 Ilustração: Clara Turazzi

Educar é dar sentido. É dar sentido ao nosso estar no mundo. Nossos corpos precisam desse sentido para se realizar plenamente. Mas também nossos corpos são vazios de imagens e elas precisam fazer parte da nossa mente para que possamos da respostas ao que se nos apresenta diuturnamente como desafios da existência. É por isso que não basta dar alimento apenas ao corpo, é preciso também alimentar a alma, o espírito. Sem comida o corpo enfraquece e sem sentido é a alma que se entrega ao vazio da existência. A educação tradicional entre os povos indígenas se preocupa com esta tríplice necessidade: do corpo, da mente e do espírito. É uma preocupação que entende o corpo como algo prenhe de necessidades para poder se manter vivo. Esta visão de educação é sustentada pela idéia de que cada ser humano precisa viver intensamente seu momento. A criança indígena é, então, provocada para


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ser radicalmente criança. Não se pergunta nunca a ela o que pretende ser quando crescer. Ela sabe que nada será se não viver plenamente seu ser infantil. Nada será por que já é. Não precisará esperar crescer para ser alguém. Para ela é apresentado o desafio de viver plenamente seu ser infantil para que depois, quando estiver vivendo outra fase da vida, não se sinta vazia de infância. A ela são oferecidas atividades educativas para que aprenda enquanto brinca e brinque enquanto aprende num processo contínuo que irá fazê-la perceber que tudo faz parte de uma grande teia que se une ao infinito. Num mesmo movimento ela vai sendo introduzida no universo espiritual. Embalada pelas histórias contadas pelos velhos da aldeia, a criança e o jovem passam a perceber que em seu corpo moram os sentidos da existência. Este sentido é oferecido pela memória ancestral concentrada nos velhos contadores de histórias. São eles que atualizam o passado e o fazem se encontrar com o presente mostrando à comunidade a presença do saber imemorial capaz de dar sentido ao estar no mundo. Este processo todo é alimentado por rituais que lembram o passado para significar o presente. São movimentos corpóreos embalados por cantos e danças repetidos muitas vezes com o objetivo de “manter o céu suspenso”. A dança lembra a necessidade de sermos gratos aos espíritos criadores; contam que precisamos de sentidos para viver dignamente; ordena a existência. Cada grupo de idade ritualiza a seu modo. Cada um se sente responsável pelo todo, pela unidade, pela continuidade social.


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Educar é, portanto, envolver. É revelar. É significar. É mostrar os sentidos da existência. É dar presente. E não acaba quando a pessoa se “forma”. Não existe formatura. Quem vive o presente está sempre em processo. É por isso que a criança será sempre criança. Plenamente criança. Essa é a garantia de que o jovem será jovem no seu momento. O homem adulto viverá sua fase de vida sem saudades da infância, pois ele a viveu plenamente. O mesmo diga-se dos velhos. O que cada um traz dentro de si é a alegria e as dores que viveram em cada momento. Isso não se apaga de dentro deles, mas é o que os mantém ligados ao agora. Resumo da ópera: A educação tradicional indígena tem dado certo. As pessoas se sentem completas quando percebem que a completude só é possível num contexto social, coletivo. Cada fase pela qual passa um indígena – desde a mais tenra idade – alimenta um olhar para o todo, pois o conhecimento que aprendem e vivem é um saber holístico que não se desdobra em mil especialidades, mas compreende o humano como uma unidade integrada a um Todo maior e Único. Olhar os povos indígenas brasileiros a partir de uma visão rasa de produção, de consumo, de riqueza e pobreza é, no mínimo, esvaziar os sentidos que buscam para si. ⧊

