8 minute read

a proteção da vida humana

Next Article
proclamação

proclamação

A PROTEÇÃO

DA VIDA HUMANA PARA ALÉM DOS HORIZONTES CULTURAIS

Advertisement

por Felipe de Souza Silva

a última semana de março, entre os dias 23 e 27, entrevistei por telefone Rogério G. Muniz, membro da Igreja Metodista em Cascadura – RJ, missionário em tempo integral na JOCUM – Jovens Com Uma Missão, por 25 anos, atuando nas áreas de Educação, King´s Kids (ministério com crianças, adolescentes e famílias) e crianças em risco, incluindo indígenas entre os anos de 2007 e 2012 na ONG ATINI – VOZ PELA VIDA, organização sem fins lucrativos, sediada em Brasília – DF, reconhecida internacionalmente por sua atuação pioneira na defesa do direito das crianças indígenas (Atini significa “voz” na língua suruwahá). N

Rogério, agradeço por ter aceitado meu convite, é um grande prazer poder entrevistá-lo. Quando tive a oportunidade de conversar com você no ano passado, logo pensei que sua história poderia abençoar outras pessoas. Esse é o propósito desta entrevista. Um texto sobre “a proteção da vida humana para além dos horizontes culturais” poderia soar muito teórico, mas a exposição da sua experiência nesse campo tenho que será por demais rica e apaixonante. Antes, conte-nos: quando e como chegou à PIB-Recreio?

Cheguei aqui por recomendação de um casal de amigos, que, muito preocupados comigo e com meu frágil estado emocional, recomendaram o programa do Celebrando a Vida para que eu obtivesse ajuda na transição do trabalho missionário em tempo integral para um modelo dito “secular”, para renovar forças, reorganizar minha vida e família e me reeditar depois de vários anos de doação em função do chamado e do alto desgaste provocado pelas dificuldades enfrentadas.

No seu entender, um sofrimento psíquico pode ser decorrente ou ser agravado pelo exercício dramático de uma difícil e nobre vocação?

Sim, perfeitamente. Cada trabalho desenvolvido tem suas lutas e adversidades, além, é claro, de outros fatores dos quais não temos controle, como por exemplo: pessoas, sistemas implantados resistentes à mudança, perseguição, políticas etc. No meu caso, eu e minha esposa Margaret, com quem sou casado há trinta anos, tomamos uma decisão que afetou drasticamente nossas vidas. Optamos por acolher em nosso lar e conseguir tratamento psiquiátrico e de reabilitação física para um membro de uma das famílias indígenas atendidas pela ATINI e, mesmo garantindo sua sobrevivência, vivenciamos sérios problemas e desgaste extremo, inclusive com risco para a vida de nossa filha mais nova.

Agora que você já se apresentou, fale-nos sobre o tipo de trabalho que desenvolveu com os índios.

Crianças deficientes, gêmeos, os nascidos como fruto de incesto, de mãe solteira, dependendo da comunidade indígena, podem sofrer violência e até morte em, pelo menos, 10% das Etnias no Brasil. Frente a esse quadro, nosso trabalho consistia basicamente em ajudar famílias indígenas, no contexto urbano, em busca de ajuda para manterem seus filhos vivos. Províamos abrigo, alimentação, ajudávamos no acesso ao sistema de ensino, a cuidados médicos, tratamentos, reabilitação motora e outras necessidades (durante o período em que permanecessem na cidade). E ainda buscávamos conscientizar a sociedade sobre essa sombria realidade, com palestras, debates e seminários, batalhando pelo direito à vida da criança indígena. Nesse sentido, ajudamos na criação do texto do projeto de lei 1057/2007 (conhecido como Lei Muwaji), ainda em trâmite, que prevê a obrigatoriedade de notificação, por parte de quem

trabalha em área indígena, dos casos de risco envolvendo crianças nas comunidades indígenas.

Lembro-me de você ter contado sobre o caso específico de uma menina que era submetida pelos integrantes da tribo a todo o tipo de violência, como uma forma de “purificação do mal”.

Aqui vou me ater à história da minha própria sobrinha, Hakani. Nos Suruwaha (Amazonas), por exemplo, as crianças só são reconhecidas como gente depois que andam e falam. As que não se desenvolvem regularmente e não se enquadram são sacrificadas, enterradas vivas. Foi o que aconteceu com Hakani, a quinta criança de uma família importante na comunidade, pois já tinha 4 meninos. Hakani trouxe esperança ao nascer pois seu irmão de dois anos de idade não andava ou falava e seus pais sofriam pressão para enterrá-lo vivo. Sua mãe esperava que sua menina sorridente afastasse essa nuvem escura que pairava sobre sua família. No entanto, Hakani parecia ter o mesmo problema que seu irmão, não andou ou falou no tempo esperado. Por conta de tanta pressão e, não suportando a ideia de enterrar seus filhos amados, os pais de Hakani cometeram suicídio (um triste aspecto de sua cultura). A pressão passou a ser sobre o irmão mais velho que decidiu enterrar seu irmão e irmã, e assim o fez. Seu irmão desmaiou e faleceu, Hakani, no entanto, chorou e seu irmão do meio, Bibi, na época com 8 anos de idade, a desenterrou e ficou cuidando dela. Difícil tarefa, pois deveria suprir alimento para si e para ela sem ajuda de ninguém. Fez isso da melhor forma que conseguiu nos três anos seguintes, mas não podia estar perto dela todo o tempo, o que a deixava à mercê de xingamentos, maus tratos, agressões físicas e fome. Percebendo que era uma tarefa além de suas forças, Bibi levou Hakani até o casal de linguistas que trabalhava na área e eles, imediatamente, percebendo o quadro de desnutrição da criança, buscaram ajuda a fim de preservar sua vida e, posteriormente, a adotaram. Descobriu-se que seu problema de saúde era hipotireoidismo. Há um documentário sobre essa dramática história, e pode ser atualmente visto em https://www.youtube.com/ watch?v=k31HSvMuPqc.

