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ANO 11 • R$ 9,90 • www.revistacult.com.br
DOSSIÊ
J. W.
Goethe
Conheça o legado humanista do autor de Fausto, Werther e Wilhelm Meister
ENTREVISTA
Ministro da Cultura Juca Ferreira: “A Lei Rouanet é uma hipocrisia contábil”
O CENTENÁRIO DE
Claude Lévi-Strauss LITERATURA
Os irmãos Karamázov A nova tradução da obra-prima de Dostoiévski
(
ÍndiCe
Gabriel Bueno Brito de Oliveira
5 do leitor 6 cultura em movimento
Cristovão Tezza, ganhador do Prêmio Jabuti de 2008
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entrevista Ministro Juca Ferreira dita os novos rumos da cultura no Brasil
22 literatura
Homenagem traz textos inéditos da poeta ana Cristina César Nova tradução de Os irmãos Karamázov, obra-prima de Dostoiévski
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centenário O pensador do século 20, Claude Lévi-Strauss
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36 música
39 fragmentos
O colunista Francisco Bosco e as notas sobre a solidão
42 filosofia
a colunista Marcia Tiburi propõe um pensamento da superfície
44 dossiê
O conceito de literatura universal em Goethe Por Izabela Maria Furtado Kestler as razões de Werther Por Magali Moura Shakespeare em Goethe Por Wilma Patricia Mass Fausto: a busca pelo absoluto Por Eloá Heise Goethe como crítico literário Por Marco Aurélio Werle
66 oficina literária
imagens/acervo da Biblioteca Nacional
Norman Lebrecht: a música pode aumentar sua expectativa de vida?
livros Lançamentos confirmam Carlos Guilherme Mota entre os principais historiadores contemporâneos
editorial
)
Editora - Daysi M. Bregantini Diretor de redação - Marcos Fonseca Editor de Filosofia - Eduardo Socha Editor assistente - Wilker Sousa Site - Vanessa Carvalho repórter - Daniel Marques imagem de capa - ilustração sobre retrato de J. W. Goethe, obra de Joseph Karl Stieler (1781 - 1858) Diretor de arte - Maurício Francischelli Assistente da arte - Fábio Guerreiro Colaboradores desta edição - Aurora F. Bernardini, Eloá Heise, Francisco Bosco, Gabriel Bueno Brito de Oliveira, Izabela Maria Furtado Kestler, Magali Moura, Marcelo Fiorini, Marcia Tiburi, Marco Aurélio Werle, Norman Lebrecht, Wilma Patricia Mass Departamento administrativo - Dejair Bregantino Assinaturas - Monica de Oliveira Tel.: (11) 3385-3385 e-mail: assinecult@editorabregantini.com.br relações Públicas: Flávia Moreira e-mail: eventos@revistacult.com.br Publicidade em São Paulo: Júlia Farina (executiva de negócios) Gilberto R. Rala (executivo de negócios) e-mail: gilberto@editorabregantini.com.br Tel.: (11) 3385-3385 Publicidade em Brasília: Front Comunicação - Pedro Abelha e-mail: pedroabelha@terra.com.br Tel.: (61) 3321-9100 Gráfica - Parma Distribuição exclusiva no Brasil (Bancas) - Fernando Chinaglia CuLt - rEviStA BrASiLEirA DE CuLturA é uma publicação mensal da Editora Bregantini Praça Santo Agostinho, 70 - 10º andar Paraíso - São Paulo - SP - CEP 01533-070 Tel.: (11) 3385-3385 - Fax: (11) 3385-3386
Existem projetos criados apenas para captar recursos e receber os benefícios da lei Rouanet. É um negócio lucrativo. A lei que deveria beneficiar projetos culturais relevantes virou um negócio espetacular para alguns “empresários culturais” com cabeça boa para jogadas comerciais. As empresas com dinheiro para investir em cultura, quando visam exclusivamente o abatimento dos impostos, não se incomodam com a qualidade do projeto. Querem divulgação e benefícios fiscais. O Ministro da Cultura Juca Ferreira sabe disso. Ele assumiu o ministério em 30 de julho e promete acabar com as distorções monstruosas que favorecem a hipocrisia. Leia a entrevista publicada nesta edição, resultado de mais de duas horas de conversa muito emocionada, em que Juca Ferreira lembra seus tempos de exílio político e apresenta propostas lúcidas para o processo de desenvolvimento cultural no Brasil. Cultura é sinônimo de civilização. O Dossiê desta edição discute a obra universal de J.W. Goethe (1749 - 1832), escritor e pensador alemão. Os textos foram preparados especialmente para a revista CULT por renomados especialistas e é um documento essencial para a análise de seus livros. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss completa cem anos no dia 27 de novembro. A cientista social Anne-Chistine Taylor, amiga e ex-aluna de Lévi-Strauss, em entrevista concedida a Marcelo Fiorini, indica quem são os continuadores de seu trabalho e cita o brasileiro Eduardo Viveiro de Castro como um dos mais importantes. Claude Lévi-Strauss, “o intelectual do século 20” permanece em atividade e recebe ao longo deste mês uma série de homenagens. A CULT ON LINE prepara uma série de artigos sobre ele, não deixe de frequentar o site www.revistacult.com.br. Boa leitura,
CuLt on LinE www.revistacult.com.br Matérias e sugestões de pauta: redacao@revistacult.com.br Espaço CuLt espacocult@revistacult.com.br
Daysi Bregantini daysi@revistacult.com.br
ISSN 1414707-6 – Nº 130 – NOVEMBRO/2008 – ANO 11
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( Dossiê Hannah Arendt A CULT mais uma vez traz um trabalho de grande qualidade para pesquisa. Quem quiser conhecer o pensamento de Hannah Arendt deve ler a revista. Isso é jornalismo de alta qualidade. E onde? No Brasil! Maria Regina M. de A. Prado, pelo site O Dossiê editado pela revista Cult é perfeito e merece figurar entre as melhores contribuições à cultura no ano de 2008. Como professor universitário garanto a vocês que a contribuição foi da maior importância. Nathan W. Zigman, pelo site É sempre um grande prazer ler Hannah Arendt. Seus artigos são nobres fontes para a razão do pensamento social. Jairo das Neves, pelo site Entrevista Moniz Bandeira Parabéns pela excelente entrevista com Moniz Bandeira, publicada na edição de outubro da revista CULT. Admiro este cientista político e grande intelectual. Elizabeth T. Lopez, pelo site
RESULTADOS DO TESTE CULT: Edição 129 A revista CULT premia com um exemplar do livro As duas vozes - Hannah Arendt e Octavio Paz, de Eduardo Jardim, cada um dos dez primeiros participantes do teste da edição anterior sobre a filósofa Hannah Arendt. Os vencedores têm até trinta dias para retirar o prêmio na sede da revista (Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar, Paraíso, São Paulo/SP), de segunda a sexta das 9h às 18h. Confira os nomes:
do leitor
Norman Lebrecht Excelente contratação. Gostei muito da nova coluna. Paula A.M. Prado pelo site Revistas de cultura do século 19 A matéria escrita pelo jornalista Carlos Costa é enriquecedora pra quem, como eu, gosta de história bem contada. Claudio Veiga de Souza, pelo site CULT 128 - Mangabeira Unger A leitura de Mangabeira Unger é sempre instigante, essencialmente pelo caráter inovador de suas idéias. Desta vez, a minha sensação não foi diferente. O que de fato eu não entendo é o que ele está fazendo no governo Lula. Aliás, a cooptação dele e de Paulo Nogueira Batista Júnior foram os lances mais espetaculares do PT em toda sua trajetória de poder central: calaram-se duas das vozes mais nobres da intelectualidade brasileira. Marcos Borba, por e-mail
Gilberto A. C. Bessa Jr. Lucius Provase Wagner Santos Ferreira Osvaldo Eduardo Marichal Alamo Maria Luiza Quaresma Tonelli Breno de Souza Juz Wellington Bernardes Delazari Silvio Medeiros Cristiane Paiva Ebenézer Couto
As cartas devem ser encaminhadas para o e-mail cartas@revistacult.com.br ou para o endereço: Praça Santo Agostinho, 70 - 10º andar - Paraíso - São Paulo - SP - CEP 01533-070 5
Cultura em movimento
)
Por Que Vale o iNGresso? “Sem dúvida, Friedrich Wilhelm Murnau tem o seu lugar no panteão dos cineastas como um dos mais importantes diretores do cinema mudo e do expressionismo alemão. Apresentaremos na mostra Poemas visionários todos os doze filmes existentes ainda hoje em uma retrospectiva completa, quase toda em película. Reencontramos a criatura de Nosferatu, a comovente e trágica história de amor em Tabu, a câmera desvencilhada em A última gargalhada, o drama do Fausto e Mephisto, e a poesia de Aurora. “Não é exagero dizer que os seus filmes mudaram o mundo do cinema. Vale a pena (re)descobrir essas pérolas da história da sétima arte. Confiram, descubram, curtam!”