1 Daniel Munduruku pertence à etnia indígena Munduruku, do Pará. É escritor, graduado em Filosofia e Doutor em Educação.


Foto: Luisa C. Zucchi

Ana Ribeiro da Costa Luisa C. Zucchi1

ALÉM DO (IN) VISÍVEL

UM OLHAR SOBRE O DELÍRIO IMAGÉTICO


Psicose. 1960. Diretor: Alfred Hitchcock. Clímax do filme: Marion, uma secretária que acaba de roubar uma grande quantia em dinheiro, foge. Em sua fuga, uma tempestade a obriga a parar em um hotel a beira da estrada para passar a noite. O momento de maior tensão se desvela quando Marion está tomando banho. Uma sombra desponta por detrás da cortina. A partir daí, uma sequência de cortes, da cena, e a trilha sonora estridente se entrelaçam para anunciar a morte de Marion. Um detalhe: não vemos, em momento algum, a faca dilacerando o corpo da vítima. Blow-Up - Depois Daquele Beijo. 1966. Diretor: Michelangelo Antonioni. Última cena: o fotógrafo Thomas perambula, um tanto quanto desapontado, por um parque de Londres e, em certo ponto, detém-se em um jogo de tênis. Acompanha muito atento a partida e logo, nós, espectadores, também nos vemos participando de cada jogada. Em um dado momento, a bolinha extrapola os limites da quadra e quica no gramado perto de Thomas que, apesar de a princípio, hesitar, apanha a bolinha e a arremessa de volta na quadra. Um detalhe: não há bolinha; o jogo é uma mímica.


o entendimento do que é visível não se resume ao explícito.

214 além do (in)visível - um olhar sobre o delírio imagético

Nessas duas sequências, o interlocutor é convidado a preencher as lacunas, a mobilizar seu imaginário e sua sensibilidade para ver o que não está posto e isso não se limita apenas em ver a bolinha ou a faca penetrando a carne. Para Luigi Ghirri, pouco conhecido, porém importante fotógrafo italiano, aquilo que não está visível é tão importante quanto o que está representado no enquadramento. Para ele, essa expansão dos limites da imagem é capaz de estreitar relação entre locutor e interlocutor, de modo que o segundo venha a completar a obra com seu próprio repertório. Ou seja, a mensagem que se quer transmitir, em todos os três autores, é que o entendimento do que é visível não se resume ao explícito. “Contemporaneamente l’immagine continua nel visibile della cancellazione, e ci invita a vedere il resto del reale non rappresentato. Questo duplice aspetto di rappresentare e cancellare non tende soltanto a evocare l’assenza dei limiti, escludendo ogni idea di completezza o di finito, ma ci indica qualcosa che non può essere delimitato, è cioè, il reale” . “A imagem suprimida pelo enquadramento continua visível e nos convida a ver o resto do real não apresentado. Esse duplo aspecto de representar e apagar não evoca apenas a ausência dos limites, excluindo qualquer ideia de plenitude ou finito, ao contrário, nos indica aquilo que não pode ser delimitado, ou seja, a própria realidade.” — Em tradução livre. (GHIRRI, 1978, p. 12). Ghirri, em seu livro Kodacrome, enfatiza, acertadamente, a palavra representação referindo-se à imagem, no caso específico, à fotografia. Tal conceito exprime a ideia de captar algo, real ou não, e transmitir a um receptor - é o fundamento básico da comunicação. Coloca-se, dessa maneira, a imagem como signo, ou seja, a imagem é um código constituinte de uma gramática visual, uma linguagem que, para acontecer, se relaciona, necessariamente, em três instâncias: a imagem em relação a si mesma; a imagem em relação ao objeto que representa; e a 1 Ana Ribeiro imagem em relação ao seu interpretante. O da Costa e Luísa Zucchi são primeiro aspecto trata-se de como a imagem estudantes de é feita, incluindo a técnica utilizada: se é uma arquitetura na FAU USP. fotografia, ou uma tirinha, ou um grafite, ou


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2 Leitura feita segundo a semiótica Peirceana através dos pensamentos do filósofo Italiano Carlo Sini. - SINI, Carlo. L’immagine fotográfica. In GALBIATI, Marisa (Org.). Lo sguardo discreto: habitat e fotografia. Milão: Discipline, 1991. 45-63.

