‘Uma gaiola saiu à procura de um pássaro” Franz Kafka
CONTRASTE CONTRASTE Número 3 2º semestre 2014 ISSN 2317.2134 contraste.edit@gmail.com revistacontraste.tumblr.com Informações técnicas Tiragem 1000 exemplares Corpo texto: Aleo light Títulos e destaques: Charis, Akzidenz-Grotesk BQ , Klavika Miolo: Pólen 80g/m2 Capa: Pop’Set Black ou Hot Brown 400g/m2 da Arjowiggins Creative Papers Impressão e montagem LPG-FAUUSP Rua do Lago, 876 São Paulo SP 05508 900 +55 11 3091-4528 lpgfau@usp.br
Corpo Editorial Caio Henrique Sens, Calixto Comporte Amaral, Léo Shurmann de Azevedo, Lívia Gianini Victoria, Lucas Meirelles, Luis Guilherme Alves Rossi, Marília Müller, Nicolas Le Roux, Pedro Felix, Priscila Fernandes e Thais Viyuela de Araujo. Diagramação Caio Henrique Sens, Calixto Comporte Amaral, Elisa Bloch, Felipe Lealdini Righi, Filipe Ferreira, Karina Silva de Souza, Lívia Gianini Victoria, Lucas Meirelles, Luis Guilherme Alves Rossi, Luiza Carvalho Zucchi, Marília Müller, Nathalia Lima, Nicolas Le Roux, Pedro Felix Priscila Fernandes, Thais Viyuela de Araujo e Sofia Ferreira Toi Agradecimentos Caio Santo Amore, Camilla Annarumma , Cynthia Cadrobbi, Daniella Marrese, Direção Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Equipe do LPG-FAUUSP, Gabriel Hollaender Vilela, José Eduardo Baravelli, José Tadeu de Azevedo Maia, Khaled Ghoubar, Ligia Ferreira de Araujo, Muna Zeyn, Renato Cymbalista, Welita Alves Caetano e todos que apoiaram o projeto. Colaboradores Bruno Stephan, Gabriel Hollaender Vilela, Lahayda Dreger, Ligia Ferreira de Araujo, Lina Zelenovsky e Luiza Gomyde.
Ilustradores Bhakta Krpa, Bruna Ximenes, Calixto Comporte Amaral, Francisco Maranhão, Gabriel Novaes, Hugo Guedes, Luisa Kon, Luís Antônio Jorge, Luiza Gomyde, Luna López Brandão, Michel Moreno Lara, Rodrigo Chedid, Silvio Soares Macedo, Térsio Greguol e Thiago Rocha Ribeiro. Fotografias Abelardo Morell, Aseen Inam, Clément Duvoux, Daniele Queiroz, Fábio da Motta, Léo Shurmann de Azevedo, Louise Depret, Lud Mônaco, Luis Guilherme Alves Rossi, Nicolas Le Roux, Oreste Bortolli, Renata Castello Braco e Robert Doisneau. Republicações Adoniran Barbosa, Adriano Espínola, Alain de Botton, Aldo Rossi, Gilberto Gil, Julio Cortázar, Léon Krier, Lina Bo Bardi, Marcelino Freire, Ricardo Liniers e Richard Rogers. Autores, entrevistados e transcrições Consuelo Joia, Mia Couto, Nestor Goulart, Joana Mello, Matheus Pichonelli, Vinícius Vilic, Alexandre Delijaicov, Ana C. Buim, Luís Antonio Jorge, Carol e Aline da Ocupação Marconi, Lud Mônaco, Rodrigo Faria G. Iacovini, João Sette Whitaker, Karina de Oliveira Leitão, Ana Paula Galdeano, Gabriel Feltran, Aseen Inam, Diego Beja Inglez de Souza, Raúl Válles, Luiza Erundina, Márcia S. Hirata, Alex Sartori, Tomas Lotufo, Marina Grinover, Diana Patricia González, Jhon Edinson Garcés, Juan David Peláez, Liliana M. Sánchez Mazo, Alberto L. Gutiérrez Tamayo, Francisco Maranhão, Nuria Sánchez Muñoz, Enrique Gutiérrez Sevillano, Sébastien Moriset, Rafael Passarelli, Joana Carla Soares Gonçalves, Antonio Franco, Silvio Soares Macedo, Oreste Bortolli, Luiz Recamán, Pedro Fonseca Jorge, João Filgueiras Lima.
Apoio
editorial
arte que te
Cada ser habitado pela arte é um sujeito-conteúdo construído em função da interface com seu continente. A casa, continente mais íntimo de acolhimento e que abriga a existência humana na maior parte da vida, é parte de nossa sustentação psicológica. O espaço doméstico, em seus pequenos detalhes construídos por gerações mediante embates de personalidade, é responsável por garantir o nosso auto-alinhamento com nossos princípios. A cidade, continente coletivo e extraordinário empreendimento público, é espaço também fundamental da formação do indivíduo: um produto intimamente ligado às formas de combinação das tipologias residenciais. O lar não é, pois, somente o íntimo continente da casa como também a amálgama urbana: as casas como unidades; o casario como seu conjunto; e os equipamentos, infraestrutura e ambiente como fluido coletivo. A ponte sobre um rio não é habitação, mas o complemento através do qual o espaço da habitação se universaliza. Em todo o espaço há lar, ou deveria haver esta possibilidade de acolhimento individual e fomento da dialética coletiva. Assim como a casa expressa o sentimento e o equilíbrio emocional de seus habitantes (é um refúgio da memória formado pelo acúmulo de uma pátina da interação dos homens em seu tempo e espaço), a cidade é a expressão máxima da cultura, dos costumes, dos gostos de um povo, um produto gradual e lentamente mutável. A casa e a cidade, em suas distintas possibilidades de expressão física na sociedade brasileira, são um artefato murado: uma produção social fruto de aspectos conjecturais do âmbito da economia e da política que a cerceiam e estrangulam física e conceitualmente por todos os lados. A discussão da habitação, portanto, envolve a compreensão dos atores e superfícies que pressionam a produção de casas e cidades. A conversa sobre moradia é muito sofisticada tecnicamente, é permeada por termos que não são do cotidiano das pessoas. Se hoje distanciamonos da produção de lares que sejam o abrigo da memória e a partir dos quais haja pontes para a universalização e coletivização, é porque estamos submersos em uma velada ocupação dos espaços de poder por atores que atendem aos interesses da expansão do capitalismo: submersos em um sistema de dependência.
Este Estado dependente, liberal e incapaz de enfrentar o poder do patrimônio está na raiz dos problemas que permeiam a promoção pública de habitação e o perfil da produção de arquitetura como um todo. Em um contexto em que a casa é um ativo financeiro e, portanto, a segurança habitacional está diretamente associada à propriedade privada da habitação, o enfrentamento da emergência habitacional acontece, no Brasil, através do Programa Minha Casa Minha Vida, eficiente política anticíclica. Queiramos ou não, recolocou a temática habitacional em pauta, simultaneamente favorecendo os interesses das grandes empresas da construção civil, que não coincidentemente atendem a pressão dos grande fundos de investimento internacionais. Decorre desta situação um significativo atraso e homogeneização da construção civil, que expressa pobreza de soluções técnico-estruturais, descaso com o potencial dos materiais construtivos, com a paisagem e a demanda climática. Associada a este descolamento entre a atuação do arquiteto e a realidade política econômica do país, vivemos a ausência de um discurso arquitetônico claro que dê forma a algum posicionamento perante ao problemático contexto socioeconômico brasileiro. Os seixos que um dia pontuaram o concreto de Lina Bo Bardi, ainda que nem o projeto destas casas tenham escapado das amarras do arcaico, hoje rolaram e são absolutamente ausentes como expressão de uma postura política crítica na arquitetura. Mesmo assim, os seixos de Lina, bem como seu concreto escorrido nos ateliers do Sesc Fábrica Pompéia ou o relevo humano nas empenas da FAU de Artigas, demonstram formalmente uma crítica à condição social e política da arquitetura no Brasil. Impera, hoje, a colocação do artefato arquitetônico como um artigo de luxo - obra de arte que não se habita – marcada pela busca da excentricidade puramente formal, sem nenhum rebatimento na problemática social. Seguimos, desta forma, produzindo monumentos a serem cultuados, distantes de construir as casas e as cidades como uma amálgama a ser percorrida e desapercebida por seus usuários, mas sentida.
Monsieur Rochard, professor de trompa, 1949 “Gaston Rochard acumula as funções de professor de trompa e zelador da Rue Nollet. Ele dá aulas particulares em seus aposentos, mas com vários alunos vai para a cave de um bar defronte. ‘Não se deve incomodar os moradores. Vou me retirar para o campo quando ficar velho, para tocar tranquilo’, diz père Rochard, que carrega, no entanto, seus 77 anos.”
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Cinema e Arquitetura: o conflito do homem em seu tempo e espaço Matheus Pichonelli
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Disposição dos ambientes internos Lina Bo Bardi
casulo: uma experiência corporal Vinicius Vilic
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Ética no projeto de arquitetura Alexandre Delijaicov
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Wabi Alain de Button
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A má educação das ruas e o desenho da cidade Luis Antônio Jorge
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Casa Tomada Julio Cortázar
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A Copan Ana Carolina Buin
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O avesso da arquitetura moderna: domesticidade e formas de morar Joana Mello
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A residência Aldo Rossi
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Relações entre arquitetura e urbanismo Nestor Goulart Reis Filho
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Espaços Narrados Mia couto
TE TE AR UE A Q UR M Madame Augustin, zeladora na Rue Vilin, 1953 “A zeladora que passa o tempo todo na frente do fogão é uma espécie em extinção. Ninguém mais conhece o perfume de carne cozida pairando na escada dos prédios modestos e que, por três andares e até mais, deixava uma rampa pegajosa e paredes completamente gordurosas.”
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A emergência da habitação Alex Sartori
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Ocupação: habitar político Marcia Hirata + Ocupação Marconi
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Política Habitacional Luiza Erundina
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Autogestión y cooperativismo: vivienda de interés social en Uruguay Raúl Valles
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Refavela Gilberto Gil
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Anotações sobre a história social de alguns territórios do extremo da Zona Leste paulistana Diego Beja Inglez de Souza
Muribeca Marcelino Freire
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Despejo na Favela Adoniran Barbosa
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Informal Urbanisms: an investigative aproach Aseen Inam
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Armênia-Santana Daniele Queiroz
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As periferias de São Paulo: novas dinâmicas e conflitos Ana Paula Galdeano e Gabriel Feltran
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Gilberto Freyre e a herança da escravidão na casa brasileira Karina Leitão
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O Programa Minha Casa Minha Vida João Whitaker Sette Ferreira
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Lar ideal Alain de Button
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Os significados do direito à moradia como porta de entrada para outros direitos Rodrigo Faria Iacovini
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O dia em que eu deixei aquela casa Lud Mônaco
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Imagens e textos retiradas do livro Paris do fot贸grafo franc锚s Robert Doisneau. Editora Cosac Naify.
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Lições de Urbanismo Leon Krier
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O esquema antiurbano da arquitetura brasileira Luiz Recamán
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O modelo familiar nos primórdios da habitação de custos controlados Pedro Jorge
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Um quarto é o começo de uma cidade Richard Rogers
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Cidade brasileira, habitação e espaços livres Silvio Soares Macedo
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Especulação imobiliária e paisagem Luis Guilherme Alves
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Em busca da integração entre o móvel componível e a habitação padronizada Antonio Franco
Percurso pelo moderno em Higienópolis Oreste Bortoli
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O conforto térmico como um processo de adaptação ambiental: repensando os padrões da habitação em São Paulo Joana Carla Gonçalves Qué es un horizonte? Liniers
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Quel avenir pour le matériau terre? Nuria Muñoz, Enrique Gutiérrez e Sébastien Moriset Novas possibilidades para a madeira na produção habitacional Rafael Passarelli
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Arte que te habita Francisco Maranhão
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Vivienda como potencialidad para la construción de ciudad Liliana Maria Sanchez Mazzo
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Projetos para a Favela da Linha Marina Grinover
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*Trecho da palestra concedida pelo escritor moçambicano Mia Couto no evento “Espaços Narrados”, realizado na FAUUSP em outubro e novembro de 2012.
Gostaria de falar aqui como escritor e apenas como escritor. O escritor sempre teve uma espécie de complacência dos outros que o acham merecedor, sabe-se lá por qual razão. Mas eu não poderia fazer isso na minha condição dupla. Enquanto biólogo, mantive uma relação muito próxima com a arquitetura, portanto até tenho a ver com este mundo e, mesmo que seja durante uma visita muito particular que fiz, pensei que fosse bom relatar um bocadinho a experiência que tive. Durante três anos dei aulas na faculdade de arquitetura em Maputo, na capital de Moçambique, junto com José Forjaz, o mais prestigiado arquiteto de Moçambique e Diretor da faculdade de arquitetura de lá. Acho que o Forjaz tem uma mente bastante aberta, e talvez isso explique a ousadia dele ter convidado a mim. Sou um poeta que ama a ignorância e faz cultivo dela. Essa responsabilidade de lecionar uma disciplina inédita, a chamada Análise Ambiental, que se dispunha a fazer uma avaliação daquilo que era o território natural na sua fronteira com o território da cultura. Sou formado na área de ecologia e quando Forjas fez esse convite eu disse: “– Olha, Zé, eu não faço a mínima ideia do que eu vou dizer”, e ele respondeu “– É isso mes-
mo que eu quero. Ótimo!” E então acertamos. Eu fiquei muito tranquilo: o acordo era que eu teria um prazo para entender essa função e me preparar. Eu até poderia me tornar um expert em arquitetura, mesmo sabendo que nunca seria, por isso, um arquiteto, porém, quem sabe no lugar disso, poderia me tornar um anarquiteto, por causa dessa minha tendência pela anarquia. Mais ainda, esse desafio era um desafio apaixonante, era uma coisa nova, e fazia-me regressar à universidade, não na condição de professor, mas nessa condição de estudante, coisa que gostaria de manter sempre na minha vida. Vou relatar brevemente essa viagem, essa interseção entre biologia e arquitetura que me aconteceu por acidente e, depois vou falar um pouquinho daquilo que foram meus passos narrados já na condição de escritor: Quando comecei a dar aulas a este grupo de alunos, eu já havia encontrado uma espécie de propósito. Para mim não bastava que adquirissem conteúdo, mas a possibilidade para eles assumirem uma nova sensibilidade. Era no sentir que eu queria que houvesse diferença. Portanto, a primeira coisa que era preciso nesse diálogo era mostrar que nenhuma competência técnica lhes podia fazer crer que tinham direito de, digamos assim, estar
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autorizados a fazer algo tão íntimo como desenhar uma casa e ao mesmo tempo algo tão público que é desenhar uma cidade. Então, achei que fosse preciso para meus alunos conhecerem, em primeiro lugar, a sua própria historia: a história da cidade, do lugar, do território que sujeito a mudanças e conflitos e, ao mesmo tempo conhecer a historia dessa construção que é próprio corpo, o corpo humano. Uma das coisas que me apaixona na biologia é essa narrativa da vida. Ela conta uma das historias mais belas e fascinantes que poderia existir: a história da vida no nosso planeta. Essa tensão permanente entre a vida e a não vida. Queria eu encorajá-los a fazer essa viagem para o lado pouco visível dessa outra dimensão onde se desenha, onde se desenha a arquitetura do nosso próprio corpo. Existe sempre esse pressuposto de que o meio ambiente começa fora de nós, é exterior, é aquilo que nos rodeia, porém também somos o meio ambiente; nós somos esse espaço e é preciso que entendamos isso. A primeira coisa que eu precisava era fazê-los esquecer. Exatamente por que não queria que eles soubessem, mas sentissem, precisava que eles esquecessem as coisas que acreditavam dar-lhes chão, coisas que garantiam
a ilusão da certeza e, principalmente, queria que esquecessem essa arrogância de que nós seres humanos fomos os primeiros as desenhar e a construir estruturas. Há outros organismos que vêm fazendo isso há milhões de anos, com muito mais eficiência, sem tanto lixo nem tanto custo ecológico. Um dos grandes problemas era o conceito da universidade. A faculdade era entendida como a melhor da Universidade de Maputo, portanto havia muito prestígio. Logo, os alunos precisavam esquecer muitas coisas. Entre elas, a ideia de que nós, humanos, somos compostos por materiais exclusivamente humanos; o que não é verdade. De fato, o corpo humano alberga cem trilhões de bactérias, 10 vezes mais que as células que podem ser consideradas células humanas. Em outras palavras, 9 em cada 10 células do nosso organismo, são aquilo que nós chamamos de micro-organismos. Uma parte destes organismos habita as cavidades, as mucosas, sobre a nossa pele, como há também outros que habitam o interior, dentro das nossas células. Posso dizer até que são parte de nós. Talvez não se possa dar confiança a um biólogo, ele só tem uma maneira de ser entendido: a de espalhar o terror. Aterrorizando toda gente com o fim do mundo, o apo-
calipse ecológico, de outra maneira ninguém o escuta. Mas eu não vou tirar proveito dessa situação. Uma vez que me parece ultrapassar o domínio da biologia esse entendimento sobre o que é a nossa própria “essência”. Eu tentaria abrir um caminho para que pensassem nisso, mas que não haveria um manual de instruções, pois esse manual é muito mais complexo do que imaginamos. Quando eu contava minhas histórias aos meus estudantes, desse namoro genético que acontece dentro da nossa própria carne, crescia uma espécie de onda de horror que percorria a sala “– Bactérias, professor!? Ainda fosse escolher outra coisa, mas baterias!?”. Bactérias tem essa conotação ligada à doença, a algo que é negativo; era necessário consolá-los mostrando que essas bactérias podem ser muito positivas. Era possível ver nas reações de meus alunos uma espécie de desejo de purificação. Não poderíamos ser mais limpos, não há possibilidade de fazer qualquer coisa que nos torne mais humano. O fato é que nós não somos um organismo simples, e sim uma espécie de jardim zoológico ambulante. E a biologia serve como um remédio contra essa arrogância de que somos o topo, de que somos importantes, de que somos o centro. Esses organismos habitam nossos corpos, criando
relações que são tão essenciais pra nós que eles acabam por nós ditar ordens, sendo eles que de fato determinam nossa saúde. São esses seres que habitam dentro de nós que são a grande parte ignorada. Chegando ao ponto de que a biologia casa com a arquitetura, esses micro-organismos não se distribuem de uma maneira aleatória; há ali uma lógica, uma arquitetura delicada que faz com que eles ocupem esse nosso interior e exterior como se fossem comunidades que vão ocupando uma cidade. Numa palavra: este plano arquitetônico que determina o que é o nosso corpo humano não é feito apenas por esse ateliê de matéria humana apenas, há ali outros ateliês, vários micro-ateliês de alguém que tem uma outra dimensão sem que suspeitemos determinar nossa existência. E acho que isso era o princípio daquela desconstrução que eu queria. Foi necessário algumas certezas para que esses alunos se tornassem mais disponíveis para dialogar com outras vozes, com outros moradores do nosso planeta. Portanto, antes de serem alunos de uma faculdade, eu queria que aqueles estudantes fossem alunos da Natureza. Às vezes eu até confessava aos estudantes que era melhor para própria Universidade que,
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em vez de me terem ali sentados naquela cadeira de professor, se sentasse ali uma bactéria e explicasse essas coisas que eu mesmo não saberia como explicar. Também era necessário combater essa crença ingênua de que a ciência e a tecnologia, tal como hoje as concebemos, vão trazer as grandes soluções. Essas repostas mágicas que, digamos assim, fazem terminar tudo aquilo que é o mistério no mundo. Há um exemplo muito recente dessa falsa expectativa criada por este grande poder da tecnologia que é o projeto do genoma humano. Este projeto mobilizou cientistas de todo o mundo e se criou uma ideia: ao decifrar o código genético nós seríamos capazes de dominar doenças, viver mais tempo e viver sem rugas, sem peso, sem os radicais livres que agora são uma espécie de mal da festa. O que de fato aconteceu foi surpreendente: os resultados mostraram que não havia tanta certeza assim. Nós acreditamos como seres de grande complexidade, deveríamos possuir um patrimônio genético superior a qualquer outro organismo - haviam até cientistas que já apontavam pra números, como se nós deveríamos ter mais de 100 000 genes, olhando para aquilo que era a nossa vizinhança – e, quando chegou ao fim
deste sequenciamento verificou-se uma coisa que até eu tenho vergonha de dizer: nós tínhamos por volta de 20 000 a 25 000 genes, enquanto um pequeno verme pode ter até 19 000 e uma galinha, 33 000 genes. A grande lição foi de que precisávamos rever profundamente, não só na biologia, mas na maneira que a ciência quer entender o mundo na sua raiz. A complexidade dos organismos vivos não está só na estrutura, mas na maneira como a estrutura determina e possibilita que hajam relações e conexões, isso é o que nos faz seres humanos e, provavelmente, mais complexos. Então o que um estudante de arquitetura ter a ver com isto tudo? Pode-se sugerir que um arquiteto, de fato, não é apenas alguém que cria formas, que faz desenhos. Um arquiteto é, sobretudo, um construtor de relações; ser arquiteto é tecer redes, de conexões, de vizinhanças; é poder afinar aquilo que cria vínculos entre as pessoas e entre os espaços. Tão grande é esse curso! E fui transitando dessa escala, a mais próxima molecular, para a do pequeno organismo e depois para as paisagens. E, de novo, a premissa era: a vida é a primeira e mais experiente das arquitetas. Suas criações estão lá, estão à nossa volta, mas nós nos es-
quecemos de ver, deixamos de escutar e, por isso, esses alunos precisavam mais que uma simples técnica e, precisavam de uma espécie de um idioma para poderem dialogar, para perceberem o que precisa ser resolvido nessa distância entre o cultural e o natural. Está aqui a arquiteta que desenha formas, que está a pintar cores, que está a experimentar volumes há milhões de anos e que continua a rasgar e jogar fora essa experiência, jogar fora aquilo e vai adotando aquilo que é melhor pra evolução. E essa mestra, essa professora que está presente cotidianamente. E, seria bom que esses alunos tivessem essa possibilidade, tivesse esse acesso a essa universidade, mas também a essa professora. Fazíamos um teste logo na primeira aula: pedia que desenhassem uma espécie de casa de campo, um projeto casa de campo. Meu objetivo não era que eles desenhassem a casa, pois não saberia avaliar isso; meu objetivo era ver a maneira como eles representavam o campo que passava, invariavelmente, pela árvore. Era isso que eu queria: que eles chegassem a essa árvore. Havia ali uma coisa curiosa: quase sem exceção essa árvore não era uma árvore de Moçambique; era uma espécie de pinheiro, uma conífera, estas árvores das florestas temperas, de onde cai
neve – tem que resolver um problema de sua estrutura, tem que ter uma forma cônica, por que a neve pesa sobre a copa e sem isso ela partiria. As nossas não são assim; pude fazer chegar a um diagnóstico e queria que eles próprios também chegassem: eles observassem o que estava mais próximo e não a representação da árvore vinda de longe, vinda de uma deslocação de um olhar, de um modelo de uma paisagem que eles nunca vivenciaram. Não queria também que entendessem como se eu estivesse fazendo uma exaltação da vegetação indígena. Não, não era isto. Queria sim poder mostrar que havia ali uma espécie de uma cegueira que eles próprios não aceitavam, não admitiam. Trata-se sempre de um mesmo assunto, de devolver esta voz, esta visibilidade, esta entidade que construiu e foi encontrando soluções engenhosas para resolver problemas de espaço, da luz, da organização do espaço e fizeram isto criando beleza, harmonia, integração. E eu – não sei como Forjaz teve paciência – aparecia nessas aulas com rãs, animais, flores etc. Talvez parecesse mais um feiticeiro do que qualquer outra coisa, porque eu queria mostrar esses exemplos, e um dos exemplos mais felizes é o que nós chamamos lá de térmite, o que vocês chamam aqui de cupim. Essa
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construção que foi desenvolvida com o engenho que eu acho que todo arquiteto deve desenvolver: a humildade de reconhecer que está ali um colega; o cupim é um colega arquiteto, porque desenhou e solucionou algo que nós temos grandes dificuldades em resolver. Na construção da termiteira, há esse espaço que o cupim desenha para um único fim: manter um fungo que existe dentro da termiteira. E toda essa construção é realizada para servir esse fungo, este inquilino que não pode sobreviver se houver variações maiores que dois graus, enquanto lá fora há variações de 20 graus. Portanto, desenvolveram nessa construção um sistema regulação de temperatura e umidade com uma sofisticação ímpar que vale a pena visitarmos. Saindo deste campo da biologia, posso dizer que este gosto nasceu em mim quando eu fiz esta relação entre a estrutura e a função do biológico no mundo, criando em mim um certo vício. Essa aprendizagem tinha que acontecer sempre em mim. Durante meu exercício da profissão de biólogo, daqueles que trabalham quase sempre no campo, ocorreram episódios me fizeram entender o mundo com outras familiaridades e comecei a tentar entender o mundo, a perceber a árvore como a linguagem que ela fala comigo, e passei a ser mais feliz.
Num desses trabalhos eu estava numa floresta, no centro Moçambique, perto da cidade onde nasci. Eu estava trabalhando neste contexto, quando perguntei a um camponês onde é que nascia um riacho próximo que era afluente do rio Savana – o rio Savana é um rio primário, perene, com abundância de água todo o ano; nós estávamos em uma estação seca e nesse riacho não corria uma gota d’água e o leito estava cheio de areia – o camponês, ao responder onde estava a nascente, explicou de uma maneira muito curiosa, apontando com a mão virada, arredondando o gesto e com a mão entreaberta. O que significa que ele se dirigia ao rio ou a nascente do rio como uma entidade viva, como se apontasse que aquele é um ser vivo. Mas quando ele apontou, apontou na direção oposta do que nós prevíamos e disse: “– Esse rio não nasce lá, nasce aqui”. E nós: “– Então caminha pra onde?” Isto é, ele estava mostrando um caminho oposto do que estávamos seguindo que era da foz pra nascente e agora, da nascente para a foz. E não era um erro dele, porque quando perguntamos a outros, todos repetiam e confirmavam a informação. Não é movimento da água que conta, o que conta é a denominação dos seres. E no caso, os camponeses compreendem a família
como núcleo organizador do mundo. Naquele universo rural a família é a grande nação, é o núcleo que estrutura todo o cosmo em uma geometria completamente diferente da qual estou acostumado. Para eles há relações de parentesco: havia o rio-pai e havia os rios-filhos. E tudo isto confirmou em mim a ideia de que há um mapa, uma espécie de um mapeamento que preexiste na nossa cabeça, e como esse mapa nós vamos desenhando a nossa própria cartografia, sobre uma cartografia original gerada por mãos antigas e invisíveis, e que nós próprios podemos reconhecer e desenhar nossos pontos cardeais pessoais. Eu vou chegar a essa história de como eu fui criando esta ilusão de segurança que nós temos, que nasce desta outra ideia meio falsa da casa e o que nós dá abrigo, abrigo e segurança, como se a casa fosse fechada do mundo. Mas o que nos devia dar segurança é o fato de termos o mundo como a casa. Esse lugar só se cria, só se faz mundo, se houver história. E eu vou contar um bocadinho dessa história, de como este lugar em mim se foi formando. Gostaria também de falar sobre o Adoniran Barbosa, figura tão querida nessa cidade. E acho que ele próprio não poderia imaginar esta vossa canção atravessando oceanos e continentes, chegando a minha casa, loca-
lizada em uma pequena cidade no Oceano índico. A minha casa era uma casa colonial, erguida sobre pilastras, com uma pequena escadaria, que tinha uma varanda que abraçava a casa. E ali naquela casa esta canção do Adoniran Barbosa tornou-se uma espécie de um hino que meus pais escutavam às vezes. E eu nem percebia, mas depois passei a ver ali uma razão dessa ligação afetiva, porque reinava na nossa família um medo que nunca era falado, mas fica explícito. Como por exemplo, em nosso bairro começa a crescer uma pressão, pressão de um outro tipo de construção, de um outro tipo de casa. Tudo por causa de uma migração que os portugueses começaram a acelerar a partir de meados da década de 50. Então, o medo dos meus pais era de que a nossa casa, feita em uma outra época, fosse engolida, devorada por um sentimento de urgência. Daí que houvesse essa partilha de tristezas, numa espécie de mágoa dissipada, uma mágoa de ver demolida a nossa própria condição. Porque esse lugar somos nós próprios, somos nós mesmos, esse tal palacete assobradado é a nossa própria infância. A tristeza de Adoniran Barbosa é a tristeza de quem ficou órfão de seu próprio passado. Eu mesmo ainda tenho algumas pequenas orfandades, porque eu sou de um
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tempo que havia rua, praça, passeio público. E a rua, essa rua de areia que passava em frente a nossa casa, era tão nossa que nós inventávamos ali terreiros, estádios de futebol, universos feitos para não haver nem tamanho nem tempo. Esse meu bairro era muito pequeno, chamava-se Mataquana, mas este bairro foi uma pequena pátria pra mim e, provavelmente a única pátria que até hoje eu guardo. Toda a minha infância foi passada nessa espécie de contrabando entre dois territórios: a casa e a rua, mas as paredes da casa não fechavam o espaço. Eram fronteiras abertas, nós nem dávamos conta do entrar e sair, só o escutar de uma porta atrás de nós, era uma porta da rede que batia levemente, e assim nós sabíamos se tínhamos passado a fronteira. Essa porta nunca conheceu nem chave, nem fechadura. Havia uma espécie de suspiro, desagrado da minha mãe, que marcava essa nossa chegada e essa nossa separação do dentro e do fora. Eu não venho trazer aqui uma visão nostálgica desse passado, mas o que eu constato é: todos nós somos muito aquilo que já somos e é por isso que quase todos nós, ao nos referirmos a nossa casa de infância, dizemos a nossa casa. Quando falo com a minha mulher e com os meus filhos vejo muito
eles dizerem “– Em nossa casa fazíamos assim”. Essa era a casa dos meus pais, seria natural que invocássemos como sendo a casa, aquela que já não é mais nossa, mas ainda sim esse lugar não se dissolveu: ficou imóvel em um espaço atemporal. E é assim que sempre acontece: nosso verdadeiro lugar não é a casa em que moramos, mas a casa que habita dentro de nós. Esta casa primordial, aquela que no pensamento é a casa que todos nós temos. Me lembro de dois passos principalmente, mas não me lembro dos corredores, dos quartos, das salas, esses compartimentos todos eram demasiados funcionais, uma coisa muito construída, pela qual nunca tive intimidade e nem criei sequer alguma história com eles. Já a cozinha e a varanda sim, isso surge em mim como se fossem espaços naturais, eternos, sagrados. Vou representar primeiro a varanda, um lugar onde a casa parecia ser mais de um mundo, ainda mais eu, que vivia numa situação colonial. Havia a tentação da administração colonial de empurrar os negros pra longe e, portanto, era ali naquela varanda esse trocar de mundo entre raças, culturas, línguas, tudo ali desfilava. A varanda era onde a casa e o mundo, a casa e a rua conversavam, onde os estranhos tornavam família e vizinhos. A casa era
uma espécie de Facebook sem internet, com a vantagem de estarmos presentes, frente a frente às presenças reais com rostos, com vozes, com cheiros e nesse tempo as pessoas ainda tinham corpo e casa, uma raiz, uma raiz na terra, onde nós sujávamos as mãos e limpávamos a alma. No fundo, havia ali uma grave desarrumação porque a varanda era já uma espécie de uma rua dentro da casa; entretanto também era um lugar pausa, onde se permitia a preguiça, podíamos não fazer, mas estávamos autorizado. Quem não era muito autorizado era o meu pai, porque sendo poeta – eu me lembro dele passeando com folhas, papel na mão como se estivesse a riscar um dos poemas que ele escrevia ali na varanda –, minha mãe olhava e reclamava que ele deveria estar a fazer coisas mais úteis que essas obrigações. Havia essa separação curiosa do que era obrigação, cumprimento do trabalho, o que era feito dentro. Mas varanda era um lugar de repouso. Era sentado no chão da cozinha que eu ia fazer os deveres da escola, e todas as tarde se repetia essa espécie de ritual: eu brincava na rua, minha mãe me chamava, era então convocado para fazer o serviço escolar obrigatório, por assim dizer, então eu atravessa descalço atrás da casa, por onde havia uma
grande mangueira e depois assim contrariado muito lentamente, eu atravessava o pátio; era ali onde se lavavam as roupas, era ali onde se lavavam as louças, estavam estendidos os lençóis a secar; lembro-me como atravessava esse quintal, como se não pertencesse a nós, mas daquela mangueira, como se aquele espaço fosse feito pra produzir sombras e vizinhanças, porque os vizinhos vinham ao muro e pediam coisas, trocavam sal. Eu, de fato, não tinha uma grande contrariedade, eu saía da rua e ficava brincando, mas quando eu entrava naquele espaço do interior da cozinha acontecia uma espécie de encantamento que era tão intenso como o brincar na rua. Lembro-me que havia uma grande mesa de madeira no centro da cozinha e ao redor dessa mesa, haviam mulheres que circulavam como que às vezes pisavam nas mãos, tropeçavam nos cadernos e eu olhava aquelas saias longas que ondulavam como se fossem cortinas, como se lá houvesse uma dança, como se houvessem ali divindades que transitavam entra a água, o fogo e a terra. E essas mulheres todas falavam baixinho, eu acho que elas diziam mal das vizinhas; eu não sei o que diziam, o que me importava era como elas diziam, o que diziam em sussurro. Contavam segredos e trocavam mistérios
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deste mundo feminino, esse mundo de troca, de produção da palavra, de troca da palavra, faziam como se eu estivesse em uma igreja, havia ali uma religiosidade de um templo. O que elas faziam ali não era um trabalho, só eu era quem trabalhava. E eu mesmo pensava assim: “– Só eu que estou a trabalhar aqui”. Aquilo que faziam, de fato não era um fazer, era um acontecer. Não era a comida, era uma coisa mais de alquimia que de trabalho. O que acontecia com tudo isso era que essa espaço incorporou-se dentro de mim e hoje acho que foi aí que eu me fiz poeta. A poesia nasceu em mim por causa dessa coreografia, dessas pequenas histórias, desses embalos, murmúrios. Disse que não queria trazer uma visão nostálgica daquilo que a gente está sempre pensando, que “– O meu tempo era mais e melhor”. O que nos falta não é passado, o que nos falta hoje é um tempo presente. Falta haver lugares feitos para sermos felizes, ao mesmo tempo em que nos tornamos produtores de felicidade e não apenas lugares onde a gente chega para dormir e ver televisão. Mas esse outro tempo, este outro presente tem que ser conquistado, tem que ser inventado na contracorrente da história, porque o que está a acontecer é que esta mesma lógica que fez demolir a
saudosa maloca da canção. Essa lógica dessa economia entrou, ela própria, em colapso. Não foi só a casa do Adoniran, mas a própria economia entrou em colapso, mas há uma mesma ganância que continua a devorar o espaço público, num processo que até a gente poderia até chamar de topofagia. Essas políticas urbanísticas que não existem ou foram substituídas por imprevisíveis leis do mercado; hoje o chão da terra suscita um pertence, uma ocupação selvagem que pede arquitetos, sem pedir arquitetura. Não falo desta minha casa, desta minha rua, mas eu falo dos outros espaços, públicos e, o que se passa é o que eu sinto hoje na cidade em que vivo, as cidades em que eu visito, essa impressão que já não vivemos em bairro, já não vivemos em cidades. Resta-nos territórios fragmentados desse espaço em que vivi, separados agora em um celular, um tablet, uma rede. Não que eu veja isso como um retrocesso. Esse processo é curioso e tem outras dinâmicas. Na verdade, existe aqui uma dualidade que não se resolve, essa velocidade de como nós trocamos mensagens choca-se com esta lentidão que foi imposta ao nosso próprio corpo, porque atravessar uma cidade como a de São Paulo, por exemplo, ou a minha própria, implica um tempo, uma em-
preitada de longas horas de filas de trânsito sem fim. Já não há ruas ou rodovias, fazemos isso para o trânsito, construímos isso para o trânsito. E essa situação não vai melhorar porque todo dia 70 milhões de carros invadem a nossa cidade. Há esse risco de que a própria cidade deixará de ter peões, isto parece até a minha tendência a ser biólogo, estar a divulgar o apocalipse. Quem quiser passear na cidade, tem que fazer na condição de consumidor, dentro de um shopping center, ali já não há céu, já não há outro horizonte que não sejam as vitrines das lojas. E a cidade perdeu-se como um sítio que se podia parar, que podia ser uma espécie de varanda da nossa própria vida, a cidade virou um enorme campo de desconcentração. O assunto é bem mais simples no fundo. Eu amo e não só como amor de invocação, a casa e a rua em que eu me tornei mundo e me fiz no mundo. Esses espaços me deram história, me fizeram mais vivo, mais pessoa. E para escrever, regresso a esse tempo, atravesso ainda hoje a rua, a varanda e sento no chão da cozinha pra cumprir os meus deveres poéticos. Gostaria simplesmente que os meus filhos e meus netos usufruíssem dessa mesma felicidade, mas talvez, eles me surpreendam e inventem uma maneira de de-
volver, de algum modo, as palavras para esses espaços que já não se narram, já não são narradores; ficaram emudecidos. Talvez meus netos venham a morar numa casa que morem dentro deles a vida inteira. Eu gostaria muito de ter essa esperança, porque afinal ter casa é isto: ter um lugar de eterno regresso.
Transcrição: Marília Müller Ilustração: Luna López
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Nestor Goulart Reis Filho Professor catedrático da FAU-USP autor da obra “Quadro da arquitetura no Brasil” e pesquisador do assunto.
A casa e a cidade têm uma origem comum: a aldeia neolítica, surgida quando algumas tribos tornaram-se sedentárias, isto é, passaram a cultivar diversas plantas, para assegurar sua alimentação e, simultaneamente, iniciaram a criação de alguns animais, que se alimentavam das mesmas plantas. Assim foi com o trigo na Mesopotâmia, com o arroz na Índia e na China, com o milho no México, até os Andes. Antes era o nomadismo, a aldeia de pequeno porte e materiais efêmeros, ela mesma de curta duração, característica de uma economia coletora. De algumas das aldeias neolíticas nasceram as cidades. Então, já eram os tempos de formações sociais mais complexas, com divisão e concentração do poder e divisão técnica e social do trabalho. Era portanto o início da desigualdade social, marca registrada da sociedades urbanizadas, até nossos dias. A partir do Neolítico, portanto, as aldeias foram formadas por grupos de casas. Por sua vez, estas eram as partes constitutivas dos conjuntos: as aldeias e depois as cidades. Nas aldeias, em princípio, as casas eram todas semelhantes. Em alguns lugares eram de plantas circulares mas, na maioria, eram de plantas retangulares, o que facilitava sua agregação para a formação de vielas e ruas. Segundo arqueólogos, antes da formação de cidades, surgiram na mesopotâmia algumas aldeias, cercadas por motivo de defesa. Nestas, decorreram cerca de cinco séculos, antes que se estabelecesse um sistema de ruas como as que conhecemos, ainda que de início apresentassem um desenho semelhante a um labirinto. O que importa destacar é a completa integração entre as casas e as aldeias, depois vilas, depois cidades. Nas cidades ampliavam-se os programas, diversificavam-se as construções (fortalezas, silos, portas, templos, palácios) e diversificavam-se as casas, caracterizando a desigualdade social. Há seis milênios, inovam-se as técnicas, transformam-se os espaços urbanos e sua aparência. Mas permanecem os mesmos problemas sociais. Por milênios, as relações entre as casas e as cidades permaneceram as mesmas. Essa relação estreita pode ser melhor compreendida quando utilizamos o conceito de tecido urbano. O tecido, como os panos, é uma forma
de trama. No caso das cidades, o tecido organiza as relações entre o privado e o público, entre o coletivo e o individual. A expressão em inglês urban fabric indica com clareza que esse é o modo básico de produção dos espaços urbanos. Ao longo dos séculos e dos milênios, em quase todos os exemplos, as casas eram vizinhas umas das outras, quase todas mantendo uma forma semelhante de inserção no espaço urbano, ainda que com diferenças, às vezes gritantes em suas formas, explicitando as desigualdades sociais. Nas cidades da antiguidade, desde sua origem, pode-se observar a tendência de organizar a arquitetura apenas com espaços voltados para pátios internos. Essa vinculação tinha origem na dependência das formas de iluminação. Mesmo os espaços públicos, como palácios e mercados, tendiam a ser organizados como espaços internos ao lote, sem aberturas para as ruas, que não fossem as portas de entrada. Essa tendência foi sensivelmente atenuada em algumas cidades gregas especialmente projetadas, sobre as quais temos algum conhecimento. Um exemplo interessante de edificações com janelas voltadas para a rua é o de edifícios de apartamentos existentes em Roma. Alguns ainda existem, como ruínas, junto a Óstia, o porto marítimo de Roma. A partir da Idade Média, as aberturas para o exterior se tornaram uma constante na arquitetura europeia, muito provavelmente devido às condições do clima, sempre mais frio. O sistema de construção do tecido urbano era sempre muito semelhante, com casas construídas uma ao lado das outras, com aberturas para as fachadas exteriores e para os interiores, sempre com alguns compartimentos sem iluminação, na parte central. Foi esse o modelo de arquitetura urbana herdado pelo Brasil, correspondendo aos padrões portugueses.
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A partir do renascimento, os modelos europeus passaram por mudanças significativas. Com o crescimento das classes médias, com algum poder aquisitivo, as cidades passaram a assistir à construção de séries de edificações que se integravam em conjuntos, como uma solução arquitetônica especial. Eram os chamados conjuntos urbanos ou urbanísticos, comentados em um interessante artigo de Joseph Hudnut, traduzido e publicado por Roberto Segre, quando ainda estudante de arquitetura, em Buenos Aires, em uma série denominada Nueva Vision. O mais antigo conjunto arquitetônico talvez tenha sido o da “Galleria degli Uffizi”, de Florença, de 1560. Séries de casas com aparências semelhantes existiam em muitas praças na Itália, como em Siena. Entretanto, no caso da “Galleria degli Uffizi”, não se tratava de um padrão urbanístico geral, submetendo unidades semelhantes, construídas por proprietários diferentes, em épocas diferentes. Tratava-se de um conjunto projetado e construído como tal, no caso para escritórios. Marcando, também nesse sentido, uma diferenciação de uso e de padrões arquitetônicos em relação às tradições anteriores. Na França e na Inglaterra, os conjuntos mais antigos foram provavelmente os da Place Dauphine, ligada à Pont Neuf em Paris, cujo projeto é de 1614 e Convent Garden, em Londres, de 1630. No Brasil, há indicações da existência de algumas tentativas de construção de séries semelhantes, ainda no século XVII. Entretanto, o padrão mais importante foi o que se estabeleceu em meados do século XVIII, visando disciplinar a aparência de muitas cidades, como Belém do Pará, Mariana (MG), entre as de maior porte, e São Luís do Paratinga (SP), Icó e Aracati (CE), entre as menores. O exemplo mais antigo e mais importante talvez tenha sido o da cidade de São Luís do Maranhão, instalada em 1615, segundo se supõe, seguindo a um projeto de Francisco Frias da Mesquita, que deixou no local duas casas para servirem de modelo a todas as outras que seriam construídas depois. É possível que os modelos iniciais se referissem a casas térreas mas o que vemos hoje é um conjunto de sobrados, na parte mais antiga da cidade, obedecendo a padrões de regularidade que correspondem exatamente a esses parâmetros de articulação entre arquitetura e urbanismo.
Ilustração Luisa Kon
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É importante observar que essas edificações serviam para o comércio e para residências dos setores sociais de renda média. As casas da nobreza e dos homens de excepcional riqueza, na Itália como em outros países, eram construídas com destaque especial na paisagem urbana, em frente a praças ou outros locais de grande visibilidade, reforçando sua monumentalidade. Assim, devemos reconhecer que, em contraste com os palácios, os conjuntos urbanísticos estabelecidos naqueles séculos já correspondiam ao uso de um conceito igualitário, que ganharia força após a Revolução Industrial, com destaque para a Arquitetura Moderna, no século XX. Desta, o que podemos observar de mais interessante no Brasil é o conjunto das super-quadras em Brasília, a parte de maior sucesso do plano de Lúcio Costa, oferecendo condições excepcionais para habitação. Mas esse não foi o principal objetivo dos líderes da Arquitetura Moderna. O ponto de principal interesse era o de construção de edificações para alojamento das massas trabalhadoras, que no Brasil tiveram resultados bem limitados. Os exemplos mais interessantes foram e continuam sendo os dos países europeus, sob liderança de partidos trabalhistas e social-democráticos, onde foi possível alcançar uma significativa melhoria de nível de renda para os trabalhadores e, simultaneamente, criar novas condições de habitação para as massas, como partes de grandes planos urbanísticos. Algumas das etapas desses processos, correspondentes aos planos desenvolvidos a partir de 1945, foram abordadas por nós em um livro denominado Urbanização e Teoria, que talvez seja reeditado pela FAU.
Ilustração Calixto Comporte
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A cidade sempre foi amplamente caracterizada pela residência. Pode-se dizer que não existem ou não existiram cidades em que não estivesse presente o aspecto residencial: onde esse aspecto tinha uma função totalmente subalterna na constituição de um fato urbano (o castelo, o acampamento militar), chegou-se bem depressa a uma modificação em vantagem da residência. Não se pode afirmar, nem mediante uma análise histórica, nem mediante uma descrição da situação atual, que a residência é uma coisa amorfa, pouco mais que uma zona cuja conversão seja fácil e imediata. A forma com que se realizam os tipos de edificações residenciais, o aspecto tipológico que os caracteriza, está intimamente ligado à forma urbana. Por outro lado, a residência, que representa o modo concreto de viver de um povo, a manifestação pontual de uma cultura, modifica-se muito lentamente. Viollet-le-Duc, em seu grande afresco da arquitetura francesa contido no dicionário em que cada juízo é apoiado na análise dos fatos concretos, escreve: “Na arte da arquitetura, a casa é certamente o que melhor caracteriza os costumes, os gostos e os usos de um povo; sua ordem, assim como sua distribuição, só se modifica em tempos muito longos”. ROSSI, Aldo, A arquitetura da Cidade, Martins Fontes, São Paulo, 2ed. 2001.
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Muito já se falou sobre o sucesso da arquitetura moderna brasileira, aquela que sintetizada no Rio de Janeiro com o Ministério da Educação e Saúde Pública (1936-1945), teria alcançado hegemonia e prestígio com a construção de Brasília (1956-1960). Se a sua consagração internacional já encontrou explicações consistentes, assim como a interpretação de suas características e a compreensão de seu domínio no campo disciplinar (MARTINS, 1987; 1993; 2010; LIERNUR, 2002; TINEM, 2002; GORELIK, 2005), o mesmo não pode ser dito em relação ao fascínio por ela exercido no âmbito das encomendas privadas. Cabe ainda pensar como e porque num espaço tão curto de tempo, entre os anos de 1940 e 1960, a arquitetura moderna alcançou a aceitação do público leigo, produzindo não apenas obras de exceção, mas edifícios habitacionais e residências unifamiliares que marcaram a paisagem de muitas cidades brasileiras onde é possível encontrar “inúmeras casa à la Niemeyer [com] pilotis em V, coberturas em tesoura invertida, elevação do primeiro piso para permitir uma rampa em curva, um indefectível jardim à la Burle Marx” (MARTINS, 2010: 160), entre outras soluções formais e espaciais recorrentes. Minha hipótese é a de que houve naquele momento uma coincidência entre as proposições da arquitetura moderna, a afirmação de novos ideais de domesticidade, sociabilidade e feminilidade que ajudam a explicar essa aceitação para além da conjuntura política e da constituição do campo arquitetônico.
Por isso talvez seja importante olhar o avesso da arquitetura moderna, enfocando não apenas os discursos dos arquitetos, historiadores e críticos da arquitetura, mas também as falas, as atitudes e os ideais de domesticidade daqueles que encomendavam e utilizavam as obras modernas naqueles anos frente à família; às necessidades das crianças, dos homens e das mulheres; aos cuidados com o corpo e a saúde; às exigências de limpeza e higiene; à melhor forma de dividir o tempo entre trabalho e descanso; às maneiras apropriadas de preparar a comida e de cuidar das roupas; à configuração e decoração do espaço da casa e às definições dos papéis a serem desempenhados por ela na família e na cidade (HEYNEN apud SANTOS, 2011: 260). Muitas vezes são essas ideias, essas atitudes, que nos explicam porque determinadas propostas arquitetônicas foram ou não aceitas em determinado tempo e espaço (WRIGHT, 1981; 1987). Trata-se, portanto, de pensar a história da arquitetura não apenas a partir dos edifícios e seus autores, mas de propor uma história da arquitetura que considere “os processos que sustentam o surgimento de determinadas tipologias de artefatos, bem como a interferência destes mesmos processos nos significados que tais tipologias adquirem nas sociedades” (SANTOS, 2010: 27), caminhando num equilíbrio tênue entre a autonomia disciplinar e as trocas mútuas entre cultura e sociedade, tal como preconizam os historiadores culturais (BAXANDALL, 1991; BURKE, 2005; CAR-
DOSO & VAINFAS, 1997; CHARTIER, 1990; SCHORSKE, 1988). Várias fontes poderiam servir a esse propósito, desde as revistas femininas até as fotonovelas e filmes, passando por revistas de decoração, propagandas, manuais de dona de casa ou de etiqueta, álbuns de famílias e entrevistas com os moradores, mas aqui enfoco as colunas femininas “Entre mulheres” (1952), “Feira de utilidades” (1959-1961) e “Só para mulheres” (1960-1961) assinadas por Clarice Lispector nos jornais cariocas Comício, Correio da Manhã e Diário da Noite com os pseudônimos Tereza Quadros e Helen Palmer nos dois primeiros jornais e como ghost writer da badalada modelo e atriz Ilka Soares no último deles. Os temas, os formatos e o tom de aconselhamento das colunas femininas de Clarice as aproximam do que se definiu como “mídia de estilo de vida”, uma espécie de guia autorizado que orientava as leitoras em suas práticas cotidianas. Ao mesmo tempo em que divulgavam certos padrões sociais, culturais e estéticos que contribuíam para a construção de identidades, essas colunas falam muito sobre a organização e as imagens da sociedade em que estava inserida (SANTOS, 2010). Suas colunas funcionam, portanto, como uma espécie de oráculo, reeditando o papel educativo da imprensa destinada ao público feminino (JINZENJI, 2010). Nelas, as mulheres poderiam encontrar respostas a todas as suas dúvidas, além de conselhos práticos e certo acolhimento. Não é por acaso que sua lin-
“ (...) houve naquele momento uma coincidência entre as proposições da arquitetura moderna, a afirmação de novos ideais de domesticidade, sociabilidade e feminilidade que ajudam a explicar essa aceitação para além da conjuntura política e da constituição do campo arquitetônico.”
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guagem é coloquial, didática, emulando um diálogo com as leitoras, reforçado pelo uso da primeira pessoa, pela menção a vivências semelhantes e pela presença da seção cartas à leitora. Esse tom de intimidade, porém, não desfaz a hierarquia entre a leitora e a autora, garantindo a função oracular original que é enfatizada pelo uso do imperativo, por meio de referências a escritores consagrados, médicos, atrizes e outras vozes de autoridade. As dúvidas que afligem as leitoras giram em torno das questões domésticas. Afinal a mulher dos anos 1950 e 1960 com quem Clarice conversa é a mulher de classe média, que lê jornal, que vive num lar burguês cujo marido é provavelmente um profissional liberal, um funcionário graduado ou um dono de empresa; é ainda a mulher abnegada, que se dedica exclusivamente à família aos seus muitos deveres como dona de casa: ser uma boa financeira doméstica, uma artista de bom gosto, uma técnica de limpeza, uma costureira e lavadeira de
primor, uma excelente cozinheira, uma agente compradora, uma higienista responsável, uma enfermeira dedicada, uma médica dietética, uma educadora, uma administradora, uma boa conselheira, mulher, amante e companheira, além de ser sempre elegante, simpática e bonita. Se aqui e ali é possível flagrar o incômodo da escritora com esse padrão, seja na adoção de pseudônimos, seja no tom irônico, ou na defesa do trabalho como uma atividade também pertinente à mulher, na crítica indireta aos homens em sua pouco ou nenhuma disposição em relação aos afazeres domésticos, seja ainda no tom surreal de algumas receitas ou conselhos práticos, o fato é que seus textos, em função do caráter e do público para o qual se destinavam ecoam o status quo. A estrutura das três colunas, publicadas entre 1952 e 1961, é bastante semelhante . Todas são organizadas em sessões temáticas sobre receitas de culinária, dicas de moda, conselhos de saúde e beleza e conversa com
a leitora que articulam texto e imagens. Poucas são as menções diretas à organização geral da casa e à sua concepção espacial, ainda que elas aumentem sensivelmente na coluna “Só para mulheres”. Seus comentários se restringem ao mobiliário, à decoração, à manutenção, à limpeza e à disposição de espaços específicos, mas aqui e ali é possível flagrar o que interessa discutir: o encontro entre as proposições da arquitetura modernas e os ideais de domesticidade então vigentes. Predominam nos textos selecionados, a preocupação com a limpeza, a praticidade e a economia de espaço, ensejada pelo ritmo de vida acelerado, pelo fato de algumas mulheres (mesmo que poucas) já trabalharem, estarem envolvidas com outras atividades e reivindi-
carem o uso do tempo da forma como desejassem. Por fim, pelo fato de que as residências, sobretudo os apartamentos, tinham tido uma diminuição de área significativa. Com relação às duas primeiras preocupações, aparecem elogios a materiais caros aos arquitetos modernos como o concreto, a fórmica e o plástico, que são considerados pelas donas de casa práticos e fáceis de limpar, basta ter à mão “sabão ou detergente, depois uma esponja com água limpa e por último um pano seco” (LISPECTOR, 20/05/1960: 5). Mas questão mais interessante para discutir aqui é o tema recorrente da necessidade de um melhor aproveitamento do espaço. Em fevereiro de 1960, Helen Palmer aconselhava às suas leitoras na coluna “Feira de utilidades”: Em aposentos onde há pouca luz, o
Teto e as paredes devem ser de cor clara. Os forros dos móveis, nos apartamentos onde há pouco espaço, devem ser de preferência numa tonalidade única, ou, se estampados, com motivos discretos. Se a sua sala não tem muita altura, use na decoração listas verticais, combinando as cores (LISPECTOR, 26/02/1960: 5.
Alguns meses depois, ela volta ao tema afirmando:
As casas pequenas, sem uma sala de estar suficientemente ampla, podem ser aumentadas colocando-se um toldo na entrada lateral, com um ou dois biombos de esteira para impedir que o local seja devassado da rua e para dar-lhe um ambiente de maior intimidade. Para mobiliá-la, escolha de preferência peças leves, de vime, bambu ou ferro, que possam à noite, ser recolhidas com facilidade (LISPECTOR, 22/06/1960: 5).
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A preocupação permanece nas linhas da coluna “Só para mulheres”, que traz muitas dicas sobre mobiliários que atendiam a várias funções, poupavam e organizavam o espaço como o biombo ou eletrodomésticos que permitiam cozinhar em qualquer lugar, como o “grill-span”, solução ideal para
quem morava em apartamentos tão pequenos que não tinham nem sequer cozinha. As considerações sobre a necessidade de integração espacial, a funcionalidade do mobiliário e a racionalidade dos ambientes domésticos aparece explicitamente em pelo menos três textos:
Sem lugar no chão
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Seu apartamento é pequeno – o que significa que você tem pouco chão. O que significa: ter mais coisas que espaço. O que equivale a não ter onde guardar as coisas. Que fazer? O que fazem as cidades que crescem: constroem-se para cima, no ar, em edifícios. Você ainda não explorou o ‘ar’ de sua casa. A lei é simples: o que não pode pousar, pendura-se (LISPECTOR, 20/12/1960: 17). O móvel-quadro
Os móveis pendurados na parede enfeitam, além de economizar espaço. Você pode compra-los peça por peça, e combiná-los à vontade, escolhendo altura e largura: cobrir com eles toda uma parede, ou espaço estreito entre duas portas; as peças fazem jogo de biblioteca, porta-discos, bar, ‘buffet’ de sala de jantar. As dimensões e os estilos podem ser variados; e o material também – metal laqueado de preto, madeira clara, vidro, ferro e ‘acajou’, etc. Você terá muito prazer no jogo de construção e combinação: estará criando algo tão moderno e funcional como um automóvel 1961 ou um rádio ‘transmissor’ (LISPECTOR, 20/12/1960: 17). Para economia de espaço
Os móveis ‘Standard’ são particularmente funcionais: têm em vista o problema de espaço nos apartamentos modernos, sem prejuízo do conforto. Por exemplo, o ‘Armário Copacabana’ combina-se com uma escrivaninha. A ‘Cama Unitá’ é diferente das outras, e o ‘Combinado Standard’ tem mesa elástica, escamoteável. As peças são isoladas ou ajustáveis entre si, confeccionadas em peroba, cerejeira, pau-marfim, e em cores variadas (LISPECTOR, 28/01/1961: 13).
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São claras também as aproximações com as máquinas e os seus ideais de funcionalidade, eficiência e modernidade, ideais vinculados à racionalidade industrial seriada de matriz taylorista. Sem dúvida, é nesse contexto que o ideal de eficiência passa a reger também do ponto de vista da clientela o funcionamento da casa (WRIGHT, 1983: 156). Um contexto de metropolização intensa em que as famílias, especialmente as de classe média, tinham menos empregados; as mulheres começam a sair de casa e se alteram hábitos de consumo, formas de morar e de estar na cidade. Como procurei mostrar em minha
tese de doutorado, é nesse momento que as cidades se constituem como espaço não só de trabalho, mas também de lazer, de serviços e de consumo, com o incremento dos lugares de encontro e de sociabilidade fora do espaço residencial, em cinemas, teatros, museus, livrarias, bibliotecas, restaurantes, confeitarias, cafés, bares e casas noturnas (SILVA, 2012). Essas mudanças são acompanhadas pela afirmação de um modo de vida mais despojado, menos hierarquizado, próximos do ideal do american way of life, manifesto não apenas na casa, mas também no mobiliário e até mesmo no vestuário. Assim, da mesma forma que
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“vai desaparecendo, para homens e mulheres, a distinção rígida entre a roupa de ficar em casa e o traje de sair, de sair para a cidade, para visitar fulano ou sicrano, de ir à missa todos os domingos, de ir às festas” e que o vestuário vai se simplificando, facilitando o dia a dia, colocando em desuso “o suspensório, a abotoadura, a barbatana da camisa social, o pregador de gravata, o lenço de pano, a cinta-liga, a anágua e a combinação”, na casa, a sala de jantar se agrega a de estar, outros ambientes deixando de serem projetados, como os salões de visita, as salas de fumar, de jogos ou de brinquedos e o gabinete ou escritório do chefe da casa, agora alojado em alguns dos milhares de prédios comerciais que se construíam nas grandes cidades (MELLO & NOVAIS, 1998: 559-578;
GAMA, 2004: 138-145). Nesse processo o apartamento se constitui como a alternativa mais comum de moradia entre as classes médias. Em muitos deles as áreas são reduzidas com a supressão inclusive das áreas de serviço como ocorre nos apartamentos quitinetes, uma tipologia que nasce não por acaso nesse período (SILVA, 2013). São, então, no bojo desse processo que os arquitetos modernos finalmente encontram os seus clientes e que estes veem nas proposições da arquitetura moderna as soluções para os seus problemas. Mas não só isso, como as crônicas de Clarice podem nos ensinar, esses clientes encontravam naquela arquitetura imagens de uma identidade moderna com as quais eles parecem querer se identificar.
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997. CHARTIER, 1990. A história cultural : entre práticas e representações. Lisboa : DIFEL, 1990. GAMA, Lúcia Helena. Novos centros e intensas movimentações democráticas. In: CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena; SACCHETTA, Vladimir, São Paulo, metrópole em trânsito: percursos urbanos e culturais. São Paulo: Editora Senac, 2004, p. 138-45. GORELIK, Adrián. Das vanguardas à Brasília. Cultura urbana e arquitetura na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. HEYNEN, Hilde. Modernity and Domesticity: tensions and contradictions. In: HEYNEN, Hilde; BAYDAR, Gülsüm (Eds.). Negotiating Domesticity: spatial productions of gender in modern architecture. UK, Abingdon: Routledge, 2005, p. 1-29. JINZENJI, Mônica Yumi. Cultura impressa e educação da mulher no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
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Joana Mello é arquiteta e urbanista (1997), mestre em Arquitetura e Urbanismo (2005) pela EESC-USP, doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo (2010) pela FAUUSP, pósdoutoranda IFCH-UNICAMP. É docente da FAUUSP (2013) e da Escola da Cidade (2002). Publicou Ricardo Severo: da arqueologia portuguesa à arquitetura brasileira (Annablume/ FAPESP, 2007) e O arquiteto e a produção da cidade: a experiência de Jacques Pilon, 1930-1960 (Annablume/ FAPESP, 2013). Organizou o seminário Domesticidade, gênero e cultura material (CPC, IFCH, PPGR FAU, 2014).