Para comemoar 120 anos do nascimento do cineasta F.W. Murnau, o Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo traz para a capital paulista a mostra Poemas visionários, que contará com os 12 filmes disponíveis do diretor alemão. O mestre do expressionismo e criador de personagens históricos, como o Nosferatu, produziu ao longo de sua carreira 21 pequenas histórias desde damas à procura do amor a sábios e seus pactos com o diabo, todas contadas apenas com a força das imagens e das trilhas sonoras cuidadosamente orquestradas. Arndt Roskens, curador da retrospectiva, defende por que o leitor da CULT deve pagar o ingresso para assistir aos filmes selecionados, que ficam em cartaz do dia 4 a 16 de novembro. A programação completa está disponível no site: www.bb.com.br/cultura
reprodução
Nosferatu, de 1922, dirigido por Friedrich Wilhelm Murnau
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CCJ
6°
Ciclo
Multicultural
Israel Contemporâneo O Ciclo Multicultural, evento realizado desde 2003 pelo Centro da Cultura Judaica, é um marco na integração de culturas diversas e oferece à população uma programação cultural e artística intensa nas áreas de teatro, dança, música, cinema, gastronomia, literatura, fotografia e artes plásticas.
19 a 30 de novembro CONFIRA A PROGRAMAÇÃO COMPLETA NO SITE:
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Cultura em Movimento
) Divulgação/Julio Covello
Poeta Waly Salomão: espalhafatoso e, ao mesmo tempo, exagerado
PAN-CINEMA PERMANENTE Estréia em novembro nos cinemas brasileiros a justa homenagem ao poeta que soube transpor sua obra para fora da página de um livro. Um personagem teatral, como gostam de definir seus amigos mais próximos, como Caetano Veloso. O documentário Pan-cinema permanente, dirigido pelo experiente Carlos Nader, conta a história de Waly Salomão, presença marcante no movimento tropicalista ao lado de Hélio Oiticica como escritor performático. Escreveu seu primeiro livro, no começo dos anos 1970, de dentro de uma cela no Pavilhão 2 do extinto Carandiru e tornou-se ao mesmo tempo uma figura que cativava todos com seu bom humor, como também alguém capaz de receber o rótulo de “excessivo”. O filme – com imagens captadas durante catorze anos pelo cineasta – ganhou
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o prêmio de melhor documentário brasileiro no festival É tudo verdade e conta com depoimentos de Adriana Calcanhoto e Antônio Cícero, que compartilharam momentos importantes de suas carreiras ao lado do poeta, filho de um sírio muçulmano e uma sertaneja baiana de Jequié. Pan-cinema permanente Dur.: 83 min. Dir.: Carlos Nader Prod.: Flavio Botelho 2007
Juca Ferreira
(
entrevista
Os novos rumos da Cultura no Brasil Há pouco mais de três meses à frente do Ministério da Cultura, Juca Ferreira pretende mudar pilares da política cultural brasileira Wilker Sousa Fotos: Gabriel Bueno Brito de Oliveira
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m 2003, o sociólogo e ambientalista Juca Ferreira foi convidado por Gilberto Gil para assumir o cargo de Secretário Executivo do Ministério da Cultura. Cinco anos depois, Gil decidiu afastar-se do Ministério para dedicar-se à carreira artística e Juca assumiu o cargo. Desde então, compromissos e discussões acerca do futuro da política cultural do país preenchem a agenda do soteropolitano de 59 anos, pai de dois filhos. Ex-militante estudantil, Juca Ferreira sofreu as agruras do regime militar. Perseguição, tortura e nove anos de exílio caracterizam
um passado duro, porém superado, segundo afirma. Ao retornar ao Brasil, participou de projetos nas áreas da cultura e meio ambiente. Em sua terra natal, foi eleito vereador por duas vezes, além de ter exercido o cargo de Secretário do Meio Ambiente. Em passagem por São Paulo, Juca Ferreira recebeu a CULT na representação paulista do Ministério da Cultura, ao lado da Cinemateca Brasileira, e nos concedeu esta entrevista. Temas como a lei Rouanet, passado político, o quadro atual e as novas perspectivas da cultura brasileira deram o tom da conversa.
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entrevista
)
Juca Ferreira
“Não há possibilidade de inserção individual e coletiva sem uma base cultural mínima que permita não só compreender o mundo, mas como operar e se mover dentro dele” CULT - Como garantir o direito à cultura? Juca Ferreira - O Estado é fundamental. No entanto, o Estado brasileiro tem um déficit de legitimidade. Depois de um longo período de autoritarismo (eu chamo até, pejorativamente, de “arenga” neoliberal), o Estado deixou de ter importância, caducou. As responsabilidades sociais eram repassadas para a sociedade e as necessidades satisfeitas pelo mercado. A crise americana aponta que nem o capitalismo, nem o mercado são capazes de sobreviver sem a regulação do Estado. A realização de direitos tem no Estado o avalista e o impulsionador. Uma política pública de cultura tem a dimensão do Estado. Não no sentido de substituir a autonomia da sociedade, de dirigir, de definir estéticas, nem opiniões, mas para criar o ambiente favorável e de plena liberdade.
CULT - Os fenômenos da globalização e da comunicação virtual transformaram a cultura em uma mercadoria descartável? JF - É inegável que a cultura de massa tende à banalização e à superficialidade, mas, ao mesmo tempo, esses mesmos meios estão hoje estimulando a leitura. Por exemplo, a Internet, longe de ser uma ameaça ao livro, tem estimulado a leitura e a escrita. Nunca se escreveu tanto no Brasil; a juventude nunca se sentiu tão motivada a escrever. A cultura refinada nunca foi para muita gente. A cultura mais sofisticada e profunda sempre foi um fenômeno restrito em que as barreiras de acesso sempre foram enormes. A cultura de massa, ao mesmo tempo que superficializou, abriu uma possibilidade de contato com esse mundo simbólico. Mas o pior já passou. Hoje há uma demanda de aprofundamento. 16
A esquerda e o período da ditadura CULT - O senhor permanece marxista? JF - Eu quero poupar os marxistas dessa carga de dizer que Marx é responsável pelo meu pensamento. Tenho autonomia, não me sinto alinhado. Acho que não tem nenhuma corrente de pensamento no momento que seja capaz de explicar a complexidade do mundo. CULT - Está surgindo uma nova esquerda? JF - Acho que existe uma nova esquerda surgindo. Essa crise vem abalando o conjunto do pensamento, mas é possível ter referências estratégicas. Eu diria três que me norteiam, se a gente quiser simplificar: compromisso com a democracia, com a sustentabilidade e com a justiça social. A combinação desses três referentes dá um território, uma certa possibilidade de pisar no chão dentro dessa complexidade. Existem pessoas que perderam essas referências. CULT - O que o senhor acha da proposta de rever a lei que anistia os crimes contra a humanidade? JF - Fui preso, fui perseguido e fui exilado, mas, a partir de um certo momento, deixei de olhar para o retrovisor. Quando eu voltei, senti necessidade, até para me revitalizar e me reinserir no mundo e na vida pública brasileira, de olhar para frente. Acho racionalmente que os criminosos têm que ser julgados e que as Forças Armadas não precisam se identificar com eles. Apesar da ditadura ser militar, empresários participaram, juízes, intelectuais. Então a cumplicidade era muito mais ampla do que os quartéis. Mas acho que tencionar o Brasil, no momento em que a gente está se preparando
para um novo ciclo de desenvolvimento, com essa questão, talvez seja jogar a âncora e segurar o barco. Eu espero que a gente tenha uma lucidez de que há uma repactuação impressionante no Brasil. A punição aos torturadores e o enfrentamento dos crimes que foram cometidos não devem nos levar ao erro de dificultar esse processo de construção de um sentimento de nação e de... (emociona-se) uma possibilidade de construção de um país democrático. CULT - O esquecimento dos “excessos” do passado não é um preço muito doloroso pago para garantir a estabilidade democrática? JF - Há um déficit no processo porque os crimes que foram cometidos em nome do Estado e a partir do Estado devem ser resolvidos. Uma vez eu estava almoçando em um restaurante popular da Bahia, que é o Juarez, tem um filé excelente, e as mesas são coletivas. Aí uma pessoa me disse assim: “Juca, dá licença, eu vou sentar aqui”. Quando eu olhei, era um torturador da Polícia Federal. Aí eu disse: “Não, na minha mesa você não senta”. Ele disse: “Mas a anistia nos anistiou”. Eu disse: “Mas a você, eu não anistio”. CULT - Como foram os anos de exílio? JF - O exílio foi até uma saída para aquela situação de horror. Evidente que você sair obrigado, você...(emociona-se). Pessoas muito próximas enlouqueceram. Eu não gosto da situação argentina a respeito da anistia. Quando eu vou lá, tenho a sensação de que eles não conseguem se reciclar e enterrar a ditadura. Para enterrar o passado não precisa esquecer, não deve esquecer e nem perdoar os crimes que foram cometidos, que são crimes contra a humanidade. 17
Seleção
) Livros
oS teSouroS da paSta roSa Antigos e soltos reúne textos inéditos de Ana Cristina Cesar Acervo iMs
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á 25 anos, a poesia brasileira perdia um de seus ícones, a carioca Ana Cristina Cesar (1952 1983). Dona de um estilo elíptico, o qual derruba as fronteiras entre ficção e confissão, Ana Cristina apresenta em seus poemas um eu lírico fragmentado, sem lugar no mundo. Em homenagem à autora, o Instituto Moreira Salles lança Antigos e soltos, livro que traz à tona textos inéditos que estavam presentes na pasta rosa de Ana Cristina. São rascunhos, poemas, fragmentos de diário, relatos de viagem, bilhetes, além de cartas que não foram enviadas. Após a morte da poeta, em 1983, o material ficou sob os cuidados de sua mãe, Maria Luiza, e posteriormente foi doado ao Instituto Moreira Salles, onde
foi catalogado por Manoela Daudt D’Oliveira. Para a publicação, a professora de Literatura da USP e ensaísta Viviana Bosi reorganizou o conteúdo. “Procurei, ao longo da pasta, as várias versões de cada texto, de forma que o leitor pudesse conhecer a ‘culinária’ do trabalho literário da autora, nas diferentes fases do processo de escrita e reescrita”, comenta Viviana Bosi. O tom confessional, presente em sua poesia, seduz, convida o leitor e o transforma em cúmplice e interlocutor das agruras do eu lírico. Porém, logo surgem as ambigüidades presentes nesse convite. Segundo Viviana Bosi, “Seu estilo elíptico, em que as fraturas de sentido são expostas sem tentativas de falsa coesão, causa espanto e atração nos leitores”. 22