Mesmo no propósito de salvar vidas, você deve ter enfrentado forte oposição, creio eu. Poderia nos falar um pouco sobre o universo políticoideológico que atravessa a questão?

Sim. Em nosso país a linha antropológica seguida por alguns órgãos oficiais do Estado é a da relatividade cultural radical, portanto, alguns antropólogos não viam nosso trabalho com bons olhos, argumentando que nosso trabalho interferia na cultura de cada Etnia, cultura que deveria ser preservada acima do direito à vida. Pensamento compartilhado por alguns servidores e políticos, inclusive um chegou a dizer que direitos humanos e a Constituição Federal não são para os índios. Tal oposição criou dificuldades para tratamentos, problemas burocráticos com documentações e autorizações além de nos render imenso desgaste com denúncias anônimas, inquéritos, investigações e processos. Toda essa perseguição, no entanto, muitas vezes permanece velada, com a utilização de sofisticados mecanismos de pressão psicológica.

Vejo que, como cristão, você parte de um referencial absoluto, colocando sempre a vida humana como valor supremo e inviolável, independentemente dos relativismos culturais. É isso mesmo?

Nós como seres humanos, imagem e semelhança de Deus, criados e amados por Ele sem distinção, valorizamos a vida que Ele mesmo nos deu. É um milagre assombroso, um dom inexplicável, é também um direito reconhecido mundialmente e que deve ser garantido pelas autoridades e pelos cidadãos, principalmente para aqueles mais vulneráveis. Somos feitura do Senhor e partilhamos de valor intrínseco, independente de raça, cor, credo, cultura, nacionalidade ou etnia. Entendemos que uma antropologia comunicativa

é mais aberta à realidade de culturas dinâmicas que estão sempre em movimento.

No geral, você acha que falar sobre esse tema no Brasil (prática do infanticídio por parte de algumas tribos indígenas) é um “tabu” ou as pessoas simplesmente desconhecem o fato e por isso silenciam o assunto?

Provavelmente os dois. Quando abordávamos o tema, frequentemente, percebíamos que as pessoas pareciam não processar essa realidade. Era como se estivéssemos falando de algo distante ou muito abstrato, uma realidade em choque com nossa imagem romantizada do indígena puro em harmonia com a natureza. Por exemplo, uma Etnia com a qual tivemos contato, acha que há árvores demais e gostariam de derrubar muitas delas; em outra era comum caçar pequenos pássaros somente por diversão, privando-os de sua capacidade de voar. Cada Etnia tem sua riqueza de cultura, com histórias belíssimas, danças, estrutura social e percepções ímpares sobre o mundo que as cerca. No entanto, como nós, também carecem da graça do Senhor e estão sujeitos a práticas (como o infanticídio) incompatíveis com essa graça.

Para permanecer tanto tempo exercendo esse trabalho-limite, em todos sentidos (inclusive com dano emocional), você deve amar profundamente os índios.

Certamente. O ser humano é fascinante, sua incrível capacidade de criar, seu entendimento sobre a vida, sua trajetória, suas mazelas, seu sofrimento, suas falhas e carências constroem um universo fantástico de indivíduos únicos, diversos, alguns apaixonantes, outros nem tanto, mas todos com grande potencial para aprender, ensinar e compartilhar de si para outros. Minha filha mais velha, Sarah, inclusive, casou-se com um indígena, Kakatsa, e é enriquecedor observar a interação cultural deles. Por exemplo: meu genro fala baixo e não fica se repetindo (em sua cultura é preciso prestar atenção ao que os outros falam), diferente dos cariocas, como eu, que tendem a elevar a voz a fim de serem ouvidos.

Meus netos entendem português e Kamayurá (língua na qual levam as broncas) e convivem muito bem com as duas culturas. Sim, amo essas pessoas, meus irmãos, meus parentes e sinto uma alegria gigante por conta da riqueza das culturas com as quais tive o privilégio de ter contato.

Por fim, meu amigo, gostaria novamente de agradecer sua disponibilidade e enaltecer sua coragem e humildade. Gostaria de deixar algumas palavras finais?

Sim, posso dizer sem sombra de dúvida que a Igreja, corpo de Cristo, tem um papel fundamental no conhecimento, desenvolvimento, apoio e ORAÇÃO pelos missionários que trabalham com indígenas ou em áreas indígenas e pelas Etnias no Brasil, pois aqueles que se lançam no chamado de Deus com suas vidas a fim de resgatar outras, enfrentam desgaste, estresse, limitações e necessitam de quem segure a corda, de quem os suporte para que eles tenham um lugar para voltar, para que percebam-se amados e não usados. Foi assim que fui acolhido aqui na PIB Recreio pelos braços do Celebrando a Vida, estava com a corda rompida. Quem deveria estar na outra ponta, ser esse suporte e porto seguro, deixou de fazê-lo... ficamos à deriva. E foi aqui no Celebrando a Vida que encontrei irmãos dispostos a estar na outra ponta da corda, sendo bálsamo do Senhor para minha vida e, por isso, sou muito grato.

This article is from: