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do inferno

Depois de morrer, o sujeito chegou num lugar, ou melhor, num espaço que poderia ser considerado sua antessala. De início, imaginou estar no Céu, pois não viu demônio algum e ainda sentia em si resquícios de liberdade. Na parede, apenas uma inscrição meio sartreástica dizia “o inferno são os outros” (Sartre). De supetão, ficou sabendo, nem sabe como, que havia três versões do Inferno, variações de uma mesma realidade egotípica. Cabia a ele escolher em que modo específico preferiria passar a eternidade: contemplando-se, sendo grandioso ou exclusivo. As versões do Inferno são as seguintes: 1) Modo espelho: para onde quer que você olhe, a única coisa que você vê e ouve é a si mesmo. Como um bumerangue, tudo se converte num grande caminho de retorno do eu para o eu. Nesse labirinto de ecos de si, o eu se multiplica infinitas vezes. Não há um único centímetro quadrado que não seja imagem e semelhança do próprio sujeito. Há espelhos enormes como a abóboda do céu, outros que nos replicam bilhões de vezes em microlâminas do tamanho de grãos de areia. Tudo, até o ar tem um aspecto especular, o poder de nos devolver ao centro de qualquer perspectiva. O eu se converte em sinônimo de universo visível. Assim, é impossível saber se existem outras coisas ou pessoas ali, pois o que poderia ser o outro se transforma numa mera projeção de si mesmo. Na versão espelho, o ego se absolutiza imprimindo-se em toda a extensão da realidade, que se converte numa tirânica lente de selfie, cujo foco é sempre e somente você. Sem qualquer outro marco de referência, o eu se desorienta em sua totalitarização imagética. Para onde quer que se volte, não há qualquer outro ponto além de si, pois há apenas o eu e símiles do eu. Não há interlocutor, um outro, um não-eu... o que faz com que todo olhar, fala, pensamento ou deslocamento seja insuportavelmente autoendereçado. 2- Modo balão: nessa versão infernal, você é inflado até ocupar

todo o espaço possível. Aqui o Self sofre de gigantismo, fica totalmente cheio de si. Não há lado de fora do eu, pois o ego se dilata, se expande até se converter em tudo o que existe. Esse excesso de si mesmo não permite um segundo de descanso, pois o eu está por toda parte, penetrando até as fissuras mais invisíveis. Esse espaço autopreenchido é ao mesmo tempo físico, psicológico e metafísico, significa dizer que nem em sonho, na imaginação ou pelo raciocínio você conseguirá se transportar para um lugar

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diferente de si. De tão inflado que fica, o balão do ego coincide com o todo, não havendo para onde evadir-se da própria presença. Por maior que seja o universo, no Inferno toda a realidade parece se confinar num gargalo em que o ego omnipresente, de tão grande, agoniza na forma de um entalamento existencial-estático. 3- Modo vazio: em substância é semelhante aos dois modos anteriores, pois o resultado final é a infernal experiência da absolutização de algo que foi feito para ser apenas relativo entre outros, o eu. No modo vazio, você fica sozinho em meio ao nada, que é muito mais vazio que o vácuo. É uma prisão da qual não se pode escapar, pois é uma ilha formada de eu rodeada por coisa nenhuma de todos os lados. Não pense você que o local é branco ou preto, pois não há cor alguma, o que certamente nos parece daqui bastante estranho. Também não há silêncio ou barulho algum, pois o nada radical não conhece isso, nem qualquer nuance ou outra diferença. A eliminação nadificante de tudo o que é não-eu, o sonho-pesadelo do ego absoluto, do estado diabólico de ser, é o que se costuma chamar de Inferno. Depois de um tempo no modo vazio, você imploraria pela existência de algum outro ente, até mesmo pela presença do fogo torturante, pois pior que seja a realidade circundante será melhor do que os precipícios do não-ser, habitar a solitária de um eu suspenso sobre os abismos da inexistência sem fim. Cada modo (espelho, balão e vazio) parecia corresponder à arquitetônica mais íntima de cada um, dos que desejam acima de tudo aparecer, dos que preferem se engrandecer e dos que se julgam bastantes em si mesmos. Definitivamente, aquela não era a antessala do céu, pois nas três versões tudo acaba morrendo para você, menos você, desgraçadamente. Desesperado, o homem começou a vomitar de egofobia, sentindo náusea por antecipação do fechamento egóico vindouro. Se pudesse ele avisaria seus familiares e amigos, até os inimigos, para se humilharem em vez de tomarem o caminho largo da autoglorificação... o caminho para a derradeira clausura do eu confinado em si mesmo para todo o sempre. Egoísmo, autocentramento, adoração do eu, existência anticrística... chame-o do que quiser. Nesta vida que ora vivemos, a sedução satânica de se ter um ego visível por todos os lados, sempre inflacionado no espaço e alienado dos outros até parece encantadora, traz um ar de notoriedade, importância e autonomia. Entretanto, nosso jeito de ser, aparentemente inofensivo, um dia ainda será nosso exponencial destino de ser. Portanto, cuidado. “Post mortem”, quando a realidade espiritual se adensa, o que era “em parte” torna-se “por inteiro”, então você finalmente poderá se tornar seu próprio “tipo divino”, aquele ser que sempre quis ser, embora ali se torne claro – infelizmente, tarde demais – o significado funesto de uma vida lacrada na forma de uma egolatria eternamente consumada. O Diabo é um ego hipertrofiado e o inferno é a assunção horrenda e definitiva desse estado diabólico de ser por parte de seus filhos. Já não havia mais tempo para considerações na antessala do Ego Absoluto, pois a casca hermética do inferno interior (no modo escolhido) se abriu e o homem foi tragado aos berros para ser sepultado vivo dentro de si, num eterno curto circuito do eu-consigo mesmo. Foi aí que os resquícios de liberdade desapareceram e o demônio transpareceu. Se pudesse ele avisaria seus familiares e amigos, até os inimigos, para se humilharem em vez de tomarem o caminho largo da autoglorificação...

Felipe de Souza Silva

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