Antigos e soltos Ana Cristina Cesar Org.: Viviana Bosi (Instituto Moreira Salles) 480 págs. Preço: a definir
Síntese do profeta russo Chega este mês às livrarias Os irmãos Karamázov, edição vertida diretamente do russo por Paulo Bezerra
C
onsiderado por Boris Schinaiderman a obra-prima de Dostoiévski, Os irmãos Karamázov reúne os grandes dilemas que nortearam a trajetória literária e vida do autor, como o poder avassalador do dinheiro, além de embates entre moral, liberdade e o poder sobrenatural. O tradutor Paulo Bezerra acredita que na obra “a profundidade da representação da psicologia das personagens não conhece paralelo na história da literatura”. Os desafios da tradução, a análise do universo literário dostoievskiano, bem como as principais marcas do autor, são comentados por Paulo Bezerra na entrevista a seguir: CULT - Quais as principais deficiências das traduções indiretas? Paulo Bezerra: A meu ver são duas as principais deficiências. A primeira diz respeito à propriedade da linguagem. No caso específico de Dostoiévski, as traduções via francês ou inglês o transformam em escritor francês ou inglês falando de temas russos. A dicção áspera, às vezes até meio tosca, tão característica do estilo de Dostoiévski ganha uma suavidade que nada tem a ver com ele. A segunda deficiência diz respeito às questões semânticas. Há uma infinidade de deturpações do original nos textos traduzidos do francês, do inglês e de outras línguas. No capítulo É curioso conversar com um homem inteligente, por exemplo, o adjetivo “curioso”, em russo liobopitno (também interessante, escrutador) foi traduzido como “dá gosto” nas versões francesa e inglesa. Só que Smierdiákov, figura diabólica, por interesses ainda obscuros está sondando Ivan e sua relação com o pai, e por isso o acha curioso. Jamais diria que sentia “gosto” em conversar com ele. CULT - Você levou três anos para concluir a tradução do livro. Quais os principais desafios impostos por essa obra especificamente? PB - Um dos maiores desafios foi traduzir as falas das personagens, porque, como Dostoiévski as estiliza muito pouco, elas aparecem em sua quase naturalidade, às vezes toscas, meio desarticuladas, atabalhoadas. A fala de Smierdiákov mescla sua pouca cultura com a fala erudita de Ivan, e o resultado é uma cultura de pacotilha num estilo arrevesado com momentos de dificílima compreensão. A fala do velho Karamázov alterna tantas coisas abstrusas que lembra alguém com acesso de clownismo. Outro desafio tremendamente difícil foi traduzir as falas do velho monge Zossima, nas quais se mesclam o russo eclesiástico com o russo comum. Também houve passagens de extrema dificuldade no discurso do narrador. CULT - Cabe ao bom tradutor mergulhar no universo daquele autor que traduz na tentativa de que o trabalho seja bem sucedido. No que se refere a Dostoiévski, como enfrentar a tensão que ele impõe à narrativa? PB - Considero impossível traduzir Dostoiévski sem um grande convívio prévio com o universo de sua obra, com a cultura e a literatura russa, sobretudo com Gógol de O capote e Diário de um louco. Ele é o preâmbulo para se ler 23
O duplo, o grande laboratório da linguagem e dos diálogos em Dostoiévski, muito presentes em Os irmãos Karamázov. Acho ainda que o conhecimento da obra de Mikhail Bakhtin sobre o discurso em Dostoiévski é indispensável ao entendimento de sua obra e seu estilo, assim como à sua tradução. CULT - Boris Schinaiderman aponta Os irmãos Karamázov como o mais rico dos romances dostoievskianos. Você partilha dessa opinião? PB - Em termos estéticos, eu o considero o romance mais bem acabado de toda a safra de Dostoiévski. Nele a literatura se revela plenamente como um grande diálogo de culturas. O romance interage dialogicamente com Victor Hugo, Dante, Goethe, Byron, Flaubert, Shakespeare, o conjunto da literatura russa, a Bíblia, os mistérios medievais, a hagiografia, e tudo estribado numa concepção de romance em que os aspectos filosófico, psicológico, religioso e o social estão subordinados ao procedimento polifônico de construção do discurso romanesco em que falam as vozes representantes do vastíssimo mundo da cultura. Como painel humano, a profundidade da representação da psicologia das personagens não conhece paralelo na história da literatura. A cena da criança entregue à sanha dos cães de um general no capítulo A revolta mostra como o método realista de Dostoiévski é capaz de descer aos mais funestos esconderijos da alma humana, assim como de mostrá-la aberta à beleza e à plena solidariedade e a um humanismo participativo na figura de Aliócha, de Zossima e do próprio Ivan.
Os irmãos Karamázov Fiódor Dostoiévski Trad.: Paulo Bezerra (Editora 34) 1040 págs. - R$ 98
Centenário
) Lévi-Strauss CULT - Mesmo no caso de antropólogos como Marshall Sahlins, que dizem ter uma afinidade com o estruturalismo? ACT - Sahlins talvez seja o mais próximo de uma variante do estruturalismo de Lévi-Strauss na antropologia americana. Trata-se de alguém que realmente compreendeu o estruturalismo como perspectiva, mas ele mesmo não é, de forma alguma, um estruturalista. No mais, não vejo ninguém nos Estados Unidos que tenha tido um diálogo fecundo com o trabalho de Lévi-Strauss. Na Inglaterra houve pelo menos pessoas que responderam à obra de LéviStrauss, ao passo que nos Estados Unidos, acho que praticamente isso não existe. CULT - Parece que há uma certa progressão no trabalho de Lévi-Strauss, que começa com as Estruturas do parentesco e outras estruturas sociais, passando pela mitologia que ocupa o seu trabalho durante as Mitológicas, e que acaba com uma preocupação com a antropologia da arte, ou das artes, por assim dizer. O que teria levado Lévi-Strauss a esta trajetória? ACT - Não sei se podemos dizer que tenha havido realmente uma mudança de ênfase para as artes. Acho que Lévi-Strauss poderia ter escrito seus artigos sobre grandes músicos ou pintores muito antes do que o fez. Acho que temos que avaliar isto sempre levando em conta o fato que uma obra sempre depende do contexto de uma carreira e da necessidade da legitimação de uma posição universitária, da defesa de uma perspectiva e de uma forma de pensar. Há sempre um caráter estratégico em nossas carreiras. É claro que nas Estruturas elementares do parentesco, por exemplo, já há toda uma elaboração de um argumento intelectual, mas é com Antropologia estrutural 1 e 2 que Lévi-Strauss define um método e se posiciona. Estes livros representam, portanto, a batalha pela conquista de uma posição institucional e a legitimação de uma certa perspectiva. Creio que a partir dos anos 1970, Lévi-Strauss já teria sido complemente capaz de escrever um artigo sobre este ou aquele artista. Acho, portanto, que essa aparente mudança de ênfase trata-se mais de uma questão de sociologia do saber, ou de políticas editoriais, do que do progresso real de uma forma de pensamento. Lévi-Strauss sempre esteve ligado à questão da arte. La voie des masques (“A via das máscaras”), por exemplo, é um
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livro sobre a transformação, ou a extensão das transformações inerentes a um sistema mítico, em um sistema plástico. Ele é um prolongamento das Mitológicas, no sentido que é um estudo das formas plásticas como um outro registro dentro de um sistema de transformações. Portanto, ao meu ver, a arte esteve sempre presente no pensamento de Lévi-Strauss e sempre o nutriu, desde o início. CULT - Qual a importância atual do trabalho de Claude Lévi-Strauss? ACT - Lévi-Strauss é celebrado como “o grande pensador da atualidade”, o que ele não deixa de ser. Acho que ele é muitas vezes aceito como um expoente do pensamento, mas que já pertence há um certo império de grandes escritores apenas para referência. A influência de Lévi-Strauss na antropologia hoje em dia talvez seja mais clara no trabalho de outros antropólogos. Acredito que nossos estudantes leiam-no muito menos do que antes. CULT - Qual sua opinião sobre a inclusão da obra de Lévi-Strauss na Pléiade? ACT - É muito importante, pois Lévi-Strauss não é somente um grande pensador, mas também um grande escritor. O volume da Pléiade é admiravelmente editado pela Gallimard, as anotações são excelentes, todo o aparato crítico é formidável. Lastimo que muitos livros foram deixados de fora. Não digo em respeito às Mitológicas, mas, principalmente, a Estruturas elementares do parentesco, ou aos dois volumes de Antropologia estrutural. Não sei porque a escolha de publicar apenas os livros considerados “mais literários” ou obrigar Lévi-Strauss a portar um “chapéu literário”. Há algo mesquinho nisto tudo. Nós publicamos Karl Marx na Pléiade, por exemplo, e nem por isso escolhemos o Marx mais “literário”. O volume de Lévi-Strauss na Pléiade já vendeu mais de 17.000 exemplares. Todos teriam comprado, acredito, o segundo volume, mesmo se não fossem lê-lo. Acho que muitos não leram também Das capital de Marx do princípio ao fim. CULT - Algo que me parece pouco compreendido é a questão da participação de Lévi-Strauss no âmbito da vida pública e não só no contexto intelectual. Quais os momentos de sua vida que poderiam ser considerados significativos neste sentido? ACT - Se falarmos do engajamento político, Lévi-Strauss era próximo da SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária) quando ele ainda era jovem, quando era estudante da escola normal. SFIO foi o partido que deu origem ao socialismo não comunista na França. Depois da guerra houve o episódio UNESCO, e não é por acaso que seu engajamento tenha se realizado por uma instituição internacional. Como emanação da ONU depois da guerra, a UNESCO foi a princípio uma instituição que se ocupava das relações culturais entre os países, uma instituição mais combativa e participativa do que ela se tornou depois. Uma instituição capaz de engendrar Raça e história tem que ser considerada uma instituição de muita seriedade. Além disso, algo que não foi ainda reconhecido é, apesar de sua opção pelo não engajamento político mais recentemente, Lévi-Strauss foi sempre um grande homem de instituições. O Laboratório de Antropologia que ele criou no Collège de France, por exemplo, foi e tem sido muito importante para a disciplina na França. Lévi-Strauss soube sempre negociar, e muito bem, a posição das instituições que ele representou, desde sua passagem pela UNESCO.
