144
anO 13
r$ 9,90
www.revistacult.com.br
perfil
A argentina Beatriz Sarlo e a crítica como ofício plural
entrevista
Nuno Ramos, entre a matéria e a linguagem
literatura
Enrique Vila-Matas: escrever para se ausentar
dossiê
Novas formas de
Perversão
O que um velho conceito ainda pode ensinar sobre nós mesmos
08
09
14
20
do leitor
cultura eM MoViMento Festival de Teatro de Curitiba • Olhar Crítico – 50 Anos de Cinema Brasileiro • Dias Felizes • Edith Stein • Kuarup – A Última Viagem de Orlando Villas Bôas • Carmen Adnet – Chopin
entreVista – nuno raMos
Divulgação/Cléber Passus/Fronteiras do Pensamento
divulgação
14
entreVista
28 28
Perfil – beatriZ sarlo
32
ensaio
34
debate – aVatar
A arte híbrida e o pensamento sem fronteiras do artista plástico e escritor
literatura – enriQue Vila-Matas O desaparecimento e a busca da essência literária em Doutor Pasavento
Perfil
38
A escritora argentina especializou-se em mostrar as realidades por trás das máscaras da modernidade
FRANCiSCO BOSCO Limbo, uma viagem entre o real e a realidade
Os professores Michel Maffesoli e Juvenal Savian Filho discutem a fantasia, o fantástico e a frivolidade presentes no filme Avatar
filosofia MARCiA tiBuRi O livro Sacher-Masoch, de Gilles Deleuze, faz pensar no esquecimento de um grande escritor e nos clichês da nossa cultura
Julieta Benoit
colaboradores desta edição
Eduardo Afonso Furtado Leite, psicanalista e doutor em ciências da comunicação pela USP Carlos Costa, doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP. Coordena o curso de jornalismo da Cásper Líbero e edita as revistas Getulio e Diálogos&Debates
40 40
Paulo Jonas de Lima Piva, professor de filosofia na Universidade São Judas Tadeu. É autor de Ateísmo e Revolta: os Manuscritos do Padre Jean Meslier (Alameda, 2006)
dossiê
dossiê NOVAS FORMAS DE PERVERSÃO
42
A perversão nossa de cada dia por Christian Ingo Lenz Dunker
47
O fetichismo como dispositivo de crítica por Vladimir Safatle
50
Perversão e fetichismo por Flávio Carvalho Ferraz
54
A mídia e o gozo pelo consumo por José Luiz Aidar Prado
60
O masoquismo em tempos modernos por Nelson da Silva Junior
63
Sade: matéria sem culpa, gozo sem limites por Paulo Jonas de Lima Piva
66
Julieta Benoit, fotógrafa. É vencedora, entre outros, do Prêmio Estímulo à Fotografia (20082009), promovido pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo Luiz Meyer, psicanalista e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. É autor de Rumor na Escuta. Ensaios de Psicanálise (Editora 34, 2008) Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP. É autor, entre outros, de Fetichismo (Civilização Brasileira, no prelo) Nelson da Silva Junior, professor livre-docente do Departamento de Psicologia da USP Annita Costa Malufe, poeta e doutora em teoria literária pela Unicamp. É autora de Como se Caísse Devagar (Editora 34/PAC, 2008), Nesta Cidade e Abaixo de Teus Olhos (7Letras, 2007), Fundos para Dias de Chuva (7Letras, 2004) Flávio Carvalho Ferraz, psicólogo e membro do Instituto Sedes Sapientiae (SP). É autor, entre outros, de Perversão (Casa do Psicólogo, 2000)
Adolfo Montejo Navas, poeta, crítico e tradutor. É autor de Pedras Pensadas (Ateliê, 2002) e Da Hipocondria (7Letras, 2005), entre outros
Douglas Ferreira Barros, professor doutor de filosofia da PUCCampinas Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista, professor livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. É autor de Lacan e a Clínica da Interpretação (Hacker/Cespuc, 1996)
oficina literária
José Luiz Aidar Prado, professor doutor de semiótica pela PUC-SP Michel Maffesoli, sociólogo, professor da Université Paris DescartesSorbonne. É autor, entre outros, de A República dos Bons Sentimentos (Iluminuras, 2009).
cultura
EM MOVIMENTO
Kuarup: índios do Xingu homenageiam o sertanista Orlando Villas Bôas
E
m reverência a mortos ilustres, povos indígenas do Xingu realizam a cerimônia intitulada kuarup. Trata-se de um ritual de passagem no qual pertences do falecido são colocados em um tronco que posteriormente é atirado no rio sagrado, com o intuito de corporificar o espírito. Falecido em 2002, o sertanista Orlando Villas Bôas foi homenageado com o maior kuarup já realizado, que contou com a presença de mais de 2 mil pessoas. A cerimônia foi registrada pelas lentes do fotógrafo Renato Soares e as imagens compõem a exposição Kuarup – A Última Viagem de Orlando Villas Bôas, que percorrerá seis capitais do país. Ao lado de seus irmãos Cláudio e Leonardo, Orlando foi um dos grandes responsáveis pela defesa desses povos, bem como pela difusão da cultura indígena da região do Xingu. A grandeza de seu trabalho foi reconhecida internacionalmente, como atestam as duas indicações que recebeu ao Nobel da Paz, em 1971 e 1976. A ideia de realizar o evento surgiu após os curadores tomarem conhecimento das belas imagens que registraram o kuarup: “Esse projeto começou a ser concebido há cerca de dois anos e meio. (...) Nós vimos as fotos e achamos de grande qualidade plástica. O tema também era muito interessante porque unimos [as fotos] aos muitos materiais do Orlando”, explica Denise
12
n°144
Carvalho, uma das curadoras ao lado de Gilberto Maringoni e Noel Villas Bôas. Dividida em quatro espaços, a exposição reúne ainda mapas, manuscritos e utensílios do sertanista. No primeiro, fotos e documentos fazem um apanhado histórico da atuação dos irmãos Villas Bôas no desbravamento do Xingu. Na sequência, são expostos objetos pessoais de Orlando, como manuscritos e utensílios usados na selva. Em um terceiro momento, há uma sala multimídia onde são exibidas cenas kuarup, além de entrevistas com os familiares. Por fim, no quarto e principal espaço, é reproduzida uma oca do Xingu que abriga as fotos de Renato Soares. Após São Paulo, a exposição percorre as cidades de Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Salvador.
Kuarup – A Última Viagem de Orlando Villas Bôas Quando 14 de março a 11 de abril ONDE Caixa Cultural – Sé, São Paulo (SP) Quanto entrada franca
Divulgação/Renato Soares
Tributo a Orlando Villas Bôas
Sutilezas musicais A
em decorrência de seu trabalho de divulgação da música brasileira no exterior. Além disso, recebeu do governo austríaco a Grande Cruz de Honra 1ª Classe, pela contribuição musical naquele país. Segundo Carmen, a música de Chopin apresenta uma “riqueza de melodia, de ritmos e liberdade de expressão: ela não é presa a regras especiais, como a música clássica de Beethoven e de Bach. As composições de Chopin são mais soltas, mais livres, dando mais margem para interpretação”. A pianista de 80 anos levou apenas dois meses para gravar o álbum e selecionou 13 peças que mais aprecia do pianista, como as mazurkas. Chopin dedicou-se essencialmente à composição para piano e muitas obras suas têm influência do folclore polonês, como as mazurkas e as polonaises. Carmen Adnet – Chopin Repique Brasil R$ 26,40
Divulgação
riqueza de melodias e de ritmos de Frédéric Chopin é resgatada no álbum Carmen Adnet – Chopin, lançado pela pianista Carmen Adnet em comemoração ao bicentenário de nascimento do músico polonês. A brasileira, natural de Vitória (ES), começou a estudar música aos 4 anos, por influência de sua tia, que era professora de piano: “Descobriram muito cedo que eu tinha talento e fui incentivada desde então”, diz Carmen, que atualmente é uma das mais respeitadas intérpretes de Chopin. Após a participação no Concurso Internacional Chopin de Varsóvia de 1949, a notoriedade da pianista aumentou. Com apenas 20 anos, ela participou do evento, onde tocou, entre outras peças, Noturno em Si Maior, tornando-se a favorita do público polonês. “Sinto-me muito orgulhosa e muito satisfeita. Quando fazemos um trabalho que é reconhecido, sempre é muito gratificante”, comenta Carmen sobre as homenagens que recebeu ao longo da carreira. Ela é a dona de uma das dez medalhas Villa-Lobos existentes, conquistada
Carmen Adnet: “As composições de Chopin são mais soltas, mais livres, dando mais margem para interpretação” n°144
13
entreVista
NuNO RAMOS
entre a matéria e a linguagem A arte híbrida e o pensamento sem fronteiras de Nuno Ramos i VA N M A R q u E S
N
uno Ramos é um dos mais inquietos artistas em atividade hoje no Brasil. Reconhecido desde os anos 1980 como um dos nossos principais criadores no campo das artes plásticas, ele também realizou o feito de incluir seu nome no panteão da literatura contemporânea. Nascido em São Paulo, em 1960, Nuno Ramos formou-se em filosofia na USP. Em 2009, seu livro Ó, uma inspirada reunião de “falsos ensaios”, como ele próprio define, foi o vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Antes, ele já havia publicado Cujo (1993), O Pão do Corvo (2001) e Ensaio Geral (2007), este último reunindo artigos sobre literatura, artes plásticas, música popular e futebol. Em 2010, Nuno publicará um novo livro, O Mau Vidraceiro, além de fazer uma exposição no Rio de Janeiro e de integrar a delegação brasileira da Bienal Internacional de São Paulo. Nesta entrevista à CULT, o artista fala sobre suas múltiplas atividades, defendendo, para além do hibridismo, a própria ideia da não especialização. E, com a agudeza habitual, discorre sobre criadores e temas importantes da arte e da literatura feitas no Brasil.