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lina bo bardi 42
As afinidades das formas velhas como velho modo de vida estão perdidas. Como devem ser os interiores e a mobília da casa para que a adesão entre forma nova e nova vida se manifeste e seja coerente?
O espírito do mundo antigo foi a ACADEMIA; a academia que excluiu os artistas da indústria e da manufatura, isolando-os da comunidade ou criando em volta deles uma vida fictícia (a arte pela arte), distante do mundo real. A falta de conexão vital com a comunidade conduziu inevitavelmente a arte à especulação estética estéril, enquanto a forma expressa pelo desenho restringia-se ao plano pictórico, sem relação alguma com a realidade e a técnica dos materiais e com a economia. Já a segunda metade do século XIX viu o princípio de um protesto contra a influência desvitalizante da academia e descobriu a base de uma união entre os artistas inventivos e o mundo industrial. Mais tarde surgiram as demandas de produtos esteticamente atraentes e viáveis econômica e tecnicamente. Somente os técnicos não podiam satisfazer tais exigências, e os desenhos “artísticos” demonstraram-se absolutamente insuficientes porque eram produzidos por artistas muito distantes do mundo real e despreparados em relação à técnica, impossibilitados de adequar a forma aos processos práticos da produção.
Originalmente publicado como “Sistemazione degli interni”. Domus, Milão, n. 198, jun. 1944, pp. 199-209. As imagens que acompanham o texto e os trechos a elas referentes foram suprimidos nesta republicação.
O método do desenho tradicional se perdeu; a evolução contínua da técnica traz hoje uma rápida transformação do velho modo de vida, afastando completamente a expressão das formas tradicionais. Perdidas as afinidades entre o desenho tradicional das formas e o modo de vida tradicional, surge a necessidade de uma nova aderência das formas ao novo modo de vida. Essa correspondência terá de se manifestar, em primeiro lugar, no ambiente da vida humana: a casa. Como deverão ser os interiores dos apartamentos para que essa aderência entre forma e vida se manifeste e seja coerente? O crescimento contínuo das exigências ligadas a nova vida tem mudado gradualmente o caráter e as finalidades dos cômodos, dando uma aparência completamente nova ao mobiliário e à decoração; fatores importantíssimos contribuem com sua influência para isso: ventilação cruzada, insolação, orientação, disposição das janelas em relação à paisagem. A construção de estrutura independente, com a abolição das paredes portantes, tornou possível uma grande flexibilidade na atividade da decoração, e a lógica construtiva passa a ser aquela da maior liberdade na disposição dos ambientes; abertos, separados por divisórias de material isolante, facilmente adaptáveis. O mobiliário é flexível, enquanto um aspecto de maior solidez caracteriza as instalações permanentes: banheiros, toaletes, cozinhas, lavanderias e serviços em geral. Nem sempre paredes de tijolos e divisórias permanentes formam separações entre os ambientes; muitas vezes a separação é obtida por meio de móveis de maior profundidade, formando paredes. A abolição das divisórias não estritamente necessárias é útil para o máximo rendimento do espaço em relação ao alto custo da construção. A eficiência no rendimento do espaço é desejável para cada tipo de apartamento, do apartamento de luxo ao popular; com base nessas considerações é óbvio que para obter uma eficiência máxima de rendimento dos espaços será bom evitar pequenos recintos e muitas portas, bem como conservar o máximo possível as subdivisões por meio de paredes móveis e cortinas. Além disso, pode-se conseguir economia de espaço com um projeto cuidadoso dos guarda-roupas e armários embutidos e com os utensílios mecânicos destinados aos serviços. As paredes externas independentes da estrutura de sustentação podem se abrir em amplos conjuntos de janelas horizon-
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Alguma intensidade de cor, riqueza ou simplicidade é desejável, que se pode obter também com a correta disposição dos móveis, das cores, tecidos e superfícies. O uso apropriado da luz artificial pode intensificar e reavivar as cores e os tecidos, e identificar os espaços.
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tais ou ser completamente envidraçadas, permitindo, mediante a grande iluminação diurna, maior liberdade das subdivisões internas e a eliminação de cantos escuros. A disposição dos ambientes internos, com a eliminação dos acessórios desnecessários e acomodando harmonicamente os móveis em um arranjo não formal, garantirá, com meios mínimos, o máximo conforto. A finalidade da casa é a de proporcionar uma vida conveniente e confortável, e seria um erro valorizar demais um resultado exclusivamente decorativo. Clareza no desenho das várias partes é o mais importante, seguida por uma rigorosa atenção no uso e na seleção dos materiais. São três os tipo de mobiliário que podem ser considerados: 1. Com móveis já existentes no comércio; 2. Com móveis padronizados ou produzidos em série; 3. Com móveis desenhados especialmente. Embora a padronização dos móveis e das fábricas seja desejado, o objetivo é obter uma razoável variedade. Podemos aprender uma lição dos japoneses, que chegaram a variedade com o uso de esteiras de tamanho igual como base para determinar a forma dos cômodos e para dispor os móveis. O belo artesanato que floresceu em outras épocas foi substituído pela máquina. Ficou provado pela experiência que o desenho imitativo artístico aumentava o custo da produção. A máquina podia revestir os produtos de novas qualidades estéticas. Arquitetos e desenhistas de todos os países desenharam exclusivamente tendo em vista a potencialidade da máquina em relação à estética e á economia. Ambos objetivos, economia e aparência, requerem simplicidade de forma e bom acabamento. Consequentemente está surgindo nas indústrias uma expressão artística da qual o arquiteto pode tirar proveito. Isso quer dizer nova riqueza de materiais: plásticos, metais cromados, ligas inalteráveis, vidro, tecidos. A disposição dos am-
bientes internos pode se beneficiar da nova técnica e dos novos materiais partindo de um princípio de escolha rigorosa. O uso apropriado dos materiais e o efeito de suas cores podem ser de grande ajuda na subdivisão de espaços vinculados. Assim, a escolha do piso é de suma importância na criação de determinada atmosfera e de um efeito estético. O piso amorfo feito para ser coberto parcialmente com tapetes tradicionais, hoje pode ser substituído por um piso de borracha, cortiça, linóleo, laminado, pequenas placas de pedra, pó xadrez etc; novos tipos disponíveis no mercado nos últimos anos; a escolha dependerá da destinação dos ambientes, da sistematização geral dos espaços, dos móveis, da intensidade de cor, simplicidade ou requinte desejados. As paredes, e também os tetos, compreendendo áreas contínuas de um ou mais cômodos, podem ser submetidos ao tratamento acústico mediante o uso de gesso absorvente de sons ou de pedras ou outros materiais isolantes. O acabamento dos tetos e das paredes, além do gesso e das habituais tapeçarias e mais os novos materiais recentemente desenvolvidos pela indústria, deve ser acompanhado por um estudo minucioso da iluminação artificial, obtida por meios diretos e indiretos. As portas e as esquadrias em geral não são mais acessórios pare se decorar com estuque ou outros ornamentos, mas podem ficar interessantes com a aplicação de cor, de acordo com a gama fundamental do ambiente. As janelas são mais importantes, elas contribuem para a criação de uma atmosfera, permitindo, com sua amplidão, a participação do mundo exterior e da natureza no ambiente. As janelas horizontais são as mais adequadas para uma visão panorâmica mais ampla. Portas com batentes ou corrediças separam, onde existem terraços, o interior do exterior. A luz do dia pode ser controlada usando cortinas ou persianas. Estes são os pontos de partida para um critério moderno de disposição dos ambientes interiores e mobiliário. A escolha das ilustrações que acompanham esse texto foi ditada pelo desejo de exibir os resultados obtidos nos últimos anos por arquitetos de vários países. Não se obedeceu a uma sequência estritamente cronológica. Os exemplos apresentados compreendem aproximadamente os últimos quinze anos.
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Matheus Pichonelli Formado em jornalismo e ciencias sociais pela USP, é colunista e editor-assistente do site da Carta Capital.
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A miséria ou fortuna (real ou psicológica) de um personagem é definida pelo enquadramento. Por meio da câmera, sabemos quem tem direito ou não a um lugar ao sol “O que você quer ser quando crescer”, pergunta o garoto aos amigos em um fim de tarde do fim do século XIX. Uma a uma, as respostas provocam risos e reflexões entre as crianças enfileiradas em uma porteira de madeira. Estão em um local indefinido entre o campo e a cidade. “Não sei o que vou ser. Só sei que serei grande”, responde o jovem John Sims, pouco antes de visualizar uma ambulância estacionar em sua casa. Grande ironia aquela. A ambulância era o prenúncio de um destino amargo: seu pai estava morto. O garoto segue em direção à sua casa. Já dentro, sobe lentamente as escadas em direção ao abraço da mãe. A câmera, estática no último degrau, permite um enquadramento amargo: à medida que sobe o lance da escada, a casa diminui e o garoto cresce. Amadurece. Será, a partir de então, o homem da casa. Mas a casa está pequena diante da responsabilidade que se anuncia: ser o sujeito e o objeto de uma história em permanente transformação. Corta a cena e o que se vê é o resultado da mudança geográfica do novo século. As casas e os campos ficaram pequenos.
Do alto, a câmera percorre o futuro: ruas em polvorosa, portos abarrotados e os primeiros arranha-céus, alguns já em estilo art déco, a detonar a vista. Como uma montanha russa, a câmera escala um dos prédios e entrega o destino do menino que prometia ser grande: ele é só mais um funcionário padrão de um escritório gigante composto por centenas de baias com centenas de mesas e centenas de empregados espalhados em linha reta, como em uma esteira de produção, uniformes e milimetricamente bem divididos. Do alto, parece uma composição geométrica sintonizada entre o cubismo e o concretismo, um movimento ainda em gestação. Este futuro, no século das luzes, não guardou lugares ao sol. Pelo contrário: confinou seus personagens ao mofo e à própria miséria. O início arrasador de A Turba, filme de King Vidor lançado em 1928, foi um dos últimos gritos alegóricos do cinema mudo (sim, o diálogo entre as crianças é narrado no começo da obra é narrado pelos letreiros). O tiro sobre o futuro fora disparado por um canhão do passado: um ano antes, o cinema mudo havia sido atingido no peito pelo sucesso do musical O Cantor de Jazz, uma obra menor que encantou multidões ao introduzir as primeiras vozes em uma filmagem. A distância entre as produções, porém, é assombrosa. A introdução de um novo recurso tecnológico, o som, aprisionara o novo cinema até que ele se reinventasse: a câmera não poderia ir longe sob o risco de não captar o som das pronún-
ilustração: Rodrigo Chedid
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cias e movimento dos personagens. Estava confinado aos quartos, aos planos simples. A Turba, por sua vez, era uma espécie de último tiro de liberdade. Sem a obrigação de absorver o som ambiente, a câmera voava, corria para onde bem quisesse e parecia estar a anos-luz das produções que mal sabiam como se adaptar aos novos recursos (os bastidores dessa transposição estão contados em uma pequena obra-de-arte da própria linguagem: Dançando na Chuva, de Stanley Donen). Até se adaptar ao novo recurso, o cinema penaria para repetir o feito de King Vidor, mas um destino parecia selado: a arquitetura humana e a arquitetura cenográfica já não eram elementos dissociados quando levados à tela. Eram, isso sim, partes intrínsecas de uma mesma linguagem, uma mesma forma de composição. Mudavam apenas a distância entre a câmera e o cenário e seus personagens – e, mais à frente, a intensidade das cores. Os exemplos são fartos. Das psicoses dos ambientes claustrofóbicos de Alfred Hitchcock ao futurismo das produções dos anos 80, com seus aliens e replicantes, o cinema se consagrou ao longo do século como a arte que definiu olhares sobre conflitos do homem em seu meio e o seu tempo. Como descrever a megalomania dos personagens de Martin Scorsese se não a partir das pilastras do Casino do filme homônimo, dos ringues de Touro Indomável, dos bankers do submundo reunido em Os Bons Companheiros ou da cúpula da igreja em frente à janela do policial criminoso em Os Infiltrados? Em Ingmar Bergman, as cores vermelhas, incômodas, são o elemento que berra nas paredes a testemunhar abusos, mágoas e a morte em Gritos e Sussurros. Da mesma forma, o branco de uma casa com quintal e varanda prenuncia o tédio e o vazio ao qual está preso o casal desiludido nos EUA do pós-Guerra em Foi Apenas um Sonho, de Sam Mendes. Ao se definir como o retrato de um tempo, nada no cinema surge como aleatório: é uma escolha arquitetada para definir inclusive a própria história. Nem mesmo as cores são impunes. No cinema contemporâneo, é quase impossível dissociar o universo de seus personagens com o espaço em que a câmera está encrustada. A análise passa por quartos, varandas, sala, cozinha e quintal, como o branco das paredes de Amor, filme de Michael Haneke vencedor do Oscar de melhor produção estrangeira em 2013: a morte, tema central, se espalha por todos
os cantos do apartamento em Paris à medida que as cortinas são fechadas para o mundo. Uma cadeira de quatro lugares colada a um encontro de uma parede da cozinha diz mais sobre a solidão a dois do casal de idosos do que qualquer diálogo autoexplicativo: o fim da linha, para eles, está literalmente colocado à mesa. Mas há formas e formas de o recurso ser aplicado. No caso de Shame, de Steve McQueen, a solidão é lançada sobre outra ótica: a ótica da cidade grande, no caso, Nova York. Quanto mais se embrenha pela cidade, mais o personagem de Michael Fassbender se descobre só. As paredes de um apartamento micro, que hesita em dividir com a irmã, e as vidraças dos arranha-céus que parecem impedir a circulação do ar são parte de uma mesma noção: a noção da insuficiência e do desatamento dos vínculos familiares, afetivos, humanos enfim. Não é outro o tema central no cinema dos anos 2000 se não a solidão. Isso não só nas grandes cidades: na casa de campo do recém-lançado Álbum de Família, de John Wells, os planos abertos, de plantações e ar puro, não são suficientes para derrubar a luta empreendida por um casal de idosos para escapar das mudanças de seu tempo. Dentro daquela casa o século 21 não chegou: não há sinais de computador, internet, iPads e iPods; não há sinal sequer de tevê digital ou aparelho de CD. Tudo ali está guardado como no tempo em que os filhos eram crianças e permaneciam em seus domínios. Contra o tempo, viviam trancafiados, com as paredes escuras e as cortinas venezianas pregadas sobre as janelas. A luz, ali, não era bem-vinda, conforme a determinação da matriarca, interpretada por Meryl Streep, dona das chaves daquela casa e das mágoas guardadas em um baú de pequenas tragédias de uma família em ruínas. Esses anti-heróis, símbolo da desorientação humana, tornaram-se personagens recorrentes dos filmes que, mais do que entreter, pretendem legar um recorte estético de um período no qual as instituições tradicionais, como a família, o Estado e a religião, estão em xeque. É quando a câmera penetra as frestas dos espaços diminutos, muitos dos quais, por ironia, se entrelaçam nas metrópoles expandidas de forma desorientada e mal planejada. Na maioria das vezes este conflito é parte do subtexto, mas há ao menos um caso em que a metalinguagem rendeu uma pequena obra-prima, talvez a que melhor define o homem e seu meio na sétima arte. Logo nas cenas iniciais de Medianeas (2011), de Gustavo Taretto, Martin, o personagem de Javier Dro-
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las, discorre sobre os problemas urbanísticos de Buenos Aires antes de se declarar um sujeito fóbico e depressivo. Corre em cena uma exposição fotográfica de contrastes da metrópole: prédios baixos desaparecidos em meio a arranha-céus; construções de costas para o rio, linhas de transmissão espalhadas como nós a tampar a vista, e as medianeras, que não são nem a frente nem o verso dos edifícios, mas uma fachada indefinida, geralmente servida apenas para publicidade. “Estou certo de que as separações e os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, a tensão muscular, a insegurança, a hipocondria, o estresse, o sedentarismo são culpa dos arquitetos e incorporadores de Buenos Aires. Entre estes males, exceto o suicídio, todos me acometem...”, diz o personagem logo no início do filme. A partir dali, ele terá a rotina filmada de perto, em sua caixa de sapato, como ele mesmo define o lugar onde mora: nada é mais íntimo dele do que o computador à beira da cama. A máquina que o conecta ao mundo é o mesmo que o afasta do mundo real e o impede de ver que a felicidade está à sua frente, mais especificamente no apartamento do prédio da frente, onde uma mulher que, entre cafés e cigarros, acorda, dorme, trabalha e luta contra as próprias paredes de um duplex adaptado contra a própria sua solidão. Os olhares só se cruzam quando resolvem arrebentar as paredes do apartamento para deixar a luz entrar. Vem também da Argentina um outro clássico, lançado no mesmo ano, de temática semelhante: O Homem Ao Lado, de Gastón Duprat. Desta vez, o conflito acontece quando Leonardo, um designer consagrado interpretado por Rafael Spreguelburd, faz um estardalhaço por causa de uma obra estridente no apartamento vizinho onde mora um interiorano caricato: rude, machão, pragmático, sem modos e espalhafatoso. Para o designer, representante da elite portenha, a existência ruidosa do vizinho era, em si, o cúmulo, e a tentativa de aproximação deste, uma violência. Mas tudo o que o vizinho queria era uma janela: uma janela que, por ironia ou azar, dava de frente ao apartamento de um designer que não queria ser vigiado e passa o filme todo tentando embargar a obra. Este designer que impedia o vizinho cafona de ter acesso à luz era o mesmo que se gabava diante dos clientes e dos estudantes de sua faculdade por idealizar um conceito próprio de arquitetura e sofisticação. Ele era o responsável por uma casa de paredes de vidro que servia
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como ponto turístico da cidade. Mais que um dom natural, a luz do dia é, na trama, um objeto de distinção. A pobreza, como (não) se vê, é escura e o embate entre os vizinhos, um resumo de um conflito de classes: uma delas conhece, mas monopoliza, a luz do dia, e tudo o que se enquadra nessa ideia, como o conhecimento, a sofisticação, o bem-estar. Outra luta por um lugar ao sol. É como se a mitologia se reconstituísse a partir de uma briga entre vizinhos separados por uma janela: não é outro o esforço de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses e é punido pela ousadia. Não é outro o esforço das classes menos abastadas quando levam no grito o entendimento de que a luz é para todos, seja no cinema, seja na racionalidade dos espaços da convivência humana, que define, afinal, a fortuna ou a miséria de seus personagens. Reais ou fictícios, estes jamais se contentam com as migalhas nem com as gaiolas – e as de concreto nem sempre são só alegorias.
O que é o corpo, senão a nossa casa durante toda a nossa vida? O presente texto não tem a intenção de explicar em palavras o significado do que chamamos de corpo, mas apresentar um experimento sobre ele e consequentemente sobre o espaço e a habitação. Antes de discutir habitação é preciso discutir o corpo. É preciso cuidado para entender o que é realmente o corpo. A anatomia diz que o corpo é um conjunto de partes que formam o animal. Platão utilizava a seguinte comparação: O corpo humano é a carruagem. Eu, o homem que a conduz. O pensamento, as rédeas. Os sentimentos, os cavalos.
Ilustração: Hugo Guedes
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Mas para um antigo filosofo alemão, Hermann Schmitz, existem dois conceitos de corpo que são diferenciados em duas palavras ausentes em outras línguas europeias: Körper - corpo, no sentido físico - e Leib - o corpo vivo do ser humano e dos animais superiores. Comparando com o adjetivo corpóreo, também existem duas palavras: körperlich, aquilo que é percebido pelos sentidos, e leiblich, aquilo que é sentido no corpo e não através dos sentidos, ou seja, sentido na essência. Consideramos como pressuposto que existe algo além do visível no nosso próprio corpo. Antes do corpo, Schmitz diz que existem os sentimentos. Os sentimentos seriam uma espécie de campo energético (atmosferas) que se expandem no espaço e envolvem todo o corpo. O espaço, portanto, tem um papel de potencializar a nossa autoconsciência, tanto física, quanto psicológica. Logo a sua fenomenologia afirma que o espaço é enten-
dido por meio do Leib. Há algo da essência do homem, portanto, no nosso espaço. Se discutimos o espaço e o corpo, também discutimos habitação. A casa do homem contemporâneo pode ser o resultado desses paradigmas, que não foram superados, tampouco resolvidos. Afinal colocamos em discussão se os parâmetros de uma arquitetura boa continuam sendo os mesmos de décadas atrás. O mundo mudou e vivemos na época do imediatismo projetual, onde cada design é melhorado constantemente. O idealismo de um projeto efetivamente perfeito deixou de existir quando os produtos beta começaram a aparecer em nossa rede. Contudo a ideia de projeto, no sentido mais amplo de programação, ainda é recorrente e muito pouco questionada. Há o melhor projeto de habitação? Se criamos um modelo como parâmetro podemos cair na armadilha de criar uma verdade absoluta. E o mundo contemporâneo está cheio de verdades que já se tornaram mentiras. Abrindo um parênteses, não foi coincidência que as manifestações de junho eclodiram em um momento de imposição de valores sem o mínimo de diálogo. A escola de Frankfurt, de Bauman e Adorno, já questionava a liberdade do homem, se ela seria uma benção ou uma maldição, já que ao mesmo tempo que proporciona aos indivíduos a liberdade de agir conforme os seus pensamentos, ela entrega a responsabilidade do homem em assumir suas ações. Para Bauman a sociedade mudou. Anteriormente predominavam um conjunto de valores estáveis, e agora tudo é volátil. As relações humanas, a família, as crenças, a política, o Estado perderam a estabilidade e podem ser questionados. Logo, o nosso lar - tanto o corpo, quanto a habitação - é algo extremamente
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complexo que precisa ser questionado, entretanto não será entendido sem primeiro discutirmos sobre nós mesmos. Nasce assim, a experiência Casulo: uma arte para sermos livres em nós mesmos. A ideia é estimular a livre-expressão corporal dos participantes por conta da suavização das normas sociais vigentes, que serão limitadas à partir do momento em que o participante se vê envolto em uma película que age como barreira entre dois universos o universo sócioespacial externo e o universo sócioespacial corporal. “Invisível” aos olhos dos outros, o participante é convidado a reorientar seu foco em seu próprio corpo, favorecendo a primazia do seu espaço-tempo singular, livre de quaisquer identidades que lhe fora imbuído previamente. O participante é convidado, em primeira instância, a redescobrir seu próprio corpo através do movimento, através da dança essencial que nos impele a tatear a nós mesmos antes de poder deslumbrar o mundo que nos cerca. A presença da dança - aqui referida de modo menos técnico e mais lúdico, de expressão corporal através de movimentos sincronizados ou não de ordem consciente - extrapola seu caráter investigativo e interno para em um segundo momento tornar-se exploratório. Diante de tal liberdade exploratória, a que liberta em possibilidades, ao mesmo tempo em que aprisiona em responsabilidades, o público que usufruir da experiência Casulo se atrela fisicamente e emocionalmente numa espiral de sensações e de prerrogativas de ação e escolhas que impulsionam a maximização da relação entre o corpo e espaço. O projeto da experiência Casulo visa, portanto, gerar uma ruptura com uma so-
ciedade que era acostumada a definir valores sólidos, sem ter a pretensão de encontrar uma verdade totalitária. A solução foi potencializar a livre expressão da experiência do nosso corpo e investigar o nosso espaço e nossa vida em uma arte performática de nós mesmos.
Alex é graduando em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP. Trabalha com a temática da percepção e do espaço sensorial e construído, problematizando intersecções entre Arte e Arquitetura. Idealizador da Organização experimental 5:30. Vinicius Franulovic é graduando em design na FAUUSP. Tem experiência na área gráfica, fotografia, video, web, branding, empreendedorismo e inovação. Coordenador de web do Projeto Colabora, profissional freelancer e idealizador da Organização experimental 5:30. Felipe Massami é bacharel em design pela Universidade de São Paulo. Um dos fundadores do Núcleo de Empreendedorismo da Universidade de São Paulo – NEU – e idealizador do projeto 360°, atuou em ins- tituições como Agência USP de Inovação, GEPIT, StartupLisboa e Redemprendia. Possui experiência em processos de inovação através do design, gestão de marca – branding – empreendedorismo. Atualmente, é pesquisador do Observatório de Inovação e Competitividade da USP e da Agência USP de Inovação e idealizador da Organização experimental 5:30.
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FOTOS: FABIO DA MOTTA
Ana C. Buim
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Estudante de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
As pessoas ainda têm problemas com sexualidade. Não digo isso como uma visão generalizada, é apenas uma suspeita. Mas algumas simplesmente têm. Como moradora do Copan, confesso que é quase de lei para alguns de nós não ter problemas em relação à isso – ou tê-los aos montes. Entre nós há transsexuais, homossexuais, ex-prostitutas, jovens adeptos do “livre-amor”, velhos safados, senhoras castas ou pessoas como eu. “Curiosos”. E, possivelmente, é por isso que ainda exista preconceito conosco. Não faz pouco mais de dois anos que a irmã de uma amiga minha me chamou de “puta” por morar no Copan. Simples assim. Afinal, é o que todas nós, mulheres, somos assim que colocamos nossos pézinhos neste edifício. Mas, honestamente, o que é ser “puta” hoje em dia? O que é ser “puta” só por morar no Copan?
Entre as infinitas possibilidades, há uma bem clara para mim: o prédio realmente dá margem para aproveitar a vida de uma maneira intensa, pois ele por si só é intenso. E não por suas curvas sinuosas, inspiradas pela “mulher brasileira” tanto citada pelo Oscar – apesar de ter minhas dúvidas sobre o caso em questão. Mas tem a ver com a magia que envolve o misto do “underground” dos anos ‘70 de São Paulo e o teor ácido da geração Coca-Cola dos ‘90. Alguns moradores dizem que aqui é um manicômio, mas convenhamos: Foucault estaria completamente errado. Ninguém aqui é oprimido, segregado ou isolado por ter se tornado “indesejável”. Mas entre as dualidades que tanto nos perseguem, será que somos um bloco de mais de 2.000 habitantes segregados em uma total verticalidade de quase 32 andares? Será que somos o “descartável”? Não vale a pena explorar isto. Eu estava falando sobre sexo e sobre as curvas o Copan. Eu sou uma delas, diretamente do bloco b, e sou o que eu mesma defini de “curiosa”. Entre as curiosidades, há também a dos meus porteiros que nas noites em que eu chego acompanhada, ficam imaginando as loucuras que eu posso estar cometendo dentro do meu apartamento. Há estudos que dizem que se uma mulher tem mais de 2 parceiros/ano, ela é promíscua. Eu acho que sou desse grupo também. Mas eu, seduzida, posso negar que o prédio não me chama?
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Há algo mais erótico do que uma vista como a minha? Sensual do que a simples fantasia de transar no brise e, não apenas estar nele, mas observar a rua Normanda logo abaixo, com uma mão envolta do pescoço, um puro sinal de dominação – que me comam vivas as puritanas – que é excitante para “um cacete”? Ou mesmo a ordinária ideia de estarem observando? Entre os inúmeros homens que vieram a tocar a “curiosa” que lhe escreve, não podem negar o quão emocionante foi descobrirem onde eu vivo. E quando saio de roupa de couro, seja calça ou vestido, os porteiros continuam também “curiosos”. O salto alto é para matar, com seu “tecle tecle” nos corredores que levam há 4 saídas exatas. O Copan é cheio desses caminhos que podem ser explorados. Mas também não é uma mulher? O que tem mais “entradas” que uma mulher? As pessoas falam “O” Copan, mas me questiono se não é “A” Copan, afinal, não estamos falando de uma mulher como eu? Ou será um travesti? São muitas as fantasias que podemos dar ao Copan. Mas no final, ele nada mais é que um símbolo de liberdade sexual. Não é?
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Conversa com Alexandre Delijaicov Professor da FAU-USP, coordenador do Grupo de Pesquisa em Projeto de Arquitetura de Infraestruturas Urbanas Fluviais, do Grupo de Pesquisa em Projeto de Arquitetura de Equipamentos P煤blicos e do Laborat贸rio LabProj, do Departamento de Projeto (AUP).
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Coletivo e Individual
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Não existe uma construção coletiva sem as singularidades, sem a sua preservação, quer dizer, cada um de nós tem uma experiência de vida intrasferível. Trazemos na memória uma carga cultural que é, na verdade, a dimensão mais extraordinária da construção coletiva, pois no conjugamos enquanto indivíduo uma carga que em si já advém da existência de outros indivíduos e outros tempos. Portanto, há uma compreensão de que o todo estar na parte e vice-versa. Então, falando agora de arquitetura, do museu imaginário, do estudo da escola pública da arquitetura; nós todos temos que cada vez mais estar dispostos a enriquecer nossa memória imagética, nossa memória das relações humanas. Um arquiteto, seja um artista ou um dos atores da construção coletiva das cidades, sempre tem que se colocar na posição do outro. Para a produção artística, literatura e também para generosidade humana é muito importante o mecanismo de manipulação do pêndulo memória-esquecimento: convocar memória mais também convocar esquecimento, no que se refere a superação de alguns vícios da lembrança individual. Também é importante para o processo criativo, se você lembrar de tudo você não consegue manipular aquilo que algumas pessoas dizem: tudo não passa de tradução e interpretação. Na verdade, de reconstrução, porque tem a ver com essa ideia da inconclusão do processo da construção coletiva. Por outro lado, não se deve esquecer uma dimensão fundamental do alicerce ético: garantir a salubridade, a saúde física e mental de todos os cidadãos e não ter uma visão presunçosa e preconceituosa de achar que todos terão a mesma visão que você. Todas as pessoas tem as mesmas angústias e frustações ligadas à condição humana de finitude. Essa angústia visceral tem que ser sublimada a partir de mecanismos de prazer, da promoção de experiências positivas. A ética na ação pública da habitação implica em não ter o direito de impor ao outro uma forma de habitar. Implica em não promover as cidades e também o habitáculo de uma forma que promova o desastre, o desencontro, a doença, o medo. Não temos o direito, na arquitetura, de acentuar as angústias do ser humano.
Habitat e ambiente No que tange à unidade habitacional, não é possível existir um ambiente sem janelas, por exemplo, nem no país mais frio do planeta. Considerando São Paulo, ou o Brasil, um país de grande extensão territorial, repleto de recursos naturais e humanos, com um subsolo rico que guarda o ouro azul (as reservas de água doce); não podemos aceitar o modelo de ocupação territorial e de habitat que temos. Um país que tem uma população ativa jovem, que trabalharia com alegria pra construir sua habitação, suas cidades, com metro na
porta, com rios que não são esgoto a céu aberto, com creche, escola e padaria a duzentos metros de distância. Como que uma costa de 8 mil km não tem navegação de cabo a rabo? Isso é habitação! Todos os rios, todos os 5600 municípios brasileiros são calhas, e estão sendo tratados como esgotos a céu aberto. Se tivéssemos todos essa dimensão, essas bases éticas da paz, se soubéssemos que é bom conviver com os diferentes, todos juntos faríamos tranquilamente cidades melhores. As cheias dos nossos rios fomos nós que provocamos, nós que invadimos o leito maior do rio. Invadimos o que há de mais vital do nosso habitat, da nossa habitação que são as águas. Enfim, não podemos deixar de lado essa compreensão de que o planeta é um habitat, uma casa; bem como a cidade é uma casa. Portanto, também faz parte da ética no projeto de habitação este entendimento do ambiente e de sua capacidade de suporte. Reconhecer o território é o reconhecimento da primeira arquitetura. A primeira arquitetura na história da humanidade é a construção do endereço, a construção coletiva do endereço. Não é uma construção simples, é uma conquista, uma luta individual e coletiva que assume embates e disputas pelo mesmo lugar na história das civilizações. Por outro lado, não podemos esquecer que a garantia da salubridade e da qualidade da arquitetura das estruturas ambientais-urbanas devemos considerar não só os rios, a paisagem urbana, o exterior e os sistema de praças, parques e jardins; mas também os espaços interiores, os espaços de transição, as varandas e os alpendres, até a bacia da cabine sanitária. Então, para entender que não basta somente a compreensão do território, ou da dimensão coletiva do habitar, ou da técnica do detalhamento, devemos assimilar a tríade ética-técnica-poética, uma alegoria em seção transversal. Não adianta ter nenhuma pretensão poética, tanto como arquiteto-autor-singular quanto como arquiteto da coisa pública. A pretensão poética que é o que dá graça e alegria para as pessoas. Assim como um texto, um filme ou uma escultura, a arquitetura também possui uma dimensão poética clara e importante. Contudo, não se pode agir de maneira inconsequente: essa meta poética não é uma camisa de força, muito pelo contrário, deve ser estimulante para um estado de bem-estar social e individual. É preciso ter também uma estrutura técnica ou estética e, principalmente, uma infraestrutura, um alicerce ético. Na verdade, habitação é você garantir infraestrutura e equipamentos em todo o milímetro quadrado dos territórios das redes de cidades brasileiras. Isso que é habitação. Habitação é você ter 4 padarias a menos de 200 metros de distância. Pra ter 4 padarias a menos de 200 metros de distância significa que tem densidade de-
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mográfica que não é sinônimo de densidade construtiva. Isso é uma coisa importante. O direito à habitação é o direito à cidade, é ter creche, biblioteca pública, transporte público gratuito. Não há nenhum motivo para o transporte público ser pago. Não podemos pensar com o olhar do empreendimento privado a coisa mais extraordinária da humanidade: que é o empreendimento público, coletivo, social, humanista, socialista. A dimensão de fato comum não pode ser tratada como um empreendimento privado. Por outro lado, do ponto de vista ético, todos tem que pagar imposto, são as horas dos dias que o indivíduo se dedica para construir o coletivo, o público.
Projeto e Habitação Universal
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A habitação universal deve ser entendida em duas escalas: primeiro, considerando sua dimensão e função social; segundo, tendo em vista sua essência programática e não formal, ou seja, não significa utilizar uma tipologia estandardizada como carimbo. A habitação universal é ter na arquitetura do programa diretrizes, princípios éticos, técnicos, estéticos e até princípios poéticos para entender o outro e saber que todos mudam seu estado de humor numa segunda feira de manhã quando têm uma janela transparente pela qual se consiga ver a abóboda celeste azul. Isso vale para uma sala de aula com 20 alunos em que você consiga ter um olhar periférico, você veja a abóboda azul celeste sem nuvens. Só assim você consegue estabelecer um diálogo, até inconsciente, de que você está estudando. Isso é entender a sinestesia, a psicologia do espaço. O ser humano está constantemente lapidando espaço e tempo para tentar aplacar sua angústia, desespero e solidão da condição individual de finitude. É um exercício de desaceleração da percepção do tempo fundamentalmente de deleite, de fruição artística e intelectual. Então, o arquiteto precisa perceber que os espaços são percebidos de maneira complexa e devem garantir, promover encontros, convivências, diálogos - inclusive monólogos íntimos. Não tem cabimento fazer ambientes, por exemplo, que não tenham circulação e ventilação, que não tenham espaços de transição, de convite, recepção e acolhimento. Inclusive aquele ambiente tratado com maior insignificância, não o é. Quantas ações são feitas no banheiro? Não tem cabimento o arquiteto se resignar a fazer uma habitação de 40 m². Habitação universal, na verdade, é aquela em que você tem o direito de, por exemplo, ter móveis móveis. Tem o direito de, se quiser, ter uma cozinha fechada onde pode fazer fritura. A arquitetura não tem o direito de promover o conflito entre as pessoas, nem entre pessoas e espaço. O arquiteto tem sempre uma retórica, escreve bem e pode agir de maneira a enganar a população, que por isso deve estar muito bem consolidada no ponto de vista da organização social pra não cair em discurso pseudo-intelectual. Decerto nenhuma pes-
Ilustração: Calixto Comporte. Cena de “Kitchen Stories”
soa gostaria de morar numa lata de sardinha e engolir que a cozinha é americana e integrada. Existe um filme escandinavo chamado “Histórias de Cozinha”, que se passa em uma aldeia pequena na Suécia, nos anos 60. No meio da neve existem umas casas distantes e uma dupla de pesquisadores da IKEA - aquela loja sueca de móveis - vão fazer um levantamento comportamental. Eles levam uma escada e passam a acompanhar o dia a dia de um senhor. O senhor é um homem solitário, viúvo, não lembro direito o filme, mas ele não usa a cozinha como os pesquisadores imaginavam. Essa história ilustra um pouco que é preciso garantir um casco universal, uma metragem cúbica de ar mínima, evitando espaços insalubres. O arquiteto pode projetar qualquer coisa diferente, desde que garanta espaço, garanta um casco cujo interior possa ter arranjos e combinações para as pessoas morarem do jeito que quiserem. O que devemos evitar é que a ideia de diversidade seja argumento para justificar aberrações arquitetônicas e sociais. É preciso pensar, ser menos egoísta, entender psicologia. A arquitetura do programa deve ser coletiva, mas não tira a singularidade dos autores. Cada um deve ter o direito e o espaço para falar como pretende que seja sua casa, desde que isso aconteça no âmbito coletivo. Não é justo, tampouco ético, um arquiteto iluminado projetar para os outros o que ele acredita individualmente e acha que os outros tem que engolir.
Família e propriedade 63
Todos esses assuntos nos levam a uma discussão crucial, de reforma urbana e reforma agrária. É discutir habitação realmente no sentido visceralmente ético, do ponto de vista humanista, social, público e coletivo. Operar esse câncer que é a propriedade privada do solo urbano, que causa todos os desequilíbrios. Todo mundo é cooptado, seduzido, submetido às regras da jogatina a partir do momento em que o solo vira uma mercadoria. Aliás tem uma coisa sofisticada, apesar de ser dramática, que é a “decisão” dos moradores da rua. Todos nós podemos ser moradores da rua. Não quero que se tenha nenhum equívoco com relação a isso, mas eu acho que morador das cidades é aquele que reconhece os equipamentos. No dia em que a gente se livrar, nos livrarmos da âncora da casa própria, teremos alcançado outro patamar de arquitetura e sociedade. Você passaria o cartão e entraria, assim como você passa o cartão e anda de bicicleta, fazendo uma propaganda indireta do Itaú. Agora imagina se o capital achar um jeito de, com o mesmo cartão do bilhete único,
você entrar em qualquer lugar, onde tem umas redes espalhadas. Não tem casa mais, explodiu a casa própria. É uma ideia que tem bastante a ver com o projeto dos familistérios, ou das casas dos construtivistas russos. A questão esbarra em explodir a família, envolve as relações de afetividade que movem todas as relações humanas, no âmbito familiar e no âmbito das amizades. Evidentemente, você sempre tem essa afetividade com a família e também tem as relações que você constrói ao longo da sua vida. E, geralmente no ensino superior você escolhe o que você quiser saber, em determinado campo do conhecimento. Então a chance de você estabelecer vínculos afetivos, às vezes, mais estreitos que vínculos familiares, por afinidade intelectual é enorme. Nas atuais circunstâncias, não estamos unidos por laços de afetividade e sim pelas misérias e mazelas da falta de direito à cidade. Estamos unidos pela condição de aflição. Nós estamos aflitos num acampamento improvisado há 460 anos. O apego tem que pelas relações humanas, não pelo capital.
Casa urbana e uso misto
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Sobre o uso misto, para não virar um problema, devemos lembrar que pressupõe um cuidado técnico, ético e poético pra ser executado, reintroduzido. Nós achamos que foi retirado por intransigência, mas é preciso entender todas as consequências e implicações técnicas do uso misto. Nem sempre o uso comercial será uma loja de coisas naturais ou perfumes. Pode, e há grandes chances, de este uso ser um açougue que produz lixo e mau cheiro. Além disso, é preciso resgatar que o uso misto é a casa urbana, que existe a 6 mil anos, no mínimo. A casa urbana se resume na loja embaixo e habitação em cima. Este arranjo está em todo o planeta. É um programa de habitação universal, é um gênesis. Se acontecer um cataclismo, todo mundo morrer e se perder a memória de tudo, a casa urbana vai ser reinventada. Essa mesma casa, quando geminada forma um renque casas sobre as lojas, desenhando esquinas. Ela passa a receber adições ao longo do tempo, incluindo as casas de gerações, e isso é o velho “predinho de térreo comercial mais quatro andares”. Portanto, a casa urbana deu origem programaticamente, dentro dessa construção coletiva, por adição de puxadinhos em puxadinho, ao predinho que também tem mais de cinco mil anos, predinho de térreo mais cinco existe a muitos anos, com lojas embaixo e casas em cima.
Esse é um programa importante, sobretudo por que resgata uma discussão sobre densidade. Densidade demográfica é saudável, proporciona esquinas culturais, diversidade social, mas é diferente de densidade construtiva. Um edifício de 30 andares, de alta densidade construtiva, com um apartamento por andar de 1000 m2 onde moram 4 pessoas não tem alta densidade demográfica. Agora, deve-se ter lucidez crítica e política pra entender que isso, este programa com densidade demográfica, faz parte da cultura arquitetônica e urbanística da humanidade há muitos anos. A casa urbana é um programa muito saudável pra poder estabelecer a vitalidade das pessoas na rua.
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A casa urbana ilustrada com cena do filme Mon Oncle, de Jacques Tati.
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Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância. Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada idéia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais. Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado
não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito. Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos. Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança. Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene: — Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos. Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos. — Tem certeza? Assenti. — Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.
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Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete. Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza. — Não está aqui. E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa. Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria. Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava: — Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo? Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar. Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e freqüentes insônias. Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.) É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências. Pela noite sinto sede, e antes
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de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d’água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado. Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada. — Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele. — Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente. — Não, nada. Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde. Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.
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Este conto foi publicado primeiramente em Anales de Buenos Aires e em 1951 foi publicado junto a outros contos na obra Bestiário.
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a má educação das ruas e o desenho da cidade Luís Antonio Jorge 1
Conto (do vigário) inspirado na famosa frase de Moisés: - Neste Natal, a Ceia tá mais pra fimose que pra piru.
Se fosse minha essa rua O pé de ypê tava vivo Itamar Assumpção
Aldir Blanc, Rua dos Artistas e arredores.
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Rua dos Artistas e arredores é um livro de 1978 que reuniu crônicas de Aldir Blanc publicadas no Pasquim. Nele, Aldir retrata tipos urbanos de um Rio de Janeiro aventuroso, onde a malandragem, a picardia e o duplo sentido dão substância a uma cultura carioca forjada nas ruas ou, no limite, em Vila Izabel. O humor e a poesia presentes nestas crônicas proveem de uma escrita com o sotaque das ruas e da predileção do Aldir em aproximar a grossura do lirismo, a sacanagem da ingenuidade, o machismo do amor, e toda a sorte de idiossincrasias e preconceitos tão nossos, tão profundamente cariocas, tão brasileiros. Há um certo sabor em mostrar o desencontro fanfarrão nas expressões mais grosseiras e os costumes, bem menos audaciosos do nosso povo. Falar é fácil e cultivamos a prática maledicente e espirituosa de um humor caustico e crítico dos nossos costumes. Se a verdadeira filosofia ri de si mesma, a “hermenêutica das ruas” cultiva esta lição como reação às nossas tragédias cotidianas. E exige dos seus aprendizes uma disposição para criar, cada um a seu modo, o jeito próprio, pessoal e afirmativo, de conviver com uma sociabilidade mordaz. Só assim será aceito e reconhecido em toda a grandeza de moleque de rua. Hoje estas distantes crônicas do Aldir - autor, com João Bosco, de um dos maiores discos de MPB já realizados neste país – Galo de Briga, 1976 – servem de alerta contra a “boa educação” estrangeira, advinda do arrastão ideológico que tomou conta do país, ditando “correção política” aos incautos.
a rua é uma outra
educação
Nasci numa destas cidades do interior onde se crescia brincando na rua: pelada, carrinho de rolimã, bete, mãe-da-rua, guerra de estilingue com mamona (pedra era proibido pelo código de ética da molecada), construir e empinar pipas, cartolas e papagaios, passeios de bicicleta (cada dia mais longínquos e audaciosos), brigas diárias, muitas escoriações, alguns danos mais graves e aventuras sem fim. A molecada da rua frequentava a mesma escola pública. Uniformizados, o filho do médico importante sentava-se ao lado do filho da lavadeira. A menina linda e rica, atrás daquela cujos sapatos foram, por ela, herdados. Zé Catraia, sua mãe e seus 7 irmãos, assistiam à novela na TV preto e branco da nossa casa, todas as noites. Eu o ajudava com a matemá-
tica e ele, ensinava-me a arte da bola de gude e as manhas do bafo com as figurinhas dos jogadores de futebol. Bem mais tarde, li, comovido, o Paulo Freire falando da importância da infância, do autoritarismo didático da escola primária, tão marcada por uma visão patriarcal, repressiva e alienante: a chamada boa educação. Já um menino flagrado em má conduta e, pelos adultos, repreendido, era chamado de “moleque de rua”2. A rua era a má educação: sem controle, libertina e permissiva. Professor Doutor do Departamento de Projeto e Pesquisador da Área Projeto, Espaço e Cultura do Programa de Pós-Graduação da FAU-USP. 2 Aprendo com Houaiss que “homem da rua” é um dos epítetos do Exu. 1
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Ambas, aquela escola pública primária e esta rua, não existem mais. E as “educações” tão antagônicas que ministravam, tampouco. Os dilemas moral e ético da sociedade impunha-se solidamente por meio de educações conflitantes no cotidiano das crianças e adolescentes. O conflito fazia parte da formação dos meninos soltos na cidade, ou seja, o bem e o mal eram juízos a serem reconhecidos solitariamente sob o fogo de um tiroteio de sinais trocados. A realidade mudou profunda e rapidamente. Mas a arte brasileira nunca se eximiu de nos alertar. Manuel Bandeira ouviu e louvou os nossos jeitos maleducados cultivados ao sabor popular. Carlos Drummond, no seu Hino Nacional (Brejo das Almas, 1934), irônico, avisava:
Precisamos educar o Brasil. Compraremos professores e livros, assimilaremos finas culturas, abriremos ‘dancings’e subvencionaremos as elites Cada brasileiro terá sua casa com fogão e aquecedor elétricos, piscina, salão para conferências científicas. E cuidaremos do Estado Técnico. 76
Os valores desta má educação das ruas são, amiúde, assunto do melhor da nossa literatura, da nossa música, do nosso teatro, do nosso cinema. Por que, então, o “Estado Técnico” que projetou e projeta a casa do brasileiro, por meio de sucessivas políticas habitacionais dos últimos 50 anos, não soube absorver, nos termos do projeto de
arquitetura e de urbanismo, a importância da cultura das ruas para a sustentabilidade social das nossas cidades? Nunca ouviram Noel Rosa ou Adoniran Barbosa? Nunca leram Alcântara Machado ou João Antônio? Nem assistiram ao Plínio Marcos, ao Eduardo Coutinho ou ao Ugo Giorgetti? Ou isto tudo não importa para a objetividade técnica que preside o projeto da moradia de interesse social? No texto em que apresenta a exposição Civilização do Nordeste, por ela organizada e projetada para a inauguração da restauração do conjunto arquitetônico do Unhão (Salvador, Bahia, 1963), Lina Bo Bardi diz: Esta exposição quer ser um convite para os jovens considerarem o problema da simplificação (não da indigência), no mundo de hoje; caminho necessário para encontrar dentro do humanismo técnico, uma poética. Esta exposição é uma acusação. Acusação de um mundo que não quer renunciar à condição humana apesar do esquecimento e da indiferença. É uma acusação não humilde, que contrapõe às degradadoras condições impostas pelos homens, um esforço desesperado de cultura. A palavra “desesperado” carrega a retórica da acusação e da recusa ao estado de coisas que moldou o país a despeito de sua cultura popular. O desespero em ver que a boa e letrada educação das escolas e a má e espontânea educação cultivada nas ruas, não iriam se fundir em uma cultura vigorosa que identificasse o Brasil. Como queria, por exemplo,
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o mineiro Guimarães Rosa, sempre produzindo diálogos entre personagens letrados e iletrados para despertar a linguagem e retratar uma realidade brasileira que fundia o concreto e o imaginário, a cidade e o sertão. No encontro entre educados pela letra e educados exclusivamente pela difícil lida da vida de míngua da maior parte do nosso povo, poderia residir um cultura profundamente brasileira. Ao contrário, o que sucedeu foi uma ampliação da cisão entre estes dois mundos: entre a escola e a rua, entre a linguagem e a vida, entre o privado e o público, entre a casa e a cidade. Passados 50 anos da exposição Civilização do Nordeste, continuamos a ignorar o apelo para pensarmos um outro mode-
lo, sensível ao sentido da rua e contra toda a sorte de esvaziamento do espaço público no Brasil. A vitalidade das ruas é o melhor sinal de sobrevivência de qualquer cidade do mundo. Lamentamos o progressivo esvaziamento do sentido do viver as ruas como formação cultural e social do Brasil ou como espaço de gestação da cultura urbana brasileira. A cega negação da rua com todos os seus “duvidosos” valores culturais significa a abdicação daquele desejo de uma poética humanista, que resultaria de uma síntese entre o conhecimento que fomos progressivamente desenvolvendo, no âmbito da arquitetura moderna brasileira, e a percepção dos valores das expressões populares, da vivência nas ruas e da vitalidade das nossas cidades.
Ao contrário, o que sucedeu foi uma ampliação da cisão entre estes dois mundos: entre a escola e a rua, entre a linguagem e a vida, entre o privado e o público, entre a casa e a cidade. São Paulo é conhecida como a cidade do trabalho, onde as pessoas vivem para o trabalho e se definem como persona social em função das atividades que nele exercem. Esta cultura do trabalho está refletida no desenho da cidade e na forma como nos relacionamos com ela. Estabelecemos uma relação funcional com a cidade, com os seus equipamentos e espaços públicos, feitos para nos servirem, antes de quaisquer interesses não utilitários. São avaliados por seu grau de eficiência. Funcionalizamos a nossa relação com cidade e, muito mais, com as ruas que não se parecem com lugares, mas com caminhos para se alcançar os lugares. Esta cultura do espaço público está solidamente presente nos projetos realizados
para a moradia de interesse social. As ruas são desenhadas como espaços para a circulação e definidas, exclusivamente, como sistema viário. Faltam “moleques de rua” na produção do desenho urbano brasileiro, faltam espaços para o nada fazer, para as horinhas de descuido ou para o ócio. Faltam atributos que convidem à permanência mais prolongada. E a frequência da rua é uma das mais expressivas formas da sua desfuncionalização: a pelada, a pipa, a roda de samba, as danças de rua, o grafite, o skate e a magrela, o papo pro ar e toda a forma de convívio. A desfuncionalização da vida é um aprendizado de liberdade. A liberdade de viver as ruas e reconhecer o sentido do espaço público.
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Assistimos, nos últimos anos no Brasil, a uma trágica corrida pela urbanização das periferias das nossas cidades. Uma disputa do mercado imobiliário por novas fronteiras para seus distintos produtos, sem que houvesse políticas ou planos urbanísticos que conduzissem o desenvolvimento urbano de forma responsável e sustentável. O espraiamento sem fim das cidades (urban sprawl) parece ser o nosso triste destino. O que é ser “periférico” na urbanização brasileira em curso? Para responder tal questão, carece observar dois fenômenos correlatos, porém, antagônicos: a intensa urbanização periférica por classes sociais em polos opostos na nossa pirâmide social. A periferia pobre configura o conhecido quadro de carências da urbanização precária e da ausência de serviços ou ainda, para resumir, da própria cidade. Em geral, ela é predominantemente residencial ou quase monofuncional e mal servida pelo sistema de transporte público. O deslocamento diário para o trabalho é a experiência constitutiva deste “ser periférico”. A periferia rica é a expressão de um desejo de viver em outra cidade. Em busca da acrítica e ambígua idealização do que se convencionou chamar de “qualidade de vida”, procura-se o idílico reencontro com a natureza e, sobretudo, o distanciamento dos problemas da caótica cidade. A monofuncionalidade
habitacional também é dominante, pois o automóvel (ou o transporte privado) se encarrega de conduzir seus habitantes aos centros de comércio e serviços estrategicamente criados para atender estas demandas estabelecidas. O andar a pé na periferia abastada resume-se à necessidade de atividade física para combater o sedentarismo. Não é uma atividade propriamente urbana ou social. É como uma corrida autista nas esteiras rolantes das academias de ginástica. Ser “periférico” é a condição privilegiada de usufruir a tal “qualidade de vida” que a cidade deixou de oferecer. Portanto, se a busca pela qualidade do espaço urbano e pela vitalidade da cidade não é realizada na própria cidade, ou seja, naquele espaço-continente que abrigara o conteúdo e a história da cultura que a formou, e passa a ser “simulado” em outro espaço, distinto e distante, com outros valores, formatados no caldo indigesto da segregação social e na homogeneização de rendas e valores, “ser periférico”, nestas condições, é negar a cidade. Sendo assim, dois modelos de periferia se contradizem para realizar a mesma tragédia urbana. A periferia pobre é o território da miséria de espaços públicos onde o projeto urbano, invariavelmente, tem negligenciado os espaços de permanência3 e a cultura das ruas. Tomemos um exemplo de um projeto recém-elaborado por uma das empresas públicas responsáveis pelo provimento da habi-
tação social no Brasil, onde se vê um sistema viário projetado consumindo 34% da área total (para lotes unifamiliares de 125m2 com testada de 7m). Quanto menor o lote, pior a relação entre as áreas de viário e áreas líquidas para lotes. Seria viável, economicamente falando, oferecer uma substantiva melhoria dos espaços públicos para estes futuros moradores, sem acrescentar custos, simplesmente rompendo com o paradigma da rua desenhada para o automóvel. Com estes índices, a baixa densidade – que poderia ser adequada para algumas circunstâncias - não promove nenhum ganho ou valor urbanístico, isto é, a baixa densidade resulta de uma oferta excessiva para o sistema viário. Paradoxalmente, na maioria dos loteamentos de médio a alto-padrão, pensados para atender uma frota de veículos por lote (lotes que variam entre 500m2 a 1000m2, com testadas entre 15 a 20m) a área do sistema viário dificilmente atinge 20% da área total do empreendimento. O crítico inglês Ian Nairn, da revista The Architectural Review, cunhou, em 1955, a palavra Subtopia, um neologismo que funde as palavras subúrbio e utopia para designar o fenômeno de suburbanização das cidades inglesas, onde se via a anulação dos atributos de cada lugar, devido a uma urbanização homogenizadora e empobrecedora do caráter das cidades. Segundo ele, a subtopia representava
mais do que uma realidade física, uma “psicose em massa enraizada na fantástica aceitação da mediocridade”. E acrescentava: “nós estamos destruindo o ambiente para que o homem possa ver sua projeção e o reflexo de sua vida suburbana: desejos mornos, medos mornos, tudo morno.”4 Obviamente, o que vemos nos nossos subúrbios não é o mesmo fenômeno, mas é análogo. Aqui viceja o modelo do “condomínioclube”, modelo de bairro fechado e autônomo, para o uso exclusivo de seus moradores. Para as altas rendas, o bairro fechado é dotado de uma série de equipamentos de uso coletivo, voltados ao lazer. E para a baixa renda, sob a falsa tirania do variável econômica, reproduzse, de forma extremada, o anódino desenho do mesmo, sem a oferta de tais equipamentos. Ambos condenam à morte a cultura das ruas e a permanência nos espaços públicos. Pautados por idênticos e velhos valores patrimonialistas, ambos os modelos expressam a ideologia do bem separar o privado do público. A “boa educação” tem colaborado para produção de cidades mornas.
Vem à memória a frase dita pelo Professor Flávio Mota: - “que sentido tem de se falar em qualidade de vida no Brasil, um país onde vida já é qualidade”? 4 NAIRN, I. – Outrage. Londres, Architectural Press, 1955 apud PAVESI, Lorenza – Ian Nairn, Subtopia e Townscape, Dissertação de Mestrado, São Carlos, EESC-USP, 2011. Orientação: Prof. Dr. Carlos Roberto Monteiro de Andrade. 3
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O termo “passeio” refere-se, ao mesmo tempo, ao ato de atravessar (o passeio como ação de andar), a linha que atravessa o espaço (o passeio como artefato arquitetônico) e o relato do espaço atravessado (o passeio como estrutura narrativa). Aqui queremos propor o passeio como uma forma estética disponível para a arquitetura e a paisagem. Francesco Careri5
Na frase acima, do arquiteto italiano Francesco Careri, podemos perceber, nos três significados apontados para a palavra passeio, um conjunto de relações existentes entre a paisagem, a “arquitetura da cidade” e a memória dos lugares. O passeio como ação de andar remete à maneira simbólica pela qual o homem transforma a paisagem - o andar busca a mudança de paisagem e tudo que isto representa: a descoberta, o reconhecimento, isto é, a atraente dialética entre o inesperado e o previsto. No tempo do deslocamento para se chegar a algum lugar, sempre há a rica possibilidade de ver e conhecer o que ainda não fora visto, nem encontrado. Anda-se por determinados caminhos e evita-se outros, contrariando, muitas vezes, a economia dada pela menor distância, seguindo uma espécie de lei de simpatia das ruas, optando-se por visitar os lugares caros à memória afetiva, os mais amigáveis ou aqueles onde está constituída a rede pessoal de relacionamentos de cada um. Assim, temos o passeio como uma estrutura narrativa no tempo e no espaço, o que diz respeito à maneira pela qual nos relacionamos com a cidade através do seu sistema viário que é, geralmente, o elemento de mais longa duração no tecido urbano. E este andar que atravessa o espaço, deixa registrado seu caminho, sua linha, sua marca no território: a estrada, a rua, o passeio como um artefato da arquitetura da cidade. Fundemos a lei de simpatia das ruas6 pressupondo:
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1. A densidade histórica – social, cultural e, sobretudo, afetiva. A arquitetura da cidade é um misto entre o artefato concreto e a memória. E todas as ruas têm os seus personagens: uns mais, outros menos simpáticos. Senso de pertencimento: não é onde moro, mas é o meu caminho, principalmente, nesta hora do dia ou da noite.
2. O conforto para a prática do caminhar: os lugares simpáticos são feitos de pequenos detalhes, generosidades e focos de interesse para a fruição urbana. O conforto para o caminhar resulta de uma atenção à escala do pedestre. E a escala do pedestre é uma relação entre os vazios (espaços livres) e a qualidade dos cheios (espaços construídos).
3. A identificação com o lugar imaginante – o que independe de qualquer experiência prévia. A rua pode representar valores culturais reconhecíveis, mas não vividos. A simpatia é comunicada de maneira espontânea, como a poesia.
4. A ausência de constrangimentos de toda a sorte: o mal dimensionamento dos passeios, a qualidade dos pisos, a exposição longa e excessiva do corpo, sem “remansos” para recolhê-lo quando cansado, o barulho, o mal cheiro, etc.
CARERI, F. – Walkscapes. Walking as an aesthetic practice. Barcelona, G.Gili, 2002 (em tradução livre do autor)
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6 Sim, pois, o milagre existe, mas é provisório, como disse Waly Salomão (SAILORMOON, W. - Me segura qu´eu vou dar um troço. Rio de Janeiro, Edições Biblioteca Nacional / Aeroplano Editora, 2003)
Que tal, então, projetar um modelo urbano alternativo para a produção de habitação de interesse social, considerando os recursos e as regras do Programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal, e os recursos complementares do Programa Casa Paulista, do governo estadual? Com a colaboração de consultores da área econômico-financeira e da construção civil – Iury Lima e Michel Zeenni, respectivamente – elaborei um ensaio-pesquisa para um modelo de bairro prototípico, considerando: CARERI, F. – Walkscapes. Walking as an aesthetic practice. Barcelona, G.Gili, 2002 (em tradução livre do autor). 6 Sim, pois, o milagre existe, mas é provisório, como disse Waly Salomão (SAILORMOON, W. - Me segura qu´eu vou dar um troço. Rio de Janeiro, Edições Biblioteca Nacional / Aeroplano Editora, 2003) 5
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1. A alta qualidade de espaços públicos e da infraestrutura urbana: dispersão das áreas verdes, acompanhando o caminhar e o bicicletar, redes subterrâneas de toda a infraestrutura urbana e mobiliário urbano.
O circuito estrutural: a rua do comércio (nos térreos dos edifícios habitacionais, com pé-direito duplo para expansão por mezzanino), com alamedas para ciclovias, calçadas largas, mobiliadas e semicobertas, e integração com largos e praças ao longo das ruas e nos miolos das quadras.
2. Os valores médios da terra na macro-metrópole paulista para áreas acessíveis, próximas a polos de empregabilidade e integradas à dinâmica urbana, como premissa para estudo de densidade populacional. 3. A otimização das áreas: a cidade compacta, de alta densidade e uso limitado e disciplinado de automóveis (o automóvel é um voraz e perdulário consumidor de espaços urbanos). 4. A industrialização da construção civil. 5. A variedade tipológica e de projetos de arquitetura, elaborados por diferentes arquitetos, considerando novos parâmetros de área útil por unidade para abrigar novos arranjos familiares, mais compatíveis com a dinâmica em curso na nossa sociedade.
Fragmento da visão geral do bairro.
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6. A produção das edificações por pequenas e médias construtoras, como estratégia para promover um salto qualitativo das habitações (o modelo é refratário à grande empreiteira, dada a diversidade tipológica exigida: a otimização de custos para as grandes construtoras significa reprodução massificada) e dinamizar a economia e o empreendedorismo locais. 7. A dissociação entre unidade habitacional e vaga de garagem (uma é um bem imóvel, outra, deve ser paga pelo uso - que não deve ser um direito inalienável à moradia.
Esquinas com amplas visuais como convites para a variedade de espaços e circuitos.
8. Um programa de bairro com mix de usos (habitação, comércio e serviços) e mix de rendas familiares (para as três faixas de renda compreendidas pelo programa MCMV: com predomínio da Faixa 1 - até 3 salários mínimos; com significativa redução de unidades para a Faixa 2 -até 6 salários mínimos; e uma menor parcela para a Faixa 3 - até 10 salários mínimos). 9. Um bairro aberto, integrado à cidade e com vocação e porte de uma nova centralidade local.
A porta do bairro e o início do projeto: conexão com sistema de transporte público: corredores de ônibus, BRT, VLT ou sistemas alternativos.
10. Um modelo de gestão participativa do bairro, para garantir a sua sustentabilidade, a governança, o senso de pertencimento e o engajamento. 11. Uma prospecção de fontes alternativas de financiamento para complementar gastos e ou atender a demandas pontuais da comunidade. 12. Uma prospecção de parcerias com institutos, fundações e instituições ligadas à educação, à formação profissional, à cultura, à saúde e à segurança visando à sustentabilidade do bairro. 13. Um alinhamento de interesses entre entes privados envolvidos na urbanização e produção de moradias e demais usos e os poderes públicos, responsáveis: - pela política urbana na qual o bairro deverá ser instrumento e agente dinamizador; - pela aprovação do projeto de urbanismo e dos projetos de arquitetura.
Incentivo ao uso noturno da cidade.
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14. Um modelo de bairro sustentável: social, econômica e ambientalmente – o que significa uma recusa ao modelo do grande conjunto habitacional e a adesão a um modelo muito mais próximo a uma cidade convencional, embora planejada. Cidade vibrante com mix de usos, rendas e tipologias arquitetônicas. Largos e abrigos para a vida nas ruas.
Áreas verdes e gramados foram projetos seguindo alinhamentos de ruas que poderiam, no futuro, integrar o bairro a áreas adjacentes. Estas áreas gramadas poderiam ser utilizadas, no presente, para feiras livres e lazer.
O miolo de quadra e o programa esportivo – gerido pela escola/ creche e extensivo à toda população.
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Circuito de programas complementares para o uso dos espaços públicos: incentivo à circulação de pessoas e combate à autonomia programática das quadras. Na ilustração, espaço com equipamentos para a terceira-idade.
Posteriormente, estabeleceu-se critérios para eleição e prospecção de áreas a urbanizar, considerando a interdependência entre: - política urbana dos municípios e os valores urbanísticos e territoriais (relação com áreas urbanizadas, com serviços existentes, com a infraestrutura urbana instalada, especialmente, com a necessária ampliação da capacidade de transporte público e o impacto ambiental do empreendimento na região); - as demandas sociais; - a dinâmica econômica (notadamente, os polos de empregabilidade ou geração de empregos). Destes critérios deriva a premissa fundamental do protótipo desenvolvido: a integração do bairro a um sistema de transporte público eficiente, a partir do qual foram desenhados os subsistemas de mobilidade, com a intenção de alcançar uma alta permeabilidade urbana. Para isso, considerou-se no modelo: - transporte público como estruturador do tecido urbano; - transposições enriquecedoras, com equipamentos e programas estratégicos, fomentando o encontro e a permanência; - qualidade do deslocamento até a porta; - circuitos curtos e integrados; - a velocidade do pedestre; - rede de ciclovia na totalidade do bairro. A qualidade da integração entre os espaços públicos, semipúblicos ou comunitários e privados é responsável direta pela intensidade de uso e vibração do bairro. E a relação entre cheios (áreas edificadas) e vazios (áreas de circulação, praças, largos e parques) propiciou a elaboração de um variado conjunto de passagens, passeios, largos e praças a enriquecer o desenho das ruas. Todo o processo de elaboração da modelagem foi realizado a partir deste conjunto de
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variáveis e sempre desenhado em terceira dimensão, de modo a resultar em um master plan em 3D – forma de representação mais eficiente para o estudo da relação entre densidade demográfica e viabilidade econômica, segundo critérios de conforto urbano (garantia de sol e de ventilação nas unidades do térreo, de áreas livres e de espaços de lazer na escala da vizinhança e de mobilidade urbana) e parâmetros de financiamento do Programa MCMV. O modelo final consumiu uma área de 500.000 m2, a ser ocupada gradualmente no tempo, segundo um critério de expansão por adensamento cuja capacidade atingiria cerca de 400 habitantes / hectare de área líquida (ou de lotes). Tomando o módulo 6m x 8m, como unidade de área construída a ser ocupada para quaisquer usos, o protótipo contemplou: - 13.889 módulos para abrigar a variedade de tipos de unidades habitacionais (unidades de 28m2 a até 81m2), totalizando cerca de dez mil unidades; - 652 módulos para abrigar unidades de uso comercial de diversos portes; - 309 módulos para abrigar unidades de serviços; - 12 edifícios garagem em rampa contínua com 5.184 vagas; - 2.144 vagas para estacionamento ao ar livre (ruas e estacionamentos em miolo de quadra); - Escolas, creches, biblioteca, hospital, centro esportivo, campo de futebol com arquibancadas, piscinas, cinemas e áreas para feiras livres e eventos de rua. Ao cabo de tudo, concluiu-se que o grande porte viabiliza, economicamente, um projeto com alta qualidade de espaços e serviços públicos e é, potencialmente, atraente para investimentos privados voltados ao comércio, à cultura e ao lazer, à educação e à saúde. Foram feitas apresentações tecnicamente detalhadas destes resultados ao Ministério das Cidades do Governo Federal e à Caixa Econômica Federal, em Brasília. Avaliado por profissionais de ambas as instituições, o projeto foi bem recebido. Trata-se de um modelo para pensarmos a possibilidade de uma reorientação do maior programa de inclusão social, por meio do provimento da habitação social subsidiada, já realizado no país. O projeto foi batizado de BAIRRO DA GENTE. Os desenhos representam pontos de vista de quem está nas ruas. Cada um com seu conteúdo, todos expressam uma vontade de vida nas ruas. Talvez, seja só isso o que define a cidade. Créditos do Projeto: Arquitetura e Urbanismo, Maquete Eletrônica e seleção de cenas: Luís Antônio Jorge. Desenvolvimento da arquitetura das fachadas e produção de imagens: Bhakta Krpa.
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No Japão medieval, poetas e sacerdotes zen orientavam os japoneses para aspectos do mundo a que os ocidentais raras vezes deram publicamente mais do que uma atenção insignificante ou casual: flores de cerejeira, peças de cerâmica deformadas, cascalhos alisados com ancinho, musgo, chuva caindo sobre as folhas, o céu de outono, telhas e madeira não envernizada. Surgiu uma palavra para a qual não existe equivalente em nenhum idioma ocidental, wabi, identificando beleza das coisas transitórias, despretensiosas, simples, inacabadas. Havia wabi para ser apreciado numa noite solitária, num chalé no meio do bosque, escutando a chuva cair. Havia wabi num velho conjunto descombinado de louças de barro, em tinas simples, em paredes manchadas e em pedras ásperas, desgastadas e cobertas de musgo e líquen. As cores mais wabi eram cinza, preto e marrom. Mergulhar na estética japonesa e alimentar uma simpatia pela sua atmosfera podia servir para nos prepararmos para o dia em que, por exemplo, encontrarmos num museu de cerâmica tigelas de chá tradicionais feitas pelo artista Hon’ami Koetsu. Não vamos considerar essas peças estranhas bolhas de matéria uniforme, como talvez fizéssemos sem o legado de 600 anos de reflexões sobre o encanto do wabi. Teríamos aprendido a apreciar a beleza que não nascemos vendo. E, nesse processo, descontruiremos a ideia simplista, fortemente promovida pelos construtores de mansões de plástico, de que aquilo que uma pessoa atualmente acha bonito deve ser tomado como limite de tudo que gostará para sempre. (...)
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Ilustração Térsio Greguol
Alain de Button
A resposta do construtor, defendendo os gostos existentes, está basicamente negando que os seres humanos possam chegar a amar algo que ainda não notaram. Mesmo usando termos relacionados à liberdade, essa alegação esconde que, para escolher bem, é preciso conhecer as opções. Devemos lembrar as lições dos jardins de musgo e das peças de cerâmica rústica na próxima vez que considerarmos um conjunto habitacional reacionário. Devemos ter liberdade para imaginar quantos gostos poderiam evoluir simplesmente se novos estilos fossem colocados diante dos nossos olhos e novas palavras entrassem no nosso vocabulário. Vários materiais e formas até agora ignorados poderiam revelar suas qualidades enquanto que o status quo seria impedido de se impor como ordem natural e eterna das coisas. Depois de serem adequadamente apresentados ao verdadeiro alcance da arquitetura, os prováveis compradores de uma casa de tijolos vermelhos no estilo neo-Tudor olhassem um pouco mais além do seu desejo original. Talvez alguns até se surpreendessem ao perceberem o interesse por uma caixa tosca de concreto de aparência wabi, cujas virtudes teriam aprendido a ver graças a uma jornada de educação estética.
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De BOTTON, Alain; “A Arquitetura da Felicidade”, tradução de Talita M. Rodrigues – Rio de Janeiro, Rocco, 2007.
ARTE QUE TE MURA
Desenho feito por moradoras da Ocupação Marconi, no centro de São Paulo. Elas contam como é a vida sem uma casa fixa e descrevem o lugar onde gostariam de morar.
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Toda casa é uma árvore, que no chão se enraíza: em sua copa habitamos antigas sombras e fadigas. Em sua seiva de cimento, a memória se entrelaça: floresce dentro da alma a arquitetura da casa. Eis seus frutos habitados no corpo, que é semente: dentro da árvore brotamos a vida com suas vertentes. Toda casa é uma árvore, que no corpo se enraíza: o universo tem começo no chão em que se habita. Adriano Espínola
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OS SIGNIFICADOS DO DIREITO À MORADIA COMO PORTA DE ENTRADA PARA OUTROS DIREITOS Rodrigo Faria G. Iacovini1 A arte, aí incluída claramente a poesia, tem o poder de nos levar além do óbvio, a ultrapassar o senso comum e vislumbrar novos horizontes. No caso específico deste trecho do poeta cearense Adriano Espínola, somos instigados a pensar nos vínculos profundos desenvolvidos entre moradores e moradia e no papel mais amplo que a esta exerce na vida daqueles, que vai muito além da simples função de abrigo. Sendo o ponto de partida do universo de seu habitante, a casa representa o início e o encontro das diversas dimensões de sua vida: social, econômica, afetiva, cultural, dentre tantas outras dimensões que a complexidade humana cria e demanda. Da mesma forma, a efetivação do direito à moradia está diretamente ligada à efetivação de outros tantos direitos, sendo uma espécie de porta de entrada para eles. Considerado como “componente essencial ao direito a um padrão de vida adequado”, como expresso em alguns documentos internacionais sobre o tema, o direito à moradia encontra-se e se entrelaça com os outros direitos na proteção e efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. De difícil conceituação, este princípio abrange e protege os mais diversos aspectos do ser humano e de sua vida. Como afirma Sarlet (2007, p. 01), ele “acima de tudo, diz com a condição humana do ser humano, e, portanto, guarda íntima relação com as complexas, e, de modo geral, imprevisíveis e praticamente incalculáveis manifestações da personalidade humana”. A dignidade da PESSOA HUMANA objetiva, dessa forma, proteger a vida humana em sua integralidade, tanto da “pessoa” (enquanto portadora de uma individualidade e detentora do livre-arbítrio) quanto do “humano” (integrante da espécie humana e portador de uma inolvidável dimensão social). Por tudo isso, esse princípio se encontra no centro da teia de proteção formada pelos direitos humanos, dando sentido e unidade a todos eles, tornando-os inter-relacionados, interdependentes e indivisíveis.
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Em todos os momentos em que se promova uma ação voltada a qualquer aspecto relacionado a direitos humanos, portanto, é essencial que seja realizada uma abordagem ampla, profunda, multidimensional e integrada, partindo sempre do respeito e da concretização da dignidade da pessoa humana. No caso específico do direito à moradia, não pode ser diferente. Uma ação voltada à efetivação deste direito deve, assim, incluir iniciativas multidimensionais voltadas à sua defesa, promoção e difusão/disseminação de forma integrada à efetivação de outros direitos. Mas de que direito à moradia deve-se falar? Pode parecer estranha, à primeira vista, a pergunta colocada acima, mas ela é fundamental uma vez que se pretenda abordar criticamente o assunto. Embora esteja positivado formalmente em diversas normas, tanto nacionais quanto internacionais, e já exista relevante produção acerca do conteúdo material deste direito, ainda há muito que avançar quando se trata de sua efetivação, seja na proteção dos cidadãos contra violações, seja na sua concretização através de políticas públicas desenvolvidas pelo estado. Internacionalmente, a moradia adequada foi reconhecida como direito humano em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tornando-se um direito humano universal, aceito e aplicável em todas as partes do mundo. Segundo consta em seu texto, Artigo 25, Parágrafo 1º “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle” [grifo do autor]. Após esse marco, diversos outros pactos e documentos internacionais incluíram previsões que, de alguma forma, estão relacionadas ao direito à moradia, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)2, a Convenção Internacional para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher3, a Convenção sobre os Direitos das Crianças4, dentre outros. É importante observar que, embora apareça sob diferentes nomenclaturas – moradia, habitação, lar, etc. – e sob diferentes enfoques – inviolabilidade de domicílio, igualdade racial, etc. – trata-se efetivamente do mesmo direito. No âmbito nacional, também são encontradas diversas normas que, sob diferentes aspectos, garantem o direito à moradia dos cidadãos brasileiros. A primeira, e mais importante, é sem sombra de dúvidas a Constituição Federal. Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição [grifo do autor]. Embora seja um passo extremamente importante, a inclusão do direito à moradia em normas internacionais e nacionais, por si só, não garante sua efetivação. É necessário dar concretude a este direito, sendo, portanto, fundamental que se discuta qual o seu conteúdo material.
Ilustração Calixto Comporte
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Nesse sentido, deve-se adotar como norte o Comentário Geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (1991), o qual interpreta o art. 11 do PIDESC e explora amplamente as diversas dimensões do direito à moradia. Primeiramente, para o Comitê, este direito não pode ser interpretado de forma estrita, como um abrigo composto apenas por “um teto e quatro paredes”. Além de proporcionar uma existência pacífica e segura, ou seja, sem ameaça de remoção arbitrária, a moradia tem que garantir um padrão digno de vida e deve proporcionar todas as condições para o desenvolvimento social, econômico e cultural de seus moradores. Para que seja considerada “adequada”, a moradia deve assegurar: segurança da posse; habitabilidade; disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos; localização adequada; adequação cultural; acessibilidade; e custo acessível. A seguir será abordada cada uma dessas dimensões5, tentando-se demonstrar em cada uma delas como a efetivação ou a violação do direito à moradia está relacionada à efetivação/violação de outros direitos. A primeira dessas dimensões do direito à moradia é a garantia de uma condição de ocupação estável, ou seja, de morar em um local sem o medo de remoção ou de ameaças indevidas ou inesperadas. As formas de se garantir essa segurança da posse são diversas e variam de acordo com o sistema jurídico e a cultura de cada país, região, cidade ou, até mesmo, tribo. O fundamental, no entanto, é que todas as pessoas tenham direito a morar de forma estável e segura, independentemente de qual seja o tipo de proteção dada à segurança da posse. A principal violação relacionada a esta dimensão são as remoções forçadas, as quais repercutem também sobre diversos outros direitos. Em diversos casos, a remoção enseja, por exemplo, o abandono escolar temporário por parte de crianças e adolescentes, as quais se veem abruptamente afastadas da região onde sua escola se situava e sendo forçadas a mudarem para regiões em que o sistema de ensino público já está saturado, violando seu direito à educação. A situação de estresse causada pela iminência da remoção e a pela incerteza do futuro familiar
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causado por elas têm colocado em risco o bem estar físico e, principalmente, emocional das famílias atingidas, afetando diretamente seu direito à saúde e à integridade física e mental. Quando se trata da habitabilidade, o olhar deve recair para a construção em si e as condições físicas, sanitárias, de conforto e de salubridade oferecidas por ela. Deve, assim, apresentar boas condições de proteção contra frio, calor, chuva, vento, umidade e, também, contra ameaças de incêndio, desmoronamento, inundação e qualquer outro fator que ponha em risco a saúde e a vida das pessoas. Além disso, seu tamanho e a quantidade de cômodos (quartos e banheiros, principalmente) devem ser condizentes com o número de moradores. Espaços adequados para lavar roupas, armazenar e cozinhar alimentos também são importantes. Mais uma vez, estão diretamente relacionados o direito à moradia e à saúde, tendo em vista que o bem estar físico de seus habitantes é claramente afetado pelas condições de salubridade oferecidas pelo imóvel. Em casos de portadores de algum tipo de deficiência, a exemplo de cadeirantes, as condições projetuais da moradia podem ainda criar barreiras quase intransponíveis para sua liberdade de locomoção, ou seja, para o exercício do seu direito de ir e vir. O projeto, bem como todo o sistema construtivo, devem expressar tanto a identidade quanto a diversidade cultural dos moradores. Reformas e modernizações devem também respeitar as dimensões culturais da habitação. Frequentemente, no entanto, a política de moradia tem sido confundida com a simples produção em massa de habitações, sendo desenvolvidos projetos sem qualquer preocupação com as necessidades sociais e culturais da comunidade beneficiária e havendo a simples reprodução de tipologias. Em comunidades de pescadores, por exemplo, as casas precisam ter áreas abertas, ao ar livre, para a preparação do peixe. Em comunidades que têm uma lógica social coletiva, é essencial que a casa seja projetada a partir desta forma de organização. Portanto, o direito ao trabalho, ao lazer e à participação na vida social podem ser violados quando não levadas em conta tais caraterísticas no desenho e na construção de moradias. Diferentemente da habitabilidade, cuja atenção está relacionada ao interior da casa, a dimensão relativa à disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos trata das conexões externas da residência. Por isso, ela deve ser conectada às redes de água, saneamento básico, gás e energia elétrica; em suas proximidades deve haver escolas, creches, postos de saúde, áreas de esporte e lazer e devem estar disponíveis serviços de transporte público, limpeza, coleta de lixo, entre outros. De todas as dimensões do direito à moradia, talvez esta seja a que mais facilmente se pode relacionar com outros direitos. Além de exigir que a moradia seja servida por equipamentos públicos que estão diretamente relacionados ao direito à educação e à saúde, ainda requer que estejam disponíveis serviços de transporte público, essenciais para a mobilidade humana e, portanto, para o exercício de diversos outros direitos, como à cultura, ao lazer, à assistência social, etc. É importante, também, que a moradia esteja situada em local que ofereça oportunidades de desenvolvimento econômico, cultural e social. Ou seja, nas proximidades do local da moradia deve haver oferta de empregos e fontes de renda, meios de sobrevivência, centros culturais e de lazer e outras fontes de abastecimento básicas (supermercados, farmácias, etc.).
A localização da moradia também deve permitir o acesso a bens ambientais, como terra e água, e a um meio ambiente equilibrado. É imprescindível, por fim, que a localização proporcione o contato de seus moradores com a diversidade social e cultural da cidade, importante para o seu desenvolvimento enquanto cidadão. Portanto, não só a localização exerce influência na possibilidade de efetivação do direito ao trabalho e de acesso aos meios de sobrevivência, como ainda é elemento importantíssimo para a própria integração social. A dimensão da acessibilidade está relacionada com o respeito ao princípio da não discriminação e o da priorização de grupos vulneráveis. A moradia adequada deve ser acessível a grupos vulneráveis da sociedade, como idosos, mulheres, crianças, pessoas com deficiência, pessoas com HIV, vítimas de desastres naturais etc. As leis e políticas habitacionais devem priorizar o atendimento a esses grupos e levar em consideração suas necessidades especiais. O gozo efetivo dos direitos humanos na atualidade não é homogêneo, havendo grandes diferenças de acordo com a classe, o gênero, a etnia, a orientação sexual. As mulheres, por exemplo, enfrentam obstáculos bem diferentes dos homens quanto à efetivação
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de seus direitos, como é exatamente o caso do direito à moradia. As violações a este direito são sofridas pelas mulheres de modo diverso e, geralmente, mais intenso ou com várias especificidades, tendo em vista que em geral recebem salários mais baixos, sofrem com inúmeros abusos e com a violência doméstica, são tradicionalmente incumbidas dos afazeres domésticos e do cuidado com a família (Ferreira, 2008, p. 115). Nesse sentido, trata-se de um grupo social que, em função de sua vulnerabilidade, demanda a sua priorização no atendimento habitacional como forma de exercício de outros tantos direitos. Por fim, o custo acessível da moradia está vinculado à sua sustentabilidade econômica. O valor da aquisição ou aluguel não pode comprometer o orçamento familiar, da mesma forma que gastos com a manutenção da casa, como as despesas com luz, água e gás, também não podem ser muito onerosos. O peso excessivo da moradia no orçamento familiar, portanto, pode afetar seriamente o direito à alimentação, ao vestuário, ao lazer, dentre outros. A efetivação do direito à moradia só pode ser verificada, portanto, diante da presença simultânea de todas estas dimensões elencadas acima. O descumprimento ou a violação de qualquer uma delas implica, automaticamente, no desrespeito a este e a diversos outros direitos humanos apontados. Infelizmente, esta situação de violação ainda é a realidade de milhões de pessoas ao redor do mundo. Quem tem a obrigação de mudar esse quadro? A resposta mais óbvia aponta para o Estado enquanto principal responsável. E assim é, pois cabe aos governos – nas suas mais variadas esferas e através de seus diferentes órgãos – garantir a efetivação do direito à moradia de sua população. Sua política habitacional deve estar voltada, dessa forma, ao cumprimento dessa obrigação, tendo as dimensões do direito à moradia apresentadas como diretrizes para construção de seus programas e ações habitacionais. Há, no entanto, um movimento no sentido de esvaziar o conteúdo da moradia enquanto direito social e reduzi-la a mero ativo econômico do mercado e bem de consumo (Klintowitz, 2011), consequência da retirada do Estado do setor habitacional e da implementação de políticas desenhadas para ampliar e fortalecer o mercado habitacional, hoje fortemente ligado ao mercado financeiro (Rolnik, 2012). Como não poderia deixar de ser, as consequências dessa transformação no papel da moradia afetam, principalmente, a população de baixa renda. A primeira dessas consequências é a redução drástica, especialmente em países desenvolvidos que já contavam com um amplo sistema de bem-estar social, do estoque de habitação pública para essa população, muitas vezes chegando ao ponto da privatização de conjuntos previamente construídos pelo Estado. Outra consequência é o brusco declínio da qualidade na produção de unidades habitacionais em decorrência da transferência da responsabilidade da implementação da política habitacional, enquanto construção de unidades, para o segmento privado, como vem acontecendo com o programa Minha Casa Minha Vida (Cardoso, Aragão e Araujo, 2011). Orientada pela maximização dos lucros, a produção privada de conjuntos habitacionais através do MCMV não tem preocupações relacionadas ao atendimento de todas aquelas dimensões do direito à moradia exploradas anteriormente, resultando em projetos mal localizados, urbanística e culturalmente inadequados, insalubres e desprovidos de infraestrutura econômica e social.
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Diante deste cenário, fica evidente a necessidade de se fortalecer, a partir da sociedade civil, formas de resistências e processos de reivindicações pela garantia, promoção e efetivação do direito à moradia através de políticas habitacionais. Por isso, cada vez mais se tornam imprescindíveis ações voltadas a fortalecer uma renovada e ampliada estratégia de mobilização social, cabendo aos estudantes universitários um importantíssimo papel nisso. O maior desafio da Universidade brasileira hoje é cumprir com sua função social de lócus privilegiado da produção do conhecimento a serviço da transformação social. É importante que sejam criados espaços e mecanismos que possibilitem a ela transpor as barreiras que a impedem de estar presente na sociedade como agente transformador, minimizando, por exemplo, a distância entre os saberes científicos e não-científicos e contribuindo para o resgate da cidadania. Os estudantes têm, portanto, um papel fundamental na superação dos desafios atuais que se apresentam à Universidade, bem como na construção de uma sociedade mais justa, participativa e emancipadora do ser humano. A partir da indissociabilidade do tripé universitário (ensino-pesquisa-extensão), devem buscar construir ações de formação, de produção de conhecimento científico e de atividades extensionistas que contribuam para essa mudança. Não é possível ficar indiferente frente à falência do modelo vigente de sociedade, no qual são cometidas as mais diversas violações aos direitos humanos sob o pretexto de fomentar o desenvolvimento econômico, ou, em outras palavras, alimentar o modo de produção capitalista. É essencial superar os valores vigentes e questionar o atual modelo de produção de riquezas e de desenvolvimento, a valorização do “ter” em detrimento do “ser” e o homem como objeto, como meio, não enquanto um fim em si mesmo. “Para que a humanidade se liberte da condição de objeto ou massa de manobra do poder do mais forte é indispensável que ela tome consciência de si própria, como sujeito ativo de direitos e agente responsável da evolução histórica” (Comparato, 2006, p. 37). Nesse sentido, os estudantes têm que urgentemente se enxergarem também enquanto sujeitos ativos dessa transformação. É essencial que compreendam que o conflito de classes impõe um claro recorte no tocante ao gozo efetivo dos direitos humanos, sendo imperativo, portanto, assumir a defesa da grande parcela oprimida da sociedade. É necessário que adotem uma visão integral e emancipatória do ser humano, interpretado enquanto sujeito de direitos, protagonista de sua história e possuidor de inúmeras dimensões. É preciso que assumam de vez a opção política de atuar em prol dos direitos humanos com rigor político na luta pela promoção da justiça social, pela emancipação do homem e da mulher enquanto sujeitos de direitos e pela radicalização da democracia.
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Referências bibliográficas CARDOSO, A. L.; ARAGÃO, T. A.; ARAÚJO, F. S. Habitação de interesse social: política ou mercado? Reflexos sobre a construção do espaço metropolitano. Anais do XIV Encontro Nacional da ANPUR, 2011. COMPARATO, F. K. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. FERREIRA, R. F. C. F. Plataforma feminista da reforma urbana – do que estamos falando. In: GOUVEIA, T. (org.) Ser, fazer e acontecer: mulheres e o direito à cidade. Recife: SOS Corpo, 2008. KLINTOWITZ, D. C. Como as políticas habitacionais se inserem nos contextos de reforma do estado? A experiência recente do Brasil. Pensamento & Realidade, v. 26, n. 03, 2011. ROLNIK, R. Late-neoliberalism: the financialization of homeownership and housing rights. International Journal of Urban and Regional Research, 2012. SARLET, I. W. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional, nº 09, jan/jun de 2007.
Notas: 107 1
Advogado e mestre em Planejamento Urbano pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade e integrante da Equipe de Apoio à Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. 2
Artigo 11, parágrafo 1º: Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a
um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento. 3
Artigo 14, 2: Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação
contra a mulher nas zonas rurais a fim de assegurar, em condições de igualdades entre homens e mulheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se beneficiem, e em particular assegurar-lhes-ão o direito a: [...] h) gozar de condições de vida adequadas, particularmente nas esferas da habitação, dos serviços sanitários, da eletricidade e do abastecimento de água, do transporte e das comunicações. 4
Artigo 27, 3: Os Estados-partes, de acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades,
adotarão medidas apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo esse direito e, caso necessário, proporcionarão assistência material e programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação. 5
Correntemente, essas 07 dimensões são conhecidas como “07 core elements” ou os “07 elementos
chaves” do direito à moradia. Contudo, o termo “elementos” pode passar a concepção de que se tratam de coisas diferentes e independentes, o que não é correto. Tratam-se, na realidade, apenas de diferentes aspectos sob os quais o direito à moradia pode ser encarado e que estão profundamente imbricados, ou seja, a violação de um deles, em geral, acaba afetando os outros. Por isso, pela sua interdependência e inter-relação, é preferível chamá-los de “dimensões”.
LARIDEAL 108
Alain de Botton1 Se é verdade que as construções e mobílias que descrevemos como belas evocam aspectos da felicidade, poderíamos então perguntar por que achamos essas evocações necessárias. É fácil compreender por que desejamos que atributos como dignidade e clareza tenham um papel em nossas vidas, menos claro é por que também necessitamos que os objetos a nossa volta nos falem deles. Por que faz diferença o que o ambiente em que vivemos tem a nos dizer? Por que os arquitetos se preocupam em projetar prédios que comuniquem ideias e sentimentos específicos, e por que somos afetados de forma negativa por lugares que reverberam o que consideramos serem alusões erradas? Por que somos vulneráveis, tão inconvenientemente vulneráveis, ao que os espaços que habitamos dizem? A nossa sensibilidade ao que nos cerca pode ter origem numa característica incômoda da psicologia humana: o modo como abrigamos dentro de nós muitas identidades diferentes, e nem todas parecem igualmente “nós”, tanto que em determinados estados de espírito podemos nos queixar de termos nos afastado do que julgamos ser o nosso eu verdadeiro. Infelizmente, o eu de que sentimos falta nesses momentos, o aspecto autêntico, criativo, espontâneo e indefinível da nossa personalidade, não nos pertence para que possamos evoca-lo à vontade. O nosso acesso
a ele é, a um grau modesto, determinado pelos lugares onde estamos, pela cor dos tijolos, a altura dos tetos e o traçado das ruas. Num quarto de hotel estrangulado por três vias expressas ou numa área devastada com prédios enormes e mal conservados nosso otimismo e propósito tendem a se exaurir, como água num vaso furado. Começamos a esquecer que um dia tivemos ambições ou motivos para nos sentir animados e cheios de esperança. Dependemos do que está a nossa volta obliquamente para personificar os estados de espírito e as ideias que respeitamos e, então, nos lembrar deles. Nós queremos que nossas construções nos mantenham fiéis, como uma espécie de molde psicológico, a uma visão benéfica de nós mesmos. Colocamos ao nosso
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redor formas materiais que nos comunicam aquilo de que precisamos interiormente – mas estamos sempre correndo o risco de esquecer. Recorremos a papéis de parede, bancos, quadros e ruas para impedir o desaparecimento de nossas verdadeiras identidades. Em troca, tendemos a honrar aqueles lugares cuja perspectiva combina com a nossa e a legitimiza chamando-os de “lar”. Nossos lares não precisam nos oferecer abrigo permanente ou guardar as nossas roupas para que mereçam esse nome. Falar em lar com relação a uma construção é simplesmente reconhecer a sua harmonia com a nossa própria canção interior preferida. Lar pode ser um aeroporto ou uma biblioteca, um jardim ou um trailer de comida na beira da estrada.
Nosso amor pelo lar é, por sua vez, um reconhecimento do quanto a nossa identidade não é autodeterminada. Precisamos de um lar no sentido psicológico tanto quanto no físico: para compensar uma vulnerabilidade. Precisamos de um refúgio para proteger nossos estados mentais, por que o mundo em grande parte se opõe às nossas convicções. Precisamos que nossos quartos nos alinhem com versões desejáveis de nós mesmos e mantenham vivos os nossos aspectos importantes e evanescentes. De BOTTON, Alain; “A Arquitetura da Felicidade”, tradução de Talita M. Rodrigues – Rio de Janeiro, Rocco, 2007. Foto: Renata Castelo Branco
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A RESPONSABILIDADE COLETIVA DE UM DESASTRE URBANO Jo達o Sette Whitaker Ferreira1
UM PROGRAMA DE FINANCIAMENTO E NÃO UMA POLÍTICA URBANA E HABITACIONAL
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. 2 Dados do Ministério das Cidades para outubro de 2013 3 Revista Piauí n. 21, junho 2008. 1
É inacreditável que com mais de vinte milhões de pessoas sem ter onde morar dignamente se apresente por aí como uma das maiores potências econômicas do mundo. Essa patriotada economicista esconde duas tristes constatações: uma, do quanto o capitalismo fez-nos acreditar que crescimento econômico é a mesma coisa que desenvolvimento. Não é, e podemos chegar a ser o maior PIB do mundo que, se ainda tivermos cerca de 30% da população urbana sem moradia, continuaremos a ser subdesenvolvidos. A outra, do quanto a questão habitacional de fato não está na agenda política e, menos ainda, faz parte da preocupação dos brasileiros. Dos que têm casa, evidentemente. A falta de moradia que atinge uma boa parcela dos brasileiros não afeta os demais como a inflação, o crescimento do emprego ou o acesso ao consumo. Não se pode negar ao menos esse mérito do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Queiramos ou não, recolocou a temática habitacional em pauta, e produziu em quatro anos 1,4 milhão de novas moradias (tendo contratado 2,9 milhões)2. Mas produzir habitação em quantidade é, por si só, uma solução?O que significa “dar moradia” a milhões de pessoas que antes habitavam na precariedade das favelas? Dar-lhes uma casa, mesmo que pequena, mas com paredes e teto, luz, água e esgoto, endereço e a garantia de que dali não serão expulsos? Pois aí é que está toda a complexidade da questão habitacional, e uma das razões pelas quais ela é tão facilmente esquecida pelas políticas oficiais. Dar moradia não significa apenas dar teto, mas sim dar “cidade”, com tudo que isso implica: mobilidade, acesso ao comércio, aos empregos, a equipamentos e serviços, espaços públicos de qualidade, etc. Como é quase impossível, e extremamente custoso, garantir essa equação urbana em bairros distantes e desprovidos de tudo, onde geralmente se localizam os conjuntos para os mais pobres, há na prática somente uma solução: enfrentar o que Ermínia Maricato chamou precisamente de “nó da terra”3, dando acesso aos mais pobres à terra urbanizada na cidade. Ou seja, resolver “de verdade” o problema da habitação significaria tornar nossas cidades democráticas, alterando radicalmente sua lógica de produzir segregação, desigualdade e intolerância.
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Isso, evidentemente, seria bem mais ameaçador ao equilíbrio de poder vigente na nossa sociedade patrimonialista do que “apenas” dar quatro paredes e um teto em alguma gleba distante. Estra segunda opção, em compensação, não só não altera a ordem fundiária e urbana vigente como resolve objetivos eleitoreiros a curto prazo. Não há, no cenário político brasileiro atual, perspectivas de que essa lógica perversa mude. Por isso, quando o Programa Minha Casa Minha Vida foi lançado, em 2009, uma das críticas mais acertadas era a de que o programa não se constituía em uma verdadeira política de habitação, que pudesse começar a alterar a ordem territorial vigente. Pelo contrário, o plano “atropelava” uma política com essa característica, e que o governo federal já tinha pronta, o Plano Nacional de Habitação. O PMCMV era na verdade tão somente uma linha de financiamento, que usava o aquecimento da indústria da construção civil pela produção de moradias sociais como ferramenta “anticíclica” contra a crise econômica mundial. A atividade da construção é endógena, usa insumos e mão de obra essencialmente locais, sem depender tanto da economia internacional. Em um quadro de recessão mundial, é uma alavanca potente da atividade econômica. O problema é que ao dar-lhe esse o foco, o programa não se estrutura em função do interesse público, seu objetivo primeiro passando a ser o lucro do setor e das construtoras, ou seja, a produção em grande quantidade e pelo menor custo. Mas para produzir muito e rapidamente, dois obstáculos centrais devem ser superados, a qualquer custo: a dificuldade de se encontrar terra para os novos conjuntos, e a qualidade construtiva e urbanística que é, por natureza, cara. Assim, é quase que inevitável que um programa de financiamento que vise quantidade e celeridade produza conjuntos em terras afastadas e projetos arquitetônicos de péssima qualidade.
“As casinhas enfileiradas, sem nenhuma qualidade arquitetônica e construtiva, que pouco ou nada se integram à cidade”
Empreendimento do PMCMV na Região Metropolitana de Natal. Montagem: Luis Alves
Esse modelo, diga-se, foi amplamento adotado no mundo subdesenvolvido, da China ao México, país que aliás inspirou em muito o PMCMV, apesar de seus desastrosos resulta naquele país.
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O resultado era esperado: ao mesmo tempo que se vangloria por ter um programa que alimenta seu discurso político-eleitoral, o governo vem promovendo uma produção habitacional quantitativamente consistente, porém urbanisticamente deplorável. Na prática, o programa acentua o processo de segregação dos mais pobres em conjuntos periféricos e estigmatizados. As casinhas enfileiradas, sem nenhuma qualidade arquitetônica e construtiva, que pouco ou nada se integram à cidade, com poucos equipamentos e implantação paisagística monótona, são hoje o modelo de urbanização predominante no país. Como a disponibilidade de terras não está nos grandes centros urbanos, onde se concentra a maior demanda habitacional, são as cidades pequenas e médias que viraram o alvo da ação das construtoras: pipocam conjuntos do MCMV, em terrenos distantes e com péssima acessibilidade, onde a terra é mais barata, em uma equação mais lucrativa para a construtora. Nas regiões metropolitanas, o programa vem acentuando o processo de espraiamento urbano: a simples possibilidade de aquisição para um empreendimento do programa faz explodir os preços fundiários, fazendo com que até mesmo os conjuntos para faixas de renda média sejam lançados cada vez mais longe. O problema é que qualidade urbana e arquitetônica é um conceito difícil de se apreender, e milhares de casinhas alinhadas a quilômetros de qualquer facilidade urbana ou conjuntos enfileirados de quatro andares com apartamentos de menos de 40m² são, por incrível que pareça, vistos como um avanço pela maioria dos envolvidos. Da presidente aos prefeitos, o resultado rápido e visível dessa produção maciça é sedutor eleitoralmente e faz brilhar os olhos dos políticos4. Para as construtoras, é lucrativo. E, para os moradores beneficiados, a perspectiva da moradia formal e regularizada, mesmo que não seja nada além de um teto longe de tudo ou de um apartamento de tamanho impraticável, é vista como uma efetiva melhoria de vida. Por isso o PMCMV é tão difícil de questionar: a discussão sobre a qualidade e sustentabilidade dos modelos urbanos não se generalizou pela sociedade. E a ausência dos arquitetos-urbanistas nos processos decisórios do PMCMV, por meio de suas instituições representativas, é lastimável. Ficaram para trás os tempos em que essa categoria profissional tinha ampla participação no debate político nacional. Seria ela a mais capaz de es-
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timular iniciativas inovadoras para a melhoria do PMCMV: discutir as densidades dos conjuntos e sua relação com o entorno, a qualidade dos projetos de arquitetura, modelos de tipologias alternativas, inovações tecnológicas na construção, maior qualidade com custos baixos. Mas esses aspectos que fazem tanta falta ao PMCMV não estão, infelizmente, na ordem do dia. Como as construtoras querem construir rápido e barato, dispensam a qualidade e a inovação projetual, utilizam projetos burocráticos que são “carimbados” país afora, sem nenhuma adaptação ao local, ao clima ou à topografia. Porém, não se pode somente criticar o PMCMV sem destacar um aspecto extremamente positivo: a inédita destinação de significativa quantia de subsídios a fundo perdido, cerca de R$ 70 bilhões, destinada às faixas de renda mais baixa. Isso é uma novidade politicamente importante, uma vez que, historicamente, o financiamento habitacional brasileiro, alimentando-se nos fundos onerosos do FGTS, sempre foi drenado para atender apenas a renda média e nunca beneficiou de fato a população mais pobre. Dar-lhe acesso sem custo à moradia é um passo inicial imprescindível para resolver o déficit habitacional. Deve-se dizer que o PMCMV se divide na verdade em dois programas: o primeiro destinado à população de baixa renda (a chamada Faixa 1), para o qual incidem os subsídios citados, e um segundo, para as faixas de renda média (até dez salários mínimos), para o qual se destinam financiamentos facilitados. A condução dessas duas políticas como se fosse uma única é um problema, pois contaminam-se em seus propósitos e objetivos. Para as faixas mais altas, as construtoras apenas maquiam os projetos da faixa mais baixa, cobrando valores irreais para produtos de péssima qualidade, como mostramos em trabalho recente5. Segundo, porque nesse jogo, as construtoras negociam com as prefeituras “operações casadas”: produzem conjuntos baratos para os mais pobres nas periferias distantes em troca de arranjos fundiários e na regulamentação urbanística para empreendimentos de mais alta renda nas áreas mais centrais. Mas é preciso destacar que, apesar de supormos que a maior parte da produção acabaria beneficiando, como sempre, as faixas mais altas, isso não ocorreu, o que é inédito: até outubro de 2013, das 2,9 milhões de unidades contratadas, 46% foram para a Faixa 1, de renda muito baixa, e 54% para as faixas superiores, um equilíbrio razoável6.
Ferreira, João W. (coord.). “Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano”, São Paulo: LabHab FAUUSP/Fupam, 2012. 6 É verdade que haveria de se desagregar os números dentro da Faixa 1, pois ela mesma abrange ainda uma variação de renda razoável, entre 0 a 3 salários mínimos. Dentro desta, quantas unidades foram para a faixa mais baixa? 5
A RESPONSABILIDADE DAS PREFEITURAS E CONSTRUTORAS: COMO FAZES CASAS SEM REFORMA URBANA? Mas não se pode esperar do programa aquilo que ele não é, embora gostaríamos que fosse. Se o PMCMV é antes de tudo uma linha de financiamento, ele deveria ser tratado como tal. Restam duas opções: ou o renegamos de vez por ele não ser a política que gostaríamos, ou o analisamos dentro de suas especificidades, limitações e muitas imperfeições, para tentar diminuir o enorme impacto urbano-ambiental que vem causando. Isso não significa desistir da luta para que o país tenha uma verdadeira política habitacional e urbana. Mas considerando que renegar o programa não irá suspendê-lo, e que ele já produziu mais de um milhão de moradias e vai continuar produzindo, algo deve ser feito. O surpreendente é que, mesmo sendo como é, o PMCMV poderia gerar resultados bem melhores. Para ser mais radical: embora a lógica privatista do programa esteja na origem de tudo, a maior responsabilidade pelo desastre urbano-ambiental do PMCMV não é do programa em si, mas das prefeituras e das construtoras. Um programa de financiamento tem limitada capacidade de inferir na maneira como esses recursos são aplicados no território. Pois, é bom lembrar, a prerrogativa das políticas territorial, urbana e habitacional é, desde 1988, municipal. No máximo, um programa de financiamento federal (ou estadual) poderá estabelecer algumas diretrizes condicionais, com a esperança que os municípios as acatem. Mas não é da competência de um programa de financiamento determinar a localização de empreendimentos, nem a política fundiária municipal. O fato é que é das prefeituras a responsabilidade de garantir oferta de terra urbanizada bem localizada também aos mais pobres, de estabelecer normas de qualidade urbanística e edilícia, de prover infraestrutura, equipamentos e serviços. Desde 1988 devem elaborar Planos Diretores que supostamente deveriam dar diretrizes para isso, e desde 2001, com o Estatuto da Cidade, elas dispõem de um conjunto de instrumentos legais para, por exemplo, combater a retenção de terras ociosas em áreas centrais, para fazer estoques fundiários para fins de moradia, para regularizar áreas informais. Instrumentos que poderiam lhes dar a força reguladora necessária para produzir HIS em áreas mais centrais, ainda mais quando aparecesse alguma política de financiamento mais substanciosa.
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Pois bem, com todos seus defeitos, tal política apareceu, mas as cidades, infelizmente, não se prepararam para isso. Treze anos após aprovação do Estatuto, nenhum município no Brasil implementou o mesmo de forma sistêmica e integral, no intuito de alterar o equilíbrio de forças políticas, de enfrentar de fato a desigualdade sócio espacial e mexer no poder dos proprietários fundiários e das elites urbanas em geral. Em outras palavras, a reforma urbana no Brasil não aconteceu, e quando se destinam bilhões para fazer casas para os mais pobres, a política urbana municipal continua sendo a da segregação sócio espacial. Os prefeitos, salvo raras exceções, negociam com as construtoras o caminho mais fácil para obter dividendos políticos. Estas também não se pautam pela preocupação urbanística, pois sua vocação é a busca de lucros e não a preocupação social. Assim, o que temos são prefeituras negociando empreendimentos gigantescos para a faixa 1, distantes da cidade “que vale”, cujo objetivo é o de poder aproveitar eleitoralmente a imagem das centenas de casinhas enfileiradas, e não de integrar a população mais pobre à cidade. Negociações locais entre proprietários e poder público para a destinação de glebas para os empreendimentos, ingerências políticas na definição dos beneficiados, ágio cobrado pelas imobiliárias nas grandes cidades, todos os tipos possíveis de “jeitinhos” caracterizam a aplicação do programa país afora. Pior, por enorme desconhecimento do que seja uma urbanização democrática e de qualidade, geralmente prefeitos, construtoras e até mesmo a população beneficiada se felicitam pelos sofríveis resultados. Salva-se desse quadro a modalidade “entidades” do programa, que destina recursos diretamente às cooperativas habitacionais, que produzem as moradias por regime de mutirão. Sabemos o quanto os mutirões autogeridos foram responsáveis por melhoras na qualidade arquitetônica e urbanística da habitação social no Brasil, e essa virtude continua a existir, embora as cooperativas também se vejam face ao problema do preço fundiário e má localização dos empreendimentos. Mas mesmo com suas qualidades, a modalidade não pode ser responsável por cobrir o déficit quantitativo, porque não teria como atende-lo por sua natureza pontual e comunitária, e porque não lhe é dado o papel que mereceria: das 1,4 milhão de unidades produzidas pelo PMCMV, menos de 15 mil foram na modalidade “entidades”.
O RELATIVO PODER DO MINISTÉRIO DAS CIDADES, O PAPEL DESVIRTUADO DA CAIXA Não se pode dizer que o Governo Federal, por meio do Ministério das Cidades, fique completamente paralisado face a tal realidade. Na verdade, tomou iniciativas para “disciplinar” os municípios. Obrigou-os a aderir ao Sistema Nacional de Habitação e a realizar Planos Locais de HIS para ter acesso aos financiamentos do PMCMV, e alterou o plano em si, editando em 2011 o MCMV 2, com mudanças que poderiam, em tese, amenizar os problemas enfrentados. Por exemplo, reduziu-se o tamanho máximo dos condomínios a 300 unidades, obrigou-se que se localizem em áreas de extensão urbana contíguas à áreas já urbanizadas, exigiu que as prefeituras realizem as obras de infraestrutura necessárias, etc. Evidentemente, muito mais poderia ser tentado, como criar parâmetros de densidade desejáveis, obrigar a existência de projetos arquitetônicos remunerados independentemente das construtoras, analisar com maior rigor o cumprimento da provisão de infraestrutura, criar instâncias de concertação entre os agentes envolvidos (Caixa, prefeitura, construtoras, usuários), ideias que já foram lançadas, mas não se efetivaram. É limitado o poder político da Secretaria Nacional de Habitação na condução do programa, face à Caixa Econômica Federal, que o opera financeiramente, ou mesmo à outras secretarias do Governo Federal, e as iniciativas tomadas têm pouco efeito: mesmo limitando os condomínios a 300 unidades, nada impede as construtoras de, com a complacência interessada dos municípios, enfileirarem dez ou mais condomínios, produzindo conjuntos dos 3 mil unidades. A determinação de localizar os empreendimentos em áreas de extensão urbana não impede que câmaras municipais, em um exemplo folclórico mas indicativo das relações ainda arcaicas que regem a ordenação do território, denominem como tal a distante fazenda do genro do primo do filho do prefeito, e assim por diante. Além do mais, as desigualdades regionais brasileiras produzem situações pitorescas: em pequenas cidades de regiões muito pobres, satisfazer as exigências de infraestrutura – como asfalto, luz, linhas de ônibus – significa transformar o empreendimento do PMCMV em um bairro mais luxuoso do que as áreas “nobres”, porém paupérrimas, da cidade. Imagem de satélite do empreendimento Basoli, do PMCMV, em Campinas Montagem: Luis Alves
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Além disso, por ser um programa de financiamento e não uma política habitacional e urbana, quem assegura a fiscalização dos parâmetros de qualidade arquitetônica e urbanística é um banco, a Caixa cuja vocação, evidentemente, não é bem essa, e cujo poder sobre os municípios no que tange à organização do território também é limitado, apesar da boa vontade de seus técnicos, e de seus escritórios regionalizados. Condicionam as aprovações de empreendimentos por critérios técnicos de projeto e urbanismo que muitas vezes se mostram rigorosos demais em quesitos pouco essenciais, mas pouco efetivos em aspectos importantes para a qualidade urbanística. Somam-se aos critérios da Caixa (como por exemplo o chamado Selo Azul) algumas outras tentativas de parametrização, como novas normas de desempenho dos materiais de construção, a exigência de projetos universais (que possam ser convertidos em projetos acessíveis) que, de alguma forma, ajudam a melhorar um pouco a qualidade dos projetos. Ainda assim, estamos longe de uma mudança real de qualidade. Por mais que se possa deplorar que o PMCMV não passe de um programa de financiamento que pouco faz para a melhoria do nosso modelo de urbanização socialmente segregador, a verdade é que se tivéssemos municipalidades engajadas na busca desse objetivo, assim como empresas de construção civil com uma ação minimamente mais responsável socialmente, o resultado dessa enorme disponibilidade de fundos poderia ser bem diferente. Se a política urbana municipal no Brasil fosse uma realidade, e não a prática de um urbanismo tecnicista e elitista que exacerba as injustiças sócio espaciais, se as leis no Brasil (inclusive o Estatuto da Cidade) fossem aplicadas além daquilo que interesse às elites, se houvesse condições políticas para uma reversão das prioridades dos investimentos públicos, se o “nó” da terra tivesse alguma perspectiva de ser desfeito, poderíamos imaginar resultados melhores para o PMCMV, mesmo do jeito que ele é. Em suma, o PMCMV não é nem de longe a política habitacional e urbana que desejaríamos. Mas é um programa de financiamento como nunca tivemos, tanto para as faixas de renda muito baixa quanto para as de renda média. Infelizmente, não se trata de lançar a culpa apenas no Governo Federal e lavar as mãos sobre as mazelas do PMCMV. A culpa é de toda a sociedade, que ainda não mostra a maturidade para mudar de fato a lógica da nossa urbanização.
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Empreendimento em Nova Odessa, São Paulo. Fotografia e montagem: Luis Alves
“Se houvesse condições políticas para uma reversão das prioridades dos investimentos públicos, se o ‘nó’ da terra tivesse alguma perspectiva de ser desfeito, poderíamos imaginar resultados melhores para o PMCMV”
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Karina Oliveira Leitão É Professora Doutora e Coordenadora de Pesquisas e Extensão e do Grupo de Formação em Estudos Urbanos do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP.
Não é preciso se fazer muito esforço para perceber as evidências dos arcaísmos na vida cotidiana brasileira. Um olhar mais atentado para a vida doméstica no país diz muito sobre quem somos, revela os traços de heranças escravocratas que não superamos. Para os arquitetos e urbanistas, muito interessa entender como essas heranças se territorializam nas nossas casas, nas nossas cidades. Há, portanto, que se recorrer aos trabalhos seminais acerca do tema para chegarmos nas relações sobre aquilo que nos interessa: a opressão que se dá no e pelo espaço. E como fazê-lo se não bebendo na fonte de Gilberto Freyre (1900-1987)? O intelectual teve uma importância crucial para a compreensão de quem somos. Suas obras nos conduziram ao entendimento das determinações raciais, e do próprio racismo, na formação do nosso povo. Muito nos interessa a forma de Freyre abordar como senzala e casa-grande1 se organizam de maneira complementar, revelando relações de opressão aos negros escravizados no país, violentados nas senzalas, e agredidos de forma não menos cruel nas casas-grandes. Os escravos tidos como domésticos gozavam de certos “privilégios” por viverem na casa-grande, mas de que lhe serviam estes tais abrandamentos se não à manutenção da sua condição de submissão? Freyre nos faz ver que as escravas da casa grande, por exemplo, não raro eram poupadas da agressão física, em função da preservação do corpo, pois cumpriam obrigações sexuais para com seus proprietários. A obra de Freyre foi lindamente revisitada recentemente no premiado filme “O som ao redor”, do também pernambucano de Kleber Mendonça (2012). O diretor explora uma das mais importantes interpretações da
nossa formação social, transportando o expectador às relações urbanas que se dão num Recife muito atual. O senhor do engenho agora nos é apresentado como o “dono da rua”, o manda-chuva, que tudo controla, tudo vê. E que não por acaso está perdendo força para um capital de outra natureza, o imobiliário! Os antigos capangas surgem na película como os vigilantes, com ares milicianos, que se instalam na rua, não tão violenta, mas por eles propalada como tal. Diretas ou não, as relações que Mendonça nos apresenta no seu filme nos remetem a G.Freyre nas suas interpretações sobre o nosso patriarcado, as relações entre o rural e o urbano no país, a propriedade privada que é mantida a ferro e fogo, demonstrando que a constituição de nossas estruturas sociais foi muito menos pacífica do que parece: foi forjada via opressão dos trabalhadores, negros, pobres, sem posses, sem terras, que vai moldando nas elites também um medo permanente da insurgência, da revolta, dos batuques que vêm da senzala. Mendonça parece fazer alusão a essa brilhante tese de Freyre, quando compartilha conosco uma cena sobre o sonho da neta rica do senhor-do-engenho-que-virou-dona-da-rua! A menina traz no subconsciente, revelado em pesadelo, a paúra da invasão da casa onde mora, por pretos, ou brancos quase pretos de tão pobres2... Não é pequena a produção científica que derivou da matriz do pensamento freyriano! É importante conhecê-la, atualizá-la. Posto que é a partir dela que podemos entender o quão diferentes somos no contexto latino-americano. É Freyre que nos mostra a importância dos negros para o tipo de miscigenação que constituímos no Brasil, e a dívida que temos com eles... ou melhor
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sa classe média, indignada com os recentes avanços trabalhistas alcançados pelas trabalhadoras domésticas. Mendonça nos mostra isso mais claramente em seu curta “Recife Frio” (2009), quando nessa cidade, assolada por uma geada estonteante, o quarto da empregada, num apartamento de luxo em Boa Viagem, vira o lugar mais confortável da casa. Aquele cubículo nos fundos da casa, mal iluminado e pouco ventilado, é tomado da empregada pelo filho dos patrões, numa cena que provoca no expectador mais consciente, um riso nervoso.
Ilustrações: Calixto Comporte
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dizendo, conosco: por que nós brasileiros somos todos um pouco negros ou não somos? Nossa elite supostamente branca teima em não acreditar que um branco no Brasil pode ter muito mais marcadores genéticos africanos, do que um mulato que pode ter predominância genética europeia3! Sim, isso é possível e comum, e é isso eminentemente que diferencia o nosso jeito mestiço de ser dos outros povos latinos. É isso que nos engrandece, como já defendia Freyre, primeiro intelectual brasileiro a louvar nossa miscigenação contra um olhar negativo de nossas elites. Mestiçagem defendida por P. Leminski, e profetizada por J.Mautner como sendo o melhor da nossa tal amálgama4. Se por um lado é da mestiçagem que tiramos o que temos de mais rico culturalmente, por outro, os trabalhadores mulatos oprimidos talvez não enxerguem com olhos tão otimistas a forma como a sociedade brasileira os explora. No cotidiano brasileiro, os escravos ditos “tigrados” encarregados do transporte dos detritos das ruas – marcados no corpo pelos traços de urina e das fezes que transportavam -, as amas de leite, os antigos ‘moleques' de recados, são revividos pelos nossas empregadas domésticas, que não por acaso são mulheres, negras, em sua predominância. Tanto já se falou na academia, tanto tem se lutado na política contra essas formas atualizadas de opressão do trabalho doméstico, mas os avanços no reconhecimento nos direitos trabalhistas destas trabalhadoras ainda são poucos. O pouco que se conquista se faz a duras penas, e com uma resistência preconceituosa da nossa sociedade elitista. O recente debate sobre o tema no Brasil trouxe à tona as opiniões espúrias da nossa elite, e isso inclui as reações contrárias da nos-
Esse tema, apesar de central, tem sido considerado pelos arquitetos com pouca crítica, pouca atenção. A estrutura social que foi se conformando no país levou o nosso mercado imobiliário a reproduzir ad nauseam esse padrão: casas e apartamentos com quartos de empregada inadequados, mais recentemente disfarçados de quartos reversíveis, dão-nos as evidências desta opressão. Um TFG está sendo concluído na FAU sobre esse tema: a aluna Ana Teresa de Carvalho, e seu orientador, o Prof. Dr. Renato Cymbalista, enxergaram a importância de atualizar essa discussão, trazendo-a para a arquitetura. A aluna explora, não por acaso, como os quartos de empregada são reproduzidos em casas brasileiras, inclusive naquelas modernistas, de arquitetos expoentes no pensamento de vanguarda no país. Nem os projetos destas casas escaparam das amarras do arcaico, e não poderia ser diferente. Elas foram produzidas num contexto social elitista, patrimonialista! Como poderia a arquitetura vencer as amarras de uma estrutura social tão arraigada? É doloroso enxergar as marcas do nosso atraso. Mas é também libertador! Nós arquitetos precisamos incorporar a crítica da sociologia e do movimento negro brasileiros nas nossas análises, nos nossos projetos. E é crucial reconhecer a importância da cultura negra para a nossa formação, reparando os danos impostos aos trabalhadores mestiços no Brasil. Percamos então o medo dos batuques, que hoje vêm dos nossos negros, dos mulatos, e também daqueles aparentemente brancos, e supostamente livres. E façamos juntos a revolução nas nossas leis, políticas, casas e cidades! Se não, pelo menos nas nossas cabeças.
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1
Cf. FREYRE, G. Casa-grande & senzala. 1ª edição.
Editora Global, 1933. 2
Como nas palavras de Caetano Veloso e Gilberto
Gil, na canção intitulada Haiti (de 1993, Álbum Tropicália 2). 3
Como revelam as pesquisas do Prof. Sérgio Pena
– UFMG. PENA, S. et al . Association of Genetic Variants with Self-Assessed Color Categories in Brazilians. Plos One, v. 9, p. e83926, 2014. Ilustrada em evidência anedótica pela BBC Brasil, para quem o professor realizou testes genéticos no sambista Neguinho da Beija-Flor, indicando que ele tem mais genes europeus do que africanos(cf. http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/ story/2007/05/070424_dna_neguinho_cg.shtml) 4
Cf. poemas de P. Leminsky (1944-1989), e canção e
obra de Jorge Mautner (1941-atual).
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AS PERIFE DE SÃO PAULO NOVAS DINÂMICAS E CONFLITOS
ERIAS Ana Paula Galdeano Gabriel Feltran1
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Quem circula ou pesquisa as periferias de São Paulo hoje encontra um cenário muito distante de desolação social que marcou a descrição desses territórios há quarenta anos. Encravadas em bairros de classe média-alta, como Paraisópolis, localizadas na extrema franja oeste da Região Metropolitana de São Paulo, como o Jardim Padroeira, ou na zona leste da cidade, como Sapopemba, Cidade Tiradentes ou Itaim Paulista, as periferias são agora internamente muito heterogêneas. Embora a precariedade de serviços ainda seja marcante, as famílias que as habitam são contemporaneamente mais providas de programas de habitação popular, de Unidades Básicas de Saúde, de Centros de Referência de Assistência Social, de Centros de Atenção Psicossocial, de coleta de lixo, de inúmeros programas e projetos implementados por entidades sociais. Muitas famílias deixaram a condição de extrema pobreza, se tomarmos a renda como critério, quase sempre complementando empregos formais, informais, bicos e trabalhos temporários. Essas melhorias, entretanto, coexistem com uma polarização do conflito social, se considerada a ampliação da política penal que redunda no encarceramento em massa, marcante em São Paulo desde meados dos anos 1990. O paradoxo desse cenário é evidente: no final de 2013, o número de famílias que recebiam o Bolsa Família na cidade de São Paulo era de 337 mil, enquanto o número de pessoas encarceradas no estado era de 205 mil. Muitas vezes, na mesma família há os que conseguiram fazer faculdade e montaram negócios, os que lutam dia a dia para manter suas casas e os que se acabaram no "crime" ou no crack. Não é incomum nas favelas, sobretudo, que enquanto a mãe receba o Bolsa Família para os filhos pequenos, o filho mais velho ou o pai estejam presos. Se para uma parcela da família destina-se proteção, para outra sobra repressão. O problema ainda é mais complexo: nesses mesmos territórios, o indivíduo tratado como “trabalhador” durante o dia pode ser abordado como “bandido” em Operações Policiais noturnas. Situação ainda mais radical se desenha para os moradores de rua ou os usuários de crack, hoje identificados como o limite do humano e, portanto, dos direitos. Muito comum, entretanto, que as trajetórias de rua tenham passado pela cadeia, o albergue, a clínica de recuperação, a favela, e a rua novamente. O mesmo indivíduo “integrado” a políticas sociais é, muitas vezes, o "excluído" dos direitos fundamentais, ou mesmo o "bandido" que se pretende conter pela repressão. É o "bandido", aliás, que passa a figurar como a representação pública do conflito a suprimir, pautando o senso comum jornalístico que, por sua vez, pauta o que se considera hoje o debate "público". As melhorias econômicas e a ampliação das políticas sociais não significaram, portanto, um caminho de reversão das desigualdades ou um rumo claro de fortalecimento da proteção social, da ampliação de direitos, fundamento de qualquer democracia. Ao contrário, nosso "desenvolvimento" reforça a conflitividade social e alimenta a chamada "violência urbana". É em termos desse paradoxo que parece ser possível descrever melhor o cenário recente, constitutivamente contraditório. É possível afirmar que compreender São Paulo, suas novas desigualdades e configurações, passa pela necessidade de um deslocamento no nosso olhar, de uma postura reflexiva (Telles, 2013).