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Filosofia
)
Livros
Clássico e controverso Lançamentos confirmam o lugar de Carlos Guilherme Mota entre os principais nomes da historiografia contemporânea nacional
P
rofessor de história contemporânea na USP, de história da cultura na Faculdade Mackenzie e colaborador do curso de Direito da FGV, Carlos Guilherme Mota tem uma trajetória que sempre questionou os rótulos intelectuais e o senhorio de autoridades beneméritas. Sua tese de livre-docência Ideologia da cultura brasileira (1933-1974) já contestava de frente uma certa linha da historiografia brasileira que celebrava a universalidade conciliatória dos conflitos nacionais, que procurava insistir no mito social da cordialidade e da complacência ambígua nos diversos modos de relação entre classes: basta lembrar o conceito de “democracia racial”, elaborado por Gilberto Freyre. De quebra, Mota fornecia uma introdução à formação do pensamento brasileiro no século 20, buscando o substrato crítico capaz de reunir interpretadores de tradições distintas, como Fernando de Azevedo, Raymundo Faoro, Antonio Candido e Florestan Fernandes. Este último, aliás, não hesitou em classificar a tese como “obra já clássica”, enquanto Antonio Candido resumiu o livro como “do contra”. Em tempos de amargas desmemórias (como mesmo lamenta o autor), são animadoras tanto a reedição de duas de suas obras maiores, devidamente contextualizadas para o leitor de hoje, quanto o lançamento de História do Brasil - uma interpretação, livro monumental com mais de mil páginas, escrito em parceria com a historiadora Adriana Lopez. Além do próprio Ideologia, que já passou por uma dezena de reimpressões e desta vez traz longa apresentação sobre o contexto originário e a “estranha” atualidade de suas teses, agora recebe uma nova edição também a dissertação de mestrado do historiador, A idéia de revolução no Brasil, acrescida de textos dispersos em torno de uma de suas temáticas preferidas: a idéia de nacionalidade e de identidades culturais. Influenciado pelo espírito universitário de época, então empenhado com as formas de pensamento e de mentalidades no processo
histórico brasileiro, Mota analisa o ideário que aparece na trasição entre o sistema colonial e a ordem moderna nas últimas décadas do século 18, apontando para o caráter paradoxalmente conservacionista no gesto revolucionário da transição. Embora considere o livro datado quanto ao recorte metodológico, subsiste a observação, ainda válida hoje em dia, de duas forças que atravessam nossa história: o discurso conciliatório das elites, alimentando a cultura da impunidade e do clientelismo, que remonta Pedro II; e a força da resistência à opressão, das quais a insurreição colonial e a insurreição republicana nordestina de 1817 são casos emblemáticos. Já História do Brasil – uma interpretação propõe uma síntese crítica, voltada ao leitor não-especializado, dos principais eventos da história brasileira, destacando as personalidades que conduziram suas transformações políticas e econômicas. Ambição de sobrevôo e quase messiânica, poderíamos dizer, se levarmos em conta o grau cada vez maior de especialização do meio universitário. Mas, como indica o título, trata-se de uma interpretação, cuja estratégia historiográfica envolveu o desafio de narrar uma história livre de modismos, do jugo de uma facção universitária específica. Ou seja, o desafio de buscar retrospectivamente a tendência na série de mudanças estruturais em cinco séculos para melhor balizar a questão “quem somos nós”. Uma interpretação que denuncia mazelas e não esconde decepções, mas que apresenta os motivos para uma eventual e esclarecida esperança. (Eduardo Socha)
Histórias do Brasil uma interpretação Carlos Guilherme Mota e Adriana Lopez (Editora Senac) 1056 págs. R$ 150 34
Ideologia da cultura brasileira Carlos Guilherme Mota (Editora 34) 424 págs. R$ 52
A idéia da revolução no Brasil e outras idéias Carlos Guilherme Mota (Editora Globo Livros) 496 págs. Preço a definir
outro iníCio Para Heidegger, a tarefa legítima de uma introdução à filosofia é despertar livremente o filosofar que já nos habita Nestas preleções do curso de 1928-29 em Freiburg, Heidegger não convida apenas ao conhecimento historiográfico e panorâmico dos filósofos, nem somente ao modo de organização, ainda que instável, das disciplinas filosóficas. De início, deseja questionar o próprio sentido de uma introdução à filosofia, ou ainda, de uma marcha ao filosofar. Pois a palavra “introdução” pressupõe em seu sentido primordial que estejamos fora do âmbito ao qual se pretende adentrar. Essa seria a ilusão fundamental, para Heidegger, da maior parte dos manuais de introdução que, descrevendo resumidamente em sistemas os objetos da filosofia, na verdade, “não fazem outra coisa que conduzir para fora da filosofia”, dando a aparência do contrário. Contudo, prossegue o autor, sempre filosofamos, mesmo quando não sabemos nada sobre filosofia, na medida em que sua essência é “ser uma possibilidade finita de um ente finito”, na medida em que o “ser-aí humano como tal já se encontra na filosofia”. Isso já mostraria o caráter problemático de uma habitual introdução à filosofia. No contexto heideggeriano, introduzir significa então “pôr o filosofar em curso”, como se o filosofar sempre estivesse em nós em estado latente, pronto a ser despertado. Para tanto, é necessária uma pré-compreensão da filosofia, de seus impasses, de sua história como acontecimento do ser-aí.
Embora o conhecimento da literatura filosófica não seja suficiente para seu despertar, é equívoco compreender a filosofia a partir de recusa da tradição, à moda de um misticismo cego, disperso e ao mesmo tempo petrificado. O eixo fundamental do curso / livro consiste, portanto, em introduzir a filosofia considerando suas relações com a ciência e com a noção essencial de verdade (como descerramento e como descoberta) para em seguida avaliar suas relações com aquilo que o autor denomina “visão de mundo” e a história. Esse caráter introdutório acaba por oferecer um modo de acesso privilegiado à temática ulterior do próprio Heidegger de Ser e tempo, eliminando com isso o anátema de excessivo hermetismo que geralmente se atribui a seu pensamento; afinal, como nos indica o tradutor desta primeira edição brasileira (cujo trabalho primoroso parece estar perfeitamente alinhado, pela justificativa de suas escolhas, ao propósito mais íntimo do texto), a homogenização da obra heideggeriana a partir do tom de certas passagens conhecidas e específicas é o pior que poderia acontecer para qualquer interpretação de sua obra.
Introdução à Filosofia Martin Heidegger Trad.: Marco Antonio Casanova (Editora Martins Fontes) 452 págs. R$ 69,80
MARX EM TEMPOS DE CRISE Em entrevista concedida no mês passado, no ápice da maior crise do capitalismo desde 1929, o historiador Eric Hobsbawm foi enfático em relação à necessidade de (re)lermos a obra de Marx, seja pela sua influência, seja pelo seu estilo ou ainda pelo seu potencial de transformação. “Marx não regressará como inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista”, disse o historiador. Neste volume da coleção “Folha explica”, o também historiador Jorge Grespan, professor da USP, introduz alguns dos conceitos fundamentais do vernáculo de Marx, alinhados de acordo com uma perspectiva dialética do capitalismo - alienação, fetichismo, ideologia, crise e revolução, aparecem assim descritos de forma acessível (estratégia que se assemelha ao próprio estilo de Marx, que sempre procurou ser entendido), Grespan procura atualizar a teoria crítica da sociedade numa linguagem atual, a fim de desmascarar a pretensa naturalidade das desigualdades sociais e dos mecanismos do mercado. Karl Marx • Jorge Grespan • (Série “Folha explica” - Publifolha) • 96 páginas • R$ 17,90 35
Coluna
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Filosofia
Uma filosofia da superfície Quem não presta atenção às superfícies se torna superficial Marcia Tiburi
T
oda a questão do conhecimento, como desejo de penetrar os fenômenos e dizer sua lógica, organização e funcionamento, pode ser pensada a partir do que se deve denominar uma filosofia da superfície. Aquela que se dedica a tratar crítica e analiticamente o mundo das superfícies. O que é uma superfície? É um fato geométrico e um conceito filosófico. De que importa, afinal, a superfície para o indivíduo que não é nem geômetra, nem filósofo? A compreensão pode começar pela análise da palavra em seus usos mais comuns. Filosofia é também a prática de desmontar palavras e descobrir o desenho em negativo que cada uma delas guarda. Prática de fotógrafo de conceitos antes da invenção das máquinas de revelação. Os conceitos nada mais são do que desenhos das coisas, por meio das quais podemos acessá-las como coisas “conhecíveis”. Não é exagero dizer que esta descoberta é como a do geômetra. Porém, quando, no contexto do nosso senso comum, falamos em superfície, não é difícil associar a palavra à mais corrente superficialidade, uma espécie de caráter da superfície que está presente nas coisas. Ao falar de superfície, não faltará quem diga, fazendo um uso curto do conceito, que se trata de uma fala superficial. Prestar pouca
atenção às palavras é que o é. Superfícies são o lado das coisas que, mesmo tendo outro lado, ou seja, tendo um fundo, caracterizam-se por não terem um pro-fundo necessário. Nosso maior preconceito em questões de conhecimento é a crença de que é preciso afundar no pro-fundo. Mas nem tudo neste mundo é pro-fundo. As superfícies caracterizam-se pela oposição a um fundo mesmo que seja in-profundo. Um fundo pro-fundo, na verdade, não é necessário para a superfície, já que o próprio fundo pode ser apenas a superfície vista por outro lado, o lado inverso. O avesso. Como revela a etimologia da palavra, superfície é a face superior de algo. A face inferior seria algo como uma “inferiface”. Superfície, no entanto, seria a “inferiface” a que chamamos fundo, o fundo invertido seria super-face. O fundo em relação ao seu outro lado também é superfície. Trata-se, portanto, do lado externo de um corpo, não importa que corpo. A pele é superfície, assim como a parte de fora do planeta terra. A superfície pode ser um lado, ou o outro lado. Em geometria, um exemplo básico de superfície pode ser a folha de papel. A geometria pode tratar da superfície infinitamente por que tudo que há no mundo possui ou é uma superfície. Do ponto de vista de uma filosofia 42
da superfície, todo processo do conhecimento se dá como uma determinada relação com a superfície. Uma filosofia do fundo, que aprendesse a olhar o lado de trás é o contrário desta filosofia da superfície. Toda a filosofia construída até hoje deixou de lado esta metáfora até Vilém Flusser nos acordar para o fato de que vivemos num mundo de imagens que são superfícies. Um mundo que é representado em telas. Flusser, preocupado com a imagem técnica mais do que com a imagem anterior à invenção da fotografia, fala de um mundo de fotografias e de imagens de outdoors, do cinema e da televisão. É preciso lembrar que, das paredes das cavernas onde eram pintados animais em rituais de caça, às paredes das igrejas onde eram pintadas as imagens da via sacra, até as telas das pinturas modernas e contemporâneas, o que vemos são superfícies. Superfícies são feitas para suportar algo ou para serem vistas. Nossos sentidos só se relacionam às superfícies das coisas. Sobretudo nosso olhar que, mesmo sem poder tocar nas coisas, atinge e é atingido por elas. Era isto o que Merleau-Ponty deixou claro ao afirmar o caráter táctil do olhar. A cultura se encaminha para novas formas de relação entre os sentidos corporais e o mundo externo, produzido pela racionalidade humana que
não pode ser dissociada das potências corporais do ser humano. Mesmo que nossas relações se tornem cada vez mais virtuais e dirijam-se ao campo de nossa experiência táctil, enquanto houver olhar, haverá superfície. Enquanto houver superfícies, haverá olhar, mesmo que a superfície tente eliminá-lo.
racionais. Não precisamos usar a superfície para explicar o mundo, porque ela mesma é parte do mundo que exige explicação. Ela é um dado da realidade ao qual nos relacionamos. A superfície pode ter uma aparência ou ser mais, a própria verdade.
Superfície X aparência
Flusser foi quem afirmou que toda imagem é superfície. Nossas relações com as imagens são relações marcadas pela experiência intelectual com as superfícies. Conhecer é crer que vemos para além delas. Nosso desejo, o desejo de quem pensa, é o de ver além. Telas de televisão, telas de cinema, cartazes, páginas de revistas ilustradas, são os exemplos de Flusser quando escreveu seus textos nos anos 1980. Fotografias, pinturas, tapetes, vitrais e inscrições rupestres são os exemplos que ele dá do passado no qual, nos diz, as superfícies eram raras. Flusser define o mundo das superfícies como antagônico ao mundo das linhas. O que equivale à diferença entre imagem e escrita. As linhas sempre existiram em busca de explicações sobre a vida tridimensional do mundo e a vida bidimensional das superfícies que tanto representam o mundo como fazem parte dele. A escrita como ação da linearidade contra a imagem, devemos dizer, é como a filosofia que adquire seu sentido enquanto ação iconoclasta. Uma filosofia das imagens hoje buscaria exercitar-se no intervalo entre a ação crítica que desmonta a imagem como ilusão enquanto, ao mesmo tempo, reconhece o conteúdo de verdade da imagem como conhecimento. Ainda que todo conhecimento participe, por definição, da crença, em si mesma ilusória, de que é possível ir além da ilusão. Poderia o conhecimento ser a crença que nos liberta da crença? O que se deve investigar hoje é algo que já estava inscrito na famosa alegoria da caverna do livro VII da República de Platão, na qual se encena
Há a confusão a ser revista entre superfície e aparência. Enquanto a aparência é uma categoria metafísica, a superfície é muito mais uma categoria gnosiológica. Categorias metafísicas, ou seja, aquelas que tentam explicar ou interpretar o “ser”, ou, em palavras mais simples, aquilo que existe, o que há, podem também ser usadas em sentido moral. Deste ponto de vista, a superfície é aquilo que revela nossos valores e preconceitos ou que os esconde. Por isso, é possível associar a superfície ao superficial. Categorias metafísicas e éticas podem também expressar questões estéticas, ou seja, aquelas que dizem respeito simplesmente ao que podemos perceber com os sentidos. Sendo que perceber ainda não é pensar reflexivamente. Seja em que campo for, a categoria da aparência envolve em sua própria definição a existência de algo que não pode ser visto. Não se pode pensar a aparência sem a essência. Nem a essência sem a aparência. A dialética é o melhor modo de pensá-las, como mostrou Hegel no século 19. O conceito de aparência está intimamente conectado com o de superfície, mas é dele sutilmente diverso. Enquanto a aparência é um conceito em sentido estrito, pois não a podemos entender sem a palavra que a representa, “superfície”, no entanto, quase não é um conceito dado seu caráter de realidade fisicamente tangível. Mais correto é dizer que a superfície é um conceito limiar, diverso de um conceito puro, aquele que se estabelece a priori por estratégias puramente
A filosofia da tela
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o problema do conhecimento, mas também o que se revela no mito de Narciso, ele mesmo uma alegoria do autoconhecimento. O que nos dizem estas alegorias? Que toda a questão do conhecimento está confusa com a ilusão. Que conhecer não é outra coisa que duvidar do que se vê. Do contrário fica-se preso às sombras do fundo da caverna ou à imagem no lago. A conseqüência ética é o impedimento da liberdade que equivale à morte simbólica quanto ao sentido do próprio conhecimento. Conhecer é romper com a ilusão. Nossa sociedade, infelizmente, inverte o processo e hoje o próprio conhecimento é o que nos leva à ilusão. Ele ocupa o lugar da ilusão não para eliminá-la, mas para refazer seu processo validando-o em seu próprio favor. Na disputa entre a ilusão e o conhecimento, a vitória é sempre da ilusão. Mas essa vitória não se exerce contra o seu contrário, ela é apenas a revelação do fundo próprio do conhecimento que jamais consegue ser a plena eliminação do véu que tudo tapa impedindo a realização do olhar que não pode se satisfazer com a ilusão. O olhar é a experiência em que o sentido da visão é posto à prova. Não é apenas a capacidade ocular, mas um movimento que ampara ou desampara o sujeito que vê. O olhar é o intervalo, o que habita e formula a relação entre superfícies. É o sentido que deve ser salvo por uma filosofia da superfície, aquela capaz de reunir, quem sabe finalmente, a imagem e sua crítica.
marcia.tiburi@terra.com.br
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Johann Wolfgang von goethe
Divulgação/artmosphere/© andy Warhol
dossiê
Goethe - 1982, primeira obra de Andy Warhol da série que retrata figuras consagradas da cultura ocidental
Índice do Dossiê
46 O conceito de literatura universal em Goethe
Para Goethe, o ideal da Weltliteratur se contrapõe à estreiteza nacionalista do romantismo alemão Izabela Maria Furtado Kestler
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50 As razões de Werther O papel da sensibilidade na formação da individualidade Magali Moura
IMAGEM PERFEITA DO GÊNIO
P
ara além do fato consabido de pertencer ao cânone da cultura ocidental, para além do amálgama supreendente entre biografia e obra que sua existência produziu, Goethe (1749-1832) mobiliza um interesse peculiar para nós nos dias de hoje. Pois rever seu percurso intelectual responde a um duplo propósito, nem tão evidente quando se fala do escritor alemão, caricaturado pelo pathos romântico do Werther ou pelo rigor descritivo da soberba fáustica. Em primeiro lugar, Goethe era acima de tudo um polímata, no sentido forte do termo: dedicava-se, como sabemos, não apenas à literatura (em sua dimensão poética, romanesca, dramatúrgica ou de crítica) e às artes plásticas, mas versava com propriedade sobre temas que iam da anatomia à ótica, da botânica à zoologia, da mineralogia è meteorologia. Em um mundo que exorta continuamente o conhecimento à sua fragmentação instrumental, que reduz o saber à tarefa exclusiva de especialistas, e que estabelece por isso uma visão de mundo estreita e propensa ao dogmatismo, o projeto multifacetado da obra de Goethe pode parecer à primeira vista um exercício de diletantismo datado e atualmente insensato. Desvelar essa aparência e questionar o saber compartimentado, contudo, é justamente um dos propósitos que a leitura de Goethe hoje pode cumprir. Em segundo lugar, a concepção de “literatura universal” desenvolvida por Goethe (ver texto neste dossiê) talvez possa fornecer as coordenadas fundamentais para a reflexão apurada sobre o multiculturalismo, tema cada vez mais urgente. Pois não se deseja essa globalização que tende a homogenizar culturas e esterilizar diferenças regionais a partir de um padrão ideologicamente hegemônico. Pelo contrário, o que se busca, como queria Goethe, é a intensificação das diferenças culturais pela circulação das idéias
sem hierarquias, pela necessidade de um contato desarmado com outras tradições; um contato que afinal dinamiza o pensamento. Se isso não era tão óbvio na época de Goethe, é surpreendente que mesmo hoje não o seja. Por fim, lembremos que, ao longo dos 83 anos do poeta, o mundo germânico passou praticamente de seu estágio medieval para o início da modernidade técnica e industrial. Frederico II ainda era o rei da Prússia e Johann Sebastian Bach estava vivo, quando Goethe era jovem; ao morrer, Karl Marx era adolescente e Richard Wagner já tinha vinte anos. Durante a vida de Goethe, Hegel e Beethoven nasceram e morreram. Se, por um lado, o universalismo atemporal é umas das marcas inegáveis de sua obra (como afinal de todo grande clássico), por outro, ela representa o testemunho privilegiado de uma época marcada por profundas transformações. Seu interesse é, portanto, mais do que simplesmente histórico ou circunstancial; ele se amplifica, na verdade, em épocas de grandes mutações, como a nossa. Dado o peso de sua herança na literatura ocidental, optamos neste dossiê pela análise da obra literária de Goethe. Assim, Izabela Kestler explica o conceito de literatura universal, apresentado por Goethe como programa estético de intercâmbio cultural para os escritores e poetas; Magali Moura fala sobre a polêmica em torno de Os sofrimentos do jovem Werther, ícone do movimento romântico que à época de sua publicação teria levado vários jovens ao suicídio; Wilma Patricia Mass examina a influência de Shakespeare sobre o pensador alemão; Eloá Heise expõe as origens do mito de Fausto e da estrutura da peça emblemática do autor; Marco Aurélio Werle apresenta, por fim, o trabalho de Goethe como crítico literário. Acreditamos, com isso, oferecer uma sólida introdução à obra daquele que foi, nas palavras de Walter Benjamin, “a imagem perfeita do gênio”.
54 Shakespeare em Goethe 57 Fausto: a busca
61 Goethe como
A descoberta de Shakespeare, comparada ao milagre que restitui visão ao cego, marca a autonomia de Goethe frente ao modelo neoclássico
Drama filosófico que, ao mostrar a procura como fonte pulsante da vida, transfigura-se em odisséia do homem moderno
Talvez por se sentir seguro de sua obra, Goethe parecia assumir uma postura paternalista e “solidária” diante de outros poetas
Wilma Patrícia Maas
Eloá Heise
Marco Aurélio Werle
pelo absoluto
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crítico literário
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Johann Wolfgang von Goethe Retrato de Friedrich Schiller (1759-1805), obra de Gerhard von Kügelgen
Reprodução
dossiê
Características principais do conceito de Weltliteratur
Depreende-se de suas reflexões expostas em cartas, conversas e resenhas que Goethe entende Weliteratur não no sentido de um cânone literário de obras exemplares e muito menos no sentido de um sumário quantitativo sempre crescente de obras literárias de todas as épocas e lugares. Goethe denomina de Weltliteratur o que atualmente chamamos de intercâmbio e comunicação intercultural, nos quais se manifestaria o que há em comum entre as diferentes culturas, sem que se apague a individualidade que se 48
baseia em diferenças nacionais. No sentido prático, Weltliteratur se refere à tarefa dos escritores e poetas, que devem fomentar o intercâmbio intelectual através de traduções, resenhas, discussões e encontros pessoais. A idéia da universalidade da poesia combinase no conceito goetheano de Weltliteratur à necessidade da prática da tolerância entre os povos, da aceitação das diferenças culturais e da ênfase no universalmente humano. Além disso, correlaciona-se também aos princípios humanistas e de formação da humanidade (Bildung der Menschheit) provenientes da Aufklärung (Iluminismo). Não se baseia em
idéias de homogeneização cultural e muito menos em noções particularistas, sectárias, de uma suposta superiodade cultural de determinados povos ou em ideais patrióticos. Pelo contrário. Para Goethe, já desde a época do assim chamado Classicismo de Weimar, ou melhor, de sua coalizão estética com Schiller a partir de 1794 e até a morte deste em 1805, não se tratava de valorizar o estritamente nacional em detrimento do universal. O próprio Classicismo de Weimar, além de alicerçar a Antigüidade clássica como paradigma estético, trazia em seu bojo ideais de humanidade e a reivindicação da Bildung (formação humana) como tarefa necessária na história da espécie humana, já presente em vários pensadores da Aufklärung, e também em Herder. Tal reivindicação, que faz par com as idéias de educação estética de Schiller como forma de aperfeiçoamento do ser humano através da arte, constitui um ideal utópico por excelência que era contraposto à própria época - fins do século 18 e inicio do século 19 - marcada não só pelo desenrolar dos acontecimentos deflagrados pela Revolução francesa como também pelo florescimento na Alemanha dos ideias nacionalistas no contexto das guerras e invasões napoleônicas. O repúdio ao patriotismo caracteriza tanto os ideais estéticos da época clássica como as reflexões de Goethe em torno da Weltliteratur.
Contraposição ao Romantismo alemão
Apesar de se manter fiel ao paradigma da Antigüidade clássica como modelo atemporal de perfeição e beleza, Goethe ao menos a partir de 1805, como se evidencia em seu texto Winckelmann und sein Jahrhundert (Winckelmann e seu século), no qual ele faz uma retrospectiva do legado wickelmanniano em relação a sua própria estética, está ciente de que o Classicismo pertence inexoravelmente ao passado. A própria criação da revista Kunst und Althertum caracteriza o empenho de Goethe em se apropriar e se aproximar da produção romântica de seu tempo, assim como daquela da Idade Média alemã, tão cara aos românticos. Apesar dessa aproximação, Goethe manifesta de forma cabal um certo
distanciamento e preconceito em relação à literatura alemã de sua época, na qual ele condena, como já fizera nos anos de convivência intensa com Schiller, os aspectos de introspecção romântica, o subjetivismo extremado e a exacerbação do sentimentalismo. A ausência de conexão com o mundo e com a sociedade de um modo geral é o que Goethe mais deplora na produção romântica alemã de seu tempo. Além disso, Goethe está convicto de que a época das desavenças entre classicismo e romantismo, como ele mesmo expõe em conversa com Eckermann em 21 de março de 1830, deve ser superada. Mas ao contrário de seus contemporâneos românticos, Goethe acredita que o próprio romantismo com suas características nacionalistas e particularistas também pertence ao passado e deve ser suplantado com a construção de uma Weltliteratur. Exatamente por estar permanentemente de olhos voltados para a produção literária européia de seu tempo, assim como para as mudanças políticas e econômicas decorrentes do comércio mundial, Goethe, a partir de sua pequena Weimar - inscrustada num grão-ducado sem importância política -, consegue abarcar um horizonte muito mais amplo que seus contemporâneos. Em suas últimas manifestações sobre o conceito de Weltliteratur, Goethe constata que a idéia da literatura universal é não só uma tendência em andamento, mas também uma tarefa para as gerações atuais e vindouras. Ainda que consciente do caráter utópico de sua idéia, Goethe não se cansou até o fim da vida de exortar os poetas de seu tempo a perseguirem o ideal da construção de uma Weltliteratur, na qual predominaria o universalmente humano e não as literaturas voltadas para o culto do nacional.