Divulgação
14
n°144
CULT – Você foi um leitor compulsivo na adolescência e, antes de se tornar artista plástico, desejou ser escritor. Que entraves dificultaram na época a realização desse projeto? Nuno Ramos – Eu queria ser artista, e artista para mim era alguma coisa ligada à palavra. Ao mesmo tempo, me meti numa faculdade de filosofia, que tinha uma carga de leitura grande, rigorosa. Eu me sentia muito ansioso pelo peso do que devia ler, do que era ser um autor. Lia mais do que aguentava, lia muita coisa que não entendia direito. Às vezes não saía de férias para ficar lendo alguma coisa. Escrevia quase todos os dias, tentava conto, poema. Ia batendo a cabeça como uma ave presa, mas de fato não gostava de nada que fazia. CULT – Cujo, seu primeiro livro, saiu em 1993, quando seu nome já era reconhecido nas artes plásticas. Como fez para remover os antigos obstáculos? Nuno – Cujo é um livro de fragmentos que começou um pouco associado ao ateliê, ao momento em que adquiri uma identidade mais forte como artista plástico, na coisa dos materiais, da mudança entre eles, numa coisa muito íntima com a matéria. Por isso, tem um pouco de alquimia no Cujo. A estrutura de fragmento vem da tentativa de mimetizar a corporeidade que eu vivia todo dia, de ver a vaselina derreter, de passar o breu, fazer uma coisa virar outra. Essa alquimia que eu ia criando nos materiais é o que tentei captar no Cujo. E desse lugar já mais corpóreo, já mais assentado, a coisa com a literatura voltou. Na verdade, nunca parei de escrever. Para mim, escrever não é difícil. Esse é o grilo, aliás, porque não sei muitas vezes do que estou falando, para que estou escrevendo. Parece que o impulso retórico às vezes é maior do que aquilo que quero dizer. O que eu não contava é que a coisa dos ensaios aparecesse. Isso não estava muito no meu horizonte. CULT – Na infância, você ficou fascinado pela leitura de uma versão
ilustrada de Robinson Crusoé, exatamente como ocorreu com Drummond. Nuno – Era uma versão infantil, talvez do Monteiro Lobato, não sei. O fato é que eu siderei com o livro e esquentava termômetro para ficar em casa e ler de novo. A lembrança que tenho é de ler dezenas de vezes. No Ensaio Geral, tem um texto sobre Robinson Crusoé. Eu reli e foi uma decepção completa. A ilha é uma espécie de réplica da vida dele em York, uma miniaturização, um projeto um pouco colonial de transplantar para o trópico a experiência original. Numa leitura mais psicanalítica, a parte inicial do livro é o sujeito violando a autoridade do pai. Essa primeira metade é uma soma voltairiana de desastres. E ele sempre fala: realmente o meu pai tinha me avisado
“Não sei muitas vezes do que estou falando, para que estou escrevendo. Parece que o impulso retórico às vezes é maior do que aquilo que quero dizer” da minha falta de bom-senso. E afinal, quando vai para a ilha e está sozinho, ele reconstrói minuciosamente o que perdeu. Essa leitura foi a que eu fiz hoje. Mas era o que me atraía quando eu era menino; talvez a sensação de conforto, a segurança de imaginar que eu podia crescer, sair de casa, que ia ter a casa de novo, podia reconstruí-la, alguma coisa assim. Eu, criança, gostava disso, mas como adulto foi justamente o que me irritou. CULT – Para Drummond, a razão do encantamento era mais romântica: a solidão do personagem. Nuno – Mas ele diz no poema que “minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. A dele era mais bonita. CULT – Você realizou uma instalação inspirada no poema “Morte das