Na década de 1970, o modelo radial concêntrico de rápida expansão marcava nitidamente a paisagem urbana: os pobres nas franjas da cidade, em territórios sem infra -estrutura, a classe-média e média-alta nas regiões centrais e no quadrante sudoeste. Os padrões e a sociabilidade do período são bem conhecidos: periferias constituídas por famílias extensas, migrantes, proletárias e católicas, de maioria negra (pardos e pretos, segundo o IBGE). Suas casas autoconstruídas, com a ajuda de parentes, compadres e vizinhos. Vindos das regiões mais pobres do país, traziam consigo não apenas a disposição para ocupar o chão de fábrica, em período de expansão de industrialização do país, mas também o sonho de melhorar de vida, ancorado no trabalho e na casa própria. Autores como Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato e Lícia Valladares demonstraram, nesse período, como o território e a moradia eram chaves para compreender a cidade. Cientistas sociais como José Álvaro Moises, Eunice Durham, Maria Celia Paoli e Lucio Kowarick, ao mesmo tempo, mostravam as contradições urbanas do período, explicadas a partir da expansão capitalista combinada com pobreza, desigualdade e oferta limitada de serviços públicos. A questão da "violência" era marginal no debate: concebida como déficit de democracia, resquício do autoritarismo, o problema da segurança era tarefa dos próprios moradores, que organizavam formas de “justiça popular” como os linchamentos e o pagamento de “justiceiros”, ou “pés de pato”, que promoviam a “limpeza” do nome
público dos bairros, assassinando os “bandidos”, tidos como figuras diametralmente opostas à “comunidade”. Na década de 1980, os movimentos sociais urbanos, ancorados nas matrizes de fundação de uma "esquerda democrática e popular" - marxista, católica, sindical, emergiram das periferias para a cena pública. Novos sujeitos reivindicavam a contrapartida do trabalho assalariado por meio da luta pelo acesso aos direitos sociais – creche, asfalto, escola, hospital, moradia – e reconhecimento de identidades específicas - relações raciais, de gênero etc. As periferias foram vistas como lugares de onde brotava a renovação da cena política. Na virada para os anos 1990, esses mesmos movimentos acessaram "canais de participação", desde a Constituinte até os Conselhos, Fóruns e colegiados gestores de políticas sociais, eles mesmos frutos da luta movimentista (Tatagiba, 2011). Grande parte das lideranças se deslocou para a atuação administrativa, quase sempre subalterna a grupos melhor institucionalizados e sempre mediada pelos partidos políticos, mais centrais nas decisões. Outra parte das lideranças populares passa a compor os quadros técnicos das ONGs, já em proliferação no período. A renovação política se fragilizava. Ao mesmo tempo, a crise econômica e o acirramento das desigualdades, pela explosão do desemprego que se seguiu à reestruturação produtiva, fazia agora da pobreza urbana um signo do atraso. Não por acaso, tempo também de explosão da informalidade e da criminalidade violenta, incrementada pela instalação de
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mercados transnacionais de drogas e armas entre o exército de desempregados, subempregados, ilicitamente empregados. Entre 1991 e 2004, a situação de trabalho e renda dos mais pobres de São Paulo foi “desalentadora” (Figueiredo, Torres e Bichir, 2006): redução de ocupados (54% em 1994 e 45,9% em 2004), deterioração das condições associadas ao trabalho inclusive com diminuição da carteira assinada, que passa 54% na década de 1990 para 30% em 2004. Na Região Metropolitana, em 2001, o desemprego chega a 22%. Nossas pesquisas de campo dão carne e osso a esses números: os filhos dos migrantes, que já não são migrantes e representam toda uma geração nascida em São Paulo, nas periferias, desenvolvem trajetórias muito distintas daquelas percorridas pelas famílias de origem. Parte deles se desloca para o terciário, com carteira assinada, e ingressam em universidades (geralmente privadas); outra parte faz percursos alternados entre o trabalho formal e informal, precarizado, temporário. E há, evidentemente, aquelas famílias que jamais se integraram ao mercado formal dos anos 1970, construindo suas vidas, algumas vezes, entre o mercado formal, informal ou ilícito, edificando o sonho da casa própria nas favelas auto-construídas, muitas vezes com recursos advindos dos mercados criminalizados - violentos ou não - que se expandem brutalmente nas periferias. A década de 1990 assistiu, ainda, ao crescimento da taxa de homicídios, que diminuíram entre 2001 e 2011 não por políticas bem sucedidas do Estado, mas por auto-regulação de um "mundo do crime" cada vez mais poderoso nas periferias da cidade, agora regulado pelo Primeiro Comando da Capital (Feltran, 2011ª e b; Galdeano, 2013). Mas não só isso. A reforma penal dos anos 1990 quadruplicou a população carcerária paulista na
década seguinte, impulsionada pela equivalência do tráfico de drogas a crime hediondo, que jogou dezenas de milhares de jovens "trabalhadores do tráfico" nas cadeias. As prisões passaram a ser chamadas de “faculdades” e o PCC construiu ali sua hegemonia, antes de expandir-se por todos os territórios de pobreza do estado. Nos anos 2000, as famílias pobres contam, então, com realidades urbanas providas de políticas públicas nas áreas da saúde, assistência social, educação e infra-estrutura; ao mesmo tempo, há cada vez mais presença do "crime" nos cotidianos. Daí o paradoxo a compreender. Quanto às políticas sociais, o cenário paulistano é hoje de quase universalização de alguns serviços básicos. No ano de 2004, no que se refere aos 40% dos moradores mais pobres da cidade: 96,7% tinha acesso a rede de água, 97,4% de energia elétrica, 92,7% de coleta de lixo, 75,0% de esgoto e 98.7% acesso ao ensino fundamental. Entre essa porcentagem de mais pobres, 91,0% tiveram acesso à saúde no ano, mas a avaliação desses moradores em relação à rapidez do atendimento continuou baixa entre 1991 e 2004 (Figueiredo, Torres e Bichir, 2006). A questão da qualidade dos serviços evidentemente merece, agora, toda a atenção. Houve também mudanças no padrão demográfico. O fluxo migratório para a capital e região metropolitana atingiu seu auge entre as décadas de 1960-1970. Mas entre 1991-2000 cerca de 450 mil pessoas deixaram a capital, e a cidade registrou uma baixíssima taxa de crescimento. A população envelheceu e, embora os adultos (15-59 anos) representem a maior parte da população – com estimativa de 63,25% em 2015 -, a taxa de crescimento desse grupo etário (0,22 a.a.) é menor em relação à população com 60 anos ou mais (3,42%) (Baeninger, 2011).
No que se refere ao padrão espacial, os trabalhos produzidos por Eduardo Marques e equipe indicam que os espaços periféricos se tornam heterogêneos socialmente e espacialmente. Em artigo recente, Marques e Requena (2013) mostram que se até a década de 1990 a cidade apresentava uma distribuição concêntrica, fortemente associada à renda - isto é, as áreas que mais cresciam eram as periféricas habitadas por moradores de baixa renda -, a partir de 2000 o cenário se torna mais complexo. Algumas periferias não cresceram e outras continuam apresentando crescimento elevado; e o mesmo se verifica em relação ao centro expandido. Algumas regiões apresentam crescimento negativo (Marsilac e áreas de EmbuGuaçu, ao sul; Osasco, Carapicuíba e Barueri; e Itaim Paulista, Jardim Helena, São Miguel Paulista, além de Cidade Tiradentes, na zona leste). Inversamente, algumas áreas das periferias da metrópole continuaram apresentando taxas de crescimento elevadas, embora inferiores em relação às décadas anteriores (Jardim Ângela, Grajaú, Parelheiros e Jaraguá). Pode-se dizer, em termos gerais, que área do centro expandido cresceu, invertendo a tendência de esvaziamento anterior. Entretanto, seria apressado afirmar que “o centro voltou a crescer”, uma vez que as análises desagregadas indicam que algumas áreas centrais apresentaram grande crescimento (Tatuapé, Morumbi, Santa Cecília, Bela Vista, República e Cambuci), enquanto outras apresentam decréscimo entre 1991 e 2000 e estabilidade entre 2000 e 2010 (Perdizes, Pinheiros, Campo Belo, Jabaquara, Butantã e outras). A riqueza e complexidade dos dados apresentados não nos permite sumarizá-los aqui. Cabe destacar, entretanto, que a eles ainda se acrescenta a relevância inconteste
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da expansão neopentecostal (Almeida, 2004 e 2009) que altera o perfil religioso, sobretudo dos mais pobres. A conversão religiosa fornece os valores que sustentam um estilo de vida voltado para a busca da abundância e do sucesso. Além disso, as igrejas neopentecostais têm despontado nas últimas décadas como tipos muito específicos de organizações civis que travam batalhas na guerra entre Deus e o Diabo, esse último representado pelas drogas, “crime”, prostituição que alcançam mediações com atores estatais, programas assistênciais, políticas de segurança como as UPPs e muitas outras correlações (Birman e Machado, 2012; Machado, 2013, Galdeano, 2013). As igrejas são, na realidade, um dos diversos tipos de organizações civis passam a travar lutas contra o “mundo do crime”. O aumento da renda do brasileiro é outro deslocamento importante, embora controverso. Os dados de Waldir Quadros (2010) mostram que em 2003 eram 28,9 milhões indivíduos vivendo em situação de miséria, que diminuem consideravelmente em 2009 passando para 17,2 milhões. Entre 2003 e 2009, 7,8 milhões de pessoas ascendem ao estrato de “massa trabalhadora” composta por indivíduos com rendimento entre R$ 350 e R$ 700 mensais; e 10,4 milhões passam a ocupar a “baixa classe média”, composta por um grupo heterogêneo de profissionais (balconistas, professores do ensino fundamental, auxiliares de enfermagem, auxiliares de escritório, recepcionistas, motoristas, garçons, barbeiros, cabeleireiras, manicures, trabalhadores qualificados etc.) cuja renda varia entre R$ 700 a R$ 1.750. O debate em torno do aumento da “baixa classe média” ou da “nova classe média” é enorme já que o marcador sociológico “classe”, como
ensina Pierre Bourdieu, exige a combinação de diversos tipos de capital: econômico, social e cultural. A rigor, renda é insuficiente para definir uma classe social. Sem poder ir muito longe nessa discussão, basta dizer que o arrefecimento e ampliação dos “trabalhadores” das periferias engloba um contingente de indivíduos que tem acesso à educação de baixa qualidade, que dependem da rede pública de saúde ou de planos com baixa cobertura, do transporte coletivo, e cuja precariedade se estende para setores muito diversos como a habitação, a segurança, a cultura, o lazer etc. Trata-se de moradores que puderam ter acesso ao crédito oferecido pelas grandes lojas que se expandiram também nas periferias, como as Casas Bahia, tendo acesso à computadores, celulares, smatphones, equipamentos domésticos indispensáveis à vida moderna; e que puderam também ter acesso a financiamento habitacional.
Se tomarmos ainda a evolução das oportunidades familiares (dos indivíduos de melhor renda na família) entre 2003 e 2009, a mobilidade ascendente da “baixa classe média” para a “média classe média” representou crescimento de 37,4%, sendo bem menos surpreendente em relação aos estratos mais pobres; 45,5% da população que estava na “massa trabalhadora” em 2003 teve mobilidade para a “baixa classe média”. E as melhorias mais significativas estão no 61% de pessoas que deixaram a condição de miséria e ascenderam à “massa trabalhadora” (Quadros, 2010). O recente ciclo de crescimento econômico e o aumento dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, têm sido as explicações para o aumento da renda, mas isso não significa que as parcelas mais mal aquinhoadas da população estejam usufruindo do status de classe média. É nessa população, sobretudo a residente nas favelas, que figura a conflitualidade contemporânea.
contemporânea nas periferias de são paulo Os paradoxos de desenvolvimento, associado à expansão da criminalidade e polarização social, deslocam o conflito social e urbano em São Paulo (Feltran, 2011b). Se nos anos 1980 esse conflito esteve pautado na perspectiva de integração dos trabalhadores, em 2010 trata-se de gerenciar as fronteiras entre periferia e direitos, de modo compartilhado entre Estado, policias e o “mundo do crime”. Entretanto, a nova configuração do conflito que estaria no centro da "questão urbana" já não privilegia o “trabalhador”, mesmo que desempregado, mas integrável pelo direito;
agora a pauta é centrada no “bandido” que, idealmente, deve ser apartado do convívio social. Não se trata mais de pautar os direitos de cidadania e sua universalização, mas de administrar as fronteiras entre “trabalhadores” e “bandidos”. Quanto mais se eliminar dos segundos, mais paz teriam os primeiros. O remédio custa a curar, entretanto. Quanto mais se reprime aqueles que se julga serem "bandidos", mais insegurança se soma aos cotidianos dos "trabalhadores", em diversos estratos sociais, em diferentes territórios urbanos. Os jovens das periferias talvez sin-
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tetizem a contradição: vivem em territórios consolidados, têm celulares comprados à prestação, acesso à internet, fazem rolezinhos nos shopping, ao tempo em que o discurso fincado na esquerda lhes é desinteressante. Mas mais do que isso: são vistos como jovens à luz do dia, como suspeitos à noite. Não se sabe, portanto, se seriam o futuro do país, consumidores, ou seres a reprimir. A “expansão do mundo do crime”, ainda notável nas periferias, já não aparece no aumento das taxas de homicídio, mas em um contexto em que atores tradicionalmente legítimos – o Estado, a justiça, as igrejas - passam a disputar legitimidade com atores criminais, que passam a figurar como instâncias normativas. Quem é roubado, nas periferias da cidade, pode recorrer ao "irmão" do PCC na busca por justiça. A partir de 2000, o conflito nas fronteiras entre a democracia formal e outras instâncias de regramento social é evidente. Se há um movimento de universalização das políticas sociais, implementadas para a supressão das desigualdades, por outro lado essas políticas estão associadas constitutivamente à formas expansivas de repressão social. Não se trata, pois, da construção da cidadania, assunto tematizado intensamente pela literatura, mas de gerir as franjas sociais: favelas, ruas, prisões. Ilustração: Michel Lara
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As manifestações de 2013, centradas na demanda do direito à cidade, à mobilidade e ao usufruto das benesses do "desenvolvimento" brasileiro da última década, mostraram que as políticas sociais universalizadas estão longe de garantir pertencimento social. O clima de insatisfação é grande, em diversos segmentos sociais. Nas margens dessa insatisfação, figura-se o momento atual nos termos da "Guerra" (às drogas, à pobreza, ao crime, ao crack). O contrário é verdadeiro: "bater de frente com polícia" passa a ser uma política compartilhada por muitos. Os manifestantes dos Comitês Populares da Copa tematizam a violação de direitos, em especial ao direito de moradia, mas também carregam cartazes que falam de assassinatos, repressão, mortes e remoções (Dowbor e Szwako, 2013). Black Blocs podem ser reconhecidos como passíveis de enquadramento na Lei de Segurança Nacional e são agora investigados pelo inquérito 01/2013. Democracia? As periferias urbanas, que sempre estiveram no centro da questão urbana - ora como inovação política a integrar, ora como violência letal a controlar - parecem agora oferecer os parâmetros contraditórios, por excelência, que regem a cidade contemporânea.
1
Ana Paula é socióloga, professora da UNIFESP com experiência em sociologia política e urbana. Gabriel
é Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Atualmente pesquisa as transformações nas dinâmicas sociais e políticas das periferias urbanas, com foco nas ações coletivas, grupos marginalizados e no “mundo do crime” em São Paulo.
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A N TA OZ N IR A QUE -S LE IAANIE ÊN R D M PO R IO AENSA
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URBANISMOS INFORMAIS: UMA APROXIMAÇÃO INVESTIGATIVA
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Dr. Aseem Inam Diretor do programa de graduação em práticas urbanas e professor associado de urbanismo da Parsons The New School for Design, Nova York Tradução: Nicolas Le Roux
ENTENDENDO A INFORMALIDADE O termo “setor informal” foi forjado em 1971 pelo antropólogo britânico Keith Hart em um estudo sobre atividades de baixa renda entre os imigrantes com mão-de-obra desqualificada de Ghana do Norte para a capital Accra, que não encontravam empregos assalariados. A economia informal consiste em uma vasta gama de atividades e trabalhadores em diferentes partes do mundo, incluindo: Vendedores ambulantes na Cidade do México; Vendedores com “carrinhos de venda” em Nova York; Puxadores de rinquexás em Calcutá; Motoristas de Jitneys na Manila; Catadores de lixo em Bogotá; e barbeiros de rua em Durban. Aqueles que trabalham na rua ou à céu aberto são os mais visíveis trabalhadores informais. Outros trabalhadores informais se dedicam a pequenos comércios e oficinas de bicicletas e motocicletas; ferros-velhos; marceneiros e serralheiros; sapatarias; tecer, tingir e estampar roupas; polir diamantes e outras joias; fazer e bordar roupas; selecionar e vender restos de tecido, papel e metal; e mais. Os trabalhadores informais mais invisíveis, a maioria deles mulheres, trabalham de suas casas. Pessoas que
Director, Graduate Program in Urban Practice and Associate Professor of Urbanism at Parsons The New School for Design, Nova York
UNDERSTANDING INFORMALITY The term “informal sector” was coined in 1971 by a British anthropologist, Keith Hart, in a study of low-income activities among unskilled migrants from Northern Ghana to the capital city, Accra, who could not find wage employment. The informal economy consists of a wide ranging of activities and workers in different parts of the world, including: Street vendors in Mexico City; pushcart vendors in New York city; rickshaw pullers in Calcutta; jitney drivers in Manila; garbage collectors in Bogotá; and roadside barbers in Durban. Those who work on the streets or in the open air are the most visible informal workers. Other informal workers are engaged in small shops and workshops that repair bicycles and motorcycles; recycle scrap metal; make furniture and metal parts; tan leather and stitch shoes; weave, dye, and print cloth; polish diamonds and other gems; make and embroider garments; sort and sell cloth, paper, and metal waste; and more. The least visible informal workers, the majority of them women, work from their ho-
INFORMAL URBANISMS: AN INVESTIGATIVE APPROACH
Aseem Inam Ph.D.
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(Capa) Criatividade na pobreza: um assentamento informal em Mumbai, na Índia, com casas autodesenhadas e auto-construídas feitam em madeira, bamboo, canos, plástico e folhas metálicas. Foto: Aseem Inam
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trabalham em casa são encontradas no mundo inteiro. Elas são: costureiras em Toronto; bordadeiras na Ilha da Madeira; sapateiros em Madrid; e montadores de peças eletrônicas em Leeds. Outras categorias de trabalho que tendem a ser informais tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento incluem: trabalhadores temporários em restaurantes e hotéis; zeladores e seguranças subcontratados; operários de construção e trabalhadores rurais; trabalhadores “piece -rate” em “sweatshops”; e auxiliares de escritório temporários ou “offsite data processors”. Uma consequência da economia informal é o assentamento informal, também conhecido como “favela” em muitas partes do mundo. De fato, a “maioria dos moradores das favelas em cidades de países em desenvolvimento possuem renda proveniente do setor de atividades informais localizado dentro ou fora das áreas de favela, e muitos empresários do setor informal, cujas operações são realizadas nas favelas, possuem clientes de toda a cidade. A maior parte dos moradores de favelas tem empregos de baixa remuneração como trabalhos informais na indústria têxtil, reciclagem de resíduos sólidos, uma variedade de empresas com sediadas em domicílios e muitos são empregados domésticos, seguranças, piece rate workers e cabelereiros e marceneiros com negócios próprios. O setor informal é a forma de sus-
tento dominante nas favelas.” Como se define uma favela ou assentamento informal? De acordo com a Organização das Nações Unidas, um assentamento informal é basicamente “um assentamento contíguo onde os habitantes são caracterizados por terem moradias e serviços básicos inadequados (...) e muitas vezes não é ou possui endereço reconhecido pelo poder público como parte integrante ou igualitária da cidade.” O aspecto informal de um assentamento informal provem do fato da posse ou arrendamento da terra serem muitas vezes não oficiais ou extralegais: “Diversas definições consideram a ausência de posse como uma característica central das favelas, e o fato de não haver nenhum documento formal intitulando o ocupante a ocupar a terra ou a estrutura como a mais clara evidência da ilegalidade e da ocupação informal.” Termos como favelas, “squatter settlement”, “shantytown”, assentamento precário e comunidade de baixa renda são utilizados forma intercambiável, mas como “favela” tende a ter um caráter pejorativo, eu prefiro usar o termo mais neutro “assentamento informal”. Qual é o valor de se obter uma melhor compreensão do conceito e da realidade do assentamentos informais? O autor Mike Davis, através de uma exaustiva variedade de fontes, ilustra uma surpreendente imagem quando ele diz que “as cidades do futuro,
(Cover) Creativity within poverty: An informal settlement in Mumbai, India with self-designed and self-built homes made out of wood, bamboo, pipes, plastic, and metal sheets. Source: Aseem Inam
mes. Home-based workers are to be found around the world. They include: garment workers in Toronto; embroiderers on the island of Madeira; shoemakers in Madrid; and assemblers of electronic parts in Leeds. Other categories of work that tend to be informal in both developed and developing countries include: casual workers in restaurants and hotels; subcontracted janitors and security guards; day labourers in construction and agriculture; piece-rate workers in sweatshops; and temporary office helpers or off-site data processors. A corollary to the informal economy is the informal settlement, also known as the “slum” in many parts of the world. In fact, the “majority of slum dwellers in developing country cities earn their living from informal sector activities located either within or outside slum areas, and many informal sector entrepreneurs whose operations are located within slums have clienteles extending to the rest of the city. Most slum dwellers are in low-paying occupations such as informal jobs in the garment industry, recycling of solid waste, a variety of home-based enterprises and many are domestic servants, security guards, piece rate workers and self-employed hair dressers and furniture makers. The informal sector is the dominant livelihood source in slums. ”How does one
define a slum, or informal settlement? According to the United Nations, an informal settlement is basically a “a contiguous settlement where the inhabitants are characterized as having inadequate housing and basic services ... and is often not recognized and addressed by the public authorities as an integral or equal part of the city.” The informal aspect of an informal settlement arises from the fact than land ownership or leasing arrangements are often unofficial or extralegal: “A number of definitions consider lack of security of tenure as a central characteristic of slums, and regard lack of any formal document entitling the occupant to occupy the land or structure as prima facie evidence of illegality and slum occupation.”Terms such as slum, squatter settlement, shantytown, informal housing and low income community are used somewhat interchangeably, but since “slum” tends to have a pejorative and condescending connotation, I prefer to use the more neutral term “informal settlement.” What is the value of obtaining a better grasp of the concept and reality of informal settlements? The author Mike Davis, drawing from an exhaustive variety of sources, paints a startling picture when he says that the “cities of the future, rather than being made out of glass and steel as
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em vez de serem feitas de vidro e aço como imaginaram as antigas gerações de urbanistas, são construídas em sua maior parte de tijolo cru, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e madeira descartada. Em vez de cidades de luz que sobem aos céus, grande parte do mundo urbano do século XXI se agacha na miséria, rodeada de poluição, excremento e decadência.” Ele defende essa dramática, mas preocupante condição, com dados que sugerem que a população dos katchi abadi em Karachi duplica a cada década, assentamentos informais indianos crescem 250 por cento mais rápido do que a população geral,
Resiliência na devastação: um mercado informal que está se desenvolndo algumas semanas após o terremoto em Porto Príncipe, no Haiti. Foto: Aseem Inam.
um incrível crescimento populacional de 85% no Kenya entre 1989 e 1999 foi absorvida pelos assentamentos informais de Nairobi e de Mombassa, e que as favelas de São Paulo cresceram de cerca de 1% da população total em 1973 para cerca de 20% em 1993, e cresceu a marcas de 16% o ano durante a década de 1990. Assentamentos informais continuarão a ser um aspecto significativo das cidades e colocarão não apenas desafios aparentemente insolúveis para urbanistas como também oportunidades únicas para transformação urbana, como no Brasil. Eu estendo o uso do termo “informal” para
envisioned by earlier generations of urbanists, are instead largely constructed out of crude brick, straw, recycled plastic, cement blocks, and scrap wood. Instead of cities of light soaring toward heaven, much of the twenty-first century urban world squats in squalor, surrounded by pollution, excrement, and decay.” He supports this dramatic, yet nonetheless sobering contention, with data that suggest that Karachi’s katchi abadi population doubles every decade, Indian informal settlements grow 250 percent faster than overall population, an incredible 85 per-
cent of Kenya population growth between 1989 and 1999 was absorbed in the informal settlements of Nairobi and Mombasa, and that São Paulo’s favelas grew from about 1 percent of total population in 1973 to around 20 percent in 1993, and grew throughout the 1990s at the rate of 16 percent per year. Informal settlements will continue to be a significant aspect of cities and pose not only seemingly intractable challenges for urbanists but also unique opportunities for urban transformation, as in Brazil. I extend the use of the term “infor-
Resilience within devastation: An informal market that is thriving a few weeks after the earthquake in Port au Prince, Haiti. Source: Aseem Inam.
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WHY INFORMAL URBANISMS?
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“urbanismos informais”. Isso significa duas coisas. Primeiro, o plural do termo “urbanismo” indica uma multiplicidade de condições mais do que apenas um tipo de “assentamento informal” ou favela. Segundo, “urbanismos informais” aponta para condições de ambiguidade que existem entre noções convencionalmente definidas de cidade (por exemplos: formal vs. informal, legal vs. ilegal, aceitável vs. inaceitável, público versus privado ou o formalmente-orientado vs. o socialmente-orientado). Essas condições de ambiguidade existem em todas as cidades, seja em São Paulo ou Nova York. Uma aproximação investigativa a urbanismos informais consiste em observar, documentar e analisar as relações entre diferentes tipos de urbanismo em uma região. Por exemplo, na região da Grarapiranga em São Paulo, existem favelas, edifícios residenciais de classe média e casas de alto padrão próximos uns dos outros. O que é interessante é analisar física e socialmente as relações simbióticas entre esses tipos de urbanismo. Uma ilustração é que o uso de cercas, muros e arame-farpado indicam separação, exclusão e medo, enquanto o fato de que muitos habitantes das favelas trabalham nas casas de alto padrão sugere uma relação social mais imbricada (mesmo que separada por classe). Ao mesmo tempo, uma aproximação investigativa busca oportunidades em condições de ambiguidade e interrelacionalidade.
Um assentamento informal como a favela é uma demonstração da extraordinária da capacidade de inovação do ser humano em sua luta por sobrevivência. Muitas dessas favelas se originaram do nada; isso significa que os primeiros habitantes tiveram que desenhar e construir casas, bairros e mini-cidades do nada – sem ou com muito pouco dinheiro, materiais ou experiência de desenho formal. Mesmo assim, eles aprenderam fazendo e construíram lugares verdadeiramente belos (no sentido mais profundo do termo) para se viver ao longo do tempo. O significado disso para arquitetos e urbanistas é múltiplo. Primeiro, em vez de romantizar, fetichizar ou ignorar o urbanismo informal, eles poderiam aprender muito através de uma séria e sistemática pesquisa dessas condições de ambiguidade da cidade. Segundo, suas habilidades criativas poderiam ser aplicadas para o desenho de diversas estratégias proteger e aprimorar a extraordinária inventividade e resiliência daqueles que habitam os mais extremos tipos de urbanismo informal, que são os pobres que moram em favelas. Terceiro, a noção de “prática investigativa” sugere um método de desenho participativo e colaborativo do qual fazer pesquisas e elaborar propostas são atividades simultâneas e dialéticas. Essa pode ser uma forma extremamente poderosa de fazer emergir uma prática urbana para o século XXI.
PORQUE URBANISMO INFORMAL? mal” to “informal urbanisms.” That means two things. First, the plural use of the term “urbanism” indicates a multiplicity of conditions rather than just one type of “informal settlement” or favela. Second, what “informal urbanisms” points to are conditions of ambiguity that exists in between conventionally demarcated notions of the city (e.g. formal vs. informal, legal vs. illegal, acceptable vs. unacceptable, public vs. private, or the formally-oriented vs. socially-oriented). These conditions of ambiguity exist in every city, whether it is São Paulo or New York. An investigative approach to informal urbanisms consists of observing, documenting and analyzing the relationships between different types of urbanisms in an area. For example, in the Guarapiranga area of Sao Paulo, there exist favelas, middle-income apartment buildings, and upper-income homes with compounds in close proximity to each other. What is interesting is to analyze and understand the physically and socially symbiotic relationships that such urbanisms have with each other. One illustration is that the use of fences, walls and barbed wire indicate separation, exclusion and fear, while the fact many of those who live in the favelas work in the upper-income homes suggests a more intertwined social network (even if segregated by class). At the same time, an investigative
approach looks for opportunities such conditions of ambiguity and inter-relatedness. An informal settlement such as a favela is a demonstration of the extraordinary capacity of human beings to be innovative in their struggle to survive. Many of these favelas originated with nothing; that is, the original settlers had to design and build homes, neighborhoods, and mini-cities with nothing – no or very little money, materials or formal design expertise. Yet, they learnt by doing and have built what are truly beautiful (in the deeper sense of the term) places to live over time. What this means for architects and urbanists is multifaceted. First, instead of romanticizing, fetishizing, or dismissing informal urbanisms, they could learn a lot through serious and systematic research on such conditions of ambiguity in the city. Second, their creative abilities could be applied to designing various strategies to harness and build up the extraordinary inventiveness and resilience of those who inhabit the most extreme types of informal urbanisms, which are the poor living in the favelas. Third, the notion of “investigative practice” suggests an interactive and collaborative method of design in which doing research and crafting proposals is done simultaneously and dialectically. This can be an extremely powerful form of emerging urban practice for the 21st century.
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Ilustração Bruna Ximenes
Quando o oficial de justiça chegou La na favela E contra seu desejo entregou pra seu narciso um aviso pra uma ordem de despejo Assinada seu doutor, assim dizia a petição dentro de dez dias quero a favela vazia e os barracos todos no chão É uma ordem superior, Ôôôôôôôô Ô meu senhor, é uma ordem superior Não tem nada não seu doutor, não tem nada não Amanhã mesmo vou deixar meu barracão Não tem nada não seu doutor vou sair daqui pra não ouvir o ronco do trator Pra mim não tem problema em qualquer canto me arrumo de qualquer jeito me ajeito Depois o que eu tenho é tão pouco minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás Mas essa gente ai hein como é que faz?
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ZONALESTEPA ANOTACOES ALDEGUNSDA DOEXTREMODA LDEGUNSDA HABITACAOS TERRITORIOS ZONALESTEPA ANOTAÇÕES PAULISTANANOT SOBRE A
Diego Beja Inglez de Souza1
DOEXTREMODA OCIALDEGUNS
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ANOTACOES HISTÓRIA IALDEGUNSDA SOCIAL DE TERRITORIOS ALGUNS DOEXTREMODA TERRITÓRIOS
OCIALDESOBR TERRITORIOS BITAOSOBRE
DO EXTREMO DA ZONA LESTE OCIALDEGUNS PAULISTANA TERRITORIOS
HABITACAOS ZONALESTEPA
HABITACAOS
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No entorno de projetos arquitetônicos e sociais exemplares como os mutirões autogeridos Paulo Freire e Unidos Venceremos e o primeiro dos Centros Educacionais Unificados (CEUs), produto do trabalho de vertentes paralelas e por vezes convergentes da produção arquitetônica paulista recente, hoje bastante divulgados, existem outros territórios cuja história social nos ajuda a compreender a situação e os desafios contemporâneos em jogo no extremo da zona Leste paulistana. Já a partir dos anos 1920, as Fazendas pouco produtivas da região seriam retalhadas em loteamentos, alguns com características suburbanas como as Vilas Carmosina e Sant’Anna, nos primórdios da ocupação de Itaquera e outros de cunho rural, como a Colônia de produção agrícola ‘dos japoneses’ e a Villa Santa Etelvina, parcelamento inicial dos terrenos onde se instalaria, nos anos 1980, o ‘Complexo’ de conjuntos habitacionais Cidade Tiradentes. Na Passagem Funda, entre a estação de Guaianases e a Villa Santa Etelvina, nas imediações de onde se implantarão tanto o Paulo Freire e o Unidos Venceremos quanto o CEU Inácio Monteiro, a ocupação inicial se deu em torno da pedreira explorada pelo imigrante espanhol Luiz Matheus e seus descendentes como Isidoro e Vicente, longevo presidente do Corinthians e emblemático personagem da transformação que a região sofreu ao longo dos últimos 50 anos, que culmina na construção do estádio do time e na consolidação de Itaquera como um polo de desenvolvimento metropolitano, ‘capital’ da região Leste, como de certa maneira intuiu o geógrafo Aroldo de Azevedo2 , em 1945. Desde os anos 1930, a existência de loteamentos e olarias na região é registrada por uma série de cartografias que nos servem de base para compreender a constituição social destes territórios. As ‘vilas’ Cosmopolita, Jahú e Princesa Isabel abrigavam provavelmente os trabalhadores de uma precária indústria de exploração da terra, que envolvia o desmatamento da mata atlântica que cobria os vales e morros da região, a produção de lenha que alimentava os fornos das olarias que produziam tijolos que inicialmente serviram à construção de prédios e instalações
1
Arquiteto e urbanista,
mestre e doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU USP. 2
Azevedo, Aroldo de (1945)
Subúrbios orientais de São Paulo Tese de doutorado Geografia USP. Ver também Monbeig,Pierre (1953) La croissance de la ville de São Paulo Revue de l’Institut de Geographie Alpine e Langenbuch, Juergen Richard (1971) A estruturação da Grande São Paulo – estudo de geografia urbana Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento/Fundação IBGE.
industriais e posteriormente eram dados aos adquirentes de terreno nos loteamentos da região como estímulo para a a realização do ‘sonho da casa própria’. Através desta leitura retrospectiva da cartografia, parece-nos claro que sobre alguns desses loteamentos que permaneceram décadas desocupados por falta de infra-estrutura básica ou simples dificuldade de acesso, é que vão se implantar os conjuntos habitacionais promovidos pelo poder público nos tempos do Banco Nacional da Habitação (BNH), como no caso do conjunto habitacional Prestes Maia. Construído pela Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB-SP) no começo dos anos 1970, o conjunto de mil sobrados em renques e alguns equipamentos sociais só pôde ser ocupado a partir de 1975, uma vez que as redes de água, saneamento básico e eletricidade não chegavam à região. Seja pelo número expressivo de unidades ou pela inclusão de equipamentos públicos, o projeto do Prestes Maia introduz o conceito de grande conjunto do universo da produção da COHAB, que acumulava então algum atraso face à Companhia Estadual de Casas para o Povo (CECAP), que já havia inaugurado milhares de unidades no grande conjunto projetado pela equipe de Vilanova Artigas em Guarulhos, o ’Parque’ Zezinho Magalhães Prado. Conhecido como ‘a Ilha’ por seus primeiros moradores, o conjunto de Guaianases foi intensamente criticado por sua localização periférica e expressa algumas das contradições e dificuldades características da primeira década de ação do governo militar na área da habitação. Ainda assim, o Prestes Maia hoje é dos mais valorizados ‘setores’ da Cidade Tiradentes e que concentra as maiores rendas do distrito, talvez por ser um dos poucos projetos da COHAB-SP que não recorreu aos condenáveis ‘projetos-padrão’ e contar com diversos equipamentos públicos, áreas de lazer e esporte, além de espaços comerciais e religiosos, urbanidade que certamente atraiu novas inciativas de ocupação do entorno por loteamentos irregulares como o Jardim Vilma Flor, além de algumas das primeiras favelas da região.
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Numa fase mais ‘dinâmica’ da produção da COHAB-SP, a partir do final da década de 1970, quando o seu principal projeto passa a ser o grande conjunto de Itaquera, serão edificados em áreas remanescentes do Prestes Maia alguns blocos do tipo H idênticos aos que foram ‘carimbados’ à exaustão em muitas periferias paulistanas a partir de então e que marcam a ação do BNH no imaginário popular brasileiro3. De alguma maneira, podemos dizer que foi ali que este emblema da promoção pública de habitação social do regime militar se generalizou, uma vez que nestas fronteiras imprecisas do território paulistano é que a COHAB-SP instalou o ‘Campus experimental de Itaquera’ no começo dos anos 1980. No terreno situado nos limites de Guaianases posteriormente batizados de Conjunto Habitacional Juscelino Kubitschek, as principais construtoras paulistas empregaram técnicas supostamente inovadoras para a reprodução exaustiva de um modelo bastante conservador de habitação social, como os blocos H e unidades do tipo embrião geminadas aos pares, tudo muito mais convencional do que experiências desenvolvidas nos primórdios do BNH, período no qual ainda havia colaboração possível entre os o setor da construção civil pesada e os arquitetos, através do IAB4. Estas ‘casinhas’ talvez sejam o principal símbolo deste modo de produção, presentes até hoje no logotipo da Companhia, combinação bizarra dos projetos estimulados pela Lei Loucheur na França nos anos 1920 e das peças do célebre jogo de tabuleiros Banco Imobiliário. Tomando por sinédoque5 o caso da zona Leste paulistana, podemos afirmar que a produção dos tempos do BNH em São Paulo se dividiu entre unidades deste tipo e os blocos de apartamentos em uma particular síntese projetual que denota a hesitação entre as formas individual e coletiva de habitação, guiadas pelas premissas ideológicas de estímulo à propriedade privada com base no endividamento das famílias e pela lógica do rebaixamento dos custos e das qualidades das construções. A história social destes territórios, a partir de uma perspectiva cronológica um pouco mais ampla do que o tempo de um projeto, uma gestão ou um ‘evento’, pode nos ajudar a enten-
3
‘A refavela / Revela o salto
/ Que o preto pobre tenta dar / Quando se arranca/ Do seu barraco / Para um bloco do BNH’ Gil, Gilberto Refavela (1977) 4
Koury, Ana Paula ‘Constru-
ção social e tecnologias civis (1964-1986): Contribuição para um debate sobre política habitacional no Brasil’ in Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais V.15, Nº1/Mai/2013 5
A sinédoque é uma figura
de linguagem da família das metonímias que associa a parte pelo todo e o todo pela parte em ‘entendimento simultâneo’, o que procuramos estabelecer entre os conjuntos periféricos franceses e paulistanos na tese recentemente depositada. 6
A tese de doutorado da ge-
ógrafa Amélia Damiani sobre os conjuntos de Itaquera introduz interessantes conceitos que nos ajudam a entender os processos de constituição dos grandes conjuntos da zona Leste como a idéia de ‘urbaniza-
ção crítica’, muitos deles por sua vez decorrentes de perspectivas lançadas pela sociologia urbana francesa, sobretudo através da obra de Henri Lebfevre e Manuel Castells. Damiani, Amelia (1993) A Cidade (Des) ordenada - Concepção e Cotidiano do Conjunto Habitacional Itaquera I Tese de doutorado Geografia USP. 7
Inglez de Souza, Diego
(2014) Tumulto no conjunto: habitação, utopia e urbanização nos limites de duas metrópoles contemporâneas - Paris/São Paulo (1960-
der tanto a singularidade destes territórios periféricos que hoje concentram investimentos e atenções, quanto a permanência de algumas características incontornáveis associadas aos limites da metrópole, como a segregação sócioespacial e violência, tanto a episódica quanto a difusa, associada às duras condições de vida e expressa nos índices sociais que desenham um quadro marcado pela vulnerabilidade social, precários índices instrução e emprego em uma condição de ‘urbanização crítica’6 . Em que medida os atuais programas de promoção de habitação insistem nos mesmos erros cometidos e condenados tanto no Brasil como internacionalmente? Aqui nos cabe tão somente colocar esta questão, apontando alguns indícios que procuramos desenvolver ao longo da tese7, apostando na história destes territórios como instrumento para orientar a reflexão e confrontar de maneira crítica e, quando possível, propostiva, a prática e os discursos contemporâneos, como sugere Lucien Febvre no manifesto ‘Face au Vent’ (1946), no qual propõe uma nova história, não automática, mas problemática:
2010) Tese de doutorado em cotutela FAU USP /
“A história, resposta às perguntas que o homem de hoje ne-
Université Paris 1 Panthéon
cessariamente se faz. Explicação de situações complicadas,
Sorbonne, orientação José
em meio às quais ele se debaterá menos cegamente caso
Tavares Correia de Lira e
conheça sua origem. Lembrança de soluções que foram so-
8
Annie Fourcaut.
luções no passado e que, portanto, não poderiam de modo
Febvre, Lucien (1952) ‘Con-
algum ser as soluções do presente. Compreender em quê o
tra o vento: Manifesto dos
passado difere do presente: que escola de flexibilidade para o
novos Annales’ (Forastieri e
homem alimentado de história!”
Novaes, 2011) (Febvre, 1952 in Forastieri e Novaes, 2011)8
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ENTREVISTA COM
RAÚL VALLÉS
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Raúl Vallés é arquiteto e professor da Facultad de Arquitectura Universidad de la República, Uruguai.
Como surgiu o sistema cooperativista como meio de provisão de habitação social?
O sistema de cooperativismo na provisão habitacional surge no ano de 1966 a partir de três experiências pioneiras impulsionadas por uma entidade de assessoria ao cooperativismo em geral, o Centro Cooperativista Uruguaio (CCU). Estas experiências servem de antecedente à Lei de Habitação vigente desde 1968. Futuramente, em 1970, a partir do impulso dado ao cooperativismo pela referida lei, surge a organização política FUCVAM, que cria segmentos nas cooperativas de Ajuda Mutua de propriedade coletiva: uma das modalidades ou variantes propostas pela lei. É uma federação que agrupa e provém suporte técnico político aos grupos que a integram. Promove o sistema, realiza difusão nacional e internacional do modelo e é um agente relevante no sistema habitacional de promoção pública no Uruguai.
¿Cómo surgió la organización política que utiliza el trabajo del cooperativismo y autogestión como forma de provisión de la vivienda de interés social? 155
El sistema cooperativo de vivienda surge a partir de tres experiencias pioneras en el año 1966 impulsadas por una entidad de asesoramiento al cooperativismo en general: el Centro Cooperativista Uruguayo (CCU) y sirve de antecedente a la Ley de Vivienda que está vigente desde 1968. Posteriormente en 1970 a partir del impulso que la ley dio al cooperativismo surge la organización política de tipo gremial FUCVAM, que nuclea a las cooperativas de Ayuda Mutua de propiedad colectiva, una de las modalidades o variantes que propone la ley. Es una Federación que agrupa y provee soporte técnico político a los grupos que la integran. Promueve el sistema, realiza difusión nacional e internacional del modelo y es un actor relevante en el sistema habitacional de promoción pública en Uruguay.
Como você enxerga a relação desta forma de organização com as necessidades habitacionais da América Latina? Vejo uma estreita relação em termos de oportunidades para a organização popular em torno do acesso e permanência a uma solução habitacional digna e acima de tudo sustentável, a partir da ação e gestão coletivas. Existem alguns impedimentos importantes ao desenvolvimento do modelo uruguaio que esbarram no sistema de propriedade coletiva que, imagino, não está juridicamente consagrado na maioria dos países da América Latina, onde impera o conceito quase exclusivo da propriedade individual. As políticas públicas, inclusive, quase sempre baseiam-se neste sistema de posse e subsídio para o acesso à casa própria. De todo modo, a essência de gestão e autogestão coletiva do sistema vem se difundindo e isso é um elemento de enorme potencialidade e projeção.
Você conhece a experiência de São Paulo com os mutirões? Houve alguma diferença em relação à experiência uruguaia?
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Não conheço diretamente, mas acredito que tenha sido uma experiência muito rica e que teve um desenvolvimento muito forte e de rápida assimilação pelos setores populares. A autoconstrução e acima de tudo a organização coletiva. A diferença em relação a experiência uruguaia certamente está no modelo de propriedade e na gestão do que é coletivo. No Uruguai é o coletivo das pessoas que toma todas as decisões que dizem respeito à formação do grupo, seleção da assessoria técnica, gestão do empréstimo, forma de trabalho, organização para a produção, estabelecimento de regras de convivência e manutenção de toda esta organização uma vez que passam a viver na cooperativa. Contudo, dentre estas atividades tenho visto que há muitas semelhanças com a experiência paulistana.
¿Cómo ves la relación de dicha estrategia política con las demandas por vivienda en América Latina? Veo una estrecha relación en clave de oportunidades para la organización popular en torno al acceso y permanencia a una solución habitacional digna y sobre todo sustentable a partir de la acción y gestión colectiva. Existen algunos impedimentos importantes al desarrollo del modelo uruguayo en cuanto al sistema de propiedad colectiva que según entiendo no está jurídicamente consagrado en la mayoría de los países de AL donde prima el concepto casi exclusivo de la propiedad individual y las políticas públicas casi siempre se basan en ese sistema de tenencia y en el sistema de subsidio para acceder a una vivienda en oferta. De todas maneras el sistema se ha ido difundiendo en su esencia de gestión y autogestión colectiva y eso es un elemento de enorme potencialidad y proyección.
¿Usted conoces la experiencia de São Paulo con la autogestión, en el gobierno de la alcaldesa Luiza Erundina? Tubo alguna diferencia en relación a la experiencia uruguaya? No conozco directamente, pero creo que fue una experiencia muy rica y que tuvo un desarrollo muy fuerte y de rápida asimilación por los sectores populares. La autoconstrucción y sobre todo la organización colectiva. Creo que la diferencia puede estar en la propiedad y en la gestión del colectivo que en el caso uruguayo toma todas las decisiones en lo que respecta a formación del grupo, selección de los técnicos asesores, gestión del préstamo, forma de trabajo y organización para la producción y sobre todo los reglamentos de convivencia y mantenimiento una vez que pasan a vivir en la cooperativa. Pero dentro de esta lista de actividades he visto que hay muchas cosas en común.
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Como o arcabouço político uruguaio permitiu o êxito dos mutirões ao longo de tantos anos? O sistema se consolidou fortemente a partir da supracitada Lei de Habitação de 1968. Obviamente houve um processo muito rico, de mudanças graduais e de grande luta ao longo de sua história. Durante a Ditadura Militar (1973 – 1985) há a proibição de outorgar pessoas jurídicas, situação que permanece além da ditadura, até 1989. Contudo, desde o início se consolida como opção da classe trabalhadora, particularmente impulsionada pelos sindicatos, passando a formar parte da cultura de habitar entre boa parte da população de baixos e médios salários; que veem o sistema como uma opção muito adequada para suas aspirações de moradia, em particular porque considera e valoriza o esforço individual e coletivo como uma forma de obter uma solução digna e de melhor qualidade que as comumente oferecidas pelos sistemas públicos de promoção direta. O Estado cumpre um papel central no sentido de facilitar o acesso ao solo e ao financiamento dos empreendimentos conforme uma série de regramentos de controle e seguimento. Cabe mencionar que a organização cooperativa também permitiu uma resposta praticamente unânime no que diz respeito à manutenção dos conjuntos habitacionais, bem como à reprodução do sistema ao longo de distintas gerações de uruguaios. Por fim, é fundamental o papel dos Institutos de Assessoria Técnica como entidades consagradas pela lei e que são equipes interdisciplinares que oferecem às cooperativas um assessoramento integral em todo o processo. Seria muito difícil explicar o desenvolvimento do sistema sem o trabalho destes grupos.
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¿Cómo la coyuntura política uruguaya permitió/ garantizó el éxito del cooperativismo a lo largo de tantos años? El sistema se consolidó fuertemente a partir de la mencionada Ley de Vivienda de 1968. Obviamente tuvo un proceso muy rico, cambiante y de larga lucha a los largo de su historia. En el período de facto sufre la prohibición de otorgar personerías jurídicas, situación que se extiende mas allá de la dictadura militar hasta 1989. Sin embargo ya desde el inicio se consolida como la opción de la clase trabajadora, en particular impulsada por los sindicatos y luego pasa a formar parte de la cultura del habitar en buena parte de la población de bajos y medianos ingresos que lo ven como una opción muy adecuada para sus aspiraciones de hábitat en particular porque considera y valora el esfuerzo propio y en colectivo como una forma de acceder a una solución muy digna y de mejores calidades que las que comúnmente ofrecen los sistemas públicos de promoción directa. El estado cumple un rol central en cuanto a facilitar el acceso al suelo y al financiamiento de los emprendimientos basado en una serie de reglamentos de control y seguimiento. Hay que mencionar que la organización cooperativa ha permitido una casi unánime respuesta también en lo que respecta al mantenimiento de los conjuntos de vivienda así como a la reproducción del sistema a lo largo de las distintas generaciones de uruguayos. Por último es fundamental el rol de los Institutos de Asistencia Técnica como entidades consagradas por la ley y que son equipos interdisciplinarios que brindan a las cooperativas un asesoramiento integral en todo su proceso. Sería muy difícil explicar el desarrollo del sistema sin el trabajo de estos grupos asesores.
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Quais foram as dificuldades de implementação desta política? Há problemas ainda não solucionados no modelo de cooperativismo na promoção de habitação de interesse social? Você acredita que há elementos que devem ser aprimorados na politica habitacional uruguaia? Existem e existiram dificuldades inúmeras. O marco normativo alterou-se ao longo do tempo sempre no sentido positivo. Hoje o sistema necessita de uma atualização e revisão que o prestigie e reposicione-o no sentido de dar respostas aos desafios contemporâneos. Apesar de todos os atores estarem de acordo que se deve realizar ajustes, não se torna algo simples a ser feito; uma vez que os marcos normativos são tanto proativos como restritivos. Há algumas modalidades mais recentes de utilização do modelo que tem marcado significativos avanços, como a reabilitação de áreas centrais e tombadas como patrimônio; a atuação em setores de precariedade urbana e habitacional (como favelas); e a atuação em zonas rurais. Atualmente é necessário um modelo mais flexível que se adapte às características das famílias contemporâneas menos propensas a largas jornadas de trabalho, mais dinâmicas e heterogêneas. Como problema atual no Uruguai aparece a relação do sistema habitacional e a cidade. Vivemos diante de um déficit fundamentalmente urbano e o desafio é a intensificação das estruturas urbanas existentes e a contenção à nova urbanização que, no caso uruguaio, não se justifica de nenhuma maneira. Neste sentido o cooperativismo tem um papel fundamental no acesso a consolidação da cidade.
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En Uruguay, hubo dificultades en la ejecución de esta estrategia? ?Hay problemas aún no solucionados por el modelo del cooperativismo en la provisión de la vivienda de interés social? ¿Crees que hay detalles que aún deben ser primoreados en la política de vivienda uruguaya? Existen y existieron dificultades múltiples. El marco normativo ha ido cambiando a lo largo del tiempo no siempre en sentido positivo. El sistema hoy necesita de una actualización y revisión que lo prestigie y lo reposiciones para dar respuestas los desafíos contemporáneos. Si bien todos los actores están de acuerdo en que se deben realizar ajustes no resulta algo sencillo y los marcos normativos tanto resultan proactivos como restrictivos. Hay algunas modalidades más recientes como la utilización del modelo en la rehabilitación de las áreas centrales y patrimoniales; en sectores de precariedad urbana y habitacional del tipo “favelas” y en el área rural que han marcado avances muy significativos. Actualmente es necesario un modelo más flexible que se adapte a las características de las familias contemporáneas menos proclives a largas jornadas de trabajo, más cambiantes y heterogéneas a la interna de los grupos. Como problema actual en Uruguay aparece la relación del sistema habitacional y la ciudad. Estamos en presencia de un déficit fundamentalmente urbano y el desafío es la intensificación de las estructuras urbanas existentes y el freno a la nueva urbanización que, en el caso uruguayo, no se justifica de ninguna manera. En este sentido el cooperativismo tiene un rol clave en el acceso y la consolidación de la ciudad.
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A revista Contraste entrevistou a deputada Luiza Erundina em 06 de março de 2014. A ideia era conversar sobre a sua gestão (de 1989 1992) focando na questão habitacional e a experiência com os mutirões. Os quadrinhos que ilustram a matéria foram retirados do “Manual de Orientação para a Construção por Ajuda Mútua” do Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP.
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No governo municipal sua gestão atuou ativamente na implementação de uma política habitacional autônoma. Hoje vemos que os municípios têm optado por aderir a programas federais, como o “Minha Casa, Minha Vida” e, dessa forma, as ações no âmbito municipal têm sido limitadas. Como a senhora percebe essas relações e tensões políticas entre as diferentes esferas de governo atualmente?
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A autonomia da política habitacional, bem como das demais políticas do nosso governo, se deve ao fato de não termos contado com o apoio dos outros dois níveis de governo, o estadual e o federal. Fomos obrigados a definir as prioridades e a planejar as ações, dispondo, exclusivamente, dos recursos próprios do município. Se por um lado isso foi negativo, pois fizemos menos do que poderíamos ter feito se tivéssemos mais recursos, por outro, foi positivo, pois tivemos autonomia para criarmos nossos programas e nossas próprias soluções para os inúmeros e diversos problemas da população. Quanto às relações entre os municípios e as outras esferas de poder do estado, são problemáticas por diferentes motivos: primeiro, pelo desequilíbrio gerado pelo atual pacto federativo na distribuição de poder entre os entes federativos, concentrando maior poder na União e esvaziando os estados e, mais ainda, os municípios. Estes têm pouquíssimo poder político e institucional e ficam, por exemplo, com a menor fatia dos recursos orçamentários, embora sejam a fonte geradora da arrecadação dos tributos. Segundo pela cultura política dominante que influencia as relações entre partidos e governos de diferentes agremiações partidárias, havendo discriminação de uma esfera superior de poder em relação a outra de nível inferior, quando pertencem a diferentes partidos, sendo um da situação e o outro
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da oposição. Foi exatamente isso o que ocorreu com o nosso governo que, sendo do PT - e com uma prefeita mulher, nordestina, de esquerda e de uma classe social considerada inferior - foi alvo de todo tipo de preconceito e discriminação, de parte da sociedade paulistana e também dos governos federal e estadual. Atualmente, também ocorrem conflitos e tensões nas relações entre partidos e governos da situação e da oposição, porém com menos radicalidade do que foi no nosso caso, quando se tratava de um governo de um partido ideológico, de esquerda e com uma proposta de transformação estrutural do país, do estado, das políticas públicas, e do modelo de gestão.
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A senhora enxerga alguma possiblidade concreta do governo federal atuar mais em conjunto com o município, diferentemente do que ocorre no modelo atual de gestão? E como você considera que deveria acontecer essa relação atualmente?
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O modo como se dão as relações entre uma esfera de governo e outra depende das relações e compromissos entre os diferentes partidos políticos e a condição de cada um deles numa dada conjuntura. Além disso, como também já dissemos, influenciados por uma cultura política excludente, voltados para os próprios interesses pessoais ou partidários e alheios ao interesse público. Isso, evidentemente, determina a forma do governo federal atuar junto a um dado município. Para mudar tal prática, não existe receita pronta e muito menos conselhos que sirvam. É preciso muito mais, como uma reforma do sistema político, condição para a necessária mudança das práticas e da cultura política. O governo democrático popular de São Paulo, no período de 1989-1992, encontrou o município com um déficit de 800 mil moradias e forte crescimento populacional, com a cidade crescendo 300 mil habitantes por ano. Por outro lado, as ações das administrações anteriores à nossa relacionadas a habitação excluíam a cidade real, situação agravada com o aumento da ilegalidade e a expansão de loteamentos irregulares; 67% dos domicílios da cidade estavam em condições ilegais. Os cortiços, por sua vez, se adensaram durante os anos 80 na região central da cidade em decorrência do aumento da pobreza. Em 1989, primeiro ano do nosso governo, moravam 12 mil famílias em favelas localizadas em áreas de risco. As políticas públicas e a legislação então vigentes contribuíam para aumentar a segre-
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gação espacial da população e para elevar o déficit habitacional e a degradação ambiental. Diante desse quadro, o governo colocou entre suas prioridades a política habitacional que se pautava, como as demais políticas daquela gestão, pelo princípio da participação popular que se constituiu na principal diretriz da ação governamental. O Funaps Comunitário era um dos programas que financiava diretamente as associações comunitárias, de construção por mutirão, e que garantia a participação popular na sua gestão. Os mutirões autogeridos dispunham de recursos para contratar assessoria técnica, parte da mão de obra e adquirir equipamentos de trabalho, incorporando, assim, novas tecnologias ao processo de construção, o que contribuiu para aumentar a produtividade, reduzir os custos e o tempo de produção das moradias, além de melhorar sua qualidade. O programa de autogestão também foi adotado na urbanização de favelas e na intervenção nos cortiços. O mutirão era, pois, o modelo que, não só viabilizava a construção de um número maior de moradias com os mesmos recursos, como também envolvia a participação da população no processo de construção e ainda propiciava a capacitação técnica dos moradores. Naquela época, no governo Sarney, havia desemprego em massa e uma inflação de 80% ao ano. Criamos, então, uma política de geração de renda e de capacitação para o trabalho que beneficiou, inclusive, a população dos mutirões. Instalamos nos canteiros de obra fábricas de componentes de argamassa armada para produzir lajes para brises e apoio para caixa dágua, além de vigas para escadas. Assim, os moradores se capacitavam tecnicamente e se habilitavam para trabalhar na indústria da construção civil. Ademais, alguns deles que estavam desempregados eram aproveitados nas obras dos próprios mutirões, pelo que auferiam alguma renda.
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Um exemplo que a gente tem hoje de tentativa de retomar esse processo de mutirão – e até de autogestão da habitação – é no “Minha Casa, Minha Vida – Entidades” que ainda tem uma parcela pequena em relação ao programa “Minha Casa, Minha Vida”, mas que busca um pouco esse perfil de aproximação com os movimentos de participação ativa na construção da habitação. Neste processo, a assessoria técnica é uma das questões mais relevantes e gerando um outro custo. No seu governo, como era viabilizada essa assessoria para os mutirantes?
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Os mutirões dispunham de recursos para, entre outras despesas, contratar equipes de assessoria técnica que debatiam com a população as questões relacionadas a cada projeto e tipos das habitações, suscitando soluções diversificadas e inovadoras. Os custos referentes a essa assessoria constavam do orçamento de cada projeto de mutirão financiado diretamente pelo governo municipal. Não sei se foi muito oneroso. Depende do custo-benefício. Para um governo que tinha o compromisso de garantir moradia de qualidade como um direito social, a relação custo -benefício se calculava para além do custo financeiro, pois incluía a qualidade da habitação, o desenvolvimento das pessoas no processo de construção, a convivência comunitária e o conhecimento adquirido no trabalho orientado por técnicos qualificados. Benefícios difíceis de serem calculados e que compensam eventuais custos financeiros mais elevados. O nosso governo se orientava por uma outra lógica - diferente da na qual que se baseiam as relações capitalistas - quando definia suas prioridades tendo sempre presente a dívida social que ainda hoje a prefeitura tem com a maioria da população da cidade.
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Parece muito mais fácil quando chega na mesa um programa federal pronto, que introduz um outro agente e dispensa todo esse esforço municipal. Como a senhora avalia a atual política de habitação?