Izabela Maria Furtado Kestler é doutora em Literatura Alemã pela AlbertLudwigs-Universität Freiburg (Alemanha) e professora da UFRJ 49
dossiê
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Johann Wolfgang von Goethe
Shakespeare em Goethe A descoberta de Shakespeare, comparada ao milagre que restitui visão ao cego, marca a autonomia de Goethe frente ao modelo neoclássico Wilma Patricia Maas
A
obra de Shakespeare tem um papel importante na formação da “moderna literatura alemã”. Membro de uma geração anterior à de Goethe, o dramaturgo e filósofo Gotthold E. Lessing declarou, em sua Dramaturgia de Hamburgo, ser o espírito das peças shakespearianas muito mais adequado e afim ao gosto e à sensibilidade do público alemão do que o teatro neoclássico francês. Em um texto que ainda hoje mantém seu apelo, o iluminsta Lessing dedica-se, de forma saborosa, a uma comparação entre o surgimento do fantasma do pai de Hamlet e a aparição do fantasma na Semíramis, de Voltaire, para concluir pela indiscutível credibilidade e superioridade do espectro shakespeariano. Para Lessing, os franceses teriam entendido mal os preceitos aristotélicos da unidade de tempo, espaço e ação, propondo em seu lugar um arremedo estéril e hiperrealista. Em Shakespeare, encontra-se ao mesmo tempo o antídoto a essa esterilidade e o caminho para a formação e cultura do público alemão. O jovem Goethe, poucos anos depois, em meio ao projeto de criar um “teatro alemão”, destinado ao público alemão e adequado ao espírito desse público, deparou-se com a obra de Shakespeare, provavelmente nas primeiras traduções de Wieland. O assombro causado pela leitura pode ser avaliado pelas palavras de Goethe no seu Discurso para o dia de Shakespeare: “A primeira página dele que li foi uma identificação por toda a vida, e quando tinha terminado a primeira peça, fiquei como um cego de nascença a quem um gesto milagroso dá, num instante, a visão”.
Teatro e formação
Ao longo de sua carreira literária, Goethe criará uma galeria de personagens, passando do melancólico Werther aos apaixonados Egmont e Götz, de evidente inspiração shakespeariana. Mas é no Wilhelm Meister que Goethe, na voz do diletante Wilhelm, expressará o impacto que a dramaturgia de Shakespeare provocou no incipiente “teatro alemão”. Estamos aqui em terreno escorregadio, pois é justamente em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796) que a ironia goethiana corre à larga, ainda que nem sempre percebida pelo leitor, ingênuo como é ingênuo o próprio Meister. No romance de Goethe, o teatro é visto inicialmente como a única instância na qual o jovem Wilhelm, burguês de nascimento, mas dotado de alma aristocrática, poderia atuar como “pessoa pública”, livre dos constrangimentos impingidos ao burguês, a quem a chamada “formação” (Bildung) universal é negada pela própria origem. Se começamos a ler o romance de Goethe mantendo-nos a salvo 54
daquela ironia que Schlegel chamou uma vez de “ironia primordial”, que devora todas as outras pequenas e grandes ironias até que não sejamos mais capazes de decidir se estamos no plano do irônico ou do extremamente sério, entenderemos que a dedicação ao teatro pelo aspirante a ator e diretor Wilhelm Meister é a tábua de salvação para essa alma sensível e atormentada pelas exigências de “classe”, em um momento da história da Alemanha em que ao jovem burguês de perfil intelectual só lhe restava assumir a profissão de comerciante ou pastor, exercida anteriormente pelo pai. Wilhelm quer mais. É no teatro que encontrará pela primeira vez, a possibilidade de “suster-se como o nobre se sustém”. A possibilidade da assim chamada “formação universal”, aquela capaz de desenvolver no homem seus talentos inatos até atingir o grau de perfeição, está vedada a Wilhelm Meister por conta de sua origem. A atividade teatral deverá substituir a esfera do “grande mundo”. É sobre o palco que o jovem Meister acredita poder alcançar o burilamento de suas capacidades, de seus afetos, de sua aparência, pois “sobre os palcos, o homem culto aparece tão bem pessoalmente em seu brilho quanto nas classes superiores”. O narrador do romance de Goethe, entretanto, não deixa de semear, aqui e ali, indícios da perspectiva impiedosa sob a qual focaliza seu protagonista, já em suas primeiras experiências teatrais. Desde a leitura das novelas de cavalaria, realizada pelos membros da pequena companhia teatral ambulante à qual Wilhelm Meister se associa, até a encenação de Hamlet, da qual Meister será o diretor e protagonista, a atividade teatral será sempre associada ao comportamento buliçoso e libertino da trupe de atores. Ao mesmo tempo, a encenação de textos que falem mais de perto ao público alemão,
Reprodução/Kevin Sprague
em franca oposição à herança neoclássica que chegara a Alemanha por meio dos autores franceses, é focalizada no romance de Goethe como o caminho a ser seguido para dotar a Alemanha de um “teatro nacional”. Para Goethe, assim como para Lessing, esse caminho passa pelo teatro shakespeariano. Na mesma linha de raciocínio já desenvolvida antes por Lessing, que, na revisão dos preceitos da Poética aristotélica acaba por criar o que a história da literatura veio a conhecer como tragédia burguesa, Goethe verá em Shakespeare o autor em cuja obra se encontra a galeria de características da própria humanidade. Se Lessing transportou e flexibilizou os princípios da tragédia clássica para a Europa da segunda metade do século 18, criando assim um gênero que se mostraria como a base para a literatura alemã moderna e burguesa, Goethe fará da leitura de Shakespeare o móvel para algumas de suas próprias reflexões sobre o gênero dramático.
Um Hamlet goethiano
O ator Jason Asprey, da Companhia norte-americana Shakespeare & Company, interpreta Hamlet, obra fundamental para a criação da “Moderna literatura alemã”
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Em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, uma encenação de Hamlet funciona, na economia do romance, como ponto de crise (e de solução de crise) para a trajetória do protagonista, ao mesmo tempo em que dá ensejo a um longo excerto para que o narrador elabore suas considerações sobre o gênero dramático. Ao ingressar, em meio às suas peregrinações, na companhia teatral de Serlo, Meister impõe como condição a encenação de Hamlet “por inteiro e sem cortes”. Depois de longa discussão entre ambos, que toma boa parte do Livro V, chega-se ao consenso: Meister identifica duas vertentes na composição da obra: “a primeira, refere-se às grandes e íntimas relações das personagens e dos acontecimentos, aos poderosos efeitos derivados dos caracteres e atos dos protagonistas, sendo alguns destes excelentes, e irretocável a seqüência em que se apresentam”. Tais elementos, segundo o protagonista de Goethe e diretor amador de teatro, são aqueles que “não podem ser alterados por nenhuma espécie de adaptação (...) e que (...) têm levado quase todas as pessoas ao teatro alemão”. Mas Wilhelm Meister distingue ainda uma outra vertente na composição do texto de Shakespeare: trata-se das “relações exteriores das personagens, pelas quais elas são levadas de um lugar a outro ou
dossiê
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Johann Wolfgang von Goethe
O mito faústico e as marcas intertextuais
A relação de Fausto como o conceito de mito, entretanto, também deve ser entendida em uma outra acepção, no sentido de fábula, de ficção, uma vez que a obra de Goethe baseia-se na lenda medieval sobre a figura histórica do doutor Fausto. Para entender o verdadeiro significado da figura do doutor Fausto, torna-se importante ressaltar que não se trata apenas de um charlatão que se tornou rico e famoso por ter feito um pacto com o diabo, como se propaga comumente. Cabe lembrar que o mito criado em relação a essa figura histórica - Georg (Johann) Faust, (1480-1540) tem sua origem em uma época de crise, a transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, época caracterizada por profundas mudanças, na qual conceitos até então inquestionáveis começam a ser colocados em xeque. Nesses novos tempos de inquietação, ligados a pesquisas no campo das ciências naturais e outras ciências, pode-se entender que aquele que manifesta sua descrença em relação a verdades, tidas como absolutas, é considerado um homem não temente a Deus, um pactuário do demo. Isso explica a recorrência do motivo do pacto com o diabo à época. Nesse contexto, basta lembrar de figuras contemporâneas ao doutor Fausto: Paracelsius, Nostradamus, Bacon ou Galileu que, perante os olhos da Inquisição, também teriam feito uma aliança com o demônio. Esse é o pano de fundo que serve de cenário para o aparecimento do personagem histórico, doutor Fausto, em tempos que espelham esse processo de busca por maioridade. Consta que esse douto levou uma vida errante, passando por várias localidades da Alemanha, o que fez que se tornasse conhecido por toda parte. Estudou magia, medicina, astrologia, alquimia, atividades que lhe permitiram trabalhar com horóscopo e fazer profecias. Unindo a capacidade de curar com a de prever o futuro, ficou