uma cena de um filme, etc; o segundo diz respeito a conexão que a imagem tem com a realidade ancorada segundo o olhar daquele que a produz; já o terceiro está conectado ao conhecimento do interlocutor e como ele interpreta a mensagem recebida. 2 A imagem, portanto, é uma operação mental e não constitui um processo inato ao ser humano; ao contrário, como todas as linguagens, exige instrução, que deve tornar o interpretante capaz de se posicionar criticamente perante aquilo que lhe é exibido. No entanto, já nos anos 70, Ghirri acreditava que a problematização introduzida pelas imagens frequentemente é liquidada com uma espécie de resignação indiferente e, no Brasil, é fato que o ensino sobre o mundo visual é totalmente negligenciado: não somos educados para pensar por imagens e muito menos para entender a complexidade e a importância de dominar o código. Na atual conjuntura em que um indivíduo, em um dia de sua vida, tem contato com quase o mesmo número de imagens que um indivíduo da Idade Média teria contato durante toda a sua vida, é espantoso, para não dizer sinistro, que não reconheçamos nas imagens uma linguagem e ignoremos nossa completa submissão àqueles que detêm o poder de disseminação das imagens que perpassam nosso cotidiano. Mergulhados em um delírio imagético, parecemos estar anestesiados frente a uma repetição incessante de imagens: junto com a evolução tecnológica dos meios de reprodução deu-se também o empobrecimento da qualidade do olhar. Esse cenário se concretiza de maneira contundente no cotidiano do indivíduo, seja em suas decisões privadas, quando ele opta por uma sessão de cinema 3D por acreditar que a condição necessária para se satisfazer com a trama do filme passa pelo pulular frenético de elementos da tela, seja em suas decisões políticas, quando ele faz a escolha de seu voto valorizando uma imagem construída do candidato em detrimento de seu programa eleitoral. Em recente debate na Semana de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP, Luiz Flávio Guimarães, o coordenador da


“ (...) v a m o s p a s s a r a i m a g e m d e q u e e l e cresceu a partir de seu trabalho — J o ã o T r a b a l h a d o r. ”

216 além do (in)visível - um olhar sobre o delírio imagético

campanha do recém-eleito prefeito de São Paulo, afirmou ter tido extrema facilidade para moldar o pensamento da massa acrítica paulistana (NOGUEIRA, 2017). Ao criar a imagem do João Trabalhador, o gestor ideal para a cidade, Guimarães aproximou Dória do povo e possibilitou a identificação da massa com uma figura que não existe, mas que imediatamente é identificada pela população como um igual. Foram veiculadas inúmeras imagens que retratavam Dória em cenas que fazem alusão ao cotidiano de um cidadão comum; ele apareceu comendo o famoso pastel de feira e tomando o pingado na padoca. Tem-se aí o êxito da campanha: uma publicidade extremamente bem realizada e a ignorância do público, que acredita enxergar em uma foto a realidade e se contenta em limitar sua leitura ao que está circunscrito à imagem, mesmo porque, na maioria das vezes, não dispõe dos artifícios necessários para transpor a fronteira entre imagem como ilustração e imagem como alfabeto — ou seja, a imagem é tida como mera explicação do texto verbal e não como contentora de uma ideia em si. Criase, então, uma potente relação de confiança do eleitor com esse novo personagem representado. Nas palavras de Guimarães: “vamos dizer que ele é um sujeito bem-sucedido -afinal ele é rico- e vamos passar a imagem de que ele cresceu a partir de seu trabalho — João Trabalhador”. O prefeito também é personagem principal em outro episódio que evidencia a ausência de competência da população em acionar seu arcabouço de imagens e mobilizá-lo como linguagem. A recente empreitada contra os muros coloridos da cidade simboliza, acima de tudo, o apagamento de uma manifestação estética e política e é uma afronta à sociedade. O artista, seja ele grafiteiro ou fotógrafo, transforma o meio e o concebe na esperança de que ele possa ser repensado e reinterpretado por todo indivíduo, criando, pois, infinitos caminhos perceptivos a cada nova aproximação. Uma cidade cinza e, portanto, previsível, nada mais é do que uma cidade insensível às suas próprias pluralidades e marcas de gênero, religião, geração, sexualidade e origem. Uma cidade cinza é uma cidade óbvia, em que cada demão suprime uma possibilidade de leitura, de pensamento, de experiência, por fim, de olhar. O grafite, como atitude e arte urbana, é demonizado, porque incompreendido3, pela sociedade, que, no entanto, enxerga nos muros e paredões, onde essa arte se coloca, elementos na-