Casas de Ouro Preto”, do livro Claro Enigma. De onde vem a sua admiração por Drummond? Nuno – Acho Drummond o maior artista brasileiro do século XX. O topo do mundo, mas sem diminuir... Dos anos 1920 aos 70, o Brasil tem uma literatura admirável, com dez, 15 nomes de primeiro time. E tem, é lógico, Niemeyer, que é uma coisa do outro planeta também. Mas Drummond... Acho que nunca ninguém escreveu assim em língua portuguesa. Muitas vezes, acho melhor que Fernando Pessoa. Outro dia reli o poema “Escada”. Aquilo você tem de ler em voz alta, vai para todo lado. Drummond é a verdadeira abstração. No Brasil, em geral, é preciso ser concreto, para não perder o veio, a mão, o acesso. Quando fica abstrato, tipo Murilo Mendes, parece um pouco religioso e a voltagem cai muito. Nele não, o concreto e o abstrato se misturam. CULT – Por que você considera Drummond um representante da “ambivalência cultural brasileira”? Nuno – O Brasil tem uma cisão, muito constitutiva de tudo que a gente faz, entre uma facilidade de modernização e uma incapacidade de modernização. A modernização parece sempre muito acessível, uma coisa que deverá ser feita de modo rápido, basta botar mãos à obra. Ao mesmo tempo, o Brasil até hoje não se constituiu como um país moderno no sentido weberiano, das instituições serem mais autônomas, da ideia de cidadania que afinal supõe certa igualdade entre as pessoas. O Brasil é moderno e não é. Sempre quis se modernizar e, ao mesmo tempo, tem sempre uma força de contenção muito grande, então esse projeto acaba meio em lugar nenhum. Drummond é a consciência mais aguda disso. Ele é o poeta público, mas é o poeta da família. Vai atrás do tempo dele, mas esse tempo é feito de fantasmas; o passado está sempre no lugar onde deveria estar o futuro. CULT – O hibridismo, palavra-chave n°144
15
Literatura E nr i q u e V i l a -M atas
Escrita da ausência O desaparecimento e a busca da essência literária em Doutor Pasavento Wilker Sousa
Divulgação
vila-matas: “A aparição mdiática do escritor é a antítese da essência de seu ofício”
20
n°144
Q
uando da recente morte de J.D. Salinger (19192010), muito se especulou acerca das razões que o levaram à sua longa reclusão na pequena Cornish, em New Hampshire. Após a retumbante fama advinda da publicação de O Apanhador no Campo de Centeio, Salinger deixou o frenesi nova-iorquino e optou pela tranquilidade de sua casa de campo, onde viveu de 1953 até sua morte. Escritores mais familiarizados com holofotes ou ainda aqueles que fazem da fama o substrato de suas carreiras por certo veriam essa atitude como um verdadeiro contrassenso. Em contrapartida, outros, como Samuel Beckett (1906-1989), o suíço Robert Walser (1878-1956) e o espanhol Enrique Vila-Matas, julgariam sábia a postura de Salinger. O primeiro, quando soube que ganhara o Nobel, fugiu; Walser passou os últimos anos de sua vida em um manicômio, onde escreveu microtextos, sem nunca publicá-los; e Vila-Matas faz do desaparecimento um dos eixos centrais de sua obra. Em “A Arte de Desaparecer”, conto presente em Suicídios Exemplares (1991), o personagem Anatol pena ao ver publicado um dos romances que guardara em seu baú. Seduzido pelas possíveis benesses da glória literária, em contraposição ao tédio e ao anonimato de sua recémchegada aposentadoria, o “escritor secreto” permite que um editor publique suas obras. Contudo, logo é tomado por arrependimento e foge, restando-lhe a conclusão de que “a obrigação do autor é desaparecer”. O conto, acredita Vila-Matas, seria a origem do tema em sua obra, assunto que desenvolveria com ainda mais força em Doutor Pasavento, romance publicado em 2005 e que chega neste mês às livrarias brasileiras (resenha na pág. 22). O livro é narrado por Andrés Pasavento, romancista que, após ser convidado a dar uma palestra em Sevilha, decide desaparecer subitamente. Para tal, converte-se no psiquiatra Doutor Pasavento, isola-se de seu universo habitual e passa a escrever sobre sua ânsia de viver à margem. O resultado é uma narrativa híbrida, cuja presença marcante do gênero ensaio e o diálogo com grandes nomes do pensamento e da literatura revelam o uso não gratuito da notável erudição de Vila-Matas. Na entrevista a seguir, concedida à CULT por e-mail, Vila-Matas fala sobre o romance, os limites impostos pela linguagem, e explica por que a glória do autor é o avesso da essência literária.