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Não tem nada de novo. São grandes conjuntos de casas, construídos por empreiteiras, com um custo elevado e adotando um projeto arquitetônico padrão sem levar em conta as necessidades das famílias quanto ao número de membros ou suas peculiaridades sociais e culturais. São conjuntos muito feios. Preferimos adotar o sistema de construção por mutirão, por ser muito mais barato do que o modelo convencional e que possibilitava a participação da população, o que reduzia os custos em, no mínimo, 40% que é o que as empreiteiras cobram como taxa de administração, sem levar em conta a margem de lucros que não se conhece. Nosso governo procurou diversificar as formas de produzir moradias, adotando em cada situação concreta a solução e o mecanismo mais adequados, a saber: - na regularização fundiária de favelas, propôs a concessão de direito real de uso, um modo de garantir a posse da terra ao morador de favela sem suprimir a propriedade pública dos terrenos ocupados; para os cortiços da área central da cidade, foram adotados mecanismos de locação ou de concessão coletiva e a criação de formas coletivas ou cooperativas de propriedade. As associações de moradores discutiam a implantação integral dos loteamentos como um todo, opinando sobre a localização de equipamentos comunitários, como praça, creche, escola, oficina cultural ou área de comércio. Além disso, os projetos resultaram de um Concurso Nacional de Anteprojetos
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para Habitação Popular, promovido pela Secretaria Municipal de Habitação – SEHAB, 1989/90, organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil e o Sindicato dos Arquitetos do Estado de São Paulo. Assim, os processos de construção dos mutirões propiciavam ricas experiências à população e elevavam o nível de organização e de convivência comunitária que se mantinham, mesmo após a entrega das casas e se preservam por toda a vida.
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Na lógica de mercado a habitação serve como uma necessidade de lucro da construtora e da empreiteira. A habitação de interesse social consegue (e precisa) seguir essa dinâmica econômicas?
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Seguindo a lógica de mercado, a maioria dos governos, senão a totalidade deles, contratam empreiteiras para construirem conjuntos habitacionais destinados à população de baixa renda. Como já foi dito, optamos pelo modelo de construção por mutirão. A alegação dos que preferem contratar empreiteiras é de que o processo de construção por mutirão seria demorado e sem qualidade, o que não é verdade. Construímos 10 mil unidades habitacionais por mutirão de excelente qualidade e a um custo muitas vezes menor do que o que é pago às empreiteiras. Quem quiser comprovar isso, basta visitar alguns dos nossos conjuntos espalhados pelas regiões da cidade e conversar com os moradores. Além do custo e do tempo que se levou para construí-los, é preciso contabilizar também o retorno dessas experiências de mutirão, do ponto de vista da promoção das pessoas que delas participaram e dos laços de solidariedade que entre elas se construíram na convivência comunitária. Tais valores e benefícios são imponderá-
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veis e se comparados com o interesse econômico-financeiro, segundo a lógica do mercado, são infinitamente superiores. Ademais, quem segue a lógica do mercado não considera o acesso da população às políticas públicas como direito social e prefere a solução mais fácil, que é produzir o maior número de unidades habitacionais no menor tempo possível, sem preocupação com a qualidade, de modo a obter altos lucros, além de atender ao interesse eleitoral de quem contrata. Foi o governo que, com recursos próprios, mais construiu. Foram mais de 40 mil unidades habitacionais, sendo 10 mil por mutirão. É bonito de se ver o apreço que as pessoas têm pela casa que elas mesmas construíram.
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A senhora comentou sobre o quadro econômico e social daquele período, onde as pessoas trabalhavam em seus respectivos empregos durante a semana, e nos finais de semana ajudavam na construção. Você acha que esse modelo de trabalho ainda poderia ser aplicado no contexto sócioeconômico atual?
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Não tenho dúvida que sim, pois o déficit habitacional cresceu e o interesse do trabalhador de ter sua própria moradia continua o mesmo. Porém, seria necessário que houvesse governos que tivessem a mesma filosofia, ou seja, que valorizasse a participação popular e acreditasse na capacidade do povo construir, junto com o governo, soluções para seus problemas.
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No seu governo a tentativa de mudança na taxa do IPTU foi rejeitada na Câmara, no Supremo Tribunal e teve uma série de contratempos. O governo do Haddad tentou novamente mudar e, de novo, houve uma resistência bastante grande. A que se atribui essa dificuldade de implantar uma transformação nesses dois casos e quais foram as consequências? Qual é a sua avaliação sobre isso?
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Não se cumpre aquilo que está na Constituição que é o princípio da progressividade tributária, ou seja, no caso do IPTU, dever-se-iam aplicar taxas diferenciadas para imóveis de diferentes valores, de modo a fazer justiça fiscal: quem tem mais paga mais e quem tem menos paga menos, o que é absolutamente justo, sobretudo no caso do IPTU que é um imposto direto, um imposto sobre a propriedade. Mas, lamentavelmente, os ricos resistem a isso, por motivos óbvios. Além disso, os governos federais também concorrem para tal, visto que até hoje não fizeram a tão reclamada reforma tributária, único meio de se corrigir as graves distorções e injustiças do sistema tributário brasileiro. Quando tentei implantar, em São Paulo. o IPTU progressivo, foi com base no que dispõe a respeito a
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Constituição de 1988. Porém, enfrentei forte resistência dos grandes proprietários de imóveis da cidade, que, com o apoio da poderosa mídia, desencadearam uma verdadeira guerra contra a iniciativa do nosso governo. E como não tínhamos maioria na Câmara Municipal, esta derrotou a proposta que também foi rejeitada pelo Poder Judiciário. A consequência disso, naquele ano, foi a drástica redução da receita própria do município, o que comprometeu a meta estabelecida de zerarmos o déficit de vagas nas escolas municipais em 1992, último ano do governo. Um sistema tributário que garantisse justiça fiscal seria um meio para se promover justiça social, já que é um mecanismo eficaz de distribuição de renda. Daí a absoluta necessidade de se promover uma reforma tributária estrutural, que aumentasse os impostos diretos e diminuísse os indiretos; que tributasse, por exemplo, a fortuna e a herança. Essa reforma é de responsabilidade do Governo Federal e do Congresso Nacional e precisa ser cobrada pela sociedade. É natural que haja resistência da população a aumento de impostos, sobretudo por dois motivos. Primeiro a mídia - em defesa de seus próprios interesses e dos interesses dos mais ricos - que influencia a sociedade a respeito, gerando e fortalecendo resistências. Segundo pelo fato de não haver confiança nos governos sobre a justa aplicação dos recursos públicos, seja do ponto de vista da competência administrativa, seja quanto ao critério
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de honestidade. Considera-se, em geral, que as políticas públicas não correspondem ao sacrifício que é imposto à sociedade pelo estado em termos de cobrança de tributos. Ademais, há resistência dos parlamentares que devem votar as propostas do governo sobre política tributária, e que não têm interesse em aumentar impostos para não desagradar os financiadores de suas campanhas. Portanto, é uma questão difícil para quem governa também em razão da cultura dominante na sociedade, à qual falta espírito público e a compreensão do sentido solidário da vida social.
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Atualmente, a gestão Haddad tem cultivado uma imagem negativa, sobretudo após a tentativa de aumento nas passagens ou até mesmo com a cobrança do IPTU. Como governar sem tanto prejuízo político?
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Não há como governar sem desgaste político, pois governar é fazer opções que não têm como agradar a todos, sobretudo numa sociedade injusta como a nossa. Se o governo é de fato democrático, fará opções no sentido de atender aos interesses e direitos da maioria da população. Inclusive para diminuir as desigualdades sociais, o que desagrada a minoria acostumada a ser atendida em seus privilégios pelos governos. Sendo essa minoria formadora de opinião por controlar os meios de comunicação de massa, consegue mobilizar a opinião pública contra um determinado governo que, eventualmente, contrarie seus interesses. Para quebrar essa lógica, própria da sociedade de classes, é preciso governar em aliança com o povo, com vistas à sobrevivência do próprio governo. Fizemos isso e foi o que nos salvou, inclusive de cassação do mandato de prefeita pela Câmara dos vereadores, onde não tínhamos maioria por
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recusarmos as práticas espúrias da política convencional nas relações entre os poderes. Essa é uma questão essencialmente política e que define o caráter de uma determinada gestão. Logo que assumi, encontrei uma dívida enorme, deixada pelos outros governos, com a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, que até então não haviam cobrado à Prefeitura e o fizeram no primeiro mês da nossa gestão. Como não tínhamos como pagar, determinaram o bloqueio da conta da Prefeitura no BANESPA que era o banco que, na época, recolhia os tributos municipais, inclusive os tributos estaduais e federais pertencentes ao município E o que fiz? Fui para a rua em cima de um caminhão, junto com a população, para denunciar o que a Caixa Econômica e o Banco do Brasil estavam fazendo com a cidade de São Paulo. Não demorou para que chegasse - quando ainda estava na rua protestando - um telegrama (na época não havia e-mail) do presidente da Caixa se dispondo a me receber em audiência, em Brasília, para tratar do assunto, o que até então havia sido negado. Como se vê, o povo tem força e poder, sobretudo quando se junta a um governo que, de fato, o representa e luta por seus direitos. É preciso, pois, acreditar no povo e na sua capacidade de mudar a realidade. É isso que define o caráter de um governo democrático e popular que divide o poder com a fonte do poder que é o povo. Cheguei a declarar, então, que sairia do governo, quando terminasse o mandato, com menos poder do que quando entrara, pois teria devolvido parte dele aos cidadãos paulistanos. Tenho certeza de que cumpri esse compromisso. Se quiserem, confiram isso com os movimentos sociais que acompanharam e participaram das ações do governo. Valeu a pena. Faríamos tudo de novo e certamente melhor pela experiência que acumulamos. Era uma extraordinária equipe a que me ajudou a governar São Paulo.
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Há muitos objetivos que você, por qualquer motivo, não tenha conseguido alcançar? E Como você conseguiu montar uma equipe de acessoria para seu mandato?
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Com certeza! Por exemplo, não consolidamos a mudança de cultura na forma de governar; na relação entre o governo e a sociedade; não deu para, em apenas quatro anos, tornar permanente o comportamento dos servidores públicos, enquanto cidadãos, na relação com outros cidadãos a quem devem servir. Procurei, antes de tudo, ter autonomia para compor o primeiro escalão do governo, ou seja, o secretariado. E isso eu consegui. Quanto aos administradores regionais, tive que escolher, para cada região da cidade, um nome dentre uma lista tríplice definida pelo meu partido, o PT. Não fizemos alianças nos dois primeiros anos do governo, a não ser com o PCdoB e PCB que foram os dois partidos da coligação eleitoral. Esse foi um dos nossos erros. Quando no terceiro ano da gestão quisemos trazer outros partidos para participar do governo, eles não aceitaram, a não ser alguns quadros técnicos filiados a esses partidos que, individualmente, aceitaram o convite. Praticamente governamos só com o PT, o que, sem dúvida, foi um equívoco da nossa parte. Muitos petistas que vieram para o governo eram professores da USP e da PUC e profissionais de outras instituições públicas, todos muito preparados técnica e politicamente e que, junto comigo, assumiram o enorme desafio de governar essa gigantesca metrópole. A democracia era, de fato, um princípio fundamental que orientava as ações do governo, tanto externa como internamente. As decisões estratégicas eram tomadas coletivamente em frequentes reuniões do secretariado e do coletivo dos administradores regionais, com plena delegação de poder aos responsáveis pelas diversas áreas e instâncias de elaboração e gestão das políticas públicas do gover-
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no. Assim se efetivava a democracia interna. De outro lado, as decisões eram discutidas com a população, através dos Conselhos Populares, que tinham real possibilidade de influir nelas, além de exercerem o controle sobre a execução das mesmas. Valem como exemplo as plenárias para discussão e elaboração do orçamento anual do município e o acompanhamento de sua execução. Dessa forma se concretizava a democracia na relação do governo com a sociedade civil organizada, o que contribuía para qualificar e legitimar as ações governamentais.
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Como você acha que seria a melhor forma de lhe lidar com a classemédia? E se pudesse, você teria feito alguma coisa diferente no seu governo?
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Não dá para desconsiderar a classe média. Ter uma boa relação com todos os segmentos da sociedade é necessário e democrático. É preciso buscar construir maioria, sem abrir mão dos compromissos assumidos. Desde o início eu dizia ser prefeita de todos os paulistanos e não apenas dos setores populares e dos que votaram em mim. Essa foi uma das coisas que incomodaram o PT, partido ao qual eu era filiada e pelo qual me elegi prefeita. O que eu faria de diferente é que eu teria procurado estabelecer uma relação mais competente com a mídia. Sem preconceito e sem ilusão de que poderíamos conquistar a sua simpatia. Achávamos que não deveríamos aplicar os escassos recursos do município em anúncios para promover o governo, mas era dever nosso informar sobre o que estava sendo feito. Isso certamente gerou má vontade dos donos dos veículos de comunicação em relação a nós. Considero que generalizamos nosso juízo sobre esse setor. Poderíamos ter construído uma relação melhor se tivéssemos entendido que uma coisa são os donos dos meios de comunicação que, por restrições ideológicas, tinham preconceito contra o PT e seus governos; e outra eram os profissionais do setor que, em alguns casos chegavam a demonstrar certa simpatia pelo PT. Eramos todos jovens e, como tal, tocados pela “mística” petista que, naquele momento das nossas vidas, contagiou a todos nós. Não tínhamos, portanto, uma política de comunicação adequada, no sentido de criar uma agenda flexível para atender os jornalistas, mesmo que não conseguíssemos desfazer a animosidade deles contra o nosso governo. Poderíamos, sem dúvida, ter melhorado essa relação.
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Marcelino Freire
MURIBECA
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Lixo? Lixo serve pra tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra por uns pregos e ajeitar, sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão. É a vida da gente o lixão. E por que é que agora querem tirar ele da gente? O que é que eu vou dizer pras crianças? Que não tem mais brinquedo? Que acabou o calçado? Que não tem mais história, livro, desenho? E o meu marido, o que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas, sem as caixas? Vai perambular pela rua, roubar pra comer?E o que eu vou cozinhar agora? Onde vou procurar tomate, alho, cebola? Com que dinheiro vou fazer sopa, vou fazer caldo, vou inventar farofa? Fale, fale. Explique o que é que a gente vai fazer da vida. O que a gente vai fazer da vida? Não pense que é fácil. Nem remédio pra dor de cabeça eu tenho. Como vou me curar quando me der uma dor no estômago, uma coceira, uma caganeira? Vá, me fale, me diga, me aconselhe. Onde vou encontrar tanto remédio bom? E esparadrapo e band-aid e seringa? O povo do governo devia pensar três vezes antes de fazer isso com chefe de família. Vai ver que eles tão de olho nessa merda aqui. Nesse terreno. Vai ver que eles perderam alguma coisa. É. Se perderam, a gente acha. A gente cata. A gente encontra. Até bilhete de loteria, lembro, teve gente que achou. Vai ver que é isso, coisa da Caixa Econômica. Vai ver que é isso, descobriram que lixo dá lucro, que pode dar sorte, que é luxo, que lixo tem valor. Por exemplo, onde a gente vai morar, é? Onde a gente vai morar? Aqueles barracos, tudo ali em volta do lixão, quem é que vai levantar? Você, o governador? Não. Esse negócio de prometer casa que a gente não pode pagar é balela, é conversa pra boi morto. Eles jogam a gente é num esgoto. Pr’onde vão os coitados desses urubus? A cachorra, o cachorro? Isso tudo aqui é uma festa. Os meninos, as meninas naquele alvoroço, pulando em cima de arroz, feijão. Ajudando a escolher. A gente já conhece o que é bom de longe, só pela cara do caminhão. Tem uns que vêm direto de supermercado, açougue. Que dia na vida a gente vai conseguir carne tão barato? Bisteca, filé, chã-de-dentro - o moço tá servido? A moça?Os motoristas já conhecem a gente. Têm uns que até guardam com eles a melhor parte. É coisa muito boa, desperdiçada. Tanto povo que compra o que não gasta - roupa nova, véu, grinalda. Minha filha já vestiu um vestido de noiva, até a aliança a gente encontrou aqui, num corpo. É. Vem parar muito bicho morto. Muito homem, muito criminoso. A gente já tá acostumado. Até o camburão da polícia deixa seu lixo aqui, depositado. Balas, revólver 38. A gente não tem medo, moço. A gente é só ficar calado. Agora, o que deu na cabeça desse povo? A gente nunca deu trabalho. A gente não quer nada deles que não esteja aqui jogado, rasgado, atirado. A gente não quer outra coisa senão esse lixão pra viver. Esse lixão para morrer, ser enterrado. Pra criar os nossos filhos, ensinar o nosso ofício, dar de comer. Pra continuar na graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não faltar brinquedo, comida, trabalho. Não, eles nunca vão tirar a gente deste lixão. Tenho fé em Deus, com a ajuda de Deus eles nunca vão tirar a gente deste lixo. Eles dissem que sim, que vão. Mas não acredito. Eles nunca vão conseguir tirar a gente deste paraíso. “Muribeca” é um dos contos do livro “Angu de Sangue”, publicado pela Ateliê Editorial no ano 2000.
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OCUPAÇÃO Habitar Político Márcia S. Hirata é doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Laboratório de Habitação da FAU-USP (Fonte: Currículo Lattes)
Na paisagem dos centros antigos de muitas grandes cidades no Brasil, além de comércio e serviços encontramos diversas formas de moradia, marcadamente para famílias de baixa renda. Sem dúvida são expressão de processos históricos sócio-econômicos que espelham processos políticos da constituição das cidades. Daremos breve foco aqui a uma que expõe o momento atual do país sob a influência do avanço do capital financeiro: as ocupações de edifícios abandonados. Em meio a cortiços, favelas, e mesmo o extremo que aponta a própria ausência da moradia, o morar na rua, tais ocupações trazem em seu bojo um fazer político diferente das demais. Sem
ENTREVISTA Ocupação Marconi Aline e Carol são moradoras da Ocupação Marconi, no centro de São Paulo.
Podem contar como foi a experiência de vocês antes de chegar aqui na ocupação?
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ALINE: Eu morava na Vila Nova Cachoeirinha. Era uma invasão e depois de pouco tempo tiraram o pessoal de lá. Disseram (a prefeitura) que iam ajudar a pagar aluguel, mas... Aí fui morar de favor na casa da minha mãe. Fiquei uns três meses lá. Comecei a trabalhar aqui no centro e a minha filha
negar que há relação com a política de partidos e governos, referimo-nos ao político relacionado às disputas pela apropriação do espaço. As ocupações de edifícios o fazem em um sentido que questiona uma das bases do domínio da sociedade pelo capital, a propriedade privada da terra, o que, por consequência, reforça o embate da cidade como um direito. Estas ocupações têm um território, antigas áreas centrais com boa infraestrutura urbana e equipamentos sociais, que ficaram para trás diante dos interesses imobiliários por outras áreas da cidade; e têm um tempo, os anos 1990 e 2000. Trata-se de estratégia clara dos movimentos de moradia, que investem nas
As fotografias que ilustram a matéria foram feitas na ocupação Marconi, no dia em que foi realizada a entrevista.
também veio pra cá pra estudar. Coloquei ela aqui pra não ter o atraso de pegar ela na Vila Cachoeirinha – e eu também não tinha dinheiro pra’ contratar alguém pra ficar com ela lá. Uns três meses depois apareceu um amigo lá no serviço falando da ocupação. Fiquei “meio assim”, pensei “será que é verdade mesmo?”, porque eu já morei numa área invadida e não deu certo, despejaram a gente... Vim ver e não era aquela coisa assustadora que o pessoal fala. É bem tranquilo: não pode beber, não pode usar droga, o
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ocupações de glebas da virada para os anos 1980. Neste período, eram nas chamadas periferias que muitos se manifestavam, junto às greves de metalúrgicos, em reivindicações por melhorias urbanas como creches, equipamentos de saúde, infraestrutura, bem como por meio de ocupações de grandes terrenos vazios. Este conjunto refletia o debate pela redemocratização do país e questionava as condições precárias de trabalho e de vida daquele que trabalhava. Enfim, havia a reivindicação por um de-
silêncio é às 22h. Uma vez por semana a gente tem o dia da limpeza, da portaria, e o pessoal que gosta de bagunça acaba saindo. Não consigo viver “na bagunça”, é muito ruim quando a gente não tem uma casa pra viver, pra colocar as crianças dentro.
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CAROL: Eu morava com o meu pai, mas eu tenho três filhos e não estava dando mais certo eu ficar lá. Aí um amigo meu que já fazia parte do movimento me falou da moradia, me
senvolvimento não só para as indústrias, mas também para as demandas sociais. Mas se a precariedade também se encontrava nas antigas áreas centrais, principalmente na forma de cortiços, a reflexão não poderia deixar de questionar um parque construído bem localizado, abandonado e negligenciado por décadas pelo poder público e privado, somente à espera por uma próxima oportunidade de valorização. Os movimentos de moradia passam da
explicou como é, me chamou pra a reunião e eu fiquei. Estou aqui há 5 meses. Vocês acham que melhorou qualidade de vida de vocês depois que vieram pra ca? ALINE: Ah, melhororou. Levo minha filha na escola, chego no serviço mais cedo. Daqui pra a Vila Nova Cachoeirinha é uma
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Pesquisa do Instituto Polis “Moradia é central: inclusão, acesso e direito à cidade”, publicado em 2010. Encontra-se disponível em: http:// www.moradiacentral.org.br/ index.php?mpg=08.05.04. [Acesso em: 10 out. 2012].
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ocupação de terras nos distantes bairros para a terra multiplicada pelas lajes de concreto, uma “terra” que se para o mercado não havia valor, para muitos significava o acesso a bens urbanos e principalmente a formas diversificadas de trabalho em uma pujante área de concentração de comércio e serviços. A partir disto, de fato, inúmeros edifícios transformaramse em moradia para famílias de baixa renda, como o Edifício Labor, o Riskallah Jorge, o Maria Paula, o Fernão Sales, o antigo Hotel São Paulo, entre tantos outros. Estudos indicam que esta mobilização social conquistou a moradia bem localizada para mais de 10 mil famílias1. Pode-se avaliar tal conquista quantitativa de inúmeras maneiras, como uma melhoria efetiva na vida de muitas famílias, ou críticas quanto à diminuta área da moradia e um longo endividamento que compromete as rendas futuras do trabalhador, entre outras. No entanto, é importante apreender o maior significado político da ocupação em si. Neste momento, ao questionarem o descumprimento da função social da propriedade, e até que haja negociação com seu proprietário, não há qualquer forma de pagamento por seu uso. Portanto, enquanto as famílias ali vivem, toda a renda obtida pelo trabalho da família já não segue para o bolso dos proprietários de imóveis ou para os bancos e seus
viagem enorme. A gente já chega no serviço cansado, aí busca a criança na escola pra voltar...fica muito difícil. Pode contar mais sobre sua experiência na ocupação antes de chegar aqui?
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ALINE: Lá era um terreno onde construiram um monte de barraco, mas logo chegou a polícia e tirou todo mundo. Eu fui morar lá e eu não sabia, mas eles já tinham avisado o pessoal. Quando aconteceu eu estava lá tinha uns três meses, mas eu saía pra trabalhar muito cedo e voltava muito tarde então não tinha contato com os vizinhos e não fiquei sabendo mesmo. E que aqui a gente também não está seguro. A gente fica bem pensativo porque não tem uma certeza. Parece que a prefeitura precisava depositar um dinheiro pro dono do prédio e até hoje não aconteceu isso, então a gente fica com um pé na frente outro atrás, pensativo sobre “pra onde
ir” se precisarmos sair. Quando a gente tem a nossa casa é mais tranquilo. você pensa em sair daqui? ALINE: Eu não penso em sair daqui não. Morar no centro é o meu sonho. É como eles falam: não querem pobre no centro. Mas poxa, mandam a gente pra um lugar tão longe. E a gente tem direito, a constituição diz que a gente tem direito a moradia e tudo mais, sempre com dignidade. Mas só está escrito no livro, na hora do “vamos ver” não tem é nada. E a polícia? ALINE: A polícia olha torto. Pensam que a gente é invasor, mas a gente só tá ocupando o que estava desocupado. Ao invés de juntar bicho, poeira e ficar largado a gente dá um uso pro prédio.
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As fotografias que ilustram a matéria foram feitas por Léo Shurmann, na ocupação Marconi, no dia em que foi realizada a entrevista.
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respectivos investidores. Grande parte de seus salários pode então ser direcionada para necessidades antes sempre adiadas, como para os estudos, para um maior cuidado com a saúde, ou mesmo para o consumo de bens que facilitam o cotidiano. Podem até ampliar o tempo do lazer, até porque no centro há uma grande diversidade e disponibilidade, muitas vezes dispensando até gastos com transporte, ou também podem direcionar-se para itens não tão necessários, até pelo poder de influência das propagandas. De qualquer maneira, o que parece óbvio para tais famílias, mostra-se de grande importância estratégica, princi-
CAROL: Enquanto eles não fazem nada a gente ocupa. Vocês estão perto do Teatro Municipal, estão perto dos principais pontos turísticos de São Paulo, mas vocês frequentam esses lugares? CAROL: Às vezes um cinema que tá barato 4 reais, mas a gente não tem uma roupa adequada pra entrar no teatro. Pra quem tem três filhos, se for pagar muito pra um cinema já fica difícil. Mas aqui na ocupação tem o cinema e as oficinas, então a gente acaba ficando aqui mesmo. Como são as dinâmicas do prédio em relação a trabalho interno, visitas, etc? ALINE: Antes da gente morar acontece uma reunião. Nessa reunião eles explicam as regras: uma vez por semana tem que
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palmente se fizer parte dos inúmeros debates comuns durante o tempo da ocupação. Em resumo, o trabalhador, ao menos em seu tempo livre, pode então utilizar parte da renda de seu trabalho com maior autonomia. Em um momento histórico em que até o tempo do lazer é apropriado pelas formas de reprodução do capital, formas de apropriação do espaço por usos autônomos ganham um significado político fundamental. As ocupações, ao garantirem a moradia para famílias de baixa renda em uma área com alta qualidade de vida urbana, caminham assim no sentido do Direito à Cidade nos termos políticos expostos por aquele que lhe definiu um denso conteúdo, o filósofo Henri Lefebvre. Se hoje há uma banalização por discursos que promovem a cidade como parte dos negócios mundiais, pode ser porque aponta para algo que interessa encobrir. No entanto, desde 2005, em especial no caso da cidade de São Paulo, houve uma diminuição no ritmo desta forma de obtenção da moradia, não somente devido a governos conservadores contrários a esta forma de manifestação social, mas principalmente devido a um processo mais amplo de forte valorização imobiliária em todo o país que encareceu o preço da moradia a partir da elevação do preço da terra. Esta suscetibilidade aos
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limpar o andar, uma vez por semana tem que fazer portaria... tudo bem organizado. Todo mundo tem um pouco de responsabilidade. A gente paga também uma colaboração de 120 reais porque precisa pra algumas despesas: manter o prédio, e o escritório. Tem também bastante atividade: tem a creche, tem a cozinha, tem oficina de costura...tem até uma padaria. Em um monte de prédio aí fora as pessoas pagam uma nota de condomínio, aí eu penso que essa coletivização ajuda porque diminui as contas pra pagar e aumenta a interação entre as pessoas. As pessoas moram em condomínio e não sabem nem quem são os vizinhos delas. Não têm um convívio, não tem conversa, então acho que ter esse sentimento de comunidade é positivo. Se alguém se desentende também tem reunião. Chamamos para reunião três vezes, depois da terceira a gente tem que tomar uma providência por que significa que a pessoa não é muito gentil mesmo.
processos de valorização imobiliária repetem erros urbanísticos do tempo do Banco Nacional de Habitação, que instituiu uma política habitacional no período ditatorial focada no financiamento da casa própria, amplamente criticada por inúmeros urbanistas. Neste sentido, um indicativo negativo para a mobilização social e política dos movimentos de moradia da área central é o direcionamento de parte de sua luta pela moradia para áreas distantes do centro. No último ano, no processo contraditório próprio da reprodução do capital, diante de tantas dificuldades os movimentos reforçaram as ocupações de edifícios vazios, como forma de dizer aos governos que esperam mudanças na condução da política habitacional e que retomem a produção de moradia na área central. Apesar de inúmeras críticas que surgem em torno das formas de atuação de tais movimentos, no mínimo significa a continuidade de um debate importante em um momento de grande disputa, entre usos consolidados ao longo de décadas e os interesses de ganhos imobiliários pelos investimentos mundiais. O capital por si se renova em suas estratégias de acumulação, e nos últimos anos tem-se focado na produção imobiliária. É preciso que os movimentos sociais façam o mesmo. As manifestações de junho de 2013 demonstram que há um potencial.
CAROL: A gente não tá aqui de brincadeira. As pessoas se fixam aqui porque quem tá aqui leva bem a sério. Porque vê que a gente está lutando. Tem muita gente que desiste, que não aguenta e perde a esperança. Mas a gente pede a Deus pra ter esperança. As pessoas aqui não têm dinheiro pra pagar aluguel - lá fora tá um absurdo - não querem ficar devendo pra fiador, que quer três meses de depósito. O salário da gente aumenta 2 ou 3% ao ano então não tem como. Vai pagar tanto aluguel lá fora e vai comer o que? Tem que estar todo mundo unido. Tenho amizade com todo mundo. Eu era muito tímida, não gostava de conversar, chegava muito tarde em casa...mas aí eu vim pra cá e já fiz amizade. Você começa a frequentar a cozinha, começa a falar e não para mais. Meus filhos não entendem muito. Perguntam “aqui que é a nossa casa?” “A gente vive só num cômodo?” Eu explico tudo pra eles, digo “olha, a gente tá vivendo aqui por uns tempos. Isso daqui não é nosso, mas a gente vai conseguir morar aqui no centro. Isso é só uma fase”.
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A EMERGÊNCIA DA
HABITAÇÃO Alex Sartori Arquiteto Urbanista formado pela FAU USP
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O filósofo alemão Heidegger em seu ensaio “Bauen, Wohnen, Denken” (traduzido como “Construir, Habitar, Pensar”) resgatou do antigo alemão as aproximações entre o significado das palavras “construir”, “habitar” e “ser”. Segundo ele, “A palavra do antigo alto-alemão usada para dizer construir, “buan”, significa habitar. Diz: permanecer, morar. [...] Os verbos buri, büren, beuren, beuron significam todos eles o habitar, as estâncias e circunstâncias do habitar. [...]Quando a palavra bauen, construir, ainda fala de maneira originária diz, ao mesmo tempo, que amplitude alcança o vigor essencial do habitar. Bauen, buan, bhu, beo é, na verdade, a mesma palavra alemã “bin”, “eu sou” nas conjugações ich bin, du bist, “eu sou”, “tu és”, nas formas imperativas bis, sei, sê, sede. O que diz então: eu sou? A antiga palavra bauen (construir) a que pertence “bin”, “sou”, responde: “ich bin”, “du bist” (eu sou, tu és) significa: eu habito, tu habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o “Buan”, o habitar.” (in Ensaios e Conferências, 2002, p. 128)
Já o arquiteto Vilanova Artigas nos dizia que “A cidade é uma casa /A casa é uma cidade /As cidades como as casas /As casas como as cidades” (ARTIGAS, João Batista Vilanova, 2004 p. 120 e 121). Desta forma, tanto a cidade quanto a casa são espaços do habitar, são habitações; eu habito a cidade da mesma forma como habito minha residência. Podemos considerar, entretanto, que nem todo o espaço urbano e nem toda moradia desempenham com o devido conforto seu papel de habitações; são lugares em que o permanecer encontra grandes dificuldades. Por isso podemos falar em um déficit de cidade e de moradias, e se considerarmos a urgência que é superar essa condição, porque são os espaços do “ser” como coloca Heidegger, estaremos falando de uma situação emergencial, a emergência de habitação. A emergência de habitação, nos referindo à moradia em si é uma condição diária relacionada ao processo de urbanização e tem nas favelas a sua mais comum materialização. Estamos falando da pior condição possível do habitar: barracos superlotados de madeira reaproveitada, zinco e lona, sem 194
segurança estrutural, muitas vezes sobre córregos poluídos ou solos contaminados e moles, chão de terra batida, em áreas de risco de desabamento, fundos de vale, inúmeras goteiras, úmidos e/ou extremamente quentes, quase sempre sem ventilação e insolação, atravessados por ratos e baratas frequentemente; barracos inseridos em bairros sem rede de água, esgoto e eletricidade regulares, com pouco ou nenhum espaço e equipamentos públicos, ou seja, sem urbanização e com grandes restrições de mobilidade. Seus habitantes não têm garantido seus direitos, principalmente os direitos à propriedade e à habitação. O que implica em limitações nos campos da educação, trabalho, saúde, lazer, segurança e autonomia individual, ou seja, é a própria reprodução da condição de pobreza que afeta dezenas de milhões de brasileiros que, de forma cíclica e estrutural, são mantidos fora do mercado formal de habitação. Esta condição pode ter como etapa de superação a habitação de emergência. Uma residência provisória (mesmo que habitada por décadas) para que em um espaço curtíssimo
de tempo seja possível transformar a condição do habitar de um grupo de pessoas, logo romper diversos aspectos da reprodução da pobreza. Essas habitações são importantes porque os processos de regularização e urbanização são demasiado lentos e insuficientes frente a todo o problema. A alternativa justa seria que a sociedade estivesse disposta a transformar-se para retirar de si as desigualdades e estruturas que geram a pobreza, mas de forma geral compreende que ela é culpa daquele que está nesta condição. “(...) os grupos dominantes de uma sociedade possuem geralmente a capacidade de impor sua concepção de mundo, negando que o sofrimento dos pobres seja provocado pelo arranjo institucional e social que os coloca na posição de domínio” (REGO, Walquiria Leão. PINZANI, Alessandro, 2013, p. 43). Milhões de pessoas estão sujeitas a passar a vida inteira em más condições de habitação e o Estado é efetivamente o único que possui condições de mitigar as mazelas sociais porque reúne recursos financeiros, materiais e humanos capazes de lidar com a dimensão do problema. Para que se possa efetivamente dar início a uma transformação social por meio da moradia é preciso definir qualidades mínimas, considerando em primeiro lugar o resgate da dignidade da pessoa, importantíssima no processo de superação da condição de pobreza (in REGO, Walquiria Leão, PINZANI, Alessandro, 2013); e em segundo lugar que ela se destinará a uma família
por um período de tempo indeterminado, até que ela tenha condições de migrar para uma moradia definitiva, seja através de um programa estatal, por um aumento da renda que a permita acessar o mercado formal de habitação ou por um reajuste social que garanta efetivamente o direito a habitação a todos os cidadãos. Estas qualidades são a garantia de um espaço transformador porque, entre outros motivos, permitiria que não houvessem mais preocupações com goteiras e camas molhadas a cada chuva, ou a dúvida da presença do telhado sobre a casa no dia seguinte; porque há espaço adequado para estudos, para refeições e para dormir, sem a necessidade de revezamento ou divisão das camas (o que é muito comum); porque se anulam os riscos de doenças respiratórias por conta da falta de ventilação, insolação e pela umidade do ar; porque possibilita ao morador sair para procurar ou manter seu emprego, seguro de que sua casa estará sempre como foi deixada, e que não perderá tempo realizando reparos (um barraco de madeira necessita a troca de materiais constantemente). Não cabe aqui a definição das qualidades mínimas, mas podemos considerar que isto envolve questões de salubridade, ventilação, insolação, privacidade, etc, assim como em qualquer habitação, porém com limitações de espaço, tempo e material. Para ser mais efetiva em seu papel transformador, 195
a habitação deve ser inserida em um meio com qualidades mínimas, ou seja, com infraestrutura básica (escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação, que também podem ser construídos em caráter emergencial). Assim, passamos da habitação enquanto edificação, mesmo que provisória, para chegar à forma como colocada por Artigas: a cidade é uma casa e a casa é uma cidade. Não habitamos apenas a residência, mas a cidade como um todo; dentro de um contexto urbano é ela que nos abriga, que nos dá espaço e condições de desenvolver nossas atividades e nossa condição humana; mas também tem deficiências, como um barraco de madeira. A professora Regina Meyer fala em “urbanização sem cidade,” (MEYER, GROSTEIN E BIDERMAN, 2004), que significa que grande parte das nossas cidades não possui elementos qualificadores da vida urbana, tais como infraestrutura, equipamentos urbanos (escolas, creches, hospitais, áreas de lazer, espaços públicos, etc.), transporte (conexão ampla e irrestrita com o entorno) e comércio diversificado, por isso podemos falar em emergência de cidade. A presença destes elementos torna o espaço da cidade um local habitável, lugar de estar, de ser, como no sentindo exposto por Heidegger; são estes elementos que estabelecem conexões entre os diversos edifícios, que fazem com que deixem de ser isolados para que se tornem o suporte da vida urbana. A ausência destes elementos, por outro lado, tem o efeito inverso: a rua torna-se lugar de passagem e não do encontro, do estar; não há convivência, não há trocas. Não se habita, não há cidade, por isso podemos entender emergência da habitação como emergência de cidade e vice-versa. 196
Esta deficiência não diz respeito apenas aos bairros mais pobres, mas também aos mais ricos, de maneira igual. Está tanto no bairro de Cidade Tiradentes como no Morumbi, em São Paulo. A “urbanização sem cidade” tem sido regra tanto na construção de conjuntos habitacionais populares quanto na construção de condomínios fechados de alto padrão, de tal forma que já são sensíveis os efeitos deste processo: uso excessivo do automóvel, perda das noções de cidadania e democracia, distorção das noções de liberdade, entre outras, como explicou Teresa Caldeira no livro “Cidade de Muros”. A emergência da cidade aparece nas diversas manifestações que têm tomado as ruas – e inclusive shoppings. Está desde o crescimento exponencial dos blocos de carnaval em São Paulo e os “rolezinhos”, aos protestos de rua. A luta contra o aumento das passagens tinha dentro de si a luta pelo direito à cidade. Os “rolezinhos” são a própria manifestação contra a “urbanização sem cidade”. Os blocos de carnaval e festivais de rua sinalizam uma incipiente retomada do espaço público, que nas últimas décadas sofreu diversos reveses. Os protestos trazem a rua de volta ao cenário político em uma escala que praticamente não se via há muitos anos. A cidade é o local do encontro, do compartilhamento, das trocas, da convivência, da tolerância e do respeito; negar tudo isso é negar a própria cidade. A casa é a unidade base deste espaço. Assim, é emergencial garantir a habitabilidade das cidades, tanto de sua célula fundamental quanto do seu espaço macro. É extremamente necessário reverter os processos de urbanização em nome da democracia. Habitação, tanto no sentido estrito quanto no amplo, é direito garantido pela Constituição e pelo Estatuto da Cidade.
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ilustrações: Luiza Gomyde
ARTE QUE TE TURA
Desenho feito por Tomas Lotufo, arquiteto formado na PUC-Campinas que fez a reforma de sua casa junto com sua esposa, engenheira. A típica casa térrea encontrada nos bairros residenciais paulistas foi transformada em um sobrado para se adequar a uma nova proposta de forma de vida mais sustentável. Utilizando materiais baratos e reciclados encontrados na cidade, eles constroem uma casa que multiplica as áreas permeáveis e reaproveita toda água e resíduos orgânicos disponíveis.
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PROJETOS PARA A FAVELA DA LINHA conversa com Marina Grinover
INSTITUTO ACAIA Elisa Bracher Ana Cristina Camargo Olga Maria Aralhe ARQUITETOS E URBANISTAS EASP Catherine Otondo Jorge Pessoa Marcia Grosbaum Marina Grinover ARQUITETOS COLABORADORES Joana Maia Rosa Julie Trickett Luis Rodrigues Regis Sugaya ADVOGADOS Theotônio M. de Barros
Arquiteta pela FAU-USP, professora da Escola da Cidade e membro do escritório Base 3 Arquitetos, Marina explica à Revista Contraste o processo de projeto utilizado no enfrentamento da reurbanização da Favela da Linha, próxima ao CEAGESP, em São Paulo. Com uma equipe multidisciplinar, duas propostas - nenhuma ainda efetivada - foram realizadas: uma conforme o padrão de HIS; outra aproveitando a Lei de Vilas. Assim, são confrontadas duas tipologias e, consequêntemente, as circunstâncias políticas que as promovem. Se de um lado temos a proposta pragmática, que assenta maior número de famílias; de outro, temos espaços mais aderentes às organizações socio -espaciais da população.
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“Este exercício que apresentamos nasceu a partir das avaliações que fizemos do projeto desenvolvido para a Sehab em maio de 2009. Questionamos principalmente a capacidade de nosso projeto em acolher as dinâmicas de uso dos espaços coletivos e públicos vividas na favela da Linha. É inegável a melhora da qualidade ambiental e espacial da unidade, conquistada com a construção das novas moradias em tipologias verticais. No entanto, estamos procurando averiguar em que medida esta espacialidade que propomos não repete espaços públicos desintegrados como os que conhecemos do Maderite. Neste sentido, re-olhamos a favela procurando identificar usos dos espaços comuns, dinâmicas sociais no uso dos espaços e adotamos como premissa estas qualidades. O resultado foi formalizado no projeto-conceito. Agregamos aos valores do espaço livre, exterior, coletivo e público as virtudes da habitação planejada, seriada e resolvida tecnicamente quanto as questões de conforto ambiental normatizada pelo poder público.” Apresentação oficial dos autores do projeto. (esq.) Espaços coletivos na Favela da Linha. Foto: Instituto Atelier Acaia.
Como foi o contato com a comunidade da Favela da Linha e qual foi a importância da participação das pessoas na elaboração dos projetos? Bom, a história começa assim: A Elisa Bracher, artista plástica paulista, há 17 anos alugou um galpão na Vila Leopoldina para seu atelier. Suas obras são esculturas de grande porte, ela trabalha com seções de toras de madeira da floresta, com grandes peças de pedra e por isso precisa de um galpão grande para fazer seu trabalho. Aconteceu que ela achou um galpão entre a Imperatriz Leopoldina e a Gastão Vidigal, onde há várias pequenas travessas e pequenas vilas residenciais que se mesclam à galpões industriais por causa do CEAGESP. Próximo ao galpão havia muitas crianças na rua e, conversando com elas, Elisa descobriu que as crianças moravam em favelas próximas. Com o tempo, esses meninos foram convidados para conhecer o ateliê, e este
gesto deu origem ao Instituto Acaia: uma ONG-escola que acolhe crianças em situação precária com atividades extracurriculares ligadas ao desenvolvimento artístico (marcenaria, xilogravura, escultura, pintura etc). Lá existe um acolhimento afetivo e social, as crianças também almoçam, tomam banho, tem uma prática de higiene e cuidados com o corpo. Eu fui professora de desenho técnico no Instituto Acaia para jovens e adultos, que também estavam sendo introduzidos a algumas dessas práticas, ateliê de bordado e marcenaria. Esse acolhimento é muito direcionado à construção de uma autonomia, que se dá basicamente pela atitude afetiva e pelo desenvolvimento de projetos dentro do campo da arte. É através do trabalho com a marcenaria,
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com o desenho, com a xilogravura, que se discutem as questões, os conflitos, os problemas da vida precária e pobre. As oportunidades de trabalho que eu tive carregavam por trás uma ideia de poder ativar essas pessoas para a questão do espaço que é público - do espaço coletivo - para a questão do espaço da casa, do morar, da limpeza, da organização, dos fluxos. Enfim, de um jeito simples e objetivo nós procuramos conversar sobre estas questões. Acabamos fazendo algumas intervenções nos Edifícios da Cohab – Cingapura (nos anos 80 uma parte da favela foi urbanizada). Ali o espaço coletivo é muito ruim, é um nada, é um chão batido, quando muito um chão pavimentado com cimento junto das construções. Apenas uma quadra existe como equipamento. Resolvemos, em aula, que faríamos novos bancos na marcenaria, o que foi um processo muito interessante. Com os alunos, fizemos um levantamento, o projeto, a execução das peças, montamos os bancos e discutimos o que era o espaço livre e coletivo.
Aqui no escritório, entendemos que o espaço livre da favela não é o espaço público, ele é um espaço coletivo, e isso é um conceito que extraímos da convivência com os moradores da favela da Linha. O espaço livre da favela é o lugar onde a sociabilidade acontece, porque as casas são muito pequenas, os cômodos, muitas vezes, têm todas as funções no mesmo espaço, são poucas as casas que dividem o espaço entre a sala e a cozinha, dificilmente se tem um banheiro próprio e separado, às vezes o banheiro é divido com outra moradia. Então, o lado de fora é o lugar onde toda a convivência social acontece. Nós fizemos, por exemplo, junto com o Acaia, um pequeno trabalho com uma área de lixo dentro da favela e transformamos em uma praça para quarar roupa e para as crianças brincarem. São coisas mínimas do ponto de vista projetual. Depois ajudamos o instituto a implantar um sistema de coleta de lixo que não existia. Na verdade, foi o trabalho depois da enchente, em 2006, que mais aproximou
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a gente de uma tarefa planejada do que fazer com o espaço da favela. A partir deste momento o instituto e a comunidade se mobilizaram para ter o esgoto e a água encanada, para ter energia elétrica em todas as moradias. Esse processo de formalização, quer dizer, de colocar a infraestrutura e informar as pessoas foi muito duro e contou com a ajuda da Sabesp. O processo durou uns dois anos com muitas idas e vindas, mas eu acho que ele teve um sucesso muito grande porque ajudou a comunidade a se unir. O Instituto Acaia recebeu uma menção no Urban Age de 2008 por causa desse trabalho com esgoto e com a pracinha. Na região existem duas favelas, uma chamada Favela do 9 e outra chamada Favela da Linha, que vivem das oportunidades de trabalho e de tudo que tem a ver com o CEAGESP, desde trabalho até a prostituição, a droga e a violência. Isso tudo alimenta de todas as maneiras as pessoas. O grupo ligado ao tráfico de drogas tem uma força muito grande, apesar de ser minoria dentro da favela. A presença
do tráfico é uma fonte grande de conflito e de tensão, as pessoas são sempre ameaçadas, há tanto crianças envolvidas nisso como também suas mães. O foco de conflito nasce basicamente do problema do tráfico e da ameaça de despejo. Em função dos últimos investimentos da iniciativa privada essa população tem sofrido fortes ameaças de despejo. Então, em 2008, começamos alguns trabalhos para evitar isso: primeiro, investigar algum lote, um terreno próximo, onde pudéssemos transferir as pessoas para uma outra moradia. Fizemos o levantamento da favela e mapeamos a área; começamos a fazer um trabalho do resumo de lotes e de estudos de viabilidade no entorno. Descobrimos, por exemplo, um terreno da SPTrans que poderia ser urbanizado, identificamos uma área de ZEIS com projeto aprovado de torres de residência de alto-padrão. Estudamos os lotes do próprio CEAGESP, que são estacionamento e estavam bastante abandonados. Na mesma época em que ajudávamos o Acaia, que capitaneou o processo de usuca-
Levantamento dos espaços livres térreos na Favela da Linha. Imagem: Base 3 Arquitetos
Implantação geral da Favela da Linha. Imagem: Base 3 Arquitetos
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“Uma ideia de poder ativar essas pessoas para a questão do espaço que é público - do espaço coletivo - para a questão do espaço da casa, do morar, da limpeza, da organização, dos fluxos.” Enchente na Favela da Linha Foto: Instituto Atelier Acaia
pião, ganhamos o prêmio do Urban Age, isso abriu um canal de conversa com a secretaria da habitação do município. Era um dos anos de revisão do Plano Diretor, e nós começamos a conversar com a secretaria e fomos estudar uma série de oportunidades para definir uma área de ZEIS para esta comunidade. Resolvemos fazer os projetos no risco porque a gente não sabia como ia acontecer essa história do usucapião, estudamos o que aconteceria se a prefeitura edificasse essas unidades habitacionais. Então, para isso, tivemos que adequar o projeto a normativa da Secretaria Municipal de Habitação, que regulamenta a construção e o financiamento em área de ZEIS. Fizemos um estudo para a área dos estacionamento do CEAGESP, e um estudo para o próprio terreno da favela da Linha. No nosso raciocínio esse processo do usucapião poderia ser uma contrapartida de verba no financiamento da moradia. Por isso usar a legislação específica da ZEIS, onde obrigase a fazer rua, edifícios de até 5 pavimentos,
mas também onde, nesse momento, pensamos que o térreo poderia ser o lugar que tratasse da diversidade de usos que a própria favela e a cidade tem. Queríamos projetar pontos de comércio e serviços no térreo e as unidades de acessibilidade. Nesse projeto, enfrentamos uma questão que nos afligia ao verticalizar, que era como trazer para a edificação essa diversidade do espaço livre e coletivo da favela. Na hora em que você verticaliza, põe as unidades em volta de um hallzinho, num corredor, esse espaço coletivo some ou fica distante e, muito mais que isso, no térreo é transformado numa via de veículos. Então criamos uma varanda larga, que era fora dos padrões, ela excedia a proporção da área do apartamento, mas era onde teríamos as lavanderias dos apartamentos. Em nenhum momento a legislação diz que os cômodos têm que estar sempre dentro de uma mesma porta, então pensamos: “E se a gente levasse a lavanderia pra fora?”. A varanda de chegada também po-
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“É difícil para eles entrarem nessa esfera técnica, para poderem se colocar e começarem a pensar na resposta de uma pergunta muito simples: o que é morar?” Processo participativo de projeto. Foto: Instituto Atelier Acaia
deria ser o lugar de lavar roupa, as mulheres ficam juntas, as crianças brincam ali mesmo, isso justifica o tamanho do espaço. Então, fomos adiante com esse desenho mas o projeto como um todo se estagnou devido a morosidade do processo de usucapião. Achamos por bem pensar outras alternativas. Uma das alternativas que apareceu em conversas lá no instituto com os advogados foi: “Bom, se a gente tiver o usucapião e se a prefeitura não se interessar em assistir essa comunidade, será que a gente não consegue uma verba privada?” O terreno é da comunidade, a verba privada: fazemos uma operação particular, assim talvez a prefeitura entre com uma linha de financiamento, como uma parceria público-privada. Desenvolvemos então um outro estudo chamado de “exercício conceitual”, porque ele partia de um estudo mais abstrato. Temos um terreno, de 18 por 320 metros; queríamos que ele pudesse acomodar uma diversidade dos espaços livres da favela, esses pequenos becos
e cantos, são muito propícios para vida social dos moradores. Por outro lado, falta iluminação, ventilação e banheiro em todas as moradias. Queríamos também acolher a questão de que as casas são divididas de jeitos muito diferentes, nem todo mundo tem uma sala e dois quartos. Bem, estudamos as possibilidades: cada casa dois módulos de 5 x 5 metros, com um banheiro e uma cozinha e o resto seria livre. Ficamos estudando vários modos de combinação, experimentando geometrias e desenhando a diversidade de espaços. Principalmente, investimos na diversidade de circulação, de acesso às unidades. Cada unidade tinha sempre associado a ela um módulo livre, um módulo que era fora da casa, que ao mesmo tempo era um lugar de passagem, de encontro. Fomos, enfim, desenvolvendo isso bem nesse âmbito preliminar, fazendo esses estudos de volumetria. A ideia era que a frente do conjunto, virada para rua, tivesse comércio, serviços ligados ao térreo. Tem muita gente que mora em cima e trabalha embaixo:
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a costureira, o baleiro. A ideia foi incorporar a diversidade com qualidade técnica. O trabalho nunca mais avançou disso desde 2010, porque o processo de usucapião ainda está em andamento. Mas a comunidade na favela conseguiu se organizar, conseguiram fazer uma associação de moradores, que é uma obrigatoriedade para o processo de usucapião, e nós continuamos freqüentando a favela. De vez em quando, visitamos e ficamos sabendo de notícias. O trabalho foi muito importante para todos os outros trabalhos que fizemos e que de fato viraram construção junto com a Secretaria Municipal de Habitação. Foi muito boa a experiência de dialogar, de tentar entender quais são as demandas da comunidade, qual a relação que ela tem com o seu entorno imediato e com a cidade. Geralmente, as comunidades precárias são muito isoladas em si, as pessoas saem pouco do seu âmbito. Por “n” razões, mas, também por insegurança de circular para além do entorno
imediato trabalho-escola-mercado-casa. E a gente acabou, na medida do possível, em outros trabalhos, usando esse conhecimento adquirido no projeto na favela da Linha. Foi muito importante para nos conscientizarmos de algumas ferramentas de projeto, como o espaço coletivo, como a ideia de levar algumas funções para as áreas de circulação, a varanda, de agigantar essas áreas de circulação que são normalmente vistas muito ordinariamente pelo construtor. Foram ferramentas de projeto que adquirimos fazendo esse trabalho, e somos gratos sempre ao Acaia. Na verdade foi uma coisa muito natural este envolvimento. Eu estava de lá como professora e me perguntaram: “Você pode participar dessa conversa? Olha, tem o problema com o lixo, você não quer sentar e ajudar a gente a resolver?”. Assim foi. O fato de você estar junto pode trazer essa oportunidade, foi um produto da convivência que tivemos e aproveitamos para usar as nossas ferramentas de trabalho.
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Mobiliario desenvolvido na marcenaria em uso pelos moradores. Foto: Instituto Acaia
Implantação da proposta 1 Imagem: Base 3 Arquitetos
Implantação da proposta 2 Imagem: Base 3 Arquitetos
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Planta Tipo dos edifĂcios da proposta de projeto 1. Imagem: Base 3 Arquitetos.
Volumetria da proposta 1 de projeto. Imagem: Base 3 Arquitetos.
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É legal que é um processo bem no caminho inverso do que acontece geralmente com habitação social. É, eu acho que tem muitas experiências parecidas que a gente desconhece. Depois que começamos a trabalhar, acabamos conhecendo vários grupos que tem um trabalho mais próximo com a comunidade, muitas vezes também sem sucesso imediato, o que talvez por isso não vire mídia, não vire publicação, não vire conhecimento que a gente possa acessar fácil, mas eu acho que é um trabalho que demanda um financiamento que é muito difícil de conseguir dentro do sistema público.
Você falou que o primeiro projeto estava dentro das normas de ZEIS. Mesmo bastante questionado, o segundo projeto chegou a ser visto? Qual foi a reação?
Chegou. A reação foi ótima dentro da SEHAB, “Quando vocês tiverem o usucapião, nós vamos fazer!” – disse na época Elisabete França. Ela ficou muito entusiasmada, mas hoje eu não mostraria para o João Leopoldo, o superintendente. São diretrizes diferentes para tratar as áreas precárias, hoje o programa está ligado ao projeto “Minha Casa, Minha Vida” que é outra legislação. O usucapião não está pronto, e eu acho que agora o próximo passo é poder conversar sabendo “Agora a gente tem a propriedade”. Porque é uma grande ameaça o tempo todo para essas comunidades não ter o direito legal e formalizado da terra. Elas têm o direito, mas não formalmente colocado. Este é um entrave imenso para muitos projetos, até para o poder público. Muitos dos problemas acabam se postergando porque não há o direito de propriedade estabelecido.
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T1 - 2 dormitórios (50m2) Recorte da planta do pavimento térreo. Destaque para as diferentes tipologias de unidades habitacionais com acesso por este nível.
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T2 T1 T2 - 2 dormitórios duplex (50m ) 2
Recorte da planta do primeiro pavimento. Destaque para as diferentes tipologias de unidades habitacionais com acesso por este nível.
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T2 T3 - Quitinete (25m2) Recorte da planta do segundo pavimento. Destaque para as diferentes tipologias de unidades habitacionais com acesso por este nível.
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T2 Imagem: Esquema a partir de original fornecido por Base 3 Arquitetos.
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O poder público decide? Sim decide onde investe em habitação, agora, se a comunidade for dona da terra, ela também decide. Eu acho que a gente gostaria mais se a comunidade pudesse resolver o que ela quer fazer.
Mas, do ponto de vista da viabilidade econômica, enxergou-se algum caminho mais concreto? Não, eu acho que a segunda opção de projeto é mais barata, porque estávamos pensando em um sistema pré-fabricado. Temos uma questão grande aqui que é a seguinte: não cabem todas as famílias. Então, isso vai ser uma grande discussão. A gente tem um histórico de 360 famílias e nesses dois projetos cabem cerca de 200 unidades. Então um terço das famílias vai ter que procurar outro lugar para morar. Esse processo, que também ocorre dentro da prefeitura, é muito duro, seja ele bem assistido ou mal assistido. E a gente vai ter que enfrentá-lo em uma solução ou outra. Em uma vamos poder contar mais com o Estado e na outra menos.
Esse projeto foi visto também pelas famílias? Ele foi visto pelas famílias. Em geral, causa muita angústia porque as pessoas querem que seja construído logo. Fizemos uma apresentação para algumas lideranças e dissemos muitas vezes que a obra só vai acontecer se o processo de usucapião sair, e se a prefeitura se interessar em auxiliar o processo.
Elas mostraram alguma preferência por algum dos dois projetos? Não, acho que eles não conseguiram ter essa dimensão. Eles gostam muito, acham que é lindo. A conversa sobre moradia é muito Imagens: Base 3 Arquitetos.
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Volumetria da proposta 2 - Unidades acessíveis pelo pavimento térreo. Imagem: Base 3 Arquitetos.
Volumetria da proposta 2 - Unidades acessíveis pelo primeiro pavimento. Imagem: Base 3 Arquitetos.
Volumetria da proposta 2 - Unidades acessíveis pelo segundo pavimento. Imagem: Base 3 Arquitetos.
Volumetria da proposta 2 de projeto. Imagem: Base 3 Arquitetos.
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“Queríamos que ele pudesse acomodar uma diversidade dos espaços livres da favela, esses pequenos becos e cantos, são muito propícios para vida social dos moradores”
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sofisticada tecnicamente, é permeada por termos que não são do cotidiano dessas pessoas, ela envolve várias disciplinas que não tem nada a ver com a vida deles: arquitetura, engenharia, economia, direito institucional, direito constitucional, uma quantidade de informações técnicas sofisticadas que é muito difícil apreender rapidamente. É difícil para eles entrarem nessa esfera técnica, para poderem se colocar e começarem a pensar na resposta de uma pergunta muito simples: o que é morar? Mas sobre o lugar de uma lixeira é muito mais fácil. Dizem: “Eu não quero esse lixo aqui, esse cheiro!” - É uma coisa mais palpável para começar a prática do debate.
Isso é muito interessante porque diz respeito ao que é trabalhar em assentamentos precários. Tendemos, de certa forma, a fantasiar aquela organização espacial e social. Temos dificuldade de enxergar quais são os reais problemas, se eles existem e como eles devem ser tratados.
Essa favela existe há 40 anos e em média as pessoas vivem nas favelas cerca de 45 e 50 anos. Estamos falando da segunda ou da terceira geração de moradores. Existe gente ali, com 40 anos de idade, que nasceu naquele espaço, ele é o repertório de valores e de espacialidade, a referência do que é o espaço urbano para estas pessoas. Você tem que transformar isso na cabeça delas, é muito mais fácil fazer isso com as crianças do que com os adultos, a resistência é muito grande nos adultos. São histórias inteiras de vida de abandono e informalidade. Por exemplo, a pessoa sempre se virou sem pagar energia, água e luz, sem CPF e RG. Então, quando você fala: “Você precisa pagar conta de luz, pagar sua conta de água”, ele vê isso como um problema e não como uma solução.
Sobre o “Minha Casa, Minha Vida”, a questão de como a política habitacional hoje coloca essas problemáticas, de como você tira esses moradores de uma
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“Acho que o projeto é um pedaço do processo que é importante, onde os compromissos são firmados. É um momento fundamental, mas ele não é nada se não entrar na obra e se não passar a coordenar o processo de construção.” Obras de saneamento na Favela da Linha. Foto: Instituto Atelier Acaia.
favela e os coloca em um condomínio onde tem que se pagar uma taxa condominial, pagar conta de água... Sim, isso é um problema e acho que ele também acontece nesses outros processos de reurbanização. Acho que a prefeitura dá pouca atenção para isso, e depende muito da comunidade, de quem são as lideranças, de como essa liderança se relaciona com quem está coordenando essas entregas e essas relações.
Mas é interessante ver também como é uma forma diferente do arquiteto agir, porque a gente normalmente vê os arquitetos esperando a encomenda e projetando seus interesses particulares. Acho que posso dizer que isso não foi um procedimento apenas nesse projeto, mas algo que temos como prática no escritório. Muito se deve porque somos atentos a este diálogo, mas acho que tem relação com a minha formação, eu aprendi que temos que trabalhar com a obra. Acho que o projeto é um pedaço do processo que é impor-
tante, onde se faz a síntese das questões, onde os compromissos são firmados. É um momento fundamental, mas ele não é nada se não entrar na obra e se não passar a coordenar o processo de construção. Envolver-se com o dinheiro, com as políticas, com as diretrizes, os financiamentos, fazer essa interlocução entre um processo que fabrica um objeto e uma comunidade em volta, seja ela pública ou privada é um trabalho também para o arquiteto. Nós fazemos obra privada, nós gerenciamos e vemos que os processos são muito semelhantes, estruturalmente falando. Aqui na Favela da Linha estamos dentro de um conjunto maior de instituições, tem o poder público e legítimo para dar as definições. Os arquitetos na história foram apartados de sentar na mesa para tomar decisões assim. E não é um problema só do Brasil, acho que é um problema da história da nossa profissão. Nos colocamos numa situação mais ligada às questões estéticas e às questões simbólicas e técnicas de projeto e poucos foram os arquitetos que se apegaram à gestão da construção.
