Revista Elos 51 . Março - Abril | 2020

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DO INFERNO Depois de morrer, o sujeito chegou num lugar, ou melhor, num espaço que poderia ser considerado sua antessala. De início, imaginou estar no Céu, pois não viu demônio algum e ainda sentia em si resquícios de liberdade. Na parede, apenas uma inscrição meio sartreástica dizia “o inferno são os outros” (Sartre). De supetão, ficou sabendo, nem sabe como, que havia três versões do Inferno, variações de uma mesma realidade egotípica. Cabia a ele escolher em que modo específico preferiria passar a eternidade: contemplando-se, sendo grandioso ou exclusivo. As versões do Inferno são as seguintes: 1) Modo espelho: para onde quer que você olhe, a única coisa que você vê e ouve é a si mesmo. Como um bumerangue, tudo se converte num grande caminho de retorno do eu para o eu. Nesse labirinto de ecos de si, o eu se multiplica infinitas vezes. Não há um único centímetro quadrado que não seja imagem e semelhança do próprio sujeito. Há espelhos enormes como a abóboda do céu, outros que nos replicam bilhões de vezes em microlâminas do tamanho de grãos de areia. Tudo, até o ar tem um aspecto especular, o poder de nos devolver ao centro de qualquer perspectiva. O eu se converte em sinônimo de universo visível. Assim, é impossível saber se existem outras coisas ou pessoas ali, pois o que poderia ser o outro se transforma numa mera projeção de si mesmo. Na versão espelho, o ego se absolutiza imprimindo-se em

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toda a extensão da realidade, que se converte numa tirânica lente de selfie, cujo foco é sempre e somente você. Sem qualquer outro marco de referência, o eu se desorienta em sua totalitarização imagética. Para onde quer que se volte, não há qualquer outro ponto além de si, pois há apenas o eu e símiles do eu. Não há interlocutor, um outro, um não-eu... o que faz com que todo olhar, fala, pensamento ou deslocamento seja insuportavelmente autoendereçado. 2- Modo balão: nessa versão infernal, você é inflado até ocupar

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todo o espaço possível. Aqui o Self sofre de gigantismo, fica totalmente cheio de si. Não há lado de fora do eu, pois o ego se dilata, se expande até se converter em tudo o que existe. Esse excesso de si mesmo não permite um segundo de descanso, pois o eu está por toda parte, penetrando até as fissuras mais invisíveis. Esse espaço autopreenchido é ao mesmo tempo físico, psicológico e metafísico, significa dizer que nem em sonho, na imaginação ou pelo raciocínio você conseguirá se transportar para um lugar

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