Imagens: Reprodução
Walser e salinger: escritores cientes de que a literatura parte em direção à sua essência, que é o desaparecimento
CULT – Por que o tema do desaparecimento é tão recorrente em sua obra? Enrique Vila-Matas – Na realidade, o verdadeiro escritor deseja somente escrever; busca mais a solidão para escrever do que a aparição em público. A aparição midiática do escritor é a antítese da essência de seu ofício. Em Suicídios Exemplares há um conto que parece ser a origem dessa minha dedicação ao tema da necessidade de desaparecer. É o conto “A Arte de Desaparecer”, baseado, certamente, em uma história real, aquela do escritor secreto Gesualdo Bufalino. Esse narrador siciliano escrevia sem a intenção de publicar, mas foi descoberto por seu compatriota Leonardo Sciascia e convencido por ele a publicar um romance que tinha guardado – um romance genial, e aí começaram os problemas para o pobre Bufalino. CULT – Ainda sobre o desaparecimento: a grande obra literária tende a perpetuar-se e, inevitavelmente, também aquele que a escreveu. Embora lutem o tempo todo para desaparecer, esse foi o principal paradoxo vivido por escritores como Walser, Salinger e também o Doutor Pasavento? Vila-Matas – Serve para o Doutor Pasavento também. Mas, se é certo que a obra e o escritor, como você disse, tendem a se perpetuar, também é certo que no fim, através do tempo, a obra viajará irremedialmente sozinha na imensidão. E um dia a obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirão o Sol e a Terra, o sistema solar e a galáxia, e a mais recôndita memória dos homens.
CULT – Há uma passagem no livro em que o narrador diz não escrever um romance. Em outro momento, exalta Sterne por ter feito de Shandy antes um ensaio sobre a vida do que propriamente um romance. Você acredita que o romance é um gênero em extinção? A tendência é caminharmos para experiências híbridas, de modo que se diluam cada vez mais as fronteiras entre os gêneros? Vila-Matas – O romance não somente não desaparecerá como ainda terá vida longa, embora adotando formas diferentes daquelas que conhecemos hoje. CULT – Beckett, que tanto lidou com os limites impostos pela linguagem, desejava alcançar o essencial para um dia poder descartá-la, desaparecer com ela. No que se refere à sua obra, você vive um impasse semelhante? Vila-Matas – A essência da literatura são o silêncio e o desaparecimento? Beckett dizia que era preciso seguir escrevendo, mesmo que tudo já estivesse dito. Creio que faço algo parecido. Sou consciente de que toda a literatura moderna nasceu quando Montaigne confessou, no começo de seus Ensaios, que escrevia com a intenção de conhecer-se a si mesmo. Hoje já sabemos perfeitamente que tipo de consequências isso trouxe. Não muito depois de começarmos a “buscar a nós mesmos” na literatura, começaram a se desenvolver uma lenta mas progressiva desconfiança nas possibilidades da linguagem e o temor de que ela nos arraste a zonas de profunda perplexidade. É dentro dessa busca e perplexidade que eu escrevo todos os dias. Para levar a cabo essa busca, necessito me isolar, escrever, desaparecer em meu local de trabalho. n°144
21
Perfil B e at r i z S a r l o
O agudo olhar de uma crítica A escritora argentina Beatriz Sarlo especializou-se em mostrar as realidades por trás das máscaras da modernidade C a r l o s C o s ta
O
Quarteto para Cordas N° 2, do norte-americano Morton Feldman, dura quase cinco horas e meia. Foi executado pelo Quarteto Pellegrini no Teatro Municipal San Martín, da cidade de Buenos Aires, em novembro de 2001, para um público de pouco mais de cem pessoas. Entre elas estava a crítica Beatriz Sarlo, que no número 78 da revista Punto de Vista, dirigida por ela, publicava o ensaio “La Extensión”. Nesse trabalho, ela analisa experiências que fogem do “padrão médio do gosto”, como a leitura ininterrupta do livro Moby Dick, de Herman Melville, realizada pelos atores Emilio García Wehbi e Luis Cano no Espaço Callejón, de Buenos Aires, da noite do sábado 20 ao final do domingo 21 de dezembro de 2003. Tudo isso desemboca na defesa do romance El Pasado, do argentino Alan Pauls, atacado por um crítico espanhol por se tratar de um livro “demasiado extenso”: 551 páginas. Segundo Sarlo, “a duração fora dos padrões é uma ruptura com os formatos da convenção e essa ruptura é estética”. Esse é um exemplo da agudeza do olhar de Beatriz Sarlo. Professora de literatura argentina na Universidade de Buenos Aires até o ano de 2003 – quando se aposentou após entender que encerrara um ciclo –, a escritora, com mais de uma dezena de livros, muitos deles publicados no Brasil, faz parte hoje do time dos grandes nomes dos estudos culturais no mundo. Bolsista de universidades inglesas, ela se reconhece discípula da vertente britânica dos estudos culturais (fez cursos com Raymond Williams e Richard 28
n°144
Owen), mas é notável a influência de Barthes, também reconhecida por ela (na introdução de seu último livro, La Ciudad Vista, ela declara: “Não teria escrito o que escrevi se não tivesse lido Roland Barthes e não o seguisse lendo”).