famoso e conseguiu amealhar uma boa fortuna. Todas essas aptidões, por sua vez, renderam-lhe a fama de ter vendido sua alma ao diabo. Esse destino pessoal, que personifica os anseios da época ao materializar a busca daquele que quer ultrapassar os próprios limites através da especulação, dará origem à primeira versão escrita sobre as histórias de Fausto, publicada logo após a morte do Fausto histórico, em 1587, sob o título de Historia von D. Johann Fausten. Essa história, de autor anônimo e de cunho popular, narra, ao lado de relatos sobre o Fausto, que eram voz corrente, outras discussões de cunho teológico, astrológico, histórico, científico, provindas das mais diferentes fontes contemporâneas. Essa estrutura, sem unidade estética, acaba por refletir esse tempo de transformação, com a justaposição de crenças diabólicas medievais ao lado do novo espírito das ciências. No livro popular, com suas partes especulativas e enciclopédicas, o pacto entre Fausto e o diabo compreende um período de 24 anos. Nesse contexto, a sede insaciável do protagonista por saber é vista, antes de tudo, como um grande pecado, pois uma tal postura afastaria o homem de Deus e o aproximaria da dúvida. Esse homem incorreria no pecado da hybris, a presunção, por pretender equiparar-se a Deus. Essa história, tão ao gosto da época, conquistou enorme repercussão, atingindo 5 edições. Sabe-se que Goethe, ainda quando criança, entrou em contato com a edição de 1725, sob a forma de teatro de marionetes, apresentada em praças de mercado. 58
As versões de Marlowe e Lessing
Por volta de 1592, o livro popular alemão é traduzido para o inglês, originando-se daí o livro popular inglês sobre o tema Fausto. Esse livro, por sua vez, serve de material para Christopher Marlowe, o mais importante dramaturgo ao lado de Shakespeare, escrever sua peça Tragical history of doctor Faustus, editada em 1604. As encenações do texto de Marlowe, por seu turno, irão repercutir novamente na Alemanha ao serem apresentadas por teatros mambembes, em língua estrangeira, mas de forma pantomímica. Consta que Goethe conheceu as encenações da peça de Marlowe de 1768 e 1770. Já a partir do drama de Marlowe, começa a delinear-se uma ambivalência moral em relação a este homem impulsionado por sua sede de saber. Tem origem no dramaturgo inglês a idéia do monólogo inicial, no qual Fausto
Reprodução
Litografia de Eugene Delacroix (1798-1863) para Fausto, de Goethe
mostra toda sua infelicidade por não alcançar a plenitude do conhecimento. Enquanto no livro popular alemão há uma clara condenação da presunção do protagonista, a versão inglesa da lenda deixa transparecer uma postura dúbia. Existe a condenação, sim, mas, paralelamente, percebe-se uma admiração pela figura desse douto que, qual um Prometeu, desafia a divindade. Contudo, também na versão inglesa, o ímpeto desmesurado de Fausto conduzirá ao estabelecimento de um pacto com o diabo, selado sob a condição de viver 24 anos de prazer sem limites, decorrendo, como conseqüência, a sua condenação. A lenda sobre o Fausto ganha novo fôlego a partir de idéias próprias do período da Ilustração. Entre 1755 e 1775, Lessing, o grande escritor do Iluminismo alemão, desenvolve projetos de escrever uma peça sobre o Fausto. O texto não chega a se efetivar,
restando apenas a montagem de fragmentos e idéias gerais reconstituídas pela memória de amigos, dados creditados à coincidência de informações. Se Kant, em sua definição de Iluminismo, mostra que o lema dessa corrente filosófica é: Sapere aude - tenha a coragem de servir-te da tua própria inteligência -, então Fausto, por ousar, por ter a coragem de buscar pelo sentido da vida, não poderia ser alguém condenado à danação dos infernos. Nesse contexto iluminista, Fausto, na sua procura pela verdade através da razão, empreende uma tarefa que dignifica o homem; em outras palavras: aquele que decide fazer uso de sua qualidade intrínseca, a razão, não será condenado, mas transforma-se no preferido de Deus, o destinado à salvação. Goethe conhecia os planos de Lessing e as reconstituições de seu drama que podem ser detectadas, em sua essência, nas obras teatrais póstumas (Theatralischer nachlass, de 1786). Vem de Lessing a idéia de salvação que encontramos no Fausto de Goethe. Goethe contou, pois, com diferentes pré-textos na elaboração de suas variadas versões da tragédia: de 1772-1775, elabora o Fausto zero; em 1790, produz Fausto, um fragmento; em 1808, é publicado o Fausto I e, em 1832, o Fausto II. No rastreamento do percurso do mito faústico e das fontes que serviram de inspiração para a realização de sua obra-prima, pode-se mencionar suas impressões da infância, ao assistir nas praças dos mercados as encenações do livro popular propriamente dito, a versão inglesa, com as apresentações do Fausto de Marlowe. A esses legados de cunho literário deve-se acrescentar um fato de origem real, o processo e a execução da infanticida Margaretha Brand, ocorrido em 1771-72, tragédia que impressionou profundamente Goethe e que será ficcionalizada em sua obra através do destino de Gretchen, a mulher que se apaixona por Fausto e, ao ser abandonada por ele, em um ato de loucura, assassina o próprio filho. Dentro desse rol de marcas intertextuais cabe dar ênfase especial à idéia de salvação, esboçada inicialmente por Lessing e assumida por Goethe, que servirá de inspiração para a virada redentora no destino de seu protagonista.
A estrutura da peça
Dentre as diversas versões mencionadas, vamos nos ater à composição do Fausto I e do Fausto II, que podem sem interpretadas como uma unidade, com uma construção própria. A peça inicia-se com três cenas introdutórias, três prólogos que desenvolvem, respectivamente, uma perspectiva autobiográfica, uma perspectiva poetológica e uma perspectiva metafísica. O primeiro prólogo, Dedicatória, não dedica a peça a ninguém, como o título faz supor, mas é uma metarreflexão, em forma de monólogo, no qual o poeta faz uma retrospectiva da história da obra. No Prólogo no teatro, que vem a seguir, há uma discussão sobre a essência e a função da obra teatral; no confronto de opiniões antagônicas, debatem-se temas pouco ortodoxos para uma peça de teatro como: produção, rentabilidade, encenação e recepção do drama. Percebe-se, pois, que esses dois prólogos iniciais não se integram no enredo dramático. 59
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José Marcus de Castro Mattos PEQUENA FÁBULA À MANEIRA DE MARTIN HEIDEGGER Vi pela manhã algumas palavras nascerem úmidas do caule das flores à beira do caminho. Surpreso, incrédulo, feliz, depus o que eu tinha em mãos e passei a ouvir: Auscultei-lhes então, soprados pela brisa, o murmúrio, o sussurro, o balbucio – Quase som, quase silêncio –. De repente porém ventos e nuvens tomaram todo o campo. E homens – atônitos homens – Precipitaram-se errantes, bizarros, palradores. As palavras que eu pressentira brotar em meio aos primeiros raios de sol (Desvelantes, sagradas, gregas talvez), solidárias com o último orvalho, Emudeceram. José Marcus de Castro Mattos é poeta e psicanalista e mora em Nova Friburgo (RJ)
Homero Gomes EPIFANIA Para Ana Damm, que teve essa epifania aos 6 ou 7 anos de idade. Ela caminhou lentamente em direção àquele volume de luz clara que se expandia. A areia era fofa nos seus pés. Sentou no escorregador apenas para ver. Crianças corriam, caiam, davam risadas. Viviam sem perceber a possibilidade de virarem sombras nos brinquedos retorcidos. Mas ela percebeu. A menina viu o fim brotar com esplendor; feito o amanhecer de pequenas nulidades. Ela percebeu que os ossos das crianças correriam os ventos gemendo futuros. Viu os seus ossos pequenos virando poeira de infância. E sentiu medo de deixar de ser. O pequeno corpo da menina estancou no meio do parque. Sem querer brincar, anulou o grito e esperou a primeira fagulha. Homero Gomes é professor e redator publicitário e mora em Curitiba (PR) A Oficina Literária é uma seção exclusivamente voltada para a publicação de inéditos. Os interessados em publicar seus textos – que serão avaliados pela equipe da revista e não devolvidos – devem enviar seus originais pelo e-mail: oficinaliteraria@revistacult.com.br ou pelo correio para: Revista Cult – Oficina Literária, Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar – Paraíso – São Paulo, SP – CEP: 01533-070. Os textos devem ser encaminhados inseridos no corpo da mensagem e não anexados. O tamanho não pode ultrapassar três mil caracteres com espaço. O envio de qualquer trabalho para a Oficina Literária implica o reconhecimento do direito não-exclusivo de reprodução da obra pela revista. A autoria e o conteúdo dos textos são de responsabilidade única e exclusiva do participante, devendo ele observar a legislação autoral vigente. Ao encaminhar o trabalho, os interessados devem fornecer os seguintes dados: nome completo, endereço, telefone para contato e e-mail. A Editora Bregantini, ao receber os inéditos, está autorizada pelos autores a publicar o material, de forma integral ou resumida, na Cult ou no site da revista.
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