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A arquitetura vira um gesto. Acho que fora do país há muitos problemas também. Por exemplo: porque a pré-fabricação não faz parte da pauta da habitação social? As razões que estão por traz da resposta estão no início da industrialização. E acho que aqui, no nosso país, isso é um problema muito grande de formação técnica. Mas a sociedade tem muita dificuldade de perceber o equívoco do ponto de vista material, urbano e ambiental. Estas questões estão ligadas aos nossos valores, ao que a gente quer ser como sociedade. O que achamos que é a vida coletiva? O que é a vida em grupo? O que é a cidade? Essas discussões não estão na pauta do cotidiano das pessoas. Estão na nossa pauta porque escolhemos esta profissão, mas no cotidiano da vida das outras pessoas isso não faz parte. Acho muito grave, e mais, como o cidadão comum pode opinar a respeito, saber discutir caminhos para solucionar esses problemas? Acho que temos que nos envolver e nos mobilizar para que as nossas instâncias de representação possam abrir o olhar para isso, para o problema da formação mais ampla da sociedade. O CAU é
uma instituição mais democrática, em relação ao CREA, quem sabe por ali. Gostaria de lembrar do livro “O artífice”, de Richard Sennett. O autor aborda um aspecto interessante: construir é uma atividade de transformação experimental, por mais que seja dominada pela ciência da engenharia, construir é sempre uma experiência. Portanto é sempre uma tensão entre acertos e erros. Se nós olhássemos para uma obra com esse raciocínio, aprenderíamos muito mais, porque o erro faz parte do processo. Quando você não pode errar nada, você só trabalha numa pequena faixa de criação, com aquilo que nos últimos anos deu certo, não inventa. O MCMV, por exemplo, são os últimos 200 anos de história da construção que deu certo: tijolinho empilhado com ferro e cimento; casinha de dois quartos, sala e banheiro, telhadinho e fundação rasa e acabou. Me parece muito curto, é preciso ser mais criativo, e mais que isso, ser capaz de lidar com o imprevisto de uma forma construtiva. O ser humano é capaz de lidar com o imprevisto e isso está nas várias escalas, porque sabemos planejar.
“Os arquitetos na história foram apartados de sentar na mesa para tomar decisões assim.”
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POTENCIAL DA HABITAÇÃO PARA A CONSTRUÇÃO DE CIDADE A EXPERIÊNCIA DE MEDELLÍN-COLOMBIA1 Diana Patricia González A., Jhon Edinson Garcés U. y Juan David Peláez M.2 Asesores: Liliana M. Sánchez Mazo y Alberto L. Gutiérrez Tamayo3 Tradução: Luis Alves
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VIVIENDA COMO POTENCIALIDAD PARA LA CONSTRUCCIÓN DE CIUDAD LA EXPERIÊNCIA DE MEDELLÍN-COLOMBIA1 Diana Patricia González A., Jhon Edinson Garcés U. y Juan David Peláez M.2 Asesores: Liliana M. Sánchez Mazo y Alberto L. Gutiérrez Tamayo3 Foto: Acervo fotográfico PUI-EDU (2010)
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RESUMO O Programa Urbano Integral da zona nordeste (PUI-NE) de Medellín, Colômbia, desenvolvido entre 2004 e 2007 e concebido como uma intervenção urbana em assentamentos precários, foi uma experiência de êxito, modelo para a Colômbia e para o mundo4. Destaca-se pela criação de instâncias de participação e apropriação para as pessoas envolvidas, bem como pelo surgimento de transformações territoriais que possibilitaram novas materialidades, simbologias, usos e práticas sociais que incidiram no melhoramento do habitat e de seu entorno; sendo a habitação um de seus componentes fundamentais. Na transformação territorial gerada confluíram vários elementos: a) existência e implementação de políticas urbanas desde 1991, em matéria de planejamento, participação e moradia; b) concepções renovadas sobre habitat que incorporaram a habitação como unidade integradora; e c) aplicação de metodologias participativas que partiram da problemática da realidade urbana, projetando melhores condições de vida para a população. A questão transversal a ressaltar é a moradia como potencial para a construção da cidade, sendo nesses processos de planejamento participativo garantia de novos espaços democráticos.
POLÍTICA URBANA EM PLANEJAMENTO, PARTICIPAÇÃO E HABITAÇÃO Como na maioria dos países latino-americanos, o processo de crescimento na Colômbia começou com maior força a partir da metade do século passado. Medellín viveu, durante a década de 1960, um acelerado crescimento e ocupação em virtude do auge da industrialização, constituindo-se em um atrativo graças a oferta de bens e serviços. A população proveniente de diferentes regiões do país compartilhava características comuns: eram vítimas da violência política ou buscavam refúgio e um melhor destino frente a suas condições de pobreza. Neste contexto, a cidade - polo de oportunidades - gerou dinâmicas de grande diversidade e complexidade política, econômica, cultural e social. A proliferação de assentamentos precários, caracterizados por um déficit de habitabilidade e por não reunir qualidades espaciais que garantam a seus habitantes o acesso e posse de bens e serviços, manifestou a problemática urbana, exacerbada historicamente pela falta de planejamento e ordenação da ocupação e uso do solo. Particularmente, a zona nordeste - área de intervenção do PUI – é caracterizada por uma carência de equipamentos coletivos, espaços públicos, serviços públicos e habitação, pelo alto índice de coabitação, ilegalidade na propriedade do solo, baixos níveis de qualidade de vida, exclusão, baixo atendimento por serviços de educação e saúde, desemprego e pela falta de vínculo ao local e sentido de pertencimento (SÁNCHEZ, GUTIÉRREZ, HINCAPIE, 2013). Ao mesmo tempo, este mesmo contexto estimulou a
RESUMEN El Programa Urbano Integral de la zona nororiental-PUI-NOR de Medellín-Colombia, llevado a cabo entre 2004–2007, concebido como intervención urbana en asentamientos precarios, fue una experiencia exitosa, modelo para Colombia y el mundo , destacada por los espacios de participación generados y apropiados por los pobladores, así como por el surgimiento de transformaciones territoriales que posibilitaron nuevas materialidades, simbologías, usos y prácticas sociales que incidieron en el mejoramiento del hábitat y de su entorno; siendo en ello la vivienda un componente fundamental. En la transformación territorial generada, confluyeron variados elementos: a) existencia e implementación de políticas urbanas desde 1991, en materia de planeación, participación y vivienda; b) renovadas concepciones sobre hábitat que incorporaron la vivienda como unidad integradora y, c) aplicación de metodologías participativas que partieron de la problemática de la realidad urbana, proyectando mejores condiciones de vida de la población. La cuestión transversal a resaltar, es la vivienda como potencialidad para la construcción de ciudad, siendo en ello los procesos de planeación participativos garantía de nuevos espacios democráticos.
POLÍTICA URBANA EN PLANEACIÓN, PARTICIPACIÓN Y VIVIENDA El proceso de crecimiento en Colombia comenzó con mayor fuerza desde la mitad del siglo pasado como en la mayoría de los países latinoamericanos. Medellín vivió durante la década del 60 un acelerado crecimiento y ocupación a causa del auge industrial, constituyéndose en atractivo por la oferta de bienes y servicios. La población proveniente de diferentes partes del país, compartía características comunes: eran víctimas de la violencia política o buscaban refugio y un mejor destino frente a sus condiciones de pobreza. En este contexto, la ciudad como polo de oportunidad, ha generado dinámicas de gran diversidad y complejidad política, económica, cultural y social; siendo la proliferación de asentamientos precarios, caracterizados por condiciones deficitarias de habitabilidad y por no reunir las cualidades espaciales que garanticen a sus habitantes el acceso y tenencia de bienes y servicios; una manifestación de la problemática urbana; agudizada históricamente por la falta de planificación y ordenación de la ocupación y uso del suelo. Particularmente, la zona nororiental, área de intervención del PUI se ha caracterizado por déficits en equipamientos colectivos, espacios públicos, servicios públicos y vivienda, hacinamiento, ilegalidad en la tenencia de la tierra, bajos niveles de calidad de vida, exclusión, baja cobertura en educación y salud, desempleo, falta de arraigo y sentido de pertenencia (SÁNCHEZ, GUTIÉRREZ, HINCAPIE, 2013). Al mismo tiempo, este mismo contexto ha estimulado la
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luta histórica dos habitantes por sua permanência no território, gerando formas de regulação da vida social, assim como múltiplas manifestações de direito à cidade, que persistem em passar da cidade informal à formal. A busca de saídas frente aos problemas elencados fez com que diversos setores da sociedade se mobilizassem em torno da produção de uma cidade construída a partir dos cidadãos que a habitam. Um caminho possível na Colômbia foi a implantação de políticas urbanas, que no caso do planejamento, da habitação e da participação, promoveu discursos institucionais dos quais emergiram novas experiências democráticas. A democracia participativa se constituiu como horizonte do novo sistema jurídico proposto pela Constituição Política da Colômbia (CPC), de 1991 e suas implementações normativas. A participação, elevada ao direito fundamental, foi concebida como eixo transversal dos assuntos sociais, econômicos, culturais e ambientais. O planejamento urbano foi consagrado como função pública do Estado, orientado para a organização socioespacial da nação e de suas entidades territoriais, com pretensões de transformar as condições de vida da população. Uma das mudanças mais importantes foi sua reorientação no sentido da descentralização territorial, conduzindo à incorporação de contextos e dinâmicas locais; sendo a participação social, para isso, um elemento original. Quando entra em vigência a CPC se instauram as bases do Sistema Nacional de Planejamento do Desenvolvimento e Ordenação do Território. Deu-se seguimento à formulação e implementação de planos de desenvolvimento (Lei 152/1994), e de planos de ordenação territorial (Lei 388/1997). A habitação também foi motivo de regulamentação: habitação de interesse social e interesse prioritário (Lei 3/1991). Em Medellín, a necessidade de atender à problemática urbana gerada pela crescente informalidade de assentamentos precários, especialmente em zonas de alta declividade, fez com que o governo municipal assumisse com prontidão as disposições constitucionais e legislativas. Em 1993 entrou em vigência pela primeira vez o plano de desenvolvimento municipal, constituindo-se em instrumento articulador. Esta disposição foi contemplada em 1996, pelo acordo 43, mediante ao qual se instaurou o Sistema Municipal de Planejamento. Neste novo marco se instrumentaram as orientações da Lei 152/1994 e do Plano de Ordenamento Territorial (POT), vigente desde 1999 e ajustado Foto: Acervo fotográfico PUI-EDU (2010) Montagem: Luis Alves
lucha histórica de los habitantes por su permanencia en el territorio, generando formas de regulación de la vida social así como múltiples manifestaciones de derecho a la ciudad, que persisten en pasar de la ciudad informal a la formal. La búsqueda de salidas frente a tales problemas ha llevado a que diversos sectores de la sociedad se movilicen en torno a la producción de una ciudad construida desde los pobladores que la habitan. Un camino posible en Colombia, ha sido la implementación de políticas urbanas, que en el caso de la planeación, la vivienda y la participación, ha aportado discursos institucionales de los que han emergido nuevas experiencias democráticas. La democracia participativa se constituyó como horizonte del nuevo ordenamiento jurídico propuesto por la Constitución Política de Colombia-CPC de 1991 y sus despliegues normativos. La participación, elevada a derecho fundamental, fue concebida como eje transversal de los asuntos sociales, económicos, culturales y ambientales. La planeación urbana fue consagrada como función pública del Estado, orientada a la organización socio-espacial de la nación y de sus entidades territoriales, con pretensiones de transformar las condiciones de vida de la población. Uno de los cambios más importantes fue su viraje hacia la descentralización territorial, conduciendo a la incorporación de contextos y dinámicas locales, siendo en ello la participación, un elemento novedoso. Puesta en vigencia la CPC, se instauraron las bases del Sistema Nacional de Planeación del Desarrollo y Ordenamiento del Territorio. Se ordenó la formulación e implementación de planes de desarrollo (Ley 152/1994), y de planes de ordenamiento territorial (Ley 388/1997). La vivienda también fue motivo de reglamentación: vivienda de interés social e interés prioritario (Ley 3/1991). En Medellín, la necesidad por atender la problemática urbana generada por la creciente informalidad de asentamientos precarios, especialmente, en las zonas de alta pendiente, incidió en que el gobierno municipal asumiera con prontitud las disposiciones constitucionales y legislativas. Desde 1993, se puso en vigencia por primera vez, el plan de desarrollo municipal, constituyéndose en instrumento articulador; esta disposición fue complementada en 1996, por el Acuerdo 43, mediante el cual se instauró el Sistema Municipal de Planeación. En este nuevo marco, se instrumentaron las orientaciones de la Ley 152/1994 y del Plan de Ordenamiento Territorial (POT), vigente desde 1999
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em 2006. No marco do POT, a habitação se constituiu como objetivo estratégico, fator de desenvolvimento, integração e coesão social (CONSELHO DE MEDELLÍN, 1999). Em 2007 se institucionalizou o Planejamento Local e o Processo Participativo por comunas e corregimientos5, consagrando a participação popular na normativa nacional e específica de Medellín. Com isso, se estabeleceu maior correspondência, complementariedade e coerência aos princípios legais, sobretudo no que tange à participação. Este avanço adicionou aos resultados do processo de planejamento, como novidade em termos de avaliação, indicadores de acompanhamento, avaliação e controle da execução dos programas e projetos sujeitos aos planos, com acesso público à informação. Particular importância teve o Plano Estratégico Habitacional de Medellín 2020, por oferecer encaminhamentos conceituais e metodológicos para habitação digna, destacando sua incidência na integração social (CONSELHO DE MEDELLÍN, 2004), assim como a consideração do sistema habitacional em que intervém variados atores (CONSELHO DE MEDELLÍN, 2006). Em Medellín existe o Instituto de Habitação de Medellín – ISVIMED, encarregado de gerenciar a habitação de interesse social, conduzindo a solução de necessidades habitacionais; especialmente dos assentamentos humanos precários. Desta forma, foram criados decretos que regulamentaram o subsídio familiar para a habitação de interesse social. No Plano de Desenvolvimento 2004-2007 (“Medellín compromisso de toda a cidadania”), sobre a liderança do prefeito de Medellín Sergio Fajardo Valderrama, foi estabelecida uma política pública com foco na diminuição da dívida social do Estado, para o qual se implementou o Programa Urbano Integral (PUI) como intervenção urbana em cinco zonas da cidade: leste, oeste, noroeste, sudoeste e nordeste (comunas 1: Popular e 2: Santa Cruz), sendo o PUI-NE, a primeira intervenção a ser implementada. Os componentes trabalhados foram: espaço público, infraestrutura comunitária, transporte e mobilidade, habitação e entorno. Atuouse através da geração, adequação e suprimento de equipamentos urbanísticos; com acompanhamento, promoção e fortalecimento social, cívico, comunitário e de cidadania. Pretendeu-se, através da execução de iniciativas de desenvolvimento, aproximar a Administração Municipal das comunidades (EDU, 2005).
5 Medellín, a segunda maior cidade colombiana, com 2.912.165 habitantes, está dividida político e administrativamente em 6 zonas, por sua vez divididas en 16 comunas (correspondentes a zona urbana) e 5 corregimientos (correspondentes a zona rural).
Medellín, la segunda ciudad de Colombia, con 2.912.165 habitantes, se divide en términos político-administrativos en 6 zonas, subdivididas en 16 comunas correspondientes a su zona urbana, y 5 corregimientos correspondientes a su zona rural.
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y ajustado en 2006. En el marco del POT, la vivienda se constituyó como objetivo estratégico, factor de desarrollo, integración y cohesión social (CONSEJO DE MEDELLÍN, 1999). En 2007 se institucionalizó la Planeación Local y el Presupuesto Participativo por comunas y corregimientos5, particularidad no consagrada en la normatividad nacional y propia de Medellín. Con ello, se afianzó la correspondencia, complementariedad y concordancia en materia participativa, asociada con procesos de planeación del desarrollo y ordenamiento territorial. Este avance adicionó a los resultados del proceso de planeación como novedad en materia de evaluación, los indicadores de gestión para el seguimiento, evaluación y control de la ejecución de los programas y proyectos sujetos a los planes, con acceso público a dicha información. De particular importancia fue el Plan Estratégico Habitacional de Medellín 2020, por brindar lineamientos conceptuales y metodológicos en vivienda digna destacando su incidencia en la integración social (CONCEJO DE MEDELLÍN, 2004), así como la consideración del sistema habitacional en el que intervienen variados actores (CONCEJO DE MEDELLÍN, 2006). En Medellín existe el Instituto de Vivienda de Medellín-ISVIMED, encargado de gerenciar la vivienda de interés social, conduciendo a la solución de necesidades habitacionales; especialmente de los asentamientos humanos precarios; asimismo, se han creado Decretos que han reglamentado el Subsidio familiar a vivienda de interés social. El Plan de Desarrollo 2004-2007 “Medellín compromiso de toda la ciudadanía”, bajo el liderazgo del Alcalde de Medellín Sergio Fajardo Valderrama, estableció una política pública enfocada a la disminución de la deuda social del Estado, para lo cual se implementó el Programa Urbano Integral como intervención urbana en cinco zonas de la ciudad: centroriental, centroccidental, noroccidental, suroccidental y nororiental (comunas 1: Popular y 2: Santa Cruz), siendo el PUI-NOR, la primera intervención en implementarse. Los componentes trabajados fueron: espacio público, infraestructura comunitaria, transporte y movilidad, vivienda y entorno, mediante la generación, adecuación y dotación de equipamientos urbanísticos, con acompañamiento, promoción y fortalecimiento social cívico, comunitario y ciudadano. Pretendió, por la vía de la ejecución de iniciativas de desarrollo, acercar a la Administración Municipal con las comunidades (EDU, 2005).
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A HABITAÇÃO NO PUI-NE: CONCEPÇÃO E METODOLOGIA O PUI foi definido como modelo de intervenção urbana, apresentando impacto positivo na qualidade de vida da população e alcançando transformações no que tange ao desenvolvimento físico e social (CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS, 2011). Atuou sobre a orientação do enfoque de urbanismo social, que vinculou temas sociais e culturais com obras físicas, convertendo a arquitetura em motor do progresso para os habitantes da cidade, transformando o território mediante um esquema participativo que transcendeu a preocupação com sua ordenação e sua arquitetura, posicionando o ser humano como protagonista (EDU, 2005). Assim, seguiu-se com o esforço de centralizar recursos locais, departamentais, nacionais e internacionais para reconfigurar o espaço. Neste contexto, o PUI retomou a concepção de habitação exposta no POT, entendida como suporte material que permite a satisfação de necessidades básicas, ao mobilizar atividades individuais, sociais e produtivas, como expressão cultural e fonte de identidade (CONSEHO DE MEDELLÍN, 2006). Esta forma de entender a moradia foi coerente com a noção de habitat proposta pelo referido plano, ao concebê-la como unidade com diversas inter-relações com esferas ambientais, culturais, econômicas e sociais, que contribuem para o fortalecimento do projeto de vida individual e coletivo. A partir deste ponto de vista, a moradia passa a ser parte constitutiva do habitat. Assim, a compreensão da moradia como unidade integradora refletiu na intervenção econômica, social, física e ambiental da região, almejando a integração de parques, zonas verdes, calçadas e praças às dinâmicas da cidade formal (TORRES, 2007). O resultado foi a consolidação habitacional como elemento orientado ao fortalecimento da moradia por meio do melhoramento, legalização, reassentamento e edificação de torres residenciais; garantindo a sustentabilidade, reconhecendo seu valor integrador e sua articulação com o espaço público e o ambiente, como elementos fundamentais para o desenvolvimento humano, o projeto de vida das pessoas e os níveis de governabilidade. Desta forma, abordaram-se componentes naturais e artificiais vinculados aos usos e transformações habitacionais (EDU, DAP, 2004). Neste sentido, pode-se dizer que a moradia foi considerada como espaço físico que satisfaz necessidades básicas, ampara
Foto: Acervo fotográfico PUI-EDU (2010) Montagem: Luis Alves
EL COMPONENTE DE VIVIENDA EN EL PUI-NOR, CONCEPCIÓN Y METODOLOGIA El PUI fue definido como modelo de intervención urbana con impacto positivo en la calidad de vida de la población, alcanzando transformaciones en clave de desarrollo físico y social (CENTRO DE ESTUDIOS SOCIALES, 2011). Actuó bajo la orientación del enfoque de urbanismo social, el cual vinculó temas sociales y culturales con obras físicas, convirtiendo la arquitectura en motor de progreso para los habitantes de la ciudad, transformando el territorio bajo un esquema participativo que trascendió la preocupación por su ordenación y su arquitectura, ubicando al ser humano como protagonista (EDU, 2005). Así, se dio a la tarea de centralizar recursos locales, departamentales, nacionales e internacionales, para reconfigurar el espacio. En este marco, el PUI retomó la concepción de vivienda planteada en el POT, entendida como soporte material que permite la satisfacción de necesidades básicas, al movilizar actividades individuales, sociales y productivas, como expresión de cultura y fuente de identidad (CONCEJO DE MEDELLÍN, 2006). Esta forma de entender la vivienda fue coherente con la noción de hábitat propuesta por dicho plan, al concebirla como unidad con diversas interrelaciones en lo ambiental, cultural, económico y social, que contribuye al fortalecimiento del proyecto de vida individual y colectivo. Desde tal perspectiva, la vivienda pasa a ser parte constitutiva del hábitat. Así, la comprensión de la vivienda como unidad integradora se plasmó en la intervención económica, social, física y ambiental de la zona, logrando la integración de parques, zonas verdes, andenes y plazoletas a las dinámicas de la ciudad formal (TORRES, 2007). El resultado fue la consolidación habitacional entendida como proceso orientado al fortalecimiento de la vivienda por medio del mejoramiento, legalización, reasentamiento y edificación de torres residenciales; garantizando la sostenibilidad, reconociendo su valor integrador, su articulación con el espacio público y el ambiente, como elementos fundamentales para el desarrollo humano, el proyecto de vida de las personas y los niveles de gobernabilidad. De esta manera, se abordaron componentes naturales y artificiales vinculados a los usos y transformaciones habitacionales (EDU, DAP, 2004). En esta medida, puede decirse que la vivienda fue considerada como espacio físico que satisface necesidades básicas, aporta
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a consolidação de vínculos do bairro e o estabelecimento de interações; contribuindo para o fortalecimento de projetos de vida e convertendo-se em fator de articulação socioespacial. Projetos de intervenção como Juan Bobo e La Herrera foram denominadas modelo de intervenção em ecossistemas urbanos invadidos. Nestes casos, a ocupação de colinas e vales por assentamentos de alta precariedade geravam risco para seus habitantes e para o meio ambiente (ECHEVERRI, OSORNI, 2010). A construção de habitação padronizada, o melhoramento do espaço público, a recuperação ambiental e a adaptação das famílias ao novo entorno, permitiram uma resposta integral ao problema de informalidade urbana, contribuindo para a consolidação das centralidades ao redor dos teleféricos: transporte massivo da cidade (EDU,2005). Estes avanços no campo da habitação atenderam a critérios de planejamento urbano, cumprindo com fases de parcelamento, urbanização e edificação (EDU, DAP, 2005). Implicaram a elaboração de um censo populacional que permitiu quantificar e mapear a área de intervenção, o tipo de habitação, os riscos de localização e as características socioeconômicas das famílias (EDU e DAP, 2005). Além disso, foram amparados pelo sistema habitacional instaurado pelo POT, constituído por objetivos, conceitos, estratégias e critérios promovidos por diversos atores que intervém na política habitacional (CONSELHOS DE MEDELLIN, 2006); e tiveram as metas do POT associadas à construção de cem mil unidades habitacionais de interesse social por ano, coordenadas por caixas de compensação familiar, através de subsídios e créditos para as famílias carentes (EDU e DAP, 2005). A nova moradia foi financiada por meio de subsídios nacionais, departamentais e locais, contando com a coordenação da Empresa de Desenvolvimento Urbano (EDU, 2007) e da Secretaria do Meio Ambiente, departamento que determina a política, legislação, manejo e gestão dos recursos naturais, com o objetivo de prevenir desastres na cidade, bem como investigar, planejar e assessorar este tipo de processos. Especificamente, este departamento acompanhou o diagnóstico de projetos como a recuperação ambiental de Juan Bobo e do parque linear de Herrera. A intervenção em habitação trouxe consigo dificuldades legais e espaciais que permitiram gerar conciliações entre os habitantes e a administração municipal. Um dos maiores desafios que o governo municipal e os próprios habitantes tiveram que Foto: Acervo fotográfico PUI-EDU (2010) Montagem: Luis Alves
a la consolidación de vínculos barriales y al establecimiento de interacciones; contribuyendo al fortalecimiento de proyectos de vida y convirtiéndose en factor de articulación socio-espacial. Consolidaciones habitacionales como Juan Bobo y la Herrera, fueron denominadas modelo de intervención en ecosistemas urbanos invadidos; en este caso, cerros y quebradas ocupados por asentamientos humanos con alto nivel de precariedad, generaban riesgo para sus habitantes y para el medio ambiente (ECHEVERRI, OSORNI, 2010). La construcción de vivienda estandarizada, el mejoramiento del espacio público, la recuperación ambiental y la adaptación de las familias al nuevo entorno, permitieron una respuesta integral al problema de informalidad urbana y aportó a la consolidación de centralidades barriales alrededor del metrocable como transporte masivo de la ciudad (EDU, 2005). Estos desarrollos habitacionales atendieron criterios de planificación urbana, cumpliendo con fases de parcelación, urbanización y edificación (EDU, DAP, 2004), implicando la elaboración de un censo poblacional que permitió cuantificar y mapear el área de intervención, el tipo de vivienda, los riesgos de ubicación y las características socioeconómicas de las familias (EDU y DAP, 2005). Además, fueron soportados en el sistema habitacional instaurado por el POT, constituido por objetivos, conceptos, estrategias y criterios promovidos por diversos actores que intervienen en la política habitacional (CONCEJOS DE MEDELLIN, 2006); y tuvieron las metas del POT asociadas a la construcción de 100.000 viviendas sociales por año, coordinadas por cajas de compensación familiar, a través de subsidios y créditos para las familias carentes de recursos (EDU y DAP, 2005). La vivienda nueva fue financiada por medio de subsidios nacionales, departamentales y locales, contando con la Empresa de Desarrollo Urbano como coordinadora de este proceso (EDU, 2007) y la Secretaría de Medio Ambiente-SMA, dependencia que determina la política, ordenamiento, manejo y gestión de los recursos naturales, con el fin de prevenir desastres en la ciudad, así como de investigar, planear y asesorar este tipo de procesos. Específicamente, dicha dependencia acompañó el diagnóstico de proyectos como la recuperación ambiental de Juan Bobo y el parque lineal en La Herrera. La intervención en vivienda trajo consigo dificultades legales y espaciales que permitieron generar conciliaciones entres los habitantes y la administración municipal. Uno de los mayo-
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enfrentar foi o reassentamento das pessoas que foram removidas em virtude do risco; bem como a legalização da moradia, que devia enquadrar-se nos parâmetros edilícios (PÉREZ, 2011). A mudança de materiais provisórios para materiais consolidados e estruturas seguras dava uma nova cara para a cidade. A cidade legal e formal, construída passo a passo, promoveu alterações na economia das famílias, implicando em novas responsabilidades como o pagamento de impostos, serviços públicos domiciliares e cotas de administração; o que modificou suas formas de vida, demandando uma estratégia de sensibilização individual, com o fim de assessorar as famílias no que tange à administração e otimização de recursos (PREFEITURA DE MEDELLÍN, 2006). Esta etapa foi a mais delicada da intervenção. Cabe ressaltar as implicações sociais derivadas da padronização das unidades habitacionais como alternativa para responder à demanda por moradia por parte da população. Se por um lado se supre uma necessidade básica, por outro se incide nos modos de viver da população, alterando suas práticas tradicionais e gerando formas de interação propensas ao conflito, mediante o surgimento de outras dinâmicas cotidianas que exigem novas responsabilidades e obrigações. Se o panorama descrito evidencia que as intervenções realizadas na habitação tiveram bases conceituais e metodológicas em função de processos de planejamento do desenvolvimento e organização territorial; cabe perguntarmo-nos sobre seu reconhecimento e apropriação por parte dos atores da base social, bem como sobre a participação destes na construção da moradia digna como componente do habitat. Esta perspectiva implica em revisar a participação dos diversos atores no processo de planejamento, a qual esteve dirigida a promover a qualidade de vida, a inclusão social e a igualdade na população, reconhecendo o conflito como plataforma de uma cidadania ativa, capaz de orientar e incidir em seus próprios processos (PUERTA, 2011). Como estratégia metodológica para materializar a moradia, foi proposto um trabalho conjunto baseado na premissa de corresponsabilidade através do qual a participação popular mobilizou os processos de reassentamento, legalização, melhoramento e construção de novas moradias e entorno; criando comitês de habitação que acompanharam a construção de edifícios mistos, unidades de borda e interior de quadras abertas (CONSELHO DE MEDELLÍN, 2004; EDU e DAP, 2005).
res desafíos que tuvo que enfrentar el gobierno municipal y los mismos habitantes, fue el tema de legalización de las viviendas, éstas debían cumplir los parámetros de edificación, así como la reubicación de las personas que debieron ser desalojadas a causa del riesgo que presentaba para su vida (PÉREZ, 2011). El cambio de materiales provisionales por materiales consolidados y estructuras seguras, mostraba una cara nueva de la ciudad. La ciudad legal y formal construida paso a paso, avizoró cambios en la economía de las familias, adquiriendo para ellas nuevas responsabilidades como el pago de impuestos, servicios públicos domiciliarios y cuotas de administración, lo que modificó sus formas de vida, demandando una estrategia sensibilización casa por casa, con el fin de asesorar a las familias en temas de administración y optimización de recursos (ALCALDÍA DE MEDELLÍN, 2006). Esta etapa fue la más delicada de la intervención. Cobran relevancia las implicaciones sociales derivadas de la estandarización de vivienda como alternativa para responder la demanda de vivienda por parte de la población; ya que si bien se suple una necesidad básica, también se incide en el habitar de la población, al transformar su forma de vida, alterando sus prácticas tradicionales, generando formas de interacción propensas al conflicto por el surgimiento de otras dinámicas cotidianas que exigen nuevas responsabilidades y obligaciones. Si bien el panorama descrito evidencia que las intervenciones realizadas en vivienda tuvieron bases conceptuales y metodológicas en función de procesos de planeación del desarrollo y del ordenamiento territorial; cabe preguntarse por su reconocimiento y apropiación por parte de los actores de base social y por su participación en la construcción de vivienda digna como componente de hábitat. Esta perspectiva implica revisar la participación de diversos actores en el proceso de planeación, la cual estuvo dirigida a promover la calidad de vida, la inclusión social y la equidad en la población, reconociendo el conflicto como plataforma de una ciudadanía activa, capaz de orientar e incidir en sus propios procesos (PUERTA, 2011). Como estrategia metodológica para materializar la vivienda, se propuso un trabajo conjunto basado en la premisa de la corresponsabilidad; por ello, la participación popular movilizó los procesos de reubicación en sitio, legalización, mejoramiento y construcción de vivienda nueva y de entorno, creando comités de vivienda que acompañaron la construcción de edificios mix-
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Os espaços de participação surgiram através do diagnóstico e formulação da proposta de intervenção, derivando construções a várias mãos entre líderes comunitários e institucionais, representantes sociais e não governamentais, técnicos, arquitetos, engenheiros e profissionais da assistência social, que identificaram conjuntamente problemáticas e oportunidades como insumo para a formulação e posterior execução do projeto (PREFEITURA DE MEDELLÍN, 2006). Estes mecanismos foram incrementados a partir das “oficinas de imaginários”, considerada como estratégia de participação que concretizou a identificação de potencialidades e reconheceu as iniciativas dos habitantes no que diz respeito à transformação desejada para a região. Os subsídios recolhidos pela equipe técnica do PUI-NE foram revisados e aprovados pela comunidade para dar início a execução das obras físicas. Desta forma, a população gerou imagens do que queriam em termos de moradia e espaço público.
POTENCIAL SOCIAL E POLÍTICO DA HABITAÇÃO NO PUI-NE Em termos de conclusão, é importante considerar que do trabalho social realizado no âmbito da moradia derivaram avanços sociais e políticos que contribuíram de forma significativa para o processo de construção da cidade. Neste sentido, foram construídos espaços dignos para se habitar e se desdobraram estratégias que estimularam formas de integração social e fortaleceram o tecido social existente na região. Exemplo disso são os espaços públicos que permitem o encontro; os canais de comunicação assertivos entre atores sociais, políticos, governamentais e acadêmicos; a constituição de redes para o trabalho em equipe fundamentadas na confiança; e o reconhecimento da sabedoria popular, suas necessidades e interesses. Foi de particular importância, por seu caráter inovador, a criação de uma nova legislação e a implementação da existente (CONSELHO DE MEDELLÍN, 2006); a articulação de esforços da entidade governamental local; e a confluência de variados poderes expressos por interesses coletivos e particulares. É preciso
tos, vivienda de borde y vivienda al interior de manzana abierta (CONCEJO DE MEDELLÍN, 2004; EDU y DAP, 2005). Los espacios de participación surgieron a través del diagnóstico y formulación de la propuesta de intervención, derivando construcciones a varias manos entre líderes comunitarios e institucionales, representantes sociales y no gubernamentales, técnicos, arquitectos, ingenieros y profesionales sociales, que identificaron conjuntamente problemáticas y oportunidades como insumo para dicha formulación y posterior ejecución del proyecto (ALCALDÍA DE MEDELLÍN, 2006). Estas construcciones fueron valoradas a partir de los talleres de imaginarios, considerada como estrategia de participación que concretó la identificación de potencialidades y reconoció las iniciativas de los habitantes respecto a la transformación deseada de la zona. Los insumos recogidos por el equipo técnico del PUI-NOR fueron revisados y aprobados por la comunidad para dar inicio a la ejecución de las obras físicas. De esta manera, la población generó visiones e imaginarios de lo que querían en vivienda y espacio público.
POTENCIAL SOCIAL Y POLÍTICO DE LA VIVIENDA EN EL PUI-NOR En términos conclusivos es válido plantear que del trabajo social realizado en el componente de vivienda, derivaron avances sociales y políticos que contribuyeron de forma significativa al proceso de construcción de ciudad. En este sentido, se construyeron espacios dignos para el habitar y se desplegaron estrategias que estimularon formas de integración social y fortalecieron el tejido social existente en la zona. Ejemplo de ello son los espacios públicos que permiten el encuentro, los canales de comunicación asertivos entre actores sociales, políticos, gubernamentales, académicos, la conformación de redes para el trabajo en equipo fundamentadas en la confianza, el reconocimiento del saber popular, sus necesidades e intereses. Fue de particular importancia, por su novedad, la creación de nueva legislación e implementación de la existente (CONCEJO DE MEDELLÍN, 2006), la articulación de esfuerzos de la entidad gubernamental local, la confluencia de variados poderes manifiestos en intereses colectivos y particulares. Es necesario
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reconhecer que a incidência da política urbana na construção de habitats não ocorre somente pela existência de estruturas legislativas. Ela depende de sua ativação social e sua atualização de acordo com as exigências das dinâmicas urbanas. Consequentemente, os processos de negociação e reforma a partir da organização de base social, incidiram no processo de decisão por meio dos comitês de habitação, onde ocorreu a participação ativa na identificação de problemáticas, no planejamento, na gestão e na execução das obras que se realizou. Assim, a base social teve um papel determinante, já que as decisões estiveram mediadas pela manifestação de sua cultura, história, sistemas de crenças e simbologias. Tudo foi expresso nas “oficinas de imaginários”, comitês comunitários, assembleias de bairro e percursos de observação dos bairros. Os atores governamentais reconheceram que os indivíduos habitam e configuram um mundo simbólico ao redor do espaço que historicamente constroem, promovendo sentimentos de pertencimento e propriedade. Assim, a população teve um maior impacto nas intervenções e se avançou de forma eficaz em construções coletivas construídas por múltiplas perspectivas. Neste sentido, o trabalho social foi vital na identificação, potencialização, canalização e articulação das diversas formas de sentir e pensar o espaço habitado, consolidando objetivos e metas concretas por meio da concepção, desenho e implementação de metodologias participativas. Estes resultados sociais e políticos fizeram da habitação no PUI-NE um elemento dinamizador de processos de gestão e planejamento, direcionados e dotados de sentido pela base social, tendo grande incidência no desenvolvimento de processos de construção da cidade à várias mãos.
reconocer que la incidencia de la política urbana en la construcción de hábitats, no ocurre solo por la existencia de estructuras legislativas; está implicada por su activación social y por su actualización de acuerdo con las exigencias de las dinámicas urbanas. Consecuentemente, los procesos de negociación y concertación desde la organización de base social, incidieron en la toma de decisiones por medio de los comités de vivienda, donde se dio la participación activa en la identificación de problemáticas, planeación, gestión y ejecución de las obras que se realizaron. Así, la base social jugó un papel determinante ya que dichas decisiones estuvieron mediadas por la manifestación de su cultura, historia, sistemas de creencias y simbologías, expresadas en talleres de imaginarios, comités comunitarios, asambleas barriales y recorridos zonales; en ello el actor gubernamental reconoció que los individuos habitan y configuran un mundo simbólico alrededor del espacio que históricamente construyen, promoviendo sentimientos de pertenencia y propiedad, generando un mayor impacto en las intervenciones y avanzando de forma eficaz en construcciones colectivas recreadas por múltiples perspectivas. En esta medida, el trabajo social fue vital en la identificación, potencialización, canalización y articulación de las diversas formas de sentir y pensar el espacio habitado, consolidando objetivos y metas concretas por medio de la concepción, diseño e implementación de metodologías participativas. Estas derivaciones sociales y políticas hicieron de la vivienda en el PUI-NOR dinamizadora de procesos de gestión y planeación, direccionados y dotados de sentido por la base social, teniendo gran incidencia en el desarrollo de procesos de construcción de ciudad a varias manos.
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Artigo derivado da investigação “Programa Urbano Integral (PUI-NOR). Experiência de construção de cidade desde a gestão do desenvolivmento, o planejamento e a habitação” realizada durante 2011 e 2013 como trabalho de graduação para obter o título de Trabalhador Social, no Departamento de Trabalho Social da Universidade de Antioquia, orientado por Liliana María Sánchez Mazo e Alberto León Gutiérrez Tamayo. 2 Estudantes do último semestre de Trabalho Social da Universidad de Antioquia, Medellín - Colômbia, com vínculo ao Semillero de Investigación del Grupo Medio Ambiente y Sociedad (SIGMAS). 3 Professores do Departamento de Trabalho Social da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Antioquia. 4 Prêmio Verde Verónica Rudge em Desenho Urbano pelo PUI Nordeste; Medellín-Colômbia; a cidade mais inovadora do mundo; escadas elétricas no Rio de Janeiro inspiradas no sistema de Medellín; a X Bienal de Arquitectura en Sao Paulo, apresentou Medellín como exemplo de segurança e dereito à cidade; o Banco de Desenvolvimento da América Latina apresentou os PUI como casos emblemáticos de desenvolvimento urbano.
Foto: Acervo fotográfico PUI-EDU (2010) Montagem: Luis Alves
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ARTE QUE TE HABITA 238
“A bela arte é, pois, apenas nesta sua liberdade verdadeira arte [...]” G.W.F. Hegel * HEGEL, G.W.F. – Cursos de Estética, trad. de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle, vol.1, Edusp, São Paulo, 1999/2001. p.32.
Seria a Arte algo que nos habita? E se é que habita, sempre habitou e ainda há de habitar? Ou fomos nós que a ela nos habituamos? Se as pessoas fizeram a Arte, a fizeram porque assim foi preciso. Porque assim foi possível criar alguma consciência do que é ser, e do que se é. Não duvido que o criador da Arte a fez numa tentade se re-apresentar a si mesmo. Num estranhamento, momento reflexivo em que o eu enxergou a si próprio num outro, que é outro de si mesmo. A Arte se fez, então, verdade em sua transcendência. Situou-se - esse outro eu - em algum lugar em relação a um todo que era, ele próprio, representação. Mas em si verossímil, necessário, absoluto. E sse outro eu mesmo pôde ser, então, habitante de um plano em que tudo podia ser visto a voo de pássaro; o que se via e se sabia estava ali, sensível, imediato. Todo o universal podia exprimir-se no particular, e não o contrário
tiva
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Necessária para quem a fez, dotada da mais elevada representação, a Arte foi, assim, livre para ser. E, assim, foi. Lado a lado com a Arte, caminha a Consciência, que, uma vez consciente do peso do seu passado, olha para a Arte e necessita sobre ela refletir. Pois a Arte descolara-se do absoluto e do divino. Pois a exceção, então, fora subsumida à regra. A verdade da reflexão científica, tornada abstrata, universalizante, opusera-se ao que é sensível e imediato. Despossuída da verdade que lhe coubera, aliada à cultura reflexiva, a Arte se reinventa e sobrevive no mundo anti-artístico. E mesmo que muito se tente, dela não podemos nos desfazer por completo. É ela o momento de exterioridade através do qual a Consciência obteve seu esclarecimento. Conceitos e categorias não nascem prontos, absolutos. Há um percurso conceitual, que passa necessariamente pelo sensível, fenomênico. Como a potência que é ato, o conceitual é também sensível. Um não pode ser sem o outro, e vice-versa. Habitam Arte e Filosofia um campo de vivo conflito, da superação que conserva.
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Procuro aqui levantar uma ressalva: a de que existe, sim, o habitat da Arte, ainda que não precisamente localizado. Certamente não é ele o terreno da facilidade, vaidosa; tampouco é ele afeito à boçalidade, ingênua. Não seria a Arte então uma imposição do passado? Fácil dizer que conceitos, categorias, ideais e modelos do Belo são, de longe, ultrapassados. Difícil é operar com isso; negada sua fixidez, não se pode falsear sua historicidade. Linguagens e ideais da Arte foram longamente depurados, dialeticamente circunscritos. As Formas não são relativas, arbitrárias. São dotadas de elaborada lógica interna e se verificam na sensibilidade. Como a mais material das Artes, a Arte de habitar é campo fecundo para nos questionarmos onde é que habita a Arte, onde ela está, quais são seus hábitos.
Não é tarefa do artista simplesmente povoar de objetos o mundo material e, sim, enriquecer o espírito através de uma transformação alquímica em que se transcende a materialidade a um nível espiritual. A Arquitetura possibilita que, da bruta materialidade, de maneira desinteressada, transformações dessa natureza se façam sensivelmente evidentes, claramente distintas para aqueles que a vivenciam. Pois é na Arte de habitar que o ser humano representa a si próprio a partir de necessidades inalienáveis. E é esse plano de representação o lugar onde melhor se explicitam as contradições que lhe são próprias.
FRANCISCO MARANHÃO Aluno da graduação da fau-usp
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QUAL É O FUTURO PARA O MATERIAL TERRA? Nuria Sánchez Muñoz, Enrique Gutiérrez Sevillano , Sébastien Moriset arquitetos DAS – Terra, CRATerre Tradução: Ligia Ferreira de Araújo
Introdução A terra, um dos mais antigos materiais de construção utilizados pelo homem, permitiu numerosas civilizações de realizar o sonho de fundar cidades e aldeias. Abundante e fácil de trabalhar, a terra despertou a engenhosidade de muitos construtores que buscavam domar esse recurso muitas vezes caprichoso. Um imenso patrimônio arquitetônico de grande inteligência mostra que em todos os continentes, é aconselhável utilizar este recurso caso se queira contribuir para a riqueza cultural de uma comunidade sem prejudicar o meio ambiente que o acolhe. Nestes tempos de consciência ambiental, a arquitetura de terra simboliza a capacidade humana de aplicar os recursos naturais locais. Desde 1979, o CRATerre, “Centre international de la construction en terre” [Centro Internacional da Construção em Terra], sediado na Escola de Arquitetura de Grenoble na França, se abre ao reconhecimento do patrimônio em terra e a revitalização dos setores de produção de terra. Este compromisso é motivado pelo desejo de difundir as boas ideias que nos ensinam a construção em terra a fim de enfrentar os desafios contemporâneos relacionados ao meio ambiente, a diversidade cultural e à luta contra a pobreza. Para alcançar esses objetivos, CRATerre oferece uma formação em pós-graduação para transmitir aos arquitetos os conhecimentos que construtores do mundo inteiro tiveram séculos para desenvolver, mas que hoje se perdem muito rápido. Por sua vez, esses arquitetos formados em terra perpetuam os gestos herdados do passado para criar novas arquiteturas decididamente contemporâneas, utilizando às vezes a mesma terra usada há 10.000 anos.
QUEL AVENIR POUR LE MATÉRIAU TERRE ?
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Nuria Sánchez Muñoz, Enrique Sevillano Gutiérrez, Sébastien Moriset architectes DSA-Terre, CRAterre
La terre, un des plus anciens matériaux de construction utilisé par l’homme, a permis à de nombreuses civilisations de réaliser leur rêve de fonder des villes et des villages. Abondante et facile à travailler, la terre a réveillé l’ingéniosité de nombreux bâtisseurs qui ont cherché à dompter cette ressource parfois capricieuse. Un immense patrimoine architectural d’une grande intelligence nous montre que sur tous les continents, il est judicieux d’utiliser cette ressource si l’on veut contribuer à la richesse culturelle d’une communauté sans nuire à l’environnement qui l’accueille. En ces temps de prise de conscience environnementale, l’architecture de terre symbolise merveilleusement la capacité de l’homme à employer les ressources naturelles locales. Depuis 1979, le CRAterre, « Centre international de la construction en terre » basé à l’école d’architecture de Grenoble en France, œuvre à la reconnaissance du patrimoine en terre et à la revitalisation des filières terre. Cet engagement est motivé par la volonté de diffuser les bonnes idées que nous enseigne la construction en terre pour faire face aux défis contemporains liés à l’environnement, à la diversité culturelle et à la lutte contre la pauvreté. Pour y parvenir, CRAterre dispense une formation post-diplôme pour transmettre aux architectes ces connaissances que les bâtisseurs du monde entier ont mis des siècles à élaborer, mais qui se perdent aujourd’hui trop vite. A leur tour, ces architectes formés à la terre perpétuent les gestes hérités du passé pour créer de nouvelles architectures résolument contemporaines, utilisant parfois des terres qui avaient déjà servi 10000 ans plus tôt.
Foto: Clément Duvoux
Introduction
A arquiteura de terra no mundo
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Seja qual for a sua natureza: argilosa, arenosa ou pedregosa, a terra soube se adaptar a todas as culturas e todos os climas graças à inteligência de seus construtores. Este material é fonte de habitações humildes, mas também de obras magistrais: cidades, palácios, mesquitas, pirâmides, castelos, torres, muralhas... que revelam a capacidade dos homens de elaborar culturas ricas e variadas a partir de um mesmo recurso. Seria vão listar todas as formas de urbanismo, arquitetura ou decoração de paredes que apelam à terra pois elas são incontáveis. Esta diversidade revela as infinitas possibilidades oferecidas pelo material, o que exige uma criatividade sempre renovada. As técnicas de modelagem da terra são inúmeras e dependem de seu estado hídrico: seco, úmido, plástico ou mesmo líquido. As quatro técnicas mais comuns utilizadas no mundo são a modelagem direta (bauge), modelagem de tijolos (adobe), compactação (taipa de pilão) e preenchimento de armação (taipa de mão). Seja qual for a técnica utilizada, a boa terra para construir não se encontra na superfície, mas por baixo da camada superficial do solo, onde estão ausentes os elementos orgânicos, fundamentais à nossa sobrevivência. A Bauge é a técnica mais antiga. É aquela da modelagem direta, que consiste em formar as paredes à mão através de camadas sucessivas, utilizando a terra úmida. Pode ser encontrada na Europa, na Ásia e também na África, onde a arte dos detalhes foi muito desenvolvida. Esta
técnica, muito flexível e comum na modelagem de cerâmica, permite a modelagem de muitas formas orgânicas, que podem compor um móvel e também facilita a decoração de paredes. A técnica mais difundida é a do tijolo moldado seco ao sol (adobe) que se adapta a tipos terras muito diferentes. Presente em todos os continentes, ela requer apenas água e poucas ferramentas. Maravilhas arquitetônicas como Bam no Irã, Shibam no Iêmen ou Ghadames na Líbia são feitas de adobes, construídas à mão, sem guindastes, com ferramentas muito básicas. As primeiras pirâmides (Peru ,Egito, Irã), também foram construídas de adobe. Uma outra técnica, que requer menos água e mais ferramentas, é a taipa de pilão, que consiste em compactar a terra ligeiramente úmida numa cofragem. Conhecemos esta técnica há séculos na China, por exemplo, mas também na Europa, na América do Sul e África do Norte, onde a técnica foi empregada em cidades inteiras. Esta é a única técnica que permite a utilização de terras carregadas de pedras. A última técnica mais correntes é a taipa de mão, uma mistura de terra argilosa e de fibras, geralmente a palha, não estrutural e usada para preencher uma estrutura de madeira. É muito comum em zonas costeiras e aluviais, onde a madeira é abundante e a terra é fina. Este é o caso de numerosas zonas tropicais úmidas da África, Ásia e América do Sul, mas podemos também encontrar no norte da Europa.
Quelle que soit sa nature : argileuse, sableuse ou graveleuse, la terre a su s’adapter à toutes les cultures et tous les climats grâce à l’intelligence des bâtisseurs. Ce matériau est la source de demeures humbles mais aussi d’œuvres magistrales : villes, palais, mosquées, pyramides, châteaux, tours, murailles… qui révèlent la capacité des hommes à façonner des cultures riches et variées à partir d’une même ressource. Il serait vain de lister toutes les formes d’urbanisme, d’aménagement du territoire, d’architecture ou de décorations murales qui font appel à la terre car elles sont innombrables. Cette diversité dévoile l’infinité des possibilités qu’offre la matière, qui appelle à une créativité sans cesse renouvelée. Les techniques de façonnage de la terre sont innombrables et dépendent de l’état hydrique de la terre : sèche, humide, plastique ou même liquide. Les quatre techniques les plus couramment utilisées dans le monde sont le façonnage direct (bauge), le moulage de briques (adobe), le compactage (pisé) et le remplissage d’ossature (torchis). Quelque soit la technique employée, la bonne terre à bâtir n’est pas prélevée en surface mais sous la couche végétale, là où les éléments organiques si précieux à notre survie sont absents. La Bauge est la technique la plus ancienne. C’est celle du façonnage direct, qui consiste à former les murs à la main par levées successives, en utilisant de la terre humide. On la retrouve
en Europe, en Asie et aussi en Afrique, ou l’art des détails a été très développé. Cette technique très souple apparentée à la poterie permet le façonnage de formes très organiques intégrant parfois du mobilier et facilite la décoration des murs. La technique la plus répandue est celle de la brique moulée séchée au soleil (adobe) qui s’adapte à des terres très différentes. Présente sur tous les continents, elle ne demande que de l’eau et très peu d’outils. Des merveilles d’architecture comme Bam en Iran, Shibam au Yémen ou Ghadamès en Libye sont faites d’adobes, construites à la main, sans grues, avec un outillage très sommaire. Les premières pyramides (Pérou, Egypte, Iran) étaient également construites en adobes. Une autre technique demandant moins d’eau mais plus d’outillage est le pisé, qui consiste à compacter la terre légèrement humide dans un coffrage. On connaît cette technique depuis des siècles en Chine par exemple, mais aussi en Europe, en Amérique du sud ou en Afrique du Nord où des villes entières l’emploient. C’est la seule technique qui permette l’usage de terres chargées de cailloux. La dernière des techniques courantes est le torchis, qui est un mélange non porteur, de terre argileuse et de fibres, généralement de la paille, qui sert de remplissage à une ossature bois. Il est très répandu dans les zones côtières et les plaines alluviales, où le bois abonde et les terres sont fines. C’est le cas des nombreuses zones tropicales humides d’Afrique, d’Asie et d’Amérique du sud, mais on le trouve aussi au nord de l’Europe.
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Foto: Clément Duvoux
L’architecture de terre dans le monde
As grandes lições da arquitetura vernacular em terra
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Construir um futuro sustentável requer atenção em três pilares: ambiental, sócio-cultural e sócioeconômico. Eles devem ser tratados com a mesma importância para permitir um equilíbrio entre a vida das pessoas e de outros seres vivos. Este equilíbrio deve ser baseado, em primeiro lugar, na idéia de que as pessoas fazem parte da natureza e de que todos os sistemas humanos são restritos ao sistema que os acolhe: a Terra. É ela que garante a vida, e portanto é indispensável protegê-la . No entanto, os aspectos socioculturais e econômicos são igualmente importantes para a sustentabilidade dos sistemas humanos. O atual processo de homogeneização ou de globalização leva a uma rápida perda da diversidade cultural. A transmissão do saber e do saber-fazer se desorganiza, a autonomia e a soberania se perdem, e as soluções provenientes do patrimônio são prejudicadas, apesar de sua riqueza. Essa mudança tem o efeito de reduzir a resiliência das sociedades. O estudo dos habitats vernaculares contruídos em terra crua revela inspiração de valor inestimável para a verdadeira sustentabilidade. Eles vêm de seu ambiente natural e estão perfeitamente integrados. Eles também ajudam a preservar e transmitir os valores herdados. Finalmente, eles promovem capacitação da comunidade a otimizar os recursos locais. Estes habitats em
terra são relacionados, portanto, a três pilares. Nós vamos agora aprofundar essas idéias . 1. Lições ambientais Os habitats em terra respeitam a natureza. Eles se integram sem interferir em outros elementos dos ecossistemas locais. Essas construções são harmoniosas com o meio ambiente pois elas são constituidas da mesma terra em que se repousam. Da mesma forma, elas são facilmente absorvidas pelos ecossistemas uma vez que não são mais utilizados, retornando a sua origem natural. Os habitats em terra são frequentemente bem implantados. Eles se adaptam a diferentes climas e expoem uma grande variedade nas soluções utilizadas, o que permite atender elevados níveis de conforto associados ao conhecimento e ao aproveitamento das características bioclimáticas do terreno. Os habitats em terra diminuem a poluição e os dejetos. Eles otimizam os recursos para não poluir o local que os acolhe. A terra é por princípio um material local, que não necessita de transporte, pois quase todas as terras são adequadas para a construção se entendermos suas propriedades. Além disso, a terra é um material reciclável à vida se não agregar elementos estabilizantes (como cal e cimento). Uma ruína antiga pode se tornar um belo edifício apenas retrabalhando a terra de forma adequada, de acordo com as suas características e a técnica desejada.
La construction d’un avenir durable nécessite la prise en compte de trois piliers : environnemental, socio-culturel et socio-économique. Ils doivent être considérés avec la même importance pour permettre un équilibre entre la vie des personnes et celle des autres êtres vivants. Cet équilibre doit être basé tout d’abord sur l’idée que les personnes font partie de la nature et tous les systèmes de fonctionnement humains sont restreints au système qui les accueille : la Terre. C’est elle qui garantit la vie, il est donc indispensable de la protéger. Néanmoins, les aspects socioculturels et économiques sont tout aussi importants pour la durabilité des systèmes humains. Le processus actuel d’homogénéisation ou de mondialisation entraine une perte rapide de la diversité culturelle. La transmission des savoirs et savoir-faires se désorganise, l’autonomie et la souveraineté se perdent, et les solutions issues du patrimoine sont dépréciées, malgré leur richesse. Cette évolution a pour conséquence de diminuer la résilience des sociétés. L’étude des habitats vernaculaires construits en terre crue révèle d’inestimables sources d’inspiration pour une vraie durabilité. Ils sont issus de leur milieu naturel et s’y intègrent parfaitement. Ils contribuent également à préserver et transmettre les valeurs reçues en héritage. Finalement ils favorisent l’autonomie des communautés et opti-
misent les ressources locales. Ces habitats en terre sont donc respectueux des trois piliers. Nous allons maintenant approfondir dans ces idées. 1.Leçons environnementales Les habitats en terre respectent la nature. Ils s’intègrent sans nuire aux autres éléments des écosystèmes locaux. Ces constructions sont harmonieuses avec leur environnement car elles sont constituées de la terre même sur laquelle elles reposent. De la même façon, elles sont facilement absorbées par les écosystèmes une fois qu’elles ne sont plus utilisées, retournant à leur origine naturelle. Les habitats en terre sont souvent bien implantés. Ils s’adaptent aux différents climats et font preuve d’une grande variété dans les solutions utilisées, ce qui permet d’atteindre des hauts niveaux de confort liés à la connaissance et au profit des caractéristiques bioclimatiques du site. Les habitats en terre diminuent la pollution et les déchets. Ils optimisent les ressources pour ne pas polluer l’endroit qui les accueille. La terre est par principe un matériau local qui ne nécessite pas de transport, car presque toutes les terres sont propices à la construction si l’on comprend leurs propriétés. De plus, la terre est un matériau recyclable à vie si elle n’est pas stabilisée. Une ancienne ruine peut redevenir un beau bâtiment juste en retravaillant la terre de façon adéquate selon ses caractéristiques et la technique souhaitée. Les habitats vernaculaires préservent la santé. Ils permettent aux
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Foto: Clément Duvoux
Les grandes leçons de l’architecture vernaculaire en terre
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Os habitats vernaculares preservam a saúde. Eles permitem que os habitantes locais se desenvolvam em ambientes salubres. A terra é um material saudável, sem componentes tóxicos. Além disso, é um regulador eficaz da humidade dentro dos espaços interiores, o que aumenta o conforto. As pesquisas científicas tem demonstrado claramente os benefícios do material para a regulação térmica e hidrica de espaços interiores . Os habitats vernaculares em terra podem atenuar os efeitos de desastres naturais. Eles oferecem proteção e segurança para os moradores do local. Em áreas onde os riscos naturais são recorrentes a populacao tem sido capaz, ao longo dos milênios, de melhorar as construções contra os efeitos desses riscos, desenvolvendo dispositivos engenhosos, geralmente baseados mais na flexibilidade que na rigidez. 2 . Lições socio-culturais Os habitats construídos em terra protegem a paisagem cultural. Eles contribuem para a conservação das paisagens moldadas ao longo do tempo. Estes habitats estão enraizados em seus territórios e formam conjuntos harmoniosos com a natureza. A comunidade instalada em um território entende e mantém a durabilidade cultural e ambiental do lugar que ocupa. Os habitats construídos em terra transmitem as culturas construtivas. Eles reutilizam com inteligência os saberes e o saber-fazer observados nos ha-
bitats tradicionais, provenientes de uma inteligência coletiva aperfeicoada ao longo de gerações, através de tentativas, dos fracassos e dos sucessos. As arquiteturas em terra possuem uma linguagem arquitetônica que reflete a identidade dos territórios. Os habitats construídos em terra sucitam a criatividade. Eles incentivam a contribuicao de soluções inovadoras e de expressões criativas, uma vez que a materia terra nunca é idêntica: ela oferece alternativas e se adapta a cada caso, sempre de maneira muito simples . A terra fornece uma incrível riqueza de formas, cores, técnicas e detalhes de construção que fazem de cada edifício único. Os habitats construídos em terra reconhecem os valores imateriais. Eles valorizam a identidade do território depois de uma experiência acumulada, de um saber que se esconde atrás do que é evidente. A terra é uma questão a que muitas culturas associaram um valor de fertilidade, ela representa a Mãe de onde saímos, a materia da qual somos feitos. Muitas sociedade estão ligadas aos lugares em que foram construídas, visto que seus antepassados “habitaram” nesses lugares. Dois terços do planeta é constituido por água, mas é chamado de Planeta Terra. É da terra que extraimos o alimento que nos sustenta... Para muitas pessoas o solo em que vivemos é sagrado. Os habitats construídos em terra favorizam a coesão social. Eles facilitam a troca entre pessoas para alimentar a inteligência coletiva de viver junto. Os canteiros em terra permitem a partici-
2. Leçons socio-culturelles Les habitats construits en terre protègent le paysage culturel. Ils contribuent à conserver les paysages façonnés au cours du temps. Ces habitats sont enracinés dans leurs territoires et forment des ensembles harmonieux avec la nature. La communauté installée sur un territoire comprend et entretient la durabilité culturelle et environnementale de l’endroit qu’elle occupe. Les habitats construits en terre transmettent les cultures constructives. Ils réutilisent avec intelligence les savoirs et savoir-faire observés sur les habitats traditionnels, issus d’une intelligence collective améliorée au fil des
générations, à force d’essais, de ratages et de réussites. Les architectures en terre ont un langage architectural qui reflète l’identité des terroirs. Les habitats construits en terre suscitent la créativité. Ils encouragent l’apport de solutions innovantes et d’expressions créatives, puisque la matière terre n’est jamais identique, elle offre des alternatives et s’adapte à chaque fois, toujours avec des moyens très sobres. La terre permet une incroyable richesse de formes, de couleurs, de techniques et de détails de construction qui font chaque bâtiment unique. Les habitats construits en terre reconnaissent les valeurs immatérielles. Ils valorisent l’identité du territoire issue d’une expérience cumulée, d’un savoir qui se cache derrière l’évident. La terre est une matière à laquelle beaucoup de cultures ont associé une valeur de fécondité, elle représente la Mère d’où nous sommes sortis, la matière avec laquelle nous sommes faits. Beaucoup de sociétés sont attachées aux lieux dont elles sont construites, puisqu’elles voient que leurs ancêtres “habitent” dans ces lieux. La planète est constituée aux deux tiers d’eau, mais elle est nommée Planète Terre. C’est de la terre que l’on extrait la nourriture qui nous alimente... Pour beaucoup de personnes le sol sur lequel nous vivons est sacré. Les habitats construits en terre favorisent la cohésion sociale. Ils facilitent l’échange entre les habitants pour nourrir l’intelligence collective d’un vivre ensemble. Les chantiers en terre
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Foto: Clément Duvoux
habitants du lieu de s’épanouir dans des ambiances saines. La terre est un matériau sain, sans composé toxique. En plus, elle est un régulateur efficace de l’humidité dans les espaces intérieurs, ce qui augmente le confort. Les recherches scientifiques ont largement démontré les bénéfices du matériau pour la régulation thermique et hydrique des espaces intérieurs. Les habitats vernaculaires en terre atténuent souvent les effets des aléas naturels. Ils offrent sécurité et sûreté aux habitants du lieu. Dans les milieux où les risques naturels sont récurrents les populations ont su, au fil des millénaires, améliorer les constructions face aux effets de ces risques, en développant des dispositifs ingénieux, souvent basés sur la souplesse plutôt que la rigidité.
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pação de todos. Cada um segundo sua capacidade encontra uma tarefa e pode contribuir para o trabalho coletivo. O material em si não é tóxico, ele convida ao contato, permitindo o envolvimento de crianças de maneira lúdica. Canteiros de terra permitem a prática de ajuda mútua, de fortalecer a vida do grupo e transmitir o conhecimento. Concluída a construção, a contribuição e a criatividade de cada um emerge, e um sentimento de orgulho da comunidade é criado. A arquitetura em terra responde a códigos sociais que asseguram o bem-estar pessoal, bem como o da comunidade. 3 . Lições sócioeconômicas Os habitats construídos em terra incentivam a autonomia. Eles reforcam a autosuficiencia das comunidades. A terra é um material disponível em quase todo o mundo, o que facilita a autoconstrução e evita a dependência frente a setores externos. A terra, em relação à matéria, reduz a dependência econômica frente ao mercado de materiais, evitando dívidas. Os habitats construídos em terra estimulam a atividade local. Eles favorecem as produções, as transformações e as trocas a nível local, porque frequentemente a contrução em terra é feita de forma artesanal, mais do que industrial, razão pela qual a mão de obra e favorecida e a criação de empregos e garantida. Somente artesãos no país conhecem bem sua terra e sabem como construir com terra as suas ca-
sas, e portanto, os circuitos de produção permanecem curtos. Os habitats construídos em terra otimizam os esforços de construção. Eles geram melhor a energia utilizadas para construir, uma vez que os edifícios são muitas vezes feitas com técnicas simples, originadas de uma lógica clara, conhecida, dominada. A arquitetura que emerge da terra não cai “do céu”, ela não é importada, mas local. Os habitats construídos em terra prolongam a vida útil dos edifícios. Eles garantem seu bom comportamento no tempo e permite que durem muitos anos, porque são de fácil manutenção. A vida de edifícios de terra faz parte dos ciclos das estações naturais, como as colheitas. Em cada ciclo, tomamos o cuidado de entender o edifício e de fazer eventuais reparos. A terra é um material de grande durabilidade e reciclável indefinidamente, desde que não haja nenhuma alteração da materia ou da cor ao longo do tempo. Os habitats construídos em terra economizam significativamente os recursos. Em alguns climas, é possível construir todos os componentes de um edifício com o mesmo material de terra. Além disso, a terra possui a capacidade de armazenar calor e liberá-lo lentamente (inércia térmica), o que ajuda a economizar energia. A tradição nos mostra que é possível construir com terra com poucos processos de transformação, o que economiza energia incorporada em moagem ou cozimento encontrados em outros materiais.
3. Leçons socio-économiques Les habitats construits en terre encouragent l’autonomie. Ils renforcent l’autosuffisance des communautés. La terre est une matière disponible presque partout dans le monde, ce qui facilite l’autoconstruction et évite la dépendance visà-vis des apports extérieurs. La terre, en tant que matière, réduit la dépendance économique vis-à-vis du marché des matériaux, ce qui évite l’endettement. Les habitats construits en terre stimulent l’activité locale. Ils favorisent les productions, les transformations et les échanges au niveau local, parce que très souvent la construction en terre se fait de façon artisanale plutôt qu’industrielle, raison pour laquelle la main d’œuvre est très favorisée et la création d’emplois est assurée. Seuls les artisans du pays connaissent bien leur terre et savent
construire avec la terre de chez eux, et en conséquence les circuits restent courts. Les habitats construits en terre optimisent les efforts de construction. Ils gèrent au mieux les énergies déployées pour construire, puisque les constructions sont souvent faites avec des techniques simples, qui ressortent d’une logique évidente, connue, maîtrisée. L’architecture qui sort de la terre ne tombe pas «du ciel», elle n’est pas importée mais locale. Les habitats construits en terre prolongent la vie utile des bâtiments. Ils garantissent sa bonne tenue dans le temps et s’inscrivent dans la durée, parce qu’ils sont faciles de réparer. La vie des bâtiments en terre s’inscrit dans les cycles des saisons naturelles, comme les récoltes. A chaque cycle, on prend soin de comprendre le bâtiment et de faire d’éventuelles réparations. La terre est un matériau de très grande durabilité et recyclable indéfiniment, puisqu’il n’y a pas d’altération de la matière ou des couleurs dans le temps. Les habitats construits en terre épargnent considérablement les ressources. Sous certains climats, il est possible de construire tous les composants d’un bâtiment avec la même matière terre. En plus, la terre a la capacité d’emmagasiner la chaleur et de la restituer doucement (inertie thermique), ce qui aide à économiser de l’énergie. La tradition nous montre qu’il est possible de construire avec de la terre sans avoir à la transformer en amont, ce qui économise l’énergie grise de broyage ou de cuisson que l’on retrouve dans d’autres matériaux.
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Foto: Clément Duvoux
permettent la participation de tous. Chacun selon ses capacités trouve une tâche à accomplir et peut contribuer à l’œuvre collective. Le matériau en soi n’est pas toxique, il invite au contact, ce qui permet l’implication d’enfants de manière ludique. Les chantiers terre permettent de pratiquer l’entraide, de renforcer la vie du groupe et de transmettre les connaissances. Une fois le chantier est terminé, les apports et la créativité de chacun ressortent, et un sentiment de fierté collective est créé. L’architecture en terre répond à des codes sociaux qui assurent le bien-être personnel tout autant que celui de la communauté.
Um material para o futuro
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As lições anteriores podem nos inspirar para desenvolver uma arquitetura contemporânea durável. A terra ainda é um material de construção amplamente utilizado hoje em dia, principalmente nos meios ditos informais. Estima-se que um terço da humanidade habita em arquiteturas de terra. Mas essas arquiteturas estão ameaçadas, apesar de milhares de anos de seu desenvolvimento. A padronização de métodos de construção foi um duro golpe a todas as formas de arquitetura vernacular, muitos dos quais são de terra. Praticamente nenhum arquiteto, engenheiro ou profissional da construção ouve falar de terra durante sua formação. Sua ignorância no campo torna-os incapazes de perpetuar as culturas construtivas de seu território, mesmo que elas continuem vivas. A rápida urbanização e o fácil transporte de materiais acelerou o declínio, favorizando o uso de materiais provenientes de setores comerciais. O êxodo rural, do outro lado, desconecta os homens de suas terras e de recursos que lhes são familiares, e a transmissão do saber-fazer ancestral se desintegra. As arquiteturas de terra devem sua sobrevivência aos autoconstrutores, artesãos, arquitetos, conservadores e pesquisadores que continuam a usar a terra, ou porque não têm outra opção, ou porque amam este material do futuro. Os projetos contemporâneos recentes em terra se multiplicam pelo mundo inteiro. Alguns receberam prestigiosos prêmios que abrem caminho para a renovação de uma arquitetura que presta homenagem à cultura e aos
Un materiau d’avenir
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Foto: Clément Duvoux
Les leçons précédentes peuvent nous inspirer pour concevoir des architectures contemporaines durables. La terre reste un matériau de construction très utilisé aujourd’hui, essentiellement dans des milieux dits informels. On estime en effet qu’un tiers de l’humanité habite des architectures de terre. Mais ces architectures sont menacées malgré les milliers d’années de développement qu’elles ont connu. La standardisation des modes de construction a porté un coup dur à toutes les formes d’architectures vernaculaires, dont beaucoup sont en terre. Quasiment aucun architecte, ingénieur ou professionnel de la construction n’entend parler de terre lors de sa formation. Leur ignorance dans le domaine les rend incapables de perpétuer les cultures constructives de leur territoire, même lorsqu’elles sont encore vivantes. L’urbanisation galopante et les transports faciles de matériaux accélèrent le déclin en favorisant les matériaux issus des filières commerciales. L’exode rural d’autre part déconnecte les hommes de leur territoire et des ressources dont ils sont familiers, et la transmission des savoir-faire ancestraux se délite. Les architectures de terre doivent leur survie aux autoconstructeurs, artisans, architectes, conservateurs et chercheurs qui continuent d’utiliser la terre, soit parce qu’ils n’ont pas d’autre option, ou parce qu’ils affectionnent ce matériau d’avenir. Les projets contemporains récents en terre se multiplient dans le
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recursos dos territórios que os acolhem. Os arquitetos de hoje bem-sucedidos na construção em terra são todos artesãos experientes, também hábeis do desenho à construção. Eles conseguiram repensar o papel do arquiteto se aproximando de artesãos que lhes ofereceram estes preciosos conhecimentos injustamente qualifidados como “informais”. A concepção da arquitetura em terra requer uma boa experiência prática para entender, replicar e ultrapassar os modelos do passado, o que não é acessível a todos os estudantes. Mas o material é cada vez mais reconhecido pelas instituições de formação à construção, que não se pode mais ignorar. O futuro da arquitetura de terra depende, em primeiro lugar, de políticas de uso da terra, do desenvolvimento do ensino e da legislação da construção, fatores que serão decisivos para acelerar o declínio ou, ao contrário, não impulsionar o setor. As realizações exemplares permanecem isoladas e são frequentemente
o trabalho de iniciativas privadas. A terra interessa pouco aos poderes públicos que mostram raramente o exemplo. Este desdém incentiva as pessoas a se desinteressar em arquitetura de terra, ou para rejeitar a favor de modelos universais culturalmente desenraizados. Ainda hoje, a terra poderia resolver muitos problemas, incluindo o desafio climático e energético. Uma revisão do ato de projetar e construir é necessário para recolocar o habitat em um caminho saudável de evolução, que tende para arquiteturas mais ricas culturalmente e menos alienantes financeiramente.
Para mais informações: www.craterre.org
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des enseignements et de la législation de la construction, qui seront décisives, pour accélérer le déclin ou au contraire relancer la filière. Les réalisations exemplaires restent isolées et sont souvent l’œuvre d’initiatives privées. La terre intéresse peu les pouvoirs publics qui montrent trop rarement l’exemple. Ce dédain encourage les gens à se désintéresser des architectures de terre, voire à les rejeter au profit de modèles universels culturellement déracinés. Aujourd’hui encore, la terre pourrait solutionner bien des problèmes, dont celui irrésolu du défi climatique et énergétique. Une refonte de l’acte de concevoir et de bâtir est nécessaire pour remettre l’habitat sur une trajectoire saine d’évolution, qui tende vers des architectures plus enrichissantes culturellement et moins aliénantes financièrement.
Pour plus d’information : www.craterre.org
Foto: Louise Depret
monde entier. Certains ont reçu des prix prestigieux qui ouvrent la voie du renouveau d’une architecture qui rend hommage à la culture et aux ressources des territoires qui les accueillent. Les architectes qui réussissent aujourd’hui à construire en terre sont tous des artisans confirmés, aussi habiles au dessin qu’à la construction. Ils ont réussi à repenser le rôle de l’architecte en se rapprochant des artisans qui leur ont offert ces précieuses connaissances injustement qualifiées «d’informelles». La conception des architectures de terre nécessite une bonne expérience pratique pour comprendre, dupliquer et dépasser les modèles du passé, ce qui n’est pas accessible à tous les étudiants. Mais le matériau est de plus en plus reconnu par les institutions de formation à la construction, qui ne peuvent plus l’ignorer. L’avenir de l’architecture de terre dépendra d’abord des politiques d’aménagement du territoire, de l’évolution
Rafael Passarelli*
NOVAS POSSIBILIDADES PARA USO DA MADEIRA NA PRODUÇÃO DE HABITAÇÃO: ASPECTOS ECOLÓGICOS E CONSTRUTIVOS
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Introdução Devido ao aumento da conscientização ambiental e popularização dos conceitos de construção sustentável observados no decorrer da última década, a utilização de estruturas de madeira, sobretudo em países do hemisfério norte, passou a ser incentivada como forma de atenuar o impacto do setor da construção no meio ambiente. Por ser um dos poucos materiais utilizados na construção civil que provém de fonte inteiramente renovável e possuir baixa energia incorporada, quando técnicas apropriadas de manejo florestal são utilizadas, a exploração do recurso madeireiro pode-se estender por tempo indeterminado e gerando impacto reduzido ao bioma natural. Além disso, destaca-se no período mencionado a difusão de novos produtos derivados da madeira que possibilitam uma construção limpa, rápida e de alto desempenho tanto em termos de resistência mecânica quanto conforto ambiental e que tiveram papel fundamental para que novas áreas de aplicação, antes exclusivas do concreto armado e aço, fossem abertas também às estruturas de madeira. O presente artigo aborda sucintamente alguns dos benefícios decorrentes do emprego da madeira e seus produtos derivados na habitação do ponto de vista ecológico e construtivo.
Aspectos ecológicos Por meio do processo de fotossíntese, a árvore absorve água e sais minerais do solo e dióxido de carbono da atmosfera durante seu crescimento, transformando-os em polímeros para formação de diferentes tecidos e liberando oxigênio como resíduo do processo (equação 1). Por esse motivo, diz-se que a árvore “seqüestra” carbono da atmosfera e o armazena na forma de madeira. Estima-se que aproximadamente metade do peso da árvore seja constituído por carbono “seqüestrado” (Volz, 2008). O CO2 seqüestrado fica então retido na madeira até que esta sofra deterioração natural ou seja queimada, liberando-o de volta à atmosfera lentamente (primeira situação) ou rapidamente (segundo caso - equação 2). [1] Energia (sol) + 6H2O + 6CO2 C6H12O6 + 6O2 [2] Energia (fogo) + C6H12O6 + 6O2 6H2O + 6CO2
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Como os gastos de energia e emissões de gases do efeito estufa durante as etapas de processamento industrial da madeira são baixos, é possível obter um produto carbono positivo, ou seja, produto no qual os processos de cultivo, extração, processamento e transporte produzem menor quantidade de emissões de dióxido de carbono do que a quantidade "seqüestrada" pela madeira empregada. Por exemplo, comparando pilares de 3 metros de altura feitos com madeira, concreto armado e aço, resistindo à mesma carga, Kolb (2008) obteve que o pilar de madeira é 5 a 1,3 vezes mais leve e necessita 3,8 a 9,3 vezes menos energia para sua produção do que os pilares de concreto e aço, respectivamente. Não obstante, após o ciclo de vida da construção, a madeira pode ser reutilizada ou transformada em outros produtos, alongando seu ciclo de vida assim como o tempo de seqüestro do carbono, período no qual novas árvores podem ser plantadas, extraídas e utilizadas em novas construções. Quando o reuso ou reciclagem dos produtos não for mais possível, a madeira pode ser queimada para geração de energia, sendo que o CO2 emitido dessa queima retornará à atmosfera como carbono neutro, uma vez que este estava seqüestrado na madeira (equações 1 e 2). Especialmente no caso de programas de construção de grande escala, com impactos ambientais proporcionais (como no caso da HIS), o emprego da madeira pode ser utilizado como uma forma de compensação ou amenização dos impactos ambientais gerados no processo de construção.
Aspectos construtivos Dentre os novos produtos utilizados na fase de retomada das construções de madeira, o mais representativo seria o “Cross Laminated Timber (CLT)”. Trata-se de um painel maciço composto por 3, 5 ou 7 camadas lamelas de madeira (geralmente espécies de coníferas) organizadas transversalmente entre si, unidas por meio de adesivo poliuretano e prensadas de modo a obter painéis de grandes dimensões, chegando a 3 x 16 metros com espessuras que variam de 70 a 500 mm. Ainda na fábrica, os painéis são cortados em serras automatizadas para obtenção elementos construtivos pré-fabricados, tais como como paredes, pisos e cobertura, já com os recortes de vãos (janelas e portas) e espaço para instalações, quando necessários, executados. Depois de fi-
Energia (kWh) Material (kg)
Madeira serrada
Perfil de aço
Concreto armado
nalizados, os elementos são transportados até o canteiro quando, com auxílio de guindaste, são içados e colocados em seus lugares definitivos por meio de conectores metálicos e parafusos. (Passarelli e Ino, 2013) Devido ao elevado grau de pré-fabricação dos elementos, com pouco tempo de trabalho em canteiro é possível montar a estrutura principal da construção. Além disso, as características físicas da madeira associadas aos critérios de controle de qualidade industriais nos quais os elementos são produzidos resultam em uma construção com bom desempenho térmico e fechamento hermético, características essenciais em um cenário de economia de energia em países onde sistemas de aquecimento são uma necessidade real, contribuindo assim para a redução das emissões de CO2 não só durante a construção mas também durante o ciclo de vida do edifício. Como exemplo, pode ser mencionado o edifício Murray Groove Stadthaus, construído em 2009: uma construção habitacional multi-familiar com nove pavimentos, dos quais apenas o embasamento é feito com estrutura em concreto. Os 8 andares restantes foram inteiramente construídos utilizando painéis de CLT como parede e piso, sendo a montagem da estrutura pré-fabricada em CLT realizada em apenas 28 dias por 4 carpinteiros e um operador de guindaste. No total o edifício possuí 29 apartamentos: os primeiros 3 andares são divididos em apartamentos de 1, 2 e 4 dormitórios, propriedade "Metropolitan Housing Trust" e destinados para uso como habitação de interesse social; os demais andares possuem apartamentos de 1 e 2 dormitórios destinados ao mercado de classe média (Trada Technology, 2009).
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Referências KOLB, J. Holzbau mit System: Tragkonstruktion und Schichtaufbau der Bauteile. Editado por Lignum e German Society for Wood Research. Birkhäuser: Berlim, 2008. PASSARELLI, R. N. e INO, A. Cross Laminated Timber: Diretrizes para Projeto de Painel Maciço em Madeira no Estado de São Paulo. Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Carlos, 2013. TRADA Technology. Case study: Stadthaus, 24 Murray Grove, London. Trada Technology: Buckinghamshire, 2009. VOLZ, M. anatomy of Wood. In: Timber Construction Manual, Birkhäuser: Berlim, 2008.
*Rafael Passarelli é Arquiteto urbanista formado na FAUUSP e mestre pelo IAUUSP. Pesquisador pela Graduate School of Engineering na universidade de Tokyo.
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REPENSANDO OS PADRÕES DA HABITAÇÃO EM SÃO PAULO
Joana Carla Soares Gonçalves *
O conceito mais atual de conforto térmico é aquele que relaciona a chamada temperatura de conforto com a temperatura externa, sendo a primeira sujeita às flutuações do clima. Essa relação foi demonstrada em várias pesquisas como Humphreys (1978) e De Dear & Brager (1998), introduzindo o conceito de conforto térmico adaptativo. A teoria de conforto adaptativo parte da premissa que os ocupantes de espaços internos têm o potencial de criar condições confortáveis por meio de uma série de ações de natureza distinta, como mudanças na vestimenta, postura e atividade, além de agir sobre a abertura de janelas, o fechamento de
(pág. anterior) Figura 1: Fachada de um dos edifícios residências do Parque Gingle, no Rio de Janeiro, projeto do arquiteto Lúcio Costa. Destaca-se aqui o uso de diferentes tipologias do elemento vazado, criando um efeito de sombreamento sem barrar o fluxo da ventilação. O uso do elemento vazado nesse projeto define espaços de transição entre exterior e interior . Foto: Joana Carla Soares Gonçalves.
componentes de sombreamento interno ou externo, o uso de ventiladores e outros recursos ligados ao ambiente térmico de um espaço interno. Vale destacar que o movimento do ar criado por ventiladores tem a capacidade de acrescer em 2,5ºC o limite superior de uma determinada zona de conforto. Com base nesse entendimento, o conforto térmico deixa de ser um produto do projeto ou do edifício, e um valor numérico absoluto, para se tornar um processo de adaptação, que obviamente tem seus limites. Com respeito ao efeito do movimento do ar como estratégia de adaptação ambiental, para o intervalo de temperatura do ar entre 25ºC e 30ºC, a convecção, ou seja, o movimento do ar) se torna a principal estratégia para o resfriamento do corpo humano (Szokolay, 2004), fala-se aqui de velocidades do ar de até 2,5m/s. A discussão sobre conforto ganha especificidade quando falamos de um determinado contexto climático. Sendo assim, tomando a cidade de São Paulo com exemplo, pergunta-se: quais as estratégias arquitetônicas associadas às características definidoras do clima local?
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O clima subtropical de altitude de São Paulo (latitude 23º24´S e 850 metros acima do nível do mar) apresenta temperaturas amenas durante a maior parte do ano, com a ocorrência de dias quentes no verão e noites frias no inverno1. No verão, verifica-se a necessidade de proteção solar durante o dia e da ventilação natural durante o dia e a noite. Por outro lado, no inverno, o alcance de condições de conforto térmico está atrelado a taxas mínimas de renovação do ar interno e ao acesso da radiação solar, em princípio.
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Figura 2: Dias típicos do clima de São Paulo, incluindo um dia de céu nublado e outro de céu claro no verão, seguidos por um dia de céu nublado e outro ensolarado no inverno. Fonte: Morikawa (2012)
Embora o diagnóstico do clima típico da região mostre temperaturas médias anuais ao redor de 20ºC, acompanhadas por valores de umidade relativa média também elevada, é importante atentar para a influência da alta taxa de urbanização nos microclimas da cidade, com bairros inteiros marcados pela poluição sonora e a do ar, além da contínua dissipação de calor proveniente das atividades antropogênicas, dos edifícios e dos automóveis, fatores esses que afetam diretamente o clima de maneira negativa, elevando as
temperaturas e baixando as taxas de umidade, ou seja, causando um processo de desertificação do clima natural, desfavorável para o conforto térmico dentro e fora dos edifícios. Olhando especificamente para os bairros centrais, ao mesmo passo em que a densidade construída oferece sombreamento e os gabaritos irregulares dos edifícios agem em favor de uma melhor ventilação urbana, o efeito ilha de calor é evidente nos bairros centrais da cidade. Voltando para a análise do clima, em São Paulo, a temperatura e a umidade relativa do ar apresentam variações diurnas significativas durante a maior parte do ano, com temperaturas mais baixas nas primeiras horas do dia, que chegam a ultrapassar a marca dos 30ºC no princípio da tarde, em dias típicos ensolarados de verão, ou mesmo durante o outono e a primavera. Dadas as variações típicas do clima de São Paulo, um mínimo de quatro dias distintos é necessário para caracterizá-lo, sendo: um dia de típico verão de céu nublado e outro de céu claro, ao lado de um dia típico de inverno de céu nublado e outro de céu claro, como apresentado na figura 2. Olhando a figura 2, observa-se que no dia nublado de verão a tendência das temperaturas é não subir dos 20ºC e a umidade relativa fica constante durante todo o dia acima dos 80%, já no dia ensolarado, o efeito da radiação eleva as temperaturas cruzando a marca dos 30oC após as 13.00 horas, o que significa um ∆T de aproximadamente 10ºC, e baixando a taxa de umidade. Passando para os dias de inverno, no primeiro caso, tipicamente, as temperaturas ficam ao redor dos 15ºC, com taxas de umidade bem similares as do verão, enquanto quando em um dia sol, as temperaturas chegam rapidamente a beirar os 25ºC, superando as temperaturas de um dia nublado no verão.
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Figura 3: Fachada principal do complexo residencial Louveira, em São Paulo, do arquiteto Vilanova Artigas, mostrando o uso da janela com a proteção solar externa do tipo veneziana, que permite uma ventilação mínima constante, mesmo com o componente externo fechado. Além da proteção externa, pode ser vista a presença da cortina, certamente como um outro elemento de controle da luz e da privacidade. Vale notar também a eficiência do vão da janela para a ventilação natural. Foto: Nicolas Le Roux.
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Essa análise demonstra claramente o impacto determinante da radiação solar no clima de São Paulo. Com exceção dos horários críticos de verão, os perfis de temperaturas dos dias típicos de São Paulo apontam para a comunicação entre ambiente interno e externo, o que implica no uso da ventilação natural. Arquitetonicamente, o contato entre interior e exterior se reflete não só no projeto das aberturas, como também na introdução de espaços de transição, como varandas, terraços e pátios. Em climas como São Paulo, o fato das temperaturas máximas do ar não subirem, com freqüência, acima dos 32ºC faz com que a renovação do ar, ou seja, o uso da ventilação natural seja a principal estratégia para a remoção do calor interno. Também é importante considerar que, embora o denso contexto urbano possa mudar os padrões dos ventos, a orientação NE - SE das quadras favorece a exposição dos edifícios aos ventos predominantes do SE. No entanto, deve-se considerar que nos períodos mais críticos do verão, quando a temperatura do ar chega aos 30ºC, o fechamento das janelas, combinado ao efeito da massa térmica interna da construção, é a melhor estratégia para o alcance de temperaturas internas mais amenas. Tudo isso, considerando que o calor proveniente da radiação solar ficou do lado de fora! Em outras palavras, foi barrado pelo sombreamento. Fora das horas críticas do verão, o acesso da radiação não significa necessariamente uma ameaça ao conforto térmico, desde que contrabalanceado pela ventilação natural. Além do clima, vale atentar para o fato que o aumento de eletrodomésticos e equipamentos nos ambientes compactos da habitação social nas últimas décadas, considerado
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Figura 4 1. Cobertura de telha de barro com laje de concreto de 20 cm (U = 1,84 W/m2ºC). 2. Cobertura de telha de fibrocimento sem forro (4,60 W/m2ºC). 3. Tijolo maciço com revestimento duplo (U = 3,13 W/m2ºC).
4. Tijolo cerâmico de 6 furos (U = 2,02 W/m2ºC).
Fonte: ABNT (2005).
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nos estudos de Conceição (2010), que avaliou a demanda de energia elétrica em edifícios habitacionais no centro de São Paulo, incorre no incremento da carga térmica interna, fazendo da boa ventilação natural uma estratégia ainda mais importante para o conforto térmico. Com base no entendimento do clima local, quais os aspectos arquitetônicos e as estratégias de adaptação do espaço de morar, tendo em vista as restrições econômicas do projeto de habitação social, que definem um ambiente de qualidade do ponto de vista do conforto térmico? Nesse contexto, o projeto deve ser direcionado por dois objetivos: minimizar os ganhos de calor e maximizar as perdas. A redução dos ganhos de calor solar está no sombreamento externo eficiente das aberturas e na reflexão das pinturas de cores claras. Quanto ao sombreamento e ao projeto das janelas, exemplo da arquitetura tradicionalmente de climas quentes, aquelas com folhas externas de veneziana permitem diferentes graus de abertura para a comunicação visual (entre interior e exterior), a entrada da luz natural e do sol, além de oferecer a possibilidade do fechamento completo para o sombreamento, sem bloquear a renovação do ar interno, sendo, essencialmente, um meio eficiente para a adaptação ambiental dos ocupantes. No caso de unidades habitacionais em contato com o plano da cobertura, onde a incidência da radiação solar é mais intensa, o corte da mesma é obtido também com o sombreamento, ou o uso de cores claras e, ainda, por meio de uma resistência térmica maior do que a das paredes. Com o objetivo de minimizar os ganhos de calor pela cobertura e maximizar as perdas pelas paredes e aberturas, a Norma Brasileira de desempenho térmico das
edificações, para a habitação social (ABNT, 2005), recomenda soluções construtivas para a cobertura com coeficiente global de transmissão térmica (valor de U), que define a resistência térmica do componente menor ou igual a 2,00 W/m2ºC, em que se enquadra a cobertura de telha de barro com laje de concreto de 20cm (U = 1,84 W/m2ºC) e a com forro de laje mista (U = 1,92 W/m2ºC), mas não a comumente encontrada na construção informal, cobertura de telha de fibrocimento sem forro (4,60 W/m2ºC) (ver figura 4). Para as paredes, a Norma sugere componentes com um valor de U menor ou igual a 3,60 W/m2ºC, como a conhecida parede de tijolo maciço ou de solo cimento, com revestimento duplo (U = 3,13 W/m2ºC ou 2,25 W/ m2ºC, no caso do tijolo deitado, com espessura de 25cm). No caso dos fechamentos verticais, é importante lembrar que um valor de U mais baixo, próximo ao da cobertura, como o de uma parede de tijolo cerâmico com furos (U = 2,02 W/m2ºC), pode dificultar as perdas de calor por diferença de temperatura entre interior e exterior, prejudicando o desempenho térmico do cômodo (ver figura 4). Obviamente, as recomendações da Norma são apenas um começo e devem ter sua aplicação avaliada caso a caso. Para as perdas de calor, com já mencionado anteriormente, vale reforçar que a estratégia principal é a ventilação natural, essencialmente pelos vãos de janela. Com diretriz de projeto, a Norma Brasileira (ABNT, 2005) recomenda que a área total de ventilação seja entre 15% e 25% da área de piso do cômodo. A esse respeito, cabe a crítica à janela padrão de 1,20 por 1,20 metros, de esquadria de alumínio, adotada na produção nacional da habitação social, em que, apenas metade da área da janela (0,72m2)
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é vão efetivo de ventilação, sendo esse um vão insuficiente para qualquer cômodo de uma habitação, minimizando o potencial de remoção de calor. Além dos vãos de janela, a presença do elemento vazado nos fechamentos verticais, como amplamente utilizado na arquitetura moderna bioclimática brasileira, realizada entre os anos 30 e 60, garante uma ventilação constante e a criação de espaços de transição entre interior e exterior, além de servirem de filtro para a radiação solar e a luz natural, como visto nas figuras 1 e 3. Como consequência do déficit habitacional da cidade de São Paulo, 50% das ha-
bitações construídas nos últimos 20 anos são informais ou ilegais2. Essa realidade nos mostra que ações em prol da habitação social na cidade de São Paulo estão associadas tanto a construção de novos edifícios, como a melhoria da habitação informal, para as quais o entendimento do clima local, como exposto acima, é condição fundamental para a qualidade do espaço de morar, repensando criticamente os padrões atuais de projeto e construção, como no caso das janelas e coberturas, e porque não com inspiração no período auge da arquitetura brasileira? Sendo esse definido entre as décadas de 30 e 60 do século 20.
Joana Carla Soares Gonçalves é arquiteta pela UFRJ, mestre pela Architectural Association Graduate School e doutora pela FAU-USP. Professora do departamento de Tecnologia (AUT) desta faculdade. 1 O diagnostico climático do clima da cidade de São Paulo foi realizado com base nos dados climáticos extraídos do arquivo da ASHRAE (2009). 2 Em 1991 a população que morava em favela era de 891.679 cerca de 9,24% da população total (9.646.185) e em 2000 esta população cresceu para 1.160.590 cerca de 11,12% da população total (10.434.252), (PMSP, 2008). *
Referências bibliográficas ABNT, Associação Brasileira de Normas Tecnicas. NBR 15220 - Desempenho Térmico de Edificações – Parte 3: Zoneamento Bioclimático Brasileiro e Diretrizes Construtivas para Habitações Unifamiliares de Interesse Social. ABNT, 2005. ASHRAE (2009) Climate Design Data, ASHRAE Handbook, ASHRAE, Atlanta, GA. CONCEIÇÃO, J. P. (2010). Environmental Retrofit for Residential Buildings in São Paulo. MSc Dissertation, AA School of Architecture, Environment and Energy Programme, Sustainable Environmental Design. London. MORIKAWA, S. M. (2012). Refurbishment of Underused Buildings in Central São Paulo. MSc Dissertation, AA School of Architecture, Environment and Energy Programme, Sustainable Environmental Design. London. PMSP - Prefeitura do Município de São Paulo. Secretaria de Planejamento. Infocidade. Estimativas de População e Domicílios em Favelas, 2008. Disponível em: http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/infocidade/Habitação/. Acessado em: 30 de junho de 2010. SZOKOLAY, S. (2003). Introduction to Architectural Science. The basis of sustainable design. Architectural Press. De Dear, Richard; Brager, G.; Cooper, D. Developing an adaptive model of thermal comfort and preference. Final Report, ASHRAE RP-884, Macquire University, 1997.
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EM BUSCA INTEGRAÇÃ ENTRE O MÓVEL COMPONÍV A HABITAÇÃ PADRONIZA
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ANTONIO FRANCO
DA ÃO
EL E ÃO ADA
- INTRODUÇÃO Este artigo contém, parcialmente, algumas constatações obtidas no desenvolvimento da pesquisa objeto da Tese de Doutorado ora em andamento sob o título “Conteúdo e Continente – em busca da interação entre o móvel residencial seriado e a habitação padronizada”, a qual procura confrontar a atividade do projetar o espaço da residência com o projetar do mobiliário que será nele inserido, circunscrito aos tempos atuais e nas habitações aqui denominadas de “padronizadas”, originadas principalmente do programa Minha Casa Minha Vida, e nos móveis seriados produzidos em grande escala distribuídos e comercializados por todo território nacional pelas grandes e médias redes de lojas. Assim, este estudo, em função de seu status atual, não apresenta ainda conclusões categóricas bem como permeia-se de muitas lacunas que deverão ser preenchidas no seu devido tempo. De qualquer forma algumas indagações, e eventuais respostas, podem já ser objeto de reflexão sobre este assunto. - PRESSUPOSIÇÕES Baseado em sentimento construído ao longo das diversas experiências da vida profissional, partimos do pressuposto básico que o móvel componível constitui-se num melhor caminho para suprir as necessidades principalmente das classes sociais de menor renda, tanto em termos econômicos quanto funcionais, além de atenuar os impactos sobre os recursos do ambiente através de sua produção mais racional em relação ao móvel convencional e seu uso mais duradouro. Além disso, a possibilidade de melhor integração com o ambiente construído da casa
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pode acentuar mais ainda estas vantagens, através da eliminação de redundâncias ou sobreposições quando da composição final do ambiente. A INSERÇÃO DO DESIGN NO - DESENVOLVIMENTO DO MÓVEL SERIADO NAATUALIDADE
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No cerne do termo Design, cuja denominação inicial, no Brasil, foi Desenho Industrial, está embutido o conceito da produção em série, variável definida pela grande quantidade de unidades produzidas de determinado objeto e que deve ser considerada para efeito de qualificação desse produto. No caso dos móveis, no Brasil, ao longo dos últimos 50 anos, período em que a produção seriada passou a ter expressividade, regra geral, a quantidade esteve umbilicalmente relacionada com baixa qualidade e com um “pobre ou inexistente design”, como consequência principalmente da maior parcela da massa populacional concentrar-se fortemente na base da pirâmide econômica e social. Assim, vimos a história do design dos móveis ser conduzida por um fio condutor mais relacionado com a exclusividade de uma produção limitada – elemento muito importante para as classes cultural e economicamente mais abastadas, as quais reconhecem e sustentam as manifestações do design – e cuja produção esteve mais próxima do artesanato do que propriamente de uma produção industrializada. Além disso, a maior parte dessa produção de design de vanguarda esteve concentrada nos produtos cadeira e sofá, cujas amplitudes formais valorizaram sobremaneira o respectivo caráter meramente escultórico, minimizando ou não levando em consideração, como de-
veria ser, o caráter funcional e utilitário. Assim, cristalizou-se o conceito de que os móveis seriados, sendo considerados estética e materialmente pobres, sem possibilidades de variações ou inclusão de novas propostas, dão pouca margem de trabalho ao designer. Aqui vale dizer que o maior desafio é justamente este: criar com parcos recursos, dentro das possibilidades que o meio oferece, explorando o que de melhor a capacidade criativa do designer possa produzir. Por outro lado, verifica-se também que a produção seriada em larga escala de móveis costumou ser relacionada com os altos interesses especulativos do capital, estando inteiramente submetida aos ditames do marketing, utilizado especificamente para tal fim: incrementar o valor de troca do produto. Esta postura foi por inúmeras vezes utilizada como motivo para um certo distanciamento da vanguarda do design com a produção seriada em função do modelo produtivo vigente, deixando espaço para que outras formações profissionais tomassem o lugar do designer como coordenador do processo criativo e, principalmente, do desenvolvimento do produto. Acabou-se, assim, participando muito pouco do maior volume de produção de móveis e justamente aqueles voltados às classes da base da pirâmide social e econômica. Além disso, arraigou-se entre os designers a sobrevalorização dos chamados insumos “naturais” em detrimento daqueles classificados como “artificiais”. Sem entrar no mérito do acerto ou não desta postura, no caso da madeira, valorizou-se demasiadamente a chamada “madeira maciça” (que em muitos, para não dizer na maioria dos casos, propriamente não o era), desprezando-se os painéis de madeira reconstituída, principal-
mente a chapa de fibra e o aglomerado, assim como seus revestimentos “artificiais” – pintura, filme celulósico, vinílico ou melamínico, imitando a lâmina de madeira. Somente com a mais recente implantação de produção do MDF no Brasil, é que atenuou-se este antagonismo, devido às substanciais melhores características deste produto em relação a todos os demais e também ao seu adequado lançamento no mercado. Com isso, não se deu, até meados da década de 1990, a devida importância às novas perspectivas que estes materiais “artificiais” trouxeram, tanto em termos de aprimoramento tecnológico na sua transformação, tornando possível a produção seriada de móveis dentro de padrões definidos e controláveis pelo fato de serem muito mais isotrópicos que a madeira maciça, quanto em termos da maior racionalidade no uso da matéria prima, provinda de fontes renováveis e controláveis, contribuindo para a diminuição da devastação das florestas tropicais. Dentro deste quadro, podemos concluir que os painéis de madeira reconstituída, principalmente os particulados, percorreram o caminho inverso que a maioria de outros tantos materiais em termos de penetração do mercado, qual seja: ao invés de serem inicialmente dirigidos para usos de maior valor agregado para aos poucos irem penetrando nos usos e faixas mais populares, o início de sua utilização ocorreu naqueles móveis de menor valor, menor qualidade aparente e dirigida aos estratos inferiores da sociedade. No entanto, as inovações ocorreram muito mais rapidamente nos produtos industrializados e produzidos em larga escala, com a consequente adoção de processos mais racionais e produtivos, ao mesmo tempo que as matérias primas “naturais” foram sofren-
do um processo de contínua escassez, encarecimento ou posturas preservacionistas mais restritivas. Assim, paradoxalmente, os móveis ditos populares, quase que totalmente privados de uma abordagem projetual e afastados das manifestações de vanguarda do design, eram processados através das tecnologias mais avançadas disponíveis na época. Por consequência, foram esses novos processos que determinaram o aspecto formal do móvel, algumas vezes utilizados até de maneira não recomendada ou gratuita, e não uma prática projetual sistêmica e fundamentada. Nesta virada de século, por fim, assistimos à prevalência da madeira reconstituída em todas as categorias de móveis, praticamente desaparecendo a rígida separação entre materiais naturais e materiais artificiais, penetrando as madeiras reconstituídas em todas as classes de produtos e sendo finalmente consideradas das mais apropriadas para tal finalidade. Nesse entretempo, o parque industrial do setor moveleiro evoluiu na medida do crescimento da população e do aumento de seu poder aquisitivo. Se por um lado o Brasil se encontra em razoável situação em termos de equipamentos instalados, equilibrando a oferta com a demanda, pelo lado tecnológico encontra-se significativamente atrás dos países considerados de ponta no setor, uma vez que ainda depende quase que totalmente da importação dos equipamentos, principalmente daqueles que se situam na ponta do processo e apresentam as melhores inovações em termos de produtividade e qualidade do processo. Não por acaso, é exatamente a partir desta época que a presença do designer no setor passa a ser mais constante e decidida,
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com a consequente valorização dos atributos que o design passa a imprimir nos móveis. - A ESTRUTURA DO SETOR -
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Os fabricantes de móveis seriados no Brasil, quase todos, originaram-se das pequenas marcenarias tendo à frente o artesão de cuja habilidade no trato com a madeira tirava a produção requisitada por sua clientela. O crescimento destas empresas, que ocorreu de forma acelerada ao longo dos anos 1950 até 1980, se deu, na maioria das vezes, de forma frágil na sua estrutura gerencial, concentrada quase sempre na figura individual de seu proprietário. Nesta conjuntura, os fabricantes de móveis seriados, contados às centenas, se veem ladeados na cadeia produtiva por grupos significativamente mais fortes, concentrando alto poder de decisão: de um lado, os fornecedores das matérias primas básicas e dos principais equipamentos de transformação, e do outro, as grandes redes de lojas que se encarregam da comercialização. Este esquema impõe, ao fabricante, forte grau de dependência no desenvolvimento de novos produtos, uma vez que em termos de novas tecnologias, de novas técnicas de transformação e de novos materiais fica à mercê daquilo que lhe é apresentado pelos fabricantes de máquinas e fornecedores dos insumos básicos, e em termos de relacionamento com o mercado e o usuário em geral, assim como no aprimoramento das técnicas de venda, é barrado pelas redes dos grandes magazines que se arvoram do direito de delinear os tipos de produtos a serem lançados e comercializados, uma vez que são os únicos elos em contato direto e constante com o público usuário. Assim, as atividades de criação e cons-
trução que permaneceram juntas desde os tempos em que o próprio artesão comercializava seu produto, passam a sofrer interferências a partir do momento da separação entre a etapa de produção e a de comercialização, o que veio a ocorrer juntamente com o processo de industrialização seriada, das grandes concentrações urbanas, e do emprego dos painéis de madeira reconstituída na produção dos móveis. As grandes redes, responsáveis pela maior parte dos móveis residenciais seriados, assim como toda a sorte dos demais equipamentos domésticos, trazem no bojo de sua atividade o tratamento uniforme dado a todos os itens de venda. Esta despersonalização é também alimentada pelo interesse da rede distribuidora dos móveis, principalmente os magazines de atuação nacional, em tratar o móvel seriado como uma comodity, sem elementos diferenciais sensíveis, podendo assim melhor manipular a oferta dos produtos segundo os seus interesses. Este é um dos motivos pelos quais o nome e as marcas do fabricante são camuflados ou minimizados, dificultando a diferenciação entre produtos de diferentes qualidades. Tanto é que a identificação dos móveis, para o público em geral, passa a ser feita através de uma nomenclatura genérica que não especifica as suas características e muito menos a sua procedência, apagando-se quase que por completo o nome do fabricante e por conseguinte o seu criador formal. Há uma grande rede que adota, em seus anúncios, sempre nomes femininos, como Cozinha Fabiana, Estante Larissa, Dormitório Luana, etc. Outro adota nomes de grandes cidades, como Cômoda Londres, Beliche Istambul, Estofado Viena, etc. Outra forma de despersonalização é a de restrin-
gir ao máximo a especificação dos móveis, colocando no mesmo patamar produtos por vezes totalmente distintos. Um dos exemplos típicos refere-se aos guarda-roupas, onde, por muitas vezes, sua única especificação utilizada é a quantidade de portas. Com isso, coloca-se em pé de igualdade um armário com 180 cm de largura (6 portas de 30 cm) com outro de 240 cm de largura (6 portas de 40 cm). Se mesmo elementos facilmente discerníveis deste tipo podem deixar de ser captados pela percepção do usuário, pode-se imaginar quantos outros elementos de maior complexidade comparativa podem passar despercebidos (qualidade dos materiais - revestimentos e acessórios, disposições internas, etc.), acabando por prevalecer como critérios de escolha o preço e o “gosto” pessoal, o qual estará forçosamente circunscrito entre as alternativas que lhe forem apresentadas que, como vimos, muito pouco diferem entre si. Outro aspecto em discussão refere-se ao tempo de vida útil do móvel e a interferência da renovação contínua dos modelos nesse tempo, ou mesmo das deficiências construtivas e de material a fim de gerar a chamada “obsolescência programada” como uma atividade premeditada pelo fabricante, deixando embutidas no produto determinadas deficiências visando a antecipação da troca do produto, acelerando desnecessariamente, com isso, o consumo. Mesmo com a melhoria paulatina dos móveis, graças aos novos materiais e técnicas produtivas, perduram diversas deficiências que efetivamente aceleram o ciclo de vida do produto, principalmente no tocante aos revestimentos. Por outro lado, este descompasso entre o revestimento empregado e a função a ser desempenhada pelo móvel deve-se
exclusivamente à faixa de preço ao qual ele se destina, uma vez que, empregando-se um revestimento mais adequado, certamente o móvel sairia da faixa de preço possível de ser paga pelo público-alvo visado. É o caso típico dos gabinetes de cozinha, cuja atividade desenvolvida somente é condizente com um revestimento do tipo de laminado plástico, principalmente nas superfícies horizontais. No entanto, para a grande maioria das cozinhas destinadas às classes C, D e E, seu acabamento é em pintura. Conforme resultados de testes de laboratório realizados e divulgados pelos fabricantes de painéis, a resistência ao atrito da pintura aplicada nestes móveis corresponde a menos da metade daquela verificada pelo produto revestido com laminado plástico de menor resistência disponível no mercado, determinando um ciclo de vida útil bem menor ao primeiro. Por outro lado, o custo de pintura também corresponde a aproximadamente metade do custo do laminado plástico, determinando assim as diferentes faixas de preço praticadas. Mas se levarmos em conta que um gabinete revestido com laminado plástico tem um ciclo de vida razoável ao redor dos 20 anos, ao passo que o gabinete pintado tem um ciclo de vida razoável menor que 10 anos, inferimos que a escolha do primeiro é favorável até em termos de preço final a ser pago (relação custo/benefício). É aqui que a falta de divulgação destes conhecimentos levam a escolhas por parte do usuário exclusivamente ditadas pelo preço relativo do produto, o que nem sempre lhe seria o mais conveniente. De qualquer forma, tem-se como ponto favorável à indústria na constante busca de melhoria do produto o retrospecto de que muitas daquelas que adotaram a estratégia de depauperar o móvel em busca de preços menores terem falido ou
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entrado em lenta decadência, e aquelas que, mesmo tendo começado a produzir móveis simples e de baixa qualidade, ao se empenharem na melhoria contínua de seus produtos, são hoje empresas de ponta em seus respectivos setores, desfrutando de um bom conceito no mercado. Neste sentido, no decorrer da década de 1990, um razoável número de indústrias inicia um processo de se desvencilhar do canal revendedor tradicional dos grandes magazines através da implantação de lojas próprias ou no esquema de franquias, estas em muito maior número. Tomando como modelo as tradicionais marcas de cozinhas destinadas às faixas mais altas da população – Kitchens, Formaplás, etc., estes fabricantes passaram a oferecer seus móveis acrescidos da prestação de serviço do projeto e da adequação do mobiliário às características individualizadas de cada cliente, atingindo porém uma faixa de público significativamente maior que as primeiras, graças a uma melhor adequação de preço. As pioneiras a adotarem este novo esquema foram a Florense e a Todeschini, do Rio Grande do Sul, seguindo sucessivamente a Dell’Anno, SCA, Bontempo, Criare (Carraro), Bentec, todas também gaúchas, além da Rudnick e Neumann de Santa Catarina e Marel do Paraná. Todas elas tiveram que modificar substancialmente as respectivas linhas de produtos, uma vez que, sendo quase todas elas fabricantes de móveis destinados a um só segmento – na maioria cozinhas, tiveram que passar a produzir toda sorte de móveis residenciais, uma vez que as lojas próprias ou franqueadas não teriam condições de sobrevivência oferecendo produtos destinados a um só ambiente.
Além disto, graças a uma atualização tecnológica e advento de novos materiais, revestimentos e acessórios que passou a se valorizar a partir da década de 1990 a prática do design como elemento fundamental no processo de desenvolvimento e melhoria funcional e estética dos produtos, com a consequente valorização profissional do designer, o qual se encontra, hoje, perfeitamente inserido neste segmento do mobiliário. Embora ainda tenhamos um longo caminho a percorrer para nos equipararmos aos centros mundiais mais desenvolvidos, principalmente em termos de fortalecimento social e econômico do mercado, um rápido vislumbre em diferentes datas nos últimos cinqüenta anos, comprova a significativa evolução que o móvel popular conquistou. - PESQUISA JUNTO AO USUÁRIO AMOSTRAGEM A pesquisa com usuários foi realizada na região metropolitana de São Paulo, assim como nas cidade de Sorocaba(SP), Londrina (PR) e Bandeirantes(PR). Deve-se inicialmente observar que a grande maioria dos usuários pesquisados tem residência muito próxima às respectivas lojas em que efetuaram suas compras, evidenciando assim a forte relação com a vizinhança nesse tipo de compra mesmo em se tratando de compras não esporádicas e nem de impulso. Isso certamente justifica o espraiamento quantitativo de pontos de venda dessas grandes redes nacionais, buscando alcançar a maior parcela de usuários possível, independentemente da região. Isto gera a concentração, em cada núcleo periférico, de verdadeiras galerias especializadas na venda de móveis, juntamente com os eletrodomésticos, invariavelmente
uma loja vizinha à outra, e encabeçadas pelas 3 maiores: Bahia, Ponto Frio e Magazine Luiza, captando os possíveis clientes pela força de atração de vizinhança. - PREÇO MÉDIO DAS COMPRAS Foi perguntado a cada entrevista o valor em Reais da compra efetuada, os quais foram coletados arredondando-se os números para fugir dos fatais “virgula noventa e nove”, pratica extremamente comum também nas transações dos móveis. Estes valores que estão agrupados no Anexo 1, demonstram que a quantia média na compra dos móveis nos magazines foi de R$1.320,00 (hum mil trezentos e vinte reais) ao passo que a quantia média na compra nas lojas de móveis planejados foi de R$ 16.410,00 (dezesseis mil quatrocentos e dez reais) valor este mais que 10 vezes superior àquele primeiro. Obviamente tratam-se de produtos bastante diferentes de difícil comparação, uma vez que tomandose, a título de exemplo, o valor do m2 frontal de uma cozinha compacta gira ao redor dos R$ 400,00 ao passo que o mesmo m2 frontal de uma cozinha planejada gira entre R$ 2.400,00 podendo chegar até R$ 4.000,00. Mesmo assim, pode-se inferir que a abrangência da compra está mais para a peça única ou a composição de poucas peças nas compras efetuadas nas lojas de móveis prontos, enquanto que nas lojas de móveis planejados esta abrangência estende-se, no mínimo, a um ambiente inteiro, alcançando muitas vezes o mobiliário de toda a residência. Esta diferença pode levar à dedução de que a compra nas lojas de móveis planejados ocorre de forma mais integrada e compacta com a mudança social e ou espacial que o grupo familiar está atravessando ao passo que a compra
nos magazines ocorre de forma mais dispersa e intermitente ao longo de um período de tempo mais estendido, menos preso aos momentos de mudança social ou espacial. Deve-se lembrar, no entanto, que contrariando esta dedução, está o fato de que muitas das compras em magazines atreladas a mudanças fundamentais como casamento ou nova moradia foram feitas de forma atomizada pelo simples motivo de buscar-se melhores preços, gerando, por exemplo, a compra da cozinha em um magazine, da sala em outro e do dormitório num terceiro. A noção de componibilidade Numa sintetização dos diversos pontos de vista demonstrados pelos entrevistados sobre o conceito de componibilidade, verificamos que 47 deles, ou seja, pouco mais da metade, manifestaram claramente o conceito da possibilidade de combinação múltipla entre peças de mobiliário projetadas como um sistema. É de se frisar que dentre uma parcela pequena dos entrevistados que declarou possuir moveis componíveis, todos apontaram como componíveis as suas cozinhas, o que reforça mais ainda que o conceito de componibilidade está profundamente relacionado aos móveis deste ambiente, graças ao seu uso e convívio já há longo tempo. Pode-se afirmar que os sistemas componíveis tem trazido soluções mais adequadas para as atividades de guarda das residências – como é a quase totalidade dos móveis de cozinha, boa parte dos móveis de dormitório e uma pequena parcela cada vez menor dos móveis de sala, ao passo que as atividades de contato usuário/móvel continuam solucionadas por móveis tradicionais, como é o caso típico do estar na sala através de sofás, poltronas e cadeiras, o de comer através de mesas e ca-
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deiras, e o descansar no dormitório através de camas. No sentido de buscar razões mais específicas para uma postura favorável ou não no tocante ao móvel componível observa-se que sob os mesmos e mais diversos aspectos de análise: funcionais, econômicos, usabilidade, etc., ocorrem pareceres tanto favoráveis quanto desfavoráveis para o móvel componível em relação ao móvel tradicional, dependendo, certamente, da circunstância de vivência de cada entrevistado com cada tipo de móvel. - DIMENSÕES DO MÓVEL E DO AMBIENTE -
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Uma das polêmicas que invariavelmente vem à tona quanto se coloca o aspecto dimensional do mobiliário seriado frente ao espaço disponível no ambiente que o recebe é a grande dissintonia entre ambos, uma vez que cada resultante parte de diferentes princípios e parâmetros. Na maioria das vezes a conclusão imediata é a de que o móvel não se adequa devidamente ao espaço que irá recebe-lo, cabendo-lhe, portanto, esta adaptação, quase sempre vista como um dimensionamento menor que as vigentes em função da contínua redução dimensional dos espaços das habitações. Por outro lado, o móvel também recebe iguais críticas no tocante ao seu desajuste dimensional visando um adequado desempenho ergonômico e funcional, resultando daí senão um paradoxo, pelo menos uma ambiguidade, pois resulta que, se por um parâmetro o móvel deve “diminuir”, por outro parâmetro ele deve “aumentar”. Neste sentido, procurou-se sentir, junto ao usuário, o grau de percepção da relação entre o espaço do ambiente e o dimensionamento do móvel.
Verifica-se que apenas 1/3 dos entrevistados não tiveram a preocupação de confrontar as medidas dos móveis com o ambiente disponível, sendo que efetivamente pouco mais da metade destes confiaram exclusivamente “no olho” (sic) para a compatibilização entre o conteúdo e o continente. Os demais alegaram tratar-se da compra de móvel pequeno, sem problemas de inserção no ambiente, ou de tratar-se de uma mera substituição de móvel velho por um novo onde a relação dimensional permanecia praticamente a mesma, já sabida e vivenciada. Por outro lado, o fato de 2/3 dos entrevistados terem antecipadamente se preocupado com o dimensionamento do móvel e do ambiente revela estar este parâmetro dentre as principais preocupações e referências na hora da escolha do móvel. Deve-se notar que, dentre as diversas nuances desta resposta, em 10 casos o resultado dimensional estará prejudicado, em iguais partes, ou para o móvel (funcionamento não totalmente adequado de portas, gavetas ou acessos), ou para o espaço (estreitamento de passagens ou corredores, portas não abrindo em seu arco de varredura total). Em 14 casos, os móveis foram escolhidos em conformidade com o espaço disponível, na maioria destes tratando-se de móveis componíveis onde a quantidade de peças foi determinada pela capacidade de inserção no ambiente. Na maioria destes casos o desejo do usuário era a de que gostaria de compor o conjunto com mais peças, caso lhe fosse possível. Por outro lado, em igual número de casos – 14, obteve-se a resposta de total compatibilidade entre ambiente e mobiliário, este na medida desejada pelo usuário. Para todos estes casos tratava-se de primeira compra de
móveis para um determinado ambiente. Por último, em 17 casos, ou seja, pouco mais de 20% de todo conjunto da pesquisa, os móveis estavam sendo adquiridos através de um projeto prévio, com a devida consideração dos aspectos dimensionais. É bem verdade que destes, 8 trataram-se de todas as compras em lojas de móveis planejados, cujo elemento de maior diferenciação reside justamente na elaboração prévia de um projeto. Mesmo assim, restaram 9 casos onde as compras foram feitas em lojas tradicionais nas quais contou-se com algum apoio neste quesito, o que comprova alguma mudança de postura na prestação de serviço por parte do comerciante. Estes casos todos registraramse em lojas de redes regionais ou locais, não ocorrendo, portanto, em nenhuma grande rede nacional.
o agente financeiro e não o regulamentador de projetos) a qual dimensiona a quantidade de móveis, com suas dimensões mínimas, em cada dependência do imóvel. Embora estas especificações sejam as responsáveis por manter uma condição mínima de habitabilidade, uma vez que são os balizadores finais de todo o dimensionamento da habitação, observa-se que seu desenvolvimento abrange apenas a visão em planta o que, em termos de mobiliário, pode dar margem a diversas interpretações, além de muitas peças de móveis não terem seu dimensionamento especificado, notadamente no ambiente de estar, o qual é o centro distribuidor da habitação.
COLOCAÇÕES PRELIMINARES - SOBRE O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA Por ter sua espinha dorsal baseada no eixo financeiro, com a participação da iniciativa privada na produção das unidades a qual espera um retorno financeiro pelo menos igual ao de atividades correlatas, fica claro que esta condicionante se sobreporá a todas as demais, principalmente àquelas referentes às dimensões das unidades, suas diversas alternativas de planta, assim como da implantação de bens comuns ao condomínio. Além da padronização dos projetos, não somente no que diz respeito à planta das unidades como também ao espaço condominial, verifica-se que um dos pouquíssimos elos que ligam o móvel com a residência neste programa, restringe-se a uma tabela emitida pela Caixa Economica Federal (portanto
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Antonio Franco é arquiteto no escritório Ribeiro Franco Arquitetos Associados e aluno no programa de pós-graduação da FAUUSP.
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CIDADE BRASILEIRA, HABITAÇÃO E ESPAÇOS LIVRES
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Silvio Soares Macedo Professor titular de paisagismo do departamento de projeto da FAUUSP
Falar de habitação é falar de grande parte da cidade brasileira e, portanto de seus espaços livres. Nós arquitetos temos ideais sobre uma cidade desejável para todos, na qual as pessoas andariam em ruas verdejantes, com casas imersas em jardins, sem muros, guaritas e cercas, vizinhas a parques e praças e junto a rios de águas limpas onde se poderia nadar, pescar e remar, com quadras ocupadas ou por prédios geminados como em Barcelona, Paris ou Berlim, ou repletas de prédios sobre pilotis, em meio à arborização densa, todos desenhados por ícones da arquitetura ou por nós mesmos. Estes sonhos e ideais estão bem longe de serem alcançados e os motivos são diversos, que passam por fatores culturais da população - que tem o hábito atávico de jogar toda a sorte de tranqueiras nas águas de rios e córregos -; pela absoluta incapacidade e indigência da maior parte dos gestores urbanos, isto é, do Poder Público, de produzir e gerir cidades saudáveis, belas e
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totalmente adequadas ao cotidiano do todo da população; pela ação muitas vezes irresponsável e conivente (e dá para não ser?) de políticos, empresários, de segmentos mais diversos da população, de arquitetos, urbanistas e paisagistas a todo tipo de ação inadequada para cidade; pelo atraso crônico dos investimentos em transporte e circulação de veículos nas grandes cidades e portanto com um crescente processo de congestionamento; pelas calçadas estreitas onde mal cabe e consegue andar um pedestre; e pela constante privatização de espaço público por todo o tipo de atores sociais. A crítica à habitabilidade da cidade, quando é feita - se é feita - é mal formulada, parcial e muitas vezes ingênua, quase de um teor jornalístico superficial, que aponta o caos urbano como se este não fosse o produto de processos de ação e comportamento lógicos e normais do nosso tipo de sociedade. A segunda década do século XX foi um tempo de crescimento urbano significativo, de mudanças radicais nas posturas urbano–paisagísticas; de modernização da cidade brasileira de modo a atender as novas demandas sociais; da introdução do viés ecológico tanto na política como na legislação e inclusive em projetos urbanos (com a criação da lei de APPs Urbanas, que pretende, e dá condições mínimas de se fazer); da aplicação na cidade de uma legislação para proteger a vegetação nativa em áreas rurais; da consolidação do veículo automotor como principal meio de locomoção e de transporte de carga, com todas as vantagens e desvantagens inerentes ao fato; do crescimento da população urbana; da popularização de loteamentos e condomínios fechados e do amuralhamento do
lote urban; da criação de redes de parques urbanos; e do espraiamento, da fragmentação e da dispersão da mancha urbana nas mais diferentes partes do país. O início do século XXI mostra uma consolidação de todos estes processos e o surgimento de uma cidade muito diferente daquela que se tinha nos anos 1950 e 1960. A cidade contemporânea é muito construída, muito mais do que se pensa. As construções horizontais: casas, lojas e pequenos prédios ocupam quase a totalidade das suas quadras; parte das praças ou não está instalada ou é mal mantida, muitas estão ocupadas por escolas, creches, centros de saúde, favelas, etc. As ruas asfaltadas e com calçadas ora estreitas, ora mal mantidas, ora arborizadas, ora inexistentes, não são de fato confortáveis para o cidadão e ainda são mal iluminadas. Por outro lado, a legislação urbanística tem conseguido “bons” resultados de acordo com suas prescrições em extensas áreas urbanas, sendo controlada a verticalização, com bons resultados para o surgimento de espaços livres intra-quadra; com a delimitação de áreas para a criação de habitação de interesse social; com um olhar aguçado para as condições de mobilidade da população com limitações físicas; com a destinação de áreas de estoque em processos de loteamento; e com a adoção ainda que tímida e mal feita de índices de permeabilidade urbana. A cidade em 2014 é diferente da cidade dos anos dourados, com outros problemas e qualidades. Esta realidade ainda está longe do desejável dentro dos nossos padrões de arquitetos, que agem, pensam e “projetam” – quando dá – esta cidade ou suas partes.
Características gerais A cidade brasileira contemporânea é predominantemente horizontal, densamente construída com um casario contínuo e compacto (até mesmo em bairros de elite), que ocupa quase todo o espaço dos lotes e das quadras, com quintais e jardins bastante exíguos, quando existem. Nas áreas verticalizadas, na maioria dos casos, os espaços livres são mais comuns em função das normas urbanísticas que exigem recuos e possibilitam o surgimento de áreas ajardinadas e esportivas. A verticalização se dá de diferentes formas, dependendo da cidade, podendo ser muito compacta - como em Copacabana, no centro do Rio de Janeiro, Florianópolis e Porto Alegre -, espraiada, rarefeita ou pontual. Na maioria das cidades do país a torre isolada não é uma re-
alidade, o lote sendo comumente ocupado por uma ou no máximo três unidades. A partir do final do século XX se torna comum em algumas cidades, a quadra verticalizada, murada, contendo alguns poucos edifícios de apartamentos, isolados entre si, cercados de jardins, piscinas e equipamentos esportivos. Estas estruturas já se delineiam no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca e em alguns pontos esparsos de São Paulo nos anos 1980. Na segunda década deste século são comuns em muitas cidades, especialmente na região da Grande São Paulo. A cidades, ao contrário do que muitos pensam ao ver a sua grande massa edificada não são muito densas em termos de população, com densidades médias baixas que não ultrapassam os 200 habitantes por hectare.
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Espaços livres
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O principal espaço livre de qualquer cidade é a rua, pois por ela é que ocorre grande parte da vida cotidiana da população, abrigando inúmeras atividades, que compreendem desde o mero circular até as mais diversas possibilidades de encontro e recreação, do bate-bola até jogar conversa fora em um bar, tomando cerveja. Além disso é o espaço de atividades formais como as dos carteiros, entregadores, distribuidores de jornais, de gás, técnicos e medidores de companhias de serviços públicos, assim como de outras tantas informais, mas toleradas e aceitas desde que a cidade á cidade, como as dos vendedores ambulantes, mendigos e prostitutas. A rua, entretanto, tem uma função primordial: a circulação de veículos e pedestres, função básica desde que surge o primeiro aglomerado urbano o qual podemos chamar de cidade. A rua da cidade brasileira caracteriza-se como um espaço de acordos e conflitos, de disputas e lazer, mas que, como no passado, continua tendo a circulação como atividade básica. A circulação de pedestres é com certeza o ponto mais prejudicado, tanto pela dimensão exígua - em boa parte das cidades, sua largura não passa de um ou um metro e meio, não permitindo a passagem de mais de um pedestre - quanto pela má conservação, que impõe a convivência do pedestre com com pisos quebrados, rachados, inclinados, postes, árvores, mobiliário urbano, sacos de lixo, rampas e degraus mal feitos, etc. Andar por boa parte das calçadas brasileiras é uma aventura, e muitos já preferem andar pelo leito carroçável,
disputando o espaço com os mais diversos tipos de veículos, espaço para o qual é voltada a iluminação pública, que tradicionalmente está dirigida para o meio do leito carroçável. Naturalmente este estado de crise contínua não se aplica a todas as vias, muitas têm boas calçadas confortáveis para o andar do pedestre como as calçadas de Santos, na sua parte plana, de grande parte da zona sul carioca, da área central de São Paulo, das cidades planejadas do norte do Paraná, etc. Os demais espaços livres, especialmente aqueles destinados a recreação, só muito tardiamente, dentro do processo de urbanização brasileira, passaram a ser implantados, a princípio junto às áreas mais ricas e a partir da segunda metade do século passado por todo o território urbano, ainda que de modo rarefeito ou embrionário, na maioria dos casos. Parques e praças não são ainda figura comum na totalidade das áreas urbanas brasileiras e quando existem nem sempre são em número e tamanho suficientes para atender às demandas crescentes. Este tipo de espaço somente por períodos curtos de tempo foram objeto de políticas públicas que visassem sua implantação e gestão, sendo os casos de Curitiba, Porto Alegre, Campo Grande, Boa Vista e da zona sul do Rio de Janeiro exceções, em um universo de descaso e de falta de ações públicas de implementação e gestão continuadas. Programas especiais de criação de parques foram feitos em São Paulo apenas por duas vezes nos últimos quarenta anos, a primeira por volta dos anos 1970, oportunidade na qual foram criados mais de dez
novos parques e muitos calçadões na área central, além do programa 100 parques das duas últimas duas gestões. Estes de fato criaram mais de 60 áreas ditas como parques, muitos na realidade pequenos jardins e praças cercados, ou ainda passeios à beira de córregos, os denominados “parques lineares”, mas que de fato se preocuparam em fazer algum investimento no espaço público local, com uma melhoria, ainda que restrita e pontual. Uma análise conjunta da situação paulistana mostra que grande parte dos parques de porte em funcionamento da cidade foram criados ao longo dos últimos cem anos pelo governo de Estado, nas mais diferentes partes da cidade, como o parque Villa Lobos e o parque da Juventude. Podemos afirmar que a solução para o atendimento das demandas urbanas da cidade e da metrópole paulista ainda estão muito longe de ocorrer, assim como na maioria das cidades brasileiras. As exceções naturalmente existem e são inúmeras como em Campo Grande e Rio Branco, cidades nas quais políticas e agendas continuadas permitiram um aumento na qualidade e quantidade deste tipo de logradouros. Os únicos espaços livres em que de fato se investe maciçamente, em qualquer cidade nos últimos anos, têm sido os espaços junto às orlas, especialmente as marítimas, ao longo da qual foram, nos últimos cinquenta anos, e continuam sendo construídos, quilômetros de calçadões, verdadeiros parques urbanos, que de um modo bastante democrático, possibilitam grande parte da população local a se recrear junto ao mar.
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Habitação ou cidade habitável Falar de habitação significa falar de cidade, de bairros dos mais diversos por onde ocorre grande parte da vida urbana. Habitar significa muito mais que ter uma moradia em uma casa ou prédio de apartamentos, mas sim desfrutar de uma vizinhança, de um bairro com toda infraestrutura necessária para o cotidiano, e nela se incluem os espaços livres, como praças, passeios, parques, praias e campos de várzea. Quando falamos de habitação lembramos comumente de habitação popular. Imensos conjuntos de casinhas e edifícios de
quatro andares, de arquitetura padrão, ou ainda de condomínios fechados/loteamentos fechados, que são culpados, por muitos, pela segregação urbana. A segregação está de fato na distribuição desigual de renda no país, que de fato impede que a grande maioria da população tenha acesso a lugares adequados a moradia, a bairros que contenham todos os quesitos de qualidade para um bom desempenho das atividades do cotidiano, pelo alto custo da terra urbana nas grandes cidades e pela
Foto: Acervo QUAPA
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incompetência do Poder Público, para de fato, garantir a segurança pública. A análise de qualquer bairro brasileiro, destinado a moradia de qualquer segmento social nos mostra locais cujas ruas estão praticamente amuralhadas e gradeadas, que os recuos frontais foram ocupados por puxadinhos de todos os estilos e padrões arquitetônicos, fato este baseado em duas lógicas: - Pelo alto custo do solo urbano, e pelo limitado acesso de grande parte da população a financiamentos que lhe permitam adquirir um
lote ou comprar uma moradia, associado à dificuldade de mudança de domicílio, que leva as famílias a se fixarem em uma casa por décadas ou gerações e nelas investirem seus recursos afim de melhorá-las, por meio de todo o tipo de ampliações: os conhecidos puxadinhos. Este é um fato comum tanto em áreas ocupadas pelas camadas mais pobres, como nas áreas de classe média e mesmo nos bairros de elite. Naturalmente para os mais ricos o fazer puxadinhos, mesmo que desenhados por arquitetos, não está ligado à falta de
Foto: Acervo QUAPA
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recursos, mas sim a uma tradição da sociedade de aceitar com facilidade este tipo de adaptação do edifício, tradição já comum no século XIX. - Pela crônica falta de condições/interesse do Poder Público de gerir a segurança pública na cidade, fato este que nos últimos cinquenta anos, com o aumento e a organi-
zação/ “profissionalização” da criminalidade nos grandes centros urbanos, faz surgir uma cultura e uma indústria de segurança. Esta indica que para se estar seguro a melhor solução para tais malefícios são as câmeras de segurança, as milícias privadas, os gradis, as guaritas, os muros e o fechamento de trechos da cidade pelos seus mo-
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radores, que serão entretanto responsáveis pela manutenção da paz naquele segmento urbano com a “ajuda” das companhias e aparelhagens de segurança. Este é um fato que se inicia nos anos 1960 e 1970 nas áreas de chácaras e de segunda residência em volta das cidades - constantemente saqueadas, quando seus donos lá não se achavam - e se
espalha para dentro das cidade nas últimas duas décadas do século XX. A solução está muito aquém da apregoada derrubada dos muros pregada por muitos, arquitetos e estudiosos em geral, devendo estar focada no aumento e melhoria da renda de amplos segmentos da população, na eliminação do controle de amplas
áreas das cidades, as mais pobres em geral, por gangues onde o poder constituído não se atreve a entrar, com a decorrente eliminação dos cartéis que as dirigem e enfim, no controle social do uso do espaço tanto pela população como pelo Estado, fato este muito longe de acontecer... Enquanto se aguarda, ou não se aguarda tal fato acontecer, os muros mesmo que de vidro, continuam sendo erguidos por todo o país. Paradoxalmente muitos dos portões não se fecham em parte do dia tanto em áreas pobres ou ricas. A maioria das pessoas sai a noite para passear com cachorros, muito jogam, brincam e comem nas ruas, enfim o espaço público não morreu em grande parte das cidades. Mais paradoxal ainda são as exigências de órgãos de financiamento, que dentro de programas estatais de moradias populares exigem dos construtores a
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criação “a priori” de condomínios fechados, verdadeiros guetos em áreas rurais ou suburbanas em uma clara ignorância do que é construir cidades e bairros. Por outro lado, para as camadas de renda mais alta, classes médias e muito ricas, os condomínios de casas e apartamentos e os loteamentos fechados são produtos altamente populares e vendidos rapidamente por todo o país, criando, para todos, modelos de comportamento e de urbanização. Morar em um condomínio fechado de casas e apartamentos significa poder deixar crianças brincarem tranquilas junto à moradia, soltas, mesmo que em um espaço reservado ao sol, poder deixar o carro aberto parado em frente a casa, poder andar pelos espaços coletivos calmamente, ter ruas tranquilas, jardins, arborização, às vezes até lagos e o contato com animais silvestres, sempre em segurança, mesmo que relativa.
Refletindo: Sonhamos com a cidade planejada e este é um ideal a ser alcançado, uma cidade melhor, mais justa para todos, dentro de uma sociedade com menos desníveis econômicos e com diversidade cultural e étnica. Naturalmente que isto é um estado de coisas que deve estar na mira de todos nós e que somente uma distribuição mais justa da renda - que até melhorou bem nos últimos anos - e um acesso pleno e qualitativo à educação básica e fundamental pode ajudar a garantir. As décadas de 1990 e 2000 foram quase perdidas e muitos dos avanços urbanísticos conseguidos nos passados próximos e distantes foram interrompidos, esquecidos e perdidos. A disputa entre políticos e técnicos, população e Estado é e sempre será um fato - inclusive entre suas diversas categorias -, mas com certeza muito já foi feito e pode ser feito apesar das dificuldades cotidianas no sentido da melhoria e mudança de um “status quo” não desejado.
A cada revisão de plano diretor, a participação é necessária, como é fundamental a crítica continuada, tanto aquela delatora de irregularidades e incongruências, como aquela positiva, que elogie qualquer situação que consideremos adequada e que não seja feita somente por amigos ou partidos dos quais somos simpatizantes. A crítica em urbanismo e paisagismo no país poucas vezes sai da academia e de fato se ali permanecer não trará melhorias ou levantará questões no momento certo para quem interessa, a sociedade. Planos diretores são cartas de referência, que serão seguidos sempre de um modo parcial, mas que servem para dirigir ações públicas, pois foi, por exemplo, por meio de planos e de políticas continuadas baseadas em tais planos, que foram feitos os sistemas de parques lineares e avenidas de Campo Grande e Rio Branco; que as normas de zo-
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neamento foram criadas, melhorando as condições de recuos intra-lotes e a qualidade/conforto das habitações em prédios de apartamentos; assim como foram limitados os gabaritos e taxas de ocupação nas grandes cidades; que foram introduzidos e implementados os conceitos de APPs urbanas de áreas de interesse social. O pensamento em conjunto na construção de uma cidade, de um bairro, de uma quadra, de um edifício em um lote, que considere a relação do espaço fechado - o interior do prédio - com o espaço livre, público ou privado, é uma premissa que deveria ser necessariamente seguida de modo a se conseguir um espaço urbano melhor. Esta é seguida de maneira limitada e em apenas algumas instâncias: no projeto de condomínios verticais e grandes complexos corporativos pelo mercado imobiliário, portanto para os mais ricos; em algumas ações do Poder público e de particulares; na concepção de alguns tipos de loteamentos; na formatação de sistemas de parques lineares em algumas cidades; na concepção de algumas formas de arquitetura, etc. mas ainda de uma forma limitada e restrita. Isto tudo foram avanços, e muitos conseguidos nos últimos cinquenta anos, a partir de bases criadas nos meios técnicos e acadêmicos, que afinal só tem sentido se servirem para ajudar a sociedade e colaborarem na construção da cidade futura, sendo este o sentido que faz com que existam arquitetos/ urbanistas/paisagistas no país.
Ilustrações: Silvio Macedo
Referências bibliográficas: MACEDO, Silvio Soares. Paisagismo brasileiro na Virada do Século - 1990-2010. São Paulo, Edusp, 2012. MACEDO, Silvio Soares, Queiroga, Eugenio Fernandes, et alli (org.). Sistemas de espaços livres e a constituição da esfera pública contemporânea brasileira. São Paulo, Edusp,2013 (no prelo).
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LIÇÕES DE URBANISMO DE LEÓN KRIER Desenhos do urbanista León Krier retirados do livro Drawing for architecture.
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O ESQUEMA
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Este breve apontamento é um resumo da transcrição de uma apresentação realizada em maio de 2013, durante o "I Seminário Internacional Habitação e Cidade Contemporânea São Paulo e Madri”.1 Seu formato procura fixar os desdobramentos recentes da perspectiva crítica que venho adotando já há alguns anos. Iniciada com a análise da obra de Oscar Niemeyer, dentro do ambiente de formação da arquitetura moderna brasileira, encaminhou-se, para a análise da produção paulista a partir dos anos 1950. Sua questão fundamental é a compreensão da relação entre a arquitetura, como obra e disciplina, e a realidade urbana e social decorrentes da modernização brasileira durante o século XX. Esta apresentação procurou discutir os fundamentos disciplinares da relação entre arquitetura e cidade em São Paulo, por meio da análise de algumas residências projetadas pelo arquiteto Vilanova Artigas. A proposta da pesquisa é a de discutir, dentro do “sistema arquitetônico” brasileiro, os limites históricos de suas estratégias de projeto para a compreensão e transformação do meio urbano no país. Se as pesquisas e resultados da crítica relativas à habitação social e ao urbanismo brasileiros tem importante avanço e impacto nas políticas públicas e na compreensão dos fenômenos urbanos, o mesmo não se pode dizer em relação à arquitetura. Esta abandonou, por razões históricas detectáveis, seu importante papel na construção do território urbano no país. Compreender seus motivos é o primeiro caminho para tentar ultrapassar as dificuldades do presente.
DA A Q I R U
BANO
Luiz Recamán Arquiteto, Professor Dr. da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
A formação da arquitetura moderna brasileira, no período que vai de 1936 a 1942, pode ter sido o elemento chave dos investimentos supraestruturais realizados, e de fôlego análogo aos infraestruturais, no ambiente da Revolução de 1930, especialmente durante a ditadura do Estado-Novo. Sua função primordial foi a criação de uma identidade nacional unificada, com seus emblemas de nacionalidade e modernização. Etapa fundamental, que criou a ideia da Nação (unificando um passado idealizado e um futuro a construir), base para o grande desenvolvimento industrial protagonizado pelo Estado centralizador. Esse forte estímulo estatal à recém criada arquitetura moderna no Brasil – en-
cetado no projeto e construção do Ministério da Educação e Saúde (1936-1942) – permitiu com rapidez invulgar a criação de um “sistema arquitetônico”, estruturado a partir dessa agenda modernizadora e centralizadora, que passou a funcionar enquanto tal vínculo ideológico permitisse. Seus prodígios arquitetônicos conhecemos bem. Trata-se agora de pensar sobre aquilo que foi reprimido em tal esplêndida fulguração áulica: a dimensão urbana. Quer seja em sua relação com a cidade existente, pela ausência de conexões entre a nova arquitetura e a cidade, quer seja em relação ao Plano e as utopias da forma nele configuradas. Isso deve ser entendido sob a luz da relação direta entre o momento autoritário,
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em especial o período que vai de 1939 a 1942, e suas demandas de representação arquitetônica de forte caráter de exposição. Nesse período é “formada” a arquitetura moderna brasileira, com os projetos para o Pavilhão de Nova Iorque (1939) e a Pampulha (1942). Não se trata, simplesmente, da relação entre essa arquitetura e a construção identitária da Nação, mas da via ultraconservadora do Estado Novo como ambiente do equacionamento da linguagem moderna local, que ultrapassa a relação de mecenato, sendo mesmo a certeira tradução do “espírito do tempo”. Suas principais características são: 1) inexistência programática de qualquer vínculo com a realidade urbana nacional, principalmente com as cidades reformadas da República Velha; 2) deslocamento da ênfase em habitação social original da arquitetura moderna europeia para a questão do edifício, mantendo a alusão a suas formas puras; 3) desvinculação desse vocabulário construtivo – que procurava mimetizar a racionalidade maquinista, transformada pelo fordismo e taylorismo, e ao mesmo tempo impulsioná-la para o todo da vida – da realidade produtiva
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local e das possibilidades de seu desenvolvimento (do grid à curva “livre”, um deslocamento ideológico importante). A aceleração industrial dos anos 1950 teve como epicentro a metrópole paulistana, que passa por um processo de crescimento populacional e urbano que pode ser entendido como “explosão”. Em tal ambiente era de se esperar que o “sistema arquitetônico” passasse a enfrentar as questões urbanas tornadas prioritárias e urgentes, ainda que tivesse sido formulado em um quadro urbano restrito em meio a um profuso universo rural. O Rio de Janeiro e a idealizada paisagem natural, fundantes do esquema “palácio tropical”, não forneceram instrumentos disciplinares para a nova realidade metropolitana de São Paulo. A forte rejeição de Niemeyer ao projeto para o edifício COPAN, de 1954, e suas razões, podem exemplificar esse fenômeno de inadequação. Capital privado, industrialização, classe trabalhadora, expansão viária e alastramento dos loteamentos periféricos são novos elementos da realidade social e urbana que vão impactar as ideias arquitetônicas brasileiras, e seu recalcitrante irrealismo.
CAPITAL PRIVADO, INDUSTRIALIZAÇÃO, CLASSE TRABALHADORA, EXPANSÃO VIÁRIA E ALASTRAMENTO DOS LOTEAMENTOS PERIFÉRICOS SÃO NOVOS ELEMENTOS DA REALIDADE SOCIAL E URBANA QUE VÃO IMPACTAR AS IDEIAS ARQUITETÔNICAS BRASILEIRAS, E SEU RECALCITRANTE IRREALISMO.
O GRANDE ENIGMA É POR QUE A MAIS RUDIMENTAR PARTIÇÃO PATRIMONIAL DO SOLO URBANO PASSOU A SER HORIZONTE DESSA NOVA IMAGINAÇÃO ARQUITETÔNICA. É nesse fecundo momento da arquitetura nacional que se destaca o arquiteto João Batista Vilanova Artigas, considerado um dos principais expoentes da arquitetura paulista, não apenas pela qualidade de sua obra, mas pela forte influencia na formação de uma nova geração de arquitetos. Artigas liderou a renovação arquitetônica em São Paulo, em crescente protagonismo no panorama nacional. O que inclui a sua participação ativa na fundação da FAU USP e do MAM SP, em 1948, e a militância profissional no IAB-SP. O arquiteto Vilanova Artigas teve sua trajetória inicialmente vinculada ao arquiteto Frank Lloyd Wright: temas como casas, continuidade espacial, os telhados e a horizontalidade surgiam em seus projetos refletindo a busca da especificidade espacial continental. Em um segundo momento, Artigas se vinculou à chamada Escola Carioca de Niemayer e Lúcio Costa – a Europa passa a ser a referência – e aos temas que envolviam a arquitetura como objeto e a sua relação com a paisagem; exemplos importantes dessa fase são o Edifício Louveira (1946), em
São Paulo, e a Rodoviária de Londrina (1949). A redemocratização do país com o fim do Estado Novo em 1945, alterava os termos da relação entre arte e sociedade, impondo uma agenda política à qual a arquitetura brasileira não estava acostumada. Em São Paulo, no campo da arquitetura essa mudança foi liderada por Vilanova Artigas. Ele tornou-se um ativista político e, no início da década de 1950, traduziu esse novo momento em sua arquitetura, que indicava que o modelo anterior, das grandes perspectivas e seus palácios, não possuíam mais validade para a nova fase de desenvolvimento nacional. Não se tratou de ruptura com o esquema prévio, mas de sua atualização parcial em conjuntura ideológica alterada. O cenário dessa mudança é aquele típico da cidade formal: seus loteamentos regulares da expansão sudoeste. O grande enigma é por que a mais rudimentar partição patrimonial do solo urbano passou a ser horizonte dessa nova imaginação arquitetônica. Em busca de abrangência social, esse momento ideológico elege a casa como tema e horizonte de transformação política geral. Percebe-se
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nesse momento uma reação à oficialidade palaciana anterior, buscando uma dimensão negativa da sociabilidade da casa e do Brasil tradicional: uma “democracia doméstica” latente, com potencial político, que poderia ser acionada para a modernização social exigida. Perspectiva desdobrada da dialética de nossa colonização, tema dos pensadores da “formação”, confrontada nos anos 1950 com uma nova face do desenvolvimentismo. À formulação original do edifício “belo” em meio a paisagem sublime, duramente criticada nos anos 1950, seguiu-se um caminho inusitado, diferente daquele que se poderia esperar (uma resposta à urbanização acelerada). A via “doméstica” idealizada, em seus sentidos ético, estético e social, irrompe como crítica ao processo desordenado de ocupação, mas também como objeção abrangente ao modelo subdesenvolvido de exploração do trabalho. Via inversa à imaginação urbana metropolitana, de cepa moderna, e à “Gesellschaft” que exige trabalho formal e relações contratuais racionalizadas. Se é compreensível essa crítica ao fracasso da modernização capitalista depois da Segunda Guerra, menos o é o afastamento da realidade e do território (cidade e natureza), respostas da reação europeia ao estilo internacional e ao CIAM. Pois a “casa” idealizada nessa conjuntura de industrialização configurou-se em radical abstração do morar e das formas e vivências tradicionais. Vê-se claramente a contradição do nacional-desenvolvimentismo brasileiro em sua base estética avançada. Atente-se ao fato de esta análise tratar das obras realizadas, não dos programas políticos defendidos e da militância pessoal. A casa e seu lote define a utopia local: vivência comunal conformada pela geometria da propriedade. Seu modelo urbano deduzível pode ser
A CASA E SEU LOTE DEFINE A UTOPIA LOCAL: VIVÊNCIA COMUNAL CONFORMADA PELA GEOMETRIA DA PROPRIEDADE.
averiguado no plano de Artigas para Brasília (1957), uma das grandes incógnitas da história da arquitetura recente no Brasil. Esse modelo centrado nas formas e relações sociais no âmbito da “casa”, mesmo quando estendido a programas públicos mais abrangentes, passa a ser o eixo da arquitetura paulista em seu período mais influente. E nunca deixou de repercutir, sem a crítica subjacente, até os dias de hoje, como comprovam as exibições, as premiações e as publicações. Essa centralidade passa pelos programas, pelo vocabulário, mas, essencialmente - e este é a base do argumento – pela problemática relação entre a arquitetura e a cidade, que define o leitmotiv da disciplina arquitetônica no Brasil.
303 1 Mais precisamente, trata-se da introdução às análises de algumas casas de Vilanova Artigas, apresentadas no Seminário. Essas análises são a base do livro “Vilanova Artigas: arquitetura e cidade na modernização brasileira”, a ser lançado brevemente pela Editora da Unicamp, em coautoria com o prof. Leandro Medrano.
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LIÇÕES DA ARQUITETURA DE ALTA RENDA MODERNISTA: OS PROCESSOS E ATORES DA TRANSFORMAÇÃO DE HIGIENÓPOLIS ORESTE BORTOLLI JR.*
Invocando as aspirações de um determinado grupo social, o folheto promocional para as vendas das unidades do Edifico Diana, de 1960 e autoria do arquiteto polonês Victor Reif, evidencia um momento fecundo na arquitetura moderna paulistana, que perdura até a década de 1970, em que surgem na cidade edifícios inovadores resultantes de uma demanda por habitação coletiva no Bairro de Higienópolis. Tal fenômeno alterou a dinâmica do bairro e arredores - Santa Cecília e Vila Buarque – transformando a paisagem urbana desse território, de casarões, palacetes e chalés, para um quadro construído majoritariamente vertical. Higienópolis, assim titulada por se constituir em cidade ou lugar de higiene (HOMEM,1980) fora até a década de 1930 endereço de empresários do café, comerciantes estrangeiros e dos primeiros nomes da indústria brasileira. Nasceu, segundo Maria Cecília Naclério Homem sob o signo de um período qualificado como a Belle Époque paulistana em que prevalecia o refinamento dos hábitos na vida privada em sociedade. O luxuoso conjunto de palacetes ecléticos formava um quadro edilício sem precedentes na cidade. O processo de metropolização da cidade foi decisivo para desmantelar os traços originais do bairro. Até mesmo a 2ª Grande Guerra Mundial e a Revolução de 1932 não impediram o crescimento da cidade, a qual continuava a ser a metrópole do café. Na medida em que a industrialização se intensificava, sucedeu consequente expansão populacional (HOMEM, 1980), avolumando ofertas de emprego e atraindo a migração advinda do campo. As décadas de 1930 e 1940 trouxeram a São Paulo a consolidação e o aprofundamento do processo de industrialização, tornando-a principal polo econômico do país. Ocorre, assim, uma aceleração no processo de urbanização, uma vez que a população atingiu 890 mil habitantes em 1930 e em 1933 já ultrapassava 1 milhão de pessoas (SILVA, 2004). A partir do segundo pós-guerra decorre intensiva industrialização acarretando mudanças na configuração espacial da cidade, de 1940 a 1960 (FELDMAN, 2004).
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Foi, portanto, no bojo desse cenário econômico que se desencadeia a descaracterização do bairro de Higienópolis, transformando sua morfologia, que se consolida verticalizada. Paulatinamente, a baixa densidade consequente das tipologias dos casarões,chalés e palacetes era substituída por edifícios de moradia coletiva. Se por um lado se deu a perda da hegemonia da existência dos casarões, por outro, tal mudança tornou-se campo fértil para que os projetos de arquitetos brasileiros e estrangeiros aqui radicados os substituíssem por um quadro edilício de valor arquitetônico inestimável, contribuindo para a consolidação do movimento moderno em São Paulo. Esta nova configuração espacial assinalada por Feldman transformou a divisão fundiária, a qual resultou diversificada e irregular, fato este que provavelmente induziu os arquitetos a desenvolver implantações decorrentes do parcelamento do solo. Desta forma surgiram basicamente três tipos de abordagens. A primeira, em terrenos com testadas maiores e mais profundos, é caracterizada pela presença de pátios internos. A segunda, por lâminas alongadas únicas, duplas ou mesmo em curva. A terceira, mais recorrente, por lâminas compactas, majoritariamente retangulares. No que se refere à implantação dos edifícios com pátio são citados o Prudência, o São Vicente de Paula e o Itamarati. Representando o tipo de lâminas alongadas, inclusive em curva, destacam-se o Parque Higienópolis, o Baia-Mar e o Paquita. Aqueles em lâmina dupla são aqui elucidados pelos edifícios Louveira e o conjunto Lugano e Locarno. Há também os tipos que podem ser considerados na configuração em lâmina compacta, isolados ou conjugados. Representando as lâminas isoladas, são evidenciados o Diana, o Abaeté e o Albina. Como exemplo de volumes conjugados, destaca-se o Lausanne. Segundo Edison Hiroyama, no ideário moderno havia uma busca de socialização dos térreos dos edifícios, tornando-os áreas públicas, de uso semiprivado destinadas aos condôminos, visando uma continuidade com a rua. Com o surgimento de novos programas arquite-
primeira párgina Térreo do Edifício Louveira esquerda Térreo do Edifício São Vicente de Paula direita Folheto promocional do Edifício Diana c. 1960
tônicos e a evolução do conceito de moradia vertical, o térreo passa por uma revisão, ou seja, sua demanda básica é receber o fluxo de moradores e servir como espaço de transição para as prumadas de circulação vertical (HIROYAMA, 2010). A adoção do pé-direito duplo ao nível do térreo faz com que o primeiro pavimento tenha uma melhor visual e se resguarde do ruído urbano. Os pilotis ao nível do térreo, as rampas, marquises e volumes soltos, bem como obras de arte impressas nos planos de parede e fachadas se tornam recorrentes na busca de integração ao espaço urbano. Em consonância com a evolução da tecnologia do concreto armado são possíveis os aumentos entre os intercolúnios, bem como o uso das vigas de transição e a estrutura independente das vedações, possibilitando organizações funcionais que permitem múltiplos arranjos e flexibilização das plantas, tendo como exemplos irrefutáveis o Prudência de Rino Levi, o Diana de Victor Reif. Acrescente-se ainda, a organização dos fluxos das unidades e o posicionamento das portas que promovem recintos livres de fluxos cruzados, permitindo salas e quartos em remanso e também melhor organização do mobiliário. Outro aspecto que passa a ser parte do processo de produção é a concentração das prumadas hidráulicas, notadamente separadas do setor de salas e quartos. Coexistindo com a linguagem dos prismas puros, os planos de fachada revestidos com pastilhas cerâmicas eram largamente adotados, uma vez que estes elementos podem conferir melhor acabamento, durabilidade e conservação. As condições climáticas levaram os arquitetos a se valer dos elementos compositivos de proteção solar, como o uso da janela Ideal, de planos de venezianas deslizantes e de brise-soleils. O desenho industrial, por sua vez, foi uma das premissas para o projeto. Neste sentido, sua aplicação ao método de projetar consistiu na introdução de componentes padronizados sobre estruturas moldadas in loco, otimizando a montagem destes (IMBRONITO, 2003).
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1. PRUDÊNCIA
3. ITAMARATI
5. PARQUE HIGIENÓPOLIS
Av. Higienópolis, 245 e 265
Av. Higienópolis, 147
Av. Higienópolis, 148
2. SÃO VICENTE DE PAULA
4. BAIAMAR
6. PAQUITA
Rua São Vicente de Paulo, 501
Rua Maranhão, 703
Rua Alagoas, 475
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7. LOUVEIRA
9. DIANA
11. ALBINA
Rua Piauí, 1081
Rua Maranhão, 270
Rua Conselheiro Brotero, 801
8. LUGANO E LOCARNO
10. ABAETÉ
12. LAUSANNE
Av. Higienópolis, 318 e 360
Rua Para, 222
Av. Higienópolis, 101
PRUDÊNCIA AV. HIGIENÓPOLIS, 245 E 265 ARQUITETURA RINO LEVI E ROBERTO CERQUEIRA CÉSAR DATA 1944 - 1948 PAISAGISMO ROBERTO BURLE MARX OBRA DE ARTE ROBERTO BURLE MARX
Protegido pelos órgão de patrimônio histórico, tanto em nível municipal, quanto no estadual, este edifício preconiza a moradia coletiva de luxo na cidade de São Paulo. Foi o primeiro a adotar o sistema de ar-condicionado central e os elevadores de serviços dimensionados para móveis grandes. Ao nível dos pilotis, onde se percebe uma ampla área de transição entre o público e o privado, destacam-se os volumes curvilíneos, parte em vidro e parte em paredes revestidas por azulejos de Roberto Burle Marx, os quais envolvem e definem o percurso até as prumadas de circulação vertical. Tendo quatro apartamentos por andar, com acessos individualizados, a estrutura permite os mais diversos arranjos para a organização funcional.
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SÃO VICENTE DE PAULA RUA SÃO VICENTE DE PAULO, 501 ARQUITETURA LUCJAN KORNGOLD DATA 1949 ESCULTURA BRUNO GIORGIO
Construído para atender a um grupo social de menor renda em relação aos demais projetos do bairro, o edifício recorre à materiais mais simples, mantendo enorme qualidade projetual. Os pilotis no térreo se abrem para um átrio, descortinando um jardim interno, em cujas paredes laterais, por iniciativa dos moradores, foram assentadas duas esculturas de Bruno Giorgio. Não fossem as grades, o uso dos pilotis e a configuração do pátio, dariam continuidade aos fluxos do espaço urbano. Os recintos de maior permanência da unidade habitacional estão orientados para a rua e também, para o pátio interno, tendo assim, boa ventilação e iluminação. Os materiais de revestimento fazem uma composição atípica com tijolos laminados e um elemento pré-fabricado de relevo curvilíneo.
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ITAMARATI AV. HIGIENÓPOLIS, 147 ARQUITETURA CYRO RIBEIRO PEREIRA E JOÃO LEITE BASTOS JR DATA 1953
As três prumadas criam uma variedade de tipologias e um grande recinto em área livre de transição entre os espaços público e privado, no qual se desenvolve uma extensa e sinuosa marquise que liga a avenida à duas prumadas, sendo que a terceira tem o acesso direto para a Rua Sabará. Com as caixilharias abrangendo todo o vão dos recintos, predominam como revestimento pastilhas cerâmicas na cor azul claro.
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BAIA-MAR RUA MARANHÃO, 703 ARQUITETURA FRANCISCO BECK DATA 1963
Antes das grades, através do intercolúnio no térreo, este prédio fazia a ligação entre as ruas Bahia e a Maranhão. Na fachada, a composição de pilares, fechamentos horizontais, janelas, caixilhos e a adoção das cores bege e vermelho impõem um grafismo que estabelece uma forte presença da lâmina na paisagem urbana. A organização funcional institui uma planta em que a circulação atribui rigorosa autonomia aos recintos, uma vez que praticamente todos os setores da unidade habitacional são posicionados em remanso.
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PARQUE HIGIENÓPOLIS AV. HIGIENÓPOLIS, 148 ARQUITETO JONAS GORDON DATA 1962
Marcando fortemente a paisagem, o volume laminar possui 65 metros de extensão, com 22 andares de apartamentos. A grandiosa grelha revestida em pastilhas cerâmicas amarelas para além de ser um elemento compositivo, tem duas funções: a de brise-soleil e a de fazer o contaventamento da ampla fachada. Um grande pergolado e um muro-painel escultórico voltado para a Rua Sabará, desenhado pelo paisagista Waldemar Cordeiro, demarcam o acesso ao hall e à área de piscina e lazer, proporcionado privacidade e impondo-se como uma credencial urbana.
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PAQUITA RUA ALAGOAS, 475 ARQUITETURA LUZ-AR DATA 1952
Peculiarmente este edifício tem uma implantação em curva. Isso se deve a dois fatores: o maior aproveitamento do terreno e fazer com que as visuais das unidades posicionadas nos fundos possam apreciar a Praça Buenos Aires. São duas as prumadas com três tipos de tipologias habitacionais. No térreo há um espaço para comércio.
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LOUVEIRA RUA PIAUÍ, 1081 ARQUITETURA JOÃO VILANOVA ARTIGAS E CARLOS CACALDI DATA 1946
As duas lâminas paralelas separadas por um espaço de 20 metros, desenham um espaço que permite a continuidade da vizinha Praça Vilaboim. O acesso principal se dá entre pilotis e é feito por meio de escadas que atingem um hall de entrada no qual se exibe um afresco de Francisco Rebolo. A escadaria, por sua vez é interligada à uma rampa sinuosa que transpõe as duas Lâminas, realizando um percurso arquitetônico pelo prédio. Protegido pelo órgão do patrimônio estadual, o Louveira é provavelmente o edifício possuidor do mais forte caráter simbólico do bairro.
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LUGANO E LOCARNO AV. HIGIENÓPOLIS, 318 E 360 ARQUITETURA ADOLF FRANZ HEEP DATA 1958
Situados na Avenida Higienópolis onde, justamente termina em T a Rua Itacolomi, Heep posiciona os dois blocos de maneira tal que criem um espaço que proporciona a sensação de continuidade desta rua. Acima dos caixilhos dos quartos de dormir e das salas, há um remate de cobogós que serve para arejar e expulsar ar o quente.
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DIANA RUA MARANHÃO, 270 ARQUITETURA VICTOR REIF DATA 1957
Dentre os atributos deste edifício, destaca-se sua marcante presença na esquina, o duplo pé-direito do térreo e o volume em planta semicircular solto da lamina. Junto a este volume, uma escultura de Domenico Calabrone aponta para a o acesso pelo hall de entrada. Nota-se também que os pilares nos quais se apoiam vigas de transição têm a base menor e o topo maior, avançando sobre a Rua Maranhão. Desta forma há um ganho de metragem quadrada nas unidades habitacionais. A viga de transição, ainda reduz a quantidade de pilares, permitindo maior flexibilidade dos arranjos funcionais.
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ABAETÉ RUA PARÁ, 222 ARQUITETURA ABRAHÃO SANOVICZ DATA 1963
A estrutura, a caixilharia, os brise-soleils flexíveis posicionadas majoritariamente para oeste, parte para o nordeste e sudoeste formam um sistema de elementos rigorosamente modulados. A organização funcional das unidades habitacionais decorre também deste artifício do desenho industrial, preconizado por Sanovicks. O térreo possui um painel de Fábio Flaks, realizado para substituir uma obra de arte de Bramante Buffoni, destruída por um síndico do prédio.
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ALBINA RUA CONSELHEIRO BROTERO, 801 ARQUITETURA BOTTI RUBIN DATA 1962
Com os recintos de maior permanência posicionados para poente foram adotadas, segundo a tradição colonial brasileira, uma releitura dos muxarabis. Estes painéis deslizantes em madeira, distanciados cerca de 1 metro das janelas, para que além do sombreamento dos elementos de madeira, criam um colchão de ar que reduz a inércia térmica do forte sol da tarde. Tendo um apartamento por andar, a planta segue rigorosamente a modulação estrutural. São notáveis os fluxos de circulação que articulam a parte de serviço com os quartos de dormir.
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LAUSANNE AV. HIGIENÓPOLIS, 101 ARQUITETURA ADOLF FRANZ HEEP DATA 1953
Pouco visível ao passante, as paredes do grande hall de entrada imprimem um raro painel de Clovis Graciano, medindo 3 por 12 metros. A pintura a óleo e cera tem como tema “As mulheres e a terra” (ANDRÈ, 1989) A fachada norte é recoberta com venezianas deslizantes, formando uma composição majoritariamente branca, e nas cores verde e vermelho. Com relação à organização funcional, nota-se que as prumadas hidráulicas e de circulação vertical são plenamente concentradas e distintas dos demais recintos de maior permanência.
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Térreo do Edifício Paquita
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Construídos no espaço de tempo que compreende de 1940 a 1970, 164 edifícios de interesse em Higienópolis, Santa Cecília Vila Buarque, foram recentemente mapeados pela Revista Monolito, num polígono que compreende cerca de 215 hectares, menos que a dimensão do Parque do Ibirapuera1. Se por um lado esse conjunto de prédios representaram claramente inovações na fisionomia do bairro e consequentes mudanças no modo de morar, por outro, a partir de 1970 ocorre uma visível degradação e o retrocesso qualitativo da ação mercado imobiliário atuante em Higienópolis, no que diz respeito às abordagem arquitetônicas. Ressalva-se a atuação de duas construtoras a partir de 1970, a Diâmetro e a Hindi que contemplavam a racionalização da construção, a padronização e racionalização funcional das plantas, o uso de materiais pré-fabricados, a adoção de volumetrias de prismas puros de concreto aparente, o revestimento em pastilhas, as grandes aberturas, entre outros conceitos que dariam continuidade do quadro construído, fazendo jus ao existente. No entanto, apesar da pequena atuação de ambas as construtoras, a condição de prestígio do bairro fará surgir um momento em que as construtoras, a reboque de modismos, aviltando a qualidade dos projetos implementarão estilos anacrônicos do tipo neoclássico e mediterrâneo. Tais abordagens, logo de inicio descartam as relações com a cidade, disseminando procedimentos alienados da boa arquitetura, implementando elementos de segurança como guaritas nos acessos e altos muros. A organização funcional das plantas destes edifícios é concebida de modo a criar um grande número de pequenos recintos interligados por meio de fluxos cruzados; banheiros distribuídos em todas as partes da planta, descartando a unificação das partes úmidas. Nestes prédios, também, a modulação de pilares passa a vir a reboque das plantas e ser realizada com pequenos vãos, bem como as aberturas tornam-se estreitas e descartam a boa luminosidade da unidades. Isto posto, os edifícios deste novo momento geram um rastro desolador tanto para o bairro quanto para a cidade que habitamos.
BIBLIOGRAFIA ANDRÉ, Maria Cristina Reis. Catalogação de painéis e murais na cidade de São Paulo. São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1989. FELDMAN, Sarah. A configuração espacial da metrópole. In: CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena; SACCHETTA, Vladimir (orgs.). São Paulo, metrópole em trânsito: percursos e culturais. São Paulo: SENAC, 2004, p.100-111. HIROYAMA, Edson Hitoshi. A dimensão urbana da arquitetura moderna em São Paulo. Habitação coletiva e espaço urbano 1938/1972. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo –, 2010. IMBRONITO, Maria Isabel. Três edifícios de habitação para a Formaespaço: Modulares, Gemini e Protótipo. Dissertação de mestrado. São Paulo: FAUUSP, 2003 HOMEM, Maria Cecília Naclério: Higienópolis, grandeza e decadência de um bairro paulistano - Prefeitura do Município de São Paulo - Secretaria Municipal de Cultura - Departamento do Patrimônio Histórico, 1980. Revista Monolito, nº19, p.148-149, fev/mar, 2014. Edifício Abaeté - BORTOLLI JR, Oreste. O projeto habitacional implantado pela iniciativa privada na cidade de São Paulo e seus paradoxos. São Paulo: FAUUSP, 2008, p.89. Edifício Albina. Revista Acrópole, São Paulo, 293 [150] abr, 1963. Edifício Baia- Mar. Revista Acrópole, São Paulo, 309 [46-7] ago, 1964. Edifício Buenos Aires. Revista Acrópole, São Paulo, 227 [410-2] set, 1957. Edifício Baia Mar. Revista Acrópole, São Paulo, 309 [46-7] ago, 1964. Edifício Diana. Revista Acrópole, São Paulo, 231 [92-3], 1958. Edifício Itamaraty. Revista Acrópole, São Paulo, 190 [457-60] abr, 1953. Edifício Lausanne. Revista Acrópole, São Paulo, 239 [504-8] set, 1958. Edifício Louveira. Acervo dos desenhos digitalizados de João Vilanova Artigas. São Paulo: LABARQ/ FAUUSP,s/p, 2010. Edifício Lugano e Locarno. Revista Acrópole, São Paulo, 287 [347-9] out, 1962. Edifício Parque Higienópolis. BORTOLLI JR, Oreste. O projeto habitacional implantado pela iniciativa privada na cidade de São Paulo e seus paradoxos. São Paulo: FAUUSP, 2008, p.77. Edifício Prudência. Revista Acrópole, São Paulo, 154 [259-62] fev,1951. Edifício São Vicente de Paula. Revista Acrópole, São Paulo, 129 [233-5] jan, 1948.
IMAGENS Edifício Abaeté: Nicolas le Roux Demais imagens: Oreste Bortolli Jr.
*Oreste Bortolli Jr. é professor doutor nos cursos de graduação e pós-graduação da FAUUSP.
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“O QUARTO É O COMEÇO DE UMA CIDADE” Richard Rogers
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Parte do ensaio fotogrรกfico Camera Obscura de Abelardo Morell
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O MODELO
BAD DÜRRENBERG, 1928 Leipzig (Alemanha) Alexander Klein
FAMILIAR NOS PRIMÓRDIOS O MODELO FAMILIAR NOS DA HABITAÇÃO PRIMÓRDIOS DE DACUSTOS HABITAÇÃO DE CUSTOS CONTROLADOS CONTROLADOS PEDRO PEDROFONSECA FONSECAJORGE JORGE A introdução da Habitação Social no contexto arquitetónico promoveu a reflexão do modelo Familiar que até então definia a Casa e consistia na base do sistema social vigente. Até à data a reflexão exercida pelos Arquitetos e outros pensadores sobre os modelos de habitar limitava-se aos Modelos destinados aos endinheirados, nomeadamente Nobres e Burgueses, que através das suas posses possuíam os meios para recorrer a “especialistas na arquitetura” (sendo que o “Arquiteto”, enquanto profissão, possuía ainda limites esbatidos, atuando essencialmente sobre Tipos de habitar herdados do Renascimento). Providenciar uma Casa digna aos mais desfavorecidos, inicialmente por iniciativa 326
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privada, tomou por isso dois rumos distintos: adaptar o Modelo existente às condicionantes financeiras (e de área) ou criar Modelos completamente novos, porque adaptados às condicionantes inerentes ao habitar social e ao Modelo familiar que não era o Burguês. Por isso, em cinco exemplos paradigmáticos, realizados num intervalo de dois anos (entre 1926 e 1928), podemos encontrar cinco Modelos de Família distintos, manifestados em interpretações pessoais do habitar doméstico, reflexo de uma sociedade em mutação a nível das relações interpessoais e da Família como base da comunidade. Em 1926 o Karl Marx Hof, de Karl Ehn, transpõe o espaço hierarquizado das Casas Burguesas (e do seu arquétipo familiar)
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para um modelo de custos controlados, reduzido a um primeiro espaço de receção onde os visitantes eram recebidos, seguido do verdadeiro espaço privado, onde a totalidade da família se recolhia. O facto de toda a família partilhar o mesmo espaço privado nasce do modo como as crianças eram consideradas “pequenos adultos”, não necessitando de resguardo ou privacidade face ao comportamento adulto. Uma interpretação de um Modelo descrito já por Alberti em “De re Aedificatoria” (ainda que referente a um palacete rural) em que os vários espaços se sucediam em “enfilade”, com formas distintas, numa hierarquia dominada pelo Simbolismo dos espaços e não pelo seu uso Prático). No entanto a escolha do modelo burguês para uma
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casa “social” não constituiu um ato “inocente” de Ehn, dado que este, socialista, achava que as classes mais modestas tinham direito aos mesmos modelos das classes mais abastadas. É por impulso dos Funcionalistas, baseados em propósitos de higiene física e mental, que as crianças ganham um papel em que se lhes atribui a inocência própria da idade: a casa ganha um novo espaço que se materializa num quarto adicional, próprio da progenitura. Parecendo algo corriqueiro, trata-se de uma conquista, dado que em 1928 Alexander Klein, em Bad Durremberg, propõe a célula C2, com dois quartos, com os mesmos 53m2 que a célula de um quarto de Karl Ehn. Trata-se por isso de uma vontade expressa de corresponder a novos ideais de privacidade, 327
KARL MARX HOFF, 1926 apartamento tipo Viena (Áustria) Karl Ehn
nem que para isso tenha de conceber espaços menores para os ter em maior quantidade. E, paralelamente, Klein propõe no mesmo complexo habitacional células com 3 quartos que podemos assimilar ao facto de, mais do que propor intimidade a cada filho, se propõe a separação por género: a prova é que existiam dois tipos de apartamentos com 2 quartos (Células C2 e C9) e com 3 quartos (Células C7 e C16) cuja diferença reside na área dos quartos “das crianças” (sensivelmente maior em C9 e C16), porque destinados a albergar dois ocupantes (em vez de um). Ora, fora esta vontade de respeitar os limites de cada sexo desde a infância, uma Célula de 2 quartos para três camas cumpriria os desígnios espaciais requeridos pelo Funcionalismo puro. 328
O Modelo Funcionalista da Casa baseava-se contudo num protótipo Familiar idealizado, de caraterísticas restritas, composto por Pais e “eternas” Crianças. A chegada à idade adulta correspondia obrigatoriamente a um rendimento, à saída do lar paterno, a um(a) esposo(a) e a uma nova casa (o reiniciar do ciclo), não havendo lugar a outras circunstâncias. Por isso a proposta de Hans Scharoun para a Werkbund de 1929, o “Hostal para jovens casais e solteiros”, se revelou inovador para a época, porque previa um Tipo de ocupante (e de apartamento) que não se coadunava com o acima estabelecido, baseando-se na independência do Indivíduo e não no esquema Tradicional “normal”.
PRAUNHEIN, 1926 casas tipo IIA e VII Frankfurt (Alemanha) Ernst May
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É por isso curioso verificar que outro Funcionalista, Ernst May, tenha proposto em 1926, em Praunheim, modelos de caraterísticas espaciais que interpretam, de modo subtil, o modelo social do Construtivismo Russo. Neste, Karel Teige, considerando a Família Burguesa (e a “sua” Casa) como inaceitável numa nova sociedade despojada destes seus opressores, previa o desmembramento da estrutura familiar: os casais possuiriam aposentos independentes para cada membro, sendo que seus filhos de toda uma comunidade seriam criados em conjunto em infantários comuns, sendo os restantes serviços partilhados; refeitórios, lavandarias, etc. A Dom Kommuna Narkomfin (1927) aplica parcialmente este Modelo, naquilo que o autor
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Moisei Ginzburg definiria como um “modelo de transição”: não aplica o esquema radical de Teige, dado que algumas células teriam dois quartos, os casais teriam aposentos comuns (mas resguardados), embora prevendo a sua evolução, dado que as cozinhas – mínimas – poderiam ser removidas no futuro: quando a sociedade já se encontrasse adaptada em pleno à nova estrutura social Comunista. Ernst May, também ele socialista, recupera alguns destes ideais, mantendo a estrutura familiar. As Células IIA e VII, com apenas dois quartos, possuem espaços adicionais face ao modelo Funcionalista de Klein (possíveis também por propor habitações em Banda e não em Altura): na Célula IIA, do quarto principal (com 16m2, o dobro 329
DOM KOMMUNA NARKOMFIN, 1927 apartamento de 2 quartos Moscou (Rússia) Moisei Ginzburg + Ignatis Milinis
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da área do secundário), acede-se a uma sala privada na cobertura, com uma extensa varanda, que corresponde a um espaço de estar destinado apenas aos progenitores, como no Construtivismo de Ginzburg (de referir que esta separação entre espaço para adultos e para “crianças” foi típica da obra residencial de Marcel Breuer, mesmo depois do Primeiro Modernismo, em que este já se encontrava nos Estados Unidos). Já na Célula VII, apesar do acesso ser interior, o último piso é constituído por um apartamento mínimo com cozinha e casa de banho. Podemos talvez interpretar aqui a necessidade de propor um espaço íntimo destinado a novos casais ou a pais idosos, o que a ser verdade contradiz o restrito mo330
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delo familiar Funcionalista, mas também o Construtivista. O Modelo Funcional da Casa foi, talvez, aquele que predominou ao longo do séc. XX, distinguindo claramente o quarto “principal”, destinado aos progenitores, e o(s) quarto(s) “secundário(s)”, destinados aos filhos (separados por género). Mas a imprevisibilidade dos Atores da Cena Doméstica levou a que espaços de uso restrito ganhassem novas usanças, como em Praunheim, em que o arrendar dos espaços mencionados, durante a Guerra, garantiu o sustento das famílias; ou no edifício Narkomfin, em cujas células solteiros e artistas encontraram o espaço ideal para si: não só correspondiam ao hoje comum apartamento “de
DOM KOMMUNA NARKOMFIN, 1927 apartamento de 1 quarto ascendente (acima) e descendente (abaixo) Moscou (Rússia) Moisei Ginzburg + Ignatis Milinis
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solteiro” (de Scharoun?) com apenas um quarto, como a altura da sala (ocupando piso e meio) permitia a execução de trabalhos artísticos de grande porte. O período de Entre Guerras marcouse pelo Funcionalismo que prometia criar leis universais de comportamento humano, de modo a sistematizar os espaços e o funcionamento da casa. Seria deste modo possível a fabricação em série, a redução de custos e a oferta de uma habitação digna a todos os estratos da população. No entanto, pelos exemplos citados podemos concluir que semelhante uniformidade permaneceu uma utopia, mesmo antes da “robotização” do ser humano começar seriamente a ser posta em causa durante a revisão do Movimento Mo-
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derno (através dos regionalismo da arquitetura… e do Homem). A questão é que, mesmo unidos sob o mesmo ideal funcional, cada arquiteto interpretou Individualmente o Coletivo, facto inerente ao próprio ser humano, criando soluções diversificadas que podem ser encaradas como operativas na composição da habitação contemporânea.
1 Arquiteto pela Faculdade de Arquitetura da Uni- versidade do Porto e doutor em "Habitação de Custos Controlados" pela mesma instituição. Atualmente pós-doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Paralelamente mantém seu atelier." 331
ROSA CASA DE ARQUITETO
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Transcrição do depoimento de Rosa Artigas, filha de Vilanova Artigas, para a série “Habitar Habitat“ exibida no SescTV em 2013. Nele, Rosa comenta sobre o projeto da casa do arquiteto da década de 40, que não possui hierarquia entre os espaços. 1
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Jornalista - SescTV
ARTIGAS /R. Artigas Esta casa é de ’49, eu não tinha nascido ainda. Meu pai tinha 34 anos quando fez o projeto desta casa; ela tem umas “irmãs” espalhadas por São Paulo. Tem uma outra muito semelhante a essa – só a implantação um pouco diferente no terreno – que é do Mário Taques Bittencourt, lá no Sumaré e uma da Alice Brill que é mais encolhida, mas é o mesmo princípio: tem a lareira e essa coisa do bloco hidráulico; é mais ou menos a mesma composição. Este bloco de banheiros e a cozinha é o que determina a circulação da casa; é a única coisa que separa. Você divide o “serviço” – entre aspas, porque ele não gostava de pensar assim, né? Porque, na realidade, o que essa casa tem de interessante é que ela não hierarquiza os espaços. É uma tradição, porque o que que acontece com a casa tradicional paulista, vamos dizer? Ela tem uma herança que é oligárquica, escravagista, não?
\Paulo Markun | jornalista1 Separar, distinguir e isso vai daí que o serviço...
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/R. Artigas Então, você joga o serviço para o fundo; tem a ideia de fundo de quintal. Meu pai até brincava: fazia uma garagem no fundo como se o carro fosse um cavalo que fosse sair andando sozinho, sabe? Quer dizer, aí ele bota a garagem na frente, e isso é um processo, uma pesquisa que vem desde a Casinha, lá já tem isso. De você incorporar tudo que a casa necessita dentro duma cobertura só, dentro de um bloco só. Não existe essa hierarquia do que é o escondido no fundo do quintal, trancado, o “serviço”, a sujeira, a cozinha, o banheiro... e a área social que você tranca a porta e cobre o sofá de plástico e abre só quando tem visita, né? (Risos) Que é uma tradição que a classe média paulistana incorpora da tradição oligárquica das casas da oligarquia do café, dos palacetes, essas coisas. Outra coisa interessante: que essa casa não tem quarto de empregada.
\P. Markun O que era incomum na época.
/R. Artigas É o que era comum na época, não - é até hoje (risos); é quase um absurdo! Porque também é uma outra coisa que é estranhíssimo, porque em lugar nenhum do mundo um apartamento, por exemplo, de classe média, tem quarto de empregada. Lugar nenhum do mundo – a não ser no Brasil – um edifício de apartamento tem entrada de serviço, elevador de serviço. Então essa ideia também é uma ideia que é trazida, uma separação profunda, do que, é, da escravatura - “Casa Grande e Senzala”. E essa casa não tem quarto de empregada, ela tem três quartos. Lógico que isso daí, funcionalmente, foi esquisito porque para isso a sociedade precisava tá preparada para não existir empregada, e a sociedade não tava preparada para isso. Então, nós tivemos empregada, inclusive que dormia aqui.
\P. Markun E ela dormia onde?
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/R. Artigas Ela dormiu primeiro nesse quarto interno aqui, porque eu e o Júlio éramos pequenos. Depois passou a não ter mais porque depois crescemos e a casa também tinha um certo problema de umas frequências. Digamos assim, meio clandestinas que as empregadas não podiam ver. Meu pai era um comunista e na casa frequentaram muita gente que era clandestina, membro do Partido Comunista, faziam reuniões aqui e o risco de uma empregada que dorme, que fica, que escuta e que vê era muito grande do ponto de vista da segurança dessas pessoas. Então, no fim, não foi a cidade que possibilitou não ter empregada, mas foram os comunistas que forçaram a não ter. Entre ‘64 e ‘69, a viviência na casa ficou um pouco complicada porque foi altamente vigiada, tinha carro de polícia na frente o tempo todo. Tinha uma certa dificuldade de vida, da utilização.Mas, depois de ‘69, isso aqui virou um grande ponto de encontro. Em parte, porque ele era professor e, fora da universidade ele tinha que arrumar gente que ouvisse ele falar. Começou a ser professor universitário aos 23 anos de idade; fazia parte da vida dele, da essência dele essa coisa do ensino. (...) Eu acho que essa casa é o anti-tudo, já era na época um pouco com as dificuldades que a sociedade colocava. Mas hoje eu acho que ela é mais complicada ainda, só nós mesmo é quem conseguimos morar aqui. Meus filhos já não morarão. Na realidade, o que você tem hoje, essa ideia de vida privada é tão forte que hoje você tem a piscina, a sala de ginástica dentro do prédio... Pode nascer e morar ali dentro, sem ter contato com o mundo aqui fora. Quer dizer, isso não é ideológico, isto é um drama de uma sociedade que partiu, se dividiu. É um drama colocado pra cidade e não sei como se resolver. Se era ideológico, era sim; mas essa também é, na hora que você se fecha em um condomínio, você também está adotando uma ideologia altamente conservadora em relação ao que é a sociedade. Eu acho que arquitetura é dentro da cidade, necessariamente uma questão de comportamento social, não tem jeito.
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A gente não pode estar contra um programa que
viabiliza a construção de moradia pra população
brasileira. Agora a forma... Eu acho que o programa engessa muito e não abre uma perspectiva para nós, arquitetos, propormos soluções diferentes1.
Trecho trascrito da palestra que Lelé ministrada na FAUUSP em 2011.
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A c a s a f o i v e n d i d a c oamn çt ao sp e s addoes l o o ss t o d o s oo u s pe emc avdi o a sdceocmoemt iedt o e rs A casa a cfoia vendida s a f ocom i vtodas odas e n asd lembranças i d a cç o m s e u todos os móveis todos os pesadelos pb a t e l r de portas todos os c pecados o m scometidos e u v eounem t oviaeddencometer canado portas a casa foi vendida com seu bater de porta vistaadoc a mundo com seu vento encanadop sua vist s a fo f i ve n d i d a c om seu st eus imponderáveis e t i d o s o u e m v seus b at t e r d e portas porr vinte, vintt vinte contos.e u b a t e r d e p o r t a s
todos os pecados cometidos ou em via de cometer
com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis (Carlos rlos Drummond de Andrade Andrade) por vinte, vinte contos.
Foto: Luisa Carvalho Zucchi
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