“Não teria escrito o que escrevi se não tivesse lido Roland Barthes e não o seguisse lendo” Para além da literatura
Professora visitante das universidades de Columbia, Berkeley, Maryland e Minnesota, fellow do Wilson Center, em Washington, e Simón Bolívar Professor of Latin American Studies, na Universidade de Cambridge, Beatriz Sarlo trouxe seu ferramental de crítica literária para as análises que realiza sobre cinema, teatro e as “cenas da vida pós-moderna”: o mito da juventude, a cultura shopping center, a crença popular num “santo das causas perdidas”, os catadores de papel, a televisão, a música pop, tudo passa pelo crivo de seu olhar atento. Com invejável capacidade de observação, ela desvenda as realidades ocultas por trás das muitas encenações da cultura – seja no comentário contundente que faz de filmes como A Lista de Schindler e A Vida É Bela, seja quando escreve sobre as brigas de vizinhos por causa da presença de travestis em algumas ruas de Buenos Aires. No caso da animosidade contra esse grupo (“Prostitutas,
Travestis e Vizinhos”, do livro Tempo Presente), ela ironiza o fato de que os mesmos travestis que fazem sucesso na mídia (quando escreveu o ensaio, o travesti Florencia de la Veja havia se convertido em estrela da TV) não serem aceitos quando se transformam em vizinhos de quarteirão. No caso da película do italiano Roberto Begnini – ganhadora do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1999 –, na contramão de uma crítica mais ligeira, Beatriz crava fundo sua análise (“A Família das Vítimas”, do mesmo Tempo Presente): “Não se pode pensar as relações entre arte, história e política a partir desse filme. A Vida É Bela ordena a seu público como deve se emocionar. Sobretudo, encarrega-se de mantê-lo emocionado do começo ao fim, para que nunca surja a possibilidade de pensar que coisa (verdadeiramente monstruosa) estamos vendo. Película de entretenimento em seu sentido mais forte, porque se distrai daquilo que diz contar, o campo de concentração, para contar a história de uma mitomania privada”. Quando a entrevistei em julho de 2004, no despojado escritório em que editava a revista Punto de Vista, na Calle Talcahuano, a poucos passos da famosa Avenida Corrientes, ela contou: “Agora, trabalho em uma pesquisa que tem a ver com os dilemas que a noção de memória coloca, sobretudo após as ditaduras da América Latina dos anos 1960. Entendo que há hoje uma inflação de memória, que se confia que a construção da verdade é uma construção no sujeito e é preciso revisar esse ponto. Penso que a memória não tem uma força tão grande
n°144
29
Divulgação/Cléber Passus/Fronteiras do Pensamento
debate A vata r
oce loucura? Irracionalismo desenfreado? Capricho sem consequências? O certo é que, depois de outros filmes do mesmo gênero, Avatar está aí, testemunhando, a longo termo, uma importante mudança no espírito do tempo. É o retorno da fantasia, do fantástico, do fantasma e outras frivolidades do mesmo gênero. Podemos torcer o nariz com um ar enjoado, mas Avatar lembra que a magia, melhor dizendo, a “tecnomagia”, mantém-se de pé. Trata-se de um índice, entre vários outros, do “reencantamento do mundo”, de uma remagificação desse mesmo mundo. A profusão de filmes em que o inferno disputa esse terreno para a encenação das diversas forças das trevas mostra que não nos satisfazemos mais com a ingênua marcha real do progresso. O Iluminismo tende a ceder lugar ao claro-escuro da existência. O sucesso de Avatar relembra que as sociedades precisam de mitos. Retoma a antiga e sempre nova figura do mito do “duplo”; aquilo que Arthur Rimbaud (poeta francês, 1854-1891) havia anunciado muito bem: “eu é um outro”. Tratase de um arquétipo irrefutável, o de um ser em perpétuo devir, confrontado, por todos os lados, com uma aventura. Contrariamente a quem se aproveita de uma suposta demanda de securização da existência, de uma necessidade social de “risco zero”, esse aventureiro de vida dupla relembra que somos sempre perpassados pela “sede do infinito” e pelo desejo do mais além: a aventura como elemento essencial da natureza humana. O velho Hyppolyte Taine (historiador francês, 1828-1893) não é mais citado
Michel Maffesoli 34
n°144