turais do espaço público ao invés de entraves urbanos. A raiz desse equívoco que se apossa do discernimento do cidadão está, mais uma vez, ligada à sua educação. Na Paris de maio de 1968, durante o movimento contra cultural e estudantil, podia-se ler nas paredes da Faculdade de Letras da Sorbonne: “Enxergar já é um começo de invenção” (VILLA-FORTE, 2017). E muitos não enxergam. Incapazes de articular suas sensibilidades, veem apenas um ruído e aplaudem o desaparecimento da imagem e a generalização do espetáculo. A realidade em que volume e veloci3 Acreditamos ser dade de produção e consumo de imagens válido ressaltar se associam a uma renúncia inadvertida do a problemática da relação entre entendimento da imagem como linguagem pixo e grafite, seja origem ou potente está, pois, instaurada na sociedade. como manifestação social, O esforço de “distinguir a identidade precisa porém ela não cabe compêndios do homem, das coisas e da vida; de um lado, nos deste texto. da imagem do homem, das coisas e da vida; de outro” (GHIRRI, 2013) não se dá. Insensíveis e inertes, seguimos perpetuando uma educação que não nos estimula a enxergar o invisível. ⧊

GHIRRI, Luigi. Lezioni di Fotografia. Milão: Quodlibet, 2010. GHIRRI, Luigi. Kodachrome. Modena: Punto e Virgola, 1978. GHIRRI, Luigi, 1943-1992. Pensar por imagens. Ícones, paisagens, arquiteturas / Luigi Ghirri. São Paulo: IMS, 2013. MARTINS, José de Souza. A Guerra das Paredes. Valor Econômico, Eu & Fim de Semana, pg 3, março de 2017. MULAS, Ugo. La Fotografia. Milão: Einaudi, 2007. NOGUEIRA, Kiko. Marqueteiro de Dória diz que gestão Haddad foi das melhores de SP e que forjou imagem de trabalhador de seu cliente. Disponível em: <http://www. diariodocentrodomundo.com.br/marqueteiro-de-doria-diz-que-gestao-haddad-foidas-melhores-de-sp-e-que-forjou-imagem-de-trabalhador-de-seu-cliente/>. Data de Acesso: 15/03/2017. PINA, Raisa. João Dória contra a arte. Disponível em:<https://www.cartacapital.com.br/ cultura/joao-doria-contra-a-arte>. Data de Acesso: 15/03/2017. SINI, Carlo. Dalla parola alla verita’ scritta. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=7yM-SHLV31U>. Data de Acesso: 16/03/2017. SINI, Carlo. L’immagine fotográfica. In GALBIATI, Marisa (Org.). Lo sguardo discreto. Milão: Discipline, 1991. 45-63. SMARGIASSI, Michele. Un’autentica bugia: La fotografia, il vero, il falso. Roma: Contrasto, 2009. VILLA-FORTE, Leonardo. Políticas do grafite. Disponível em: <http://blogdoims.com.br/ politicas-do-grafite/>. Data de Acesso: 15/03/2017.

Referências bibliográficas

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“Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é dado mas algo que precisa ser feito e de cuja a responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja a feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre ser condicionado e ser determinado. A diferença entre o inacabado que não se sabe como tal e o inacabado que histórica e socialmente alcançou a possibilidade de saber-se inacabado. Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam.”