o bastante, nem aquilo que ele dizia sobre o clima, ou seja, que o clima tem sobre os homens uma influência mais importante do que a história racional e razoável. Há, igualmente, climas espirituais que não deixam nada nem ninguém imune. O filme Avatar sublinha essa atmosfera do maravilhoso, em que o medo e a fascinação misturam-se em um misto inextrincável. A parte de sombra tem seu lugar e a morte pode sempre triunfar. É tudo o que faz dos “selvagens” indomados figuras emblemáticas da pós-modernidade. Eles simbolizam esse extraordinário querer viver, o espírito do tempo em gestação, sem se deixar seduzir por ele. As jovens gerações atuais bem sabem que a vida está longe de ser um rio tranquilo; há redemoinhos, turbilhões e outras vicissitudes, os quais se deve enfrentar com graça, desenvoltura e mesmo insolência. A obscuridade luminosa que atravessa o filme, contando a iniciação desse herói de lenda que é o avatar do “Fuzileiro” – ao aceitar-se “selvagem” por aceitar sua iniciação à tribo –, é, se o podemos dizer, esclarecedora. A figura retórica da pós-modernidade é o oxímoro: a clareza obscura, o monstro delicado. É, de fato, isso o que todas as figuras emblemáticas do filme representam: ao mesmo tempo, animais e humanas. A zebrura marcando o corpo dos “selvagens” e do avatar do “Fuzileiro” é a mesma que encontraremos nas tatuagens, piercings e outras marcas corporais cada vez mais em voga em nossas sociedades. Ela recorda que a parte obscura do animal humano está longe de ser superada. Ela significa que é preciso acomodar-se com isso para chegar a uma forma de inteireza.
Divulgação
O retorno à “Terra mãe” D
Avatar às avessas D iante do sucesso de crítica de Avatar, quase se sente intimidado quem diz algo negativo. A bem da verdade, é impossível negar a beleza do filme, tanto como é impossível negar os louros da vitória a Cameron na corrida do “cinema do futuro”. Porém, a visão de mundo implícita nesse “avatar às avessas” mereceria mais debate. Tratase, sim, de um avatar “às avessas”, pois, em qualquer tradição avatárica, é sempre um ser divino que se manifesta entre os humanos. O avesso não faria sentido, pois um humano ensinaria o que a um ser superior? Isso, porém, não diminui os méritos do filme. Aliás, a metáfora invertida pode ser instigante, pois retrata a dificuldade implicada no conhecimento da alteridade: podemos conhecer o outro sem viver como ele? Sem ser como ele? Mas seria possível ser o outro? Esse recado foi certamente bem transmitido. Todavia, a consagração da lógica da guerra e a transformação da ligação profunda com o habitat em prática religiosa, ritualística, não podem passar em branco. Cameron afirmou, inclusive, que seus objetivos eram vencer a indústria dos efeitos especiais e criticar a razão ocidental, pois, no seu dizer, a vida dos terráqueos seria uma vida de desarmonia entre razão e sentimento. Ele seria, portanto, o avatar de uma vida “antiocidental”. Ora, se é assim, por que Cameron consagrou explicitamente a lógica da guerra? O “Ocidente” (mas não só) é um especialista em técnicas bélicas. E os Na’vi aprenderam bem as estratégias de combate! A criatividade do diretor não seria capaz de dar uma solução original, mais inteligente, ao combate? E por que transformar em religião os laços profundos, “místicos”, entre os Na’vi e seu habitat? Esses laços possuem, sim, caráter religioso, pois há elementos explícitos de adoração e de princípios morais. Só não há elementos reflexivos, o que seduz os
espectadores, pois uma vida de harmonia arracional com a natureza é sempre atraente. Mas isso é coerente? Qual o sentido de transformar essa harmonia em misticismo? A tradição ocidental – desde os gregos até os contemporâneos – sempre fez a religião passar pelo crivo da razão. Por que, então, agora, incensar um ideal religioso sem análise racional, exclusivamente afetivo, esvaziando o pensamento e dando supereminência ao sentimento? Práticas desse gênero são portas largas para o autoritarismo e a manipulação; uma religião sem crítica deriva facilmente para os desmandos. Aliás, desmandos análogos aos denunciados pelo filme (abuso de autoridade, interferência do poder e da economia na autonomia das ciências etc.) também são implicados numa religião da natureza. Cameron não terá exagerado ao transmitir uma visão tão negativa da razão ocidental? Afinal, não foi a razão que fez os terráqueos atacar os Na’vi; nem o kamikaze jogar a bomba em Hiroshima. Foi um determinado uso da razão. Focar na manipulação da razão para criticá-la não