Paulo Freire — Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa Ilustração: Rodrigo Chedid



CORPO EDITORIAL Arthur de Paula Beatriz Gomes Bruna Kanashiro Felipe Righi Laís Stanich

informações técnicas

Luísa Bissoni

Tiragem: 600 exemplares Corpo de texto: Nilland e Stellar Títulos e destaques: Bavro e Sabon Notas de rodapé e numeração: Mosk Miolo: Chambril Avena, Colorplus Havana e Fidji 80g/m2 Capa: Supremo Alta Alvura 250g/m2

Maria Carolina Nassif

Lyon Cruz

Maria Luisa Cardoso Murilo Romeu Teresa Carvalho

Arthur de Paula, Beatriz Gomes, Bruna Kanashiro, Felipe Righi, Gabriela Gennari, Jayne Andrade, Laís Stanich, Luísa Bissoni, Lyon Cruz, Maria Carolina Nassif, Maria Luisa Cardoso, Murilo Romeu, Teresa Carvalho

5 diagramação

Instagram: revistacontraste

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ISSN 2317.2134

Número 5_Outubro de 2017

con tras te


agradecimentos Direção Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Equipe do LPGFAUUSP (em especial André Luís Ferreira e Tadeu Maia), Ana Beatriz Perez, Ana Castro, Ana Lanna, Carmen Aires, Clara Dias, Iri Steck, Karina Leitão, Ligia de Araújo, Luis Guilherme Alves, Marco Caetano, Marília Muller, Nicolas le Roux, Nilce Aravecchia, Paula Santoro, Raphaella Caires, Renan Prado, Renato Cymbalista, Sofia Toi, Thais Viyuela, Victória Sanches e todos os funcionários da Seção Técnica de Produção Editorial da FAUUSP.

Paulo Freire Antonia Campos, Jonas Medeiros e Márcio Ribeiro

Michel Foucault

Mayumi Watanabe de Souza Lima

Louis Kahn

João Cabral de Mello Neto

Guto Lacaz

George Orwell

Ervin Goffman

Eduardo Galeano

Daniel Munduruku

republicações

Ilustradores e fotógrafos Ana Carolina da Costa, Bruna Martins, Clara Bartholomeu, Clara Turazzi, Claudio Luiz, Flora Próspero, Frederico Luca, Greta Comolatti, Ian Scheufler, Julia Guibu Vannucchi, Laura Almeida, Luisa Kon, Luisa Zucchi, Maria Luisa Cardoso, Miguel Croce, Renzo Comolatti, Rodrigo Chedid, Tamara Klink, Teresa Carvalho, Thais Mendes, Victória Sanches.

Autores, entrevistados e transcrições Ana Carolina da Costa, Álvaro Siza Vieira, Ângelo Ardonde, ape - Estudos em mobilidade, Cassia Buitoni, G.T. DE ENSINO FAUUSP (Greta Comolatti, Isabella Luisi, Maria Isabel Magalhães), Guilherme Formicki, Isadora Guerreiro, Juliana Stendard, Juliane Bellot, Leandro Okamoto, LAB LAJE (Felipe Moreira, Lara Ferreira, Paula Oliveira, Victor Iacovini, Vitor Nisida e Rodrigo Iacovini1), Letícia Lemos, Luisa Zucchi, Luiz Recamán, Márcia Gobbi, Maria Luisa Cardoso, Mariana Wilderom, Natalia Marpica, NÓ COLETIVO (Ceci Nery, Paula Lobato e Thiago Flores), Roberto da Silva, SP SAFARI (Amanda Vieirá, Paula Javovitch, Rebeca Lopes Cabral, Renato Cymbalista).


alberto caeiro (fernando pessoa)

poema da capa

Extraído de: “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993): 68.

contraste_ 5 _ novembro_ 2017

apoio


mayumi watanabe de souza lima 223


224 a recuperação da cidade para as crianças


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