é jogar fora a criança junto com a água do banho? Avatar baseia-se ainda numa forma maniqueísta de pensar. Associa uma vida de equilíbrio a uma fusão com o habitat e opõe razão a sentimento, negligenciando os benefícios que a “razão ocidental” obteve, desde seu nascimento grego, em termos de autoconhecimento humano e harmonização entre inteligência e sentimento. No fim das contas, o filme repete a cacofonia da guerra e entoa novamente a cantilena da Terra Mater, em tom irracionalista. Nada de novo sob o sol... Não teríamos direito de esperar mais desse Cameron-avatar-às-avessas? Ou teremos de aceitar, como disse um crítico canadense, que seu filme é muito bonito, porém requentado? Juvenal Savian Filho n°144
35
Dossiê O
Perversão
s temas considerados transversais à filosofia, à literatura e às ciências humanas (ou temas transdisciplinares) são, naturalmente, os que mais despertam interesse. Tendo isso em vista, a CULT oferece, neste mês, um Dossiê informativo e bastante rigoroso sobre o tema da perversão e suas novas formas, produzidas no mundo contemporâneo. O texto de Christian Dunker, ricamente didático, explora os limites a partir dos quais a perversão de uma norma pode ser considerada problemática ou patológica. Flávio Carvalho Ferraz, por sua vez, relaciona perversão e fetichismo, concebendo este último como prova de que a sexualidade humana mantém-se livre, mesmo com fatores biológicos determinantes. Nelson da Silva Junior continua nesse universo de referências e trata da importância do contexto cultural para a identificação de formas de perversão. Numa abordagem semiótica, José Luiz Aidar Prado analisa o modo como a mídia assimilou técnicas de apelo ao consumidor. De uma perspectiva filosófica, Vladimir Safatle retraça o nascimento da noção de fetichismo e mostra como o marxismo e a psicanálise freudiana foram decisivos para consagrar o seu uso. Por fim, Paulo Jonas de Lima Piva explora duas ideias de Sade – que não podia ficar ausente num Dossiê como este –, o incesto lésbico e o ateísmo. Oferecemos também uma breve incursão sobre o tema arte e perversão, com destaque para uma performance dos artistas brasileiros Priscilla Davanzo e Freak Garcia. O tema da perversão é delicado e exige da parte de todos nós despojamento de preconceitos, medos ou esquemas rígidos de pensar. Optamos, neste Dossiê, por não apresentar textos sobre quadros “patológicos” específicos (como seriam, por exemplo, a pedofilia, o incesto, a dissociação aguda provocada por certos usos da internet etc., assuntos sempre em discussão). Ao contrário, preferimos oferecer ao leitor a possibilidade de elaborar uma síntese pessoal e de caráter englobante, com base nos elementos teórico-práticos contidos nos artigos. Essa reflexão pode, certamente, abrir-se para outros horizontes, especialmente o do autoconhecimento. Desejamos a todos uma boa reflexão, inspirada pelas belas fotos extraídas do ensaio preparado pela fotógrafa Julieta Benoit para a CULT.
40
n°144
42
a perversão nossa de cada dia
Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos; definir a perversão é um paradoxo ético
Christian Ingo Lenz Dunker
47
O fetichismo como dispositivo de crítica
Pela psicanálise e pelo marxismo, a análise do fetiche expõe os móbiles da alienação tanto no campo do trabalho como no campo do desejo V l a d i m i r S a fat l e
50
Perversão e fetichismo
Ainda que possa ser uma limitação patológica, o fetichismo também é uma prova de como a sexualidade humana afastou-se de um determinismo biológico
F l á v i o C a r va l h o F e r r a z
54
A mídia e o gozo pelo consumo
Na sociedade do espetáculo, o imperativo do gozo, em vez de libertar os sujeitos de seus fantasmas, reforça seu sentimento de culpa
José Luiz Aidar Prado
60
O masoquismo em tempos modernos
Nelson
da
63
Sade: matéria sem culpa, gozo sem limites
Com a retração do masoquismo moral, as formas mais cruas da perversão tendem a ganhar espaço na cultura contemporânea S i lva J u n i o r
Julieta Benoit
Celeiro de vícios inimagináveis e templo de perversões, o autor de Filosofia na Alcova ainda hoje é um desafio para nossa sensibilidade Paulo Jonas
de
L i m a P i va n°144
41
D o s s i ê P e rv e r s ã o
N
ão vem de hoje a tentativa de explorar artisticamente os limites entre “normalidade” e “perversão”. Basta evocar As Flores Também Ficam Instáveis e Podem Ferir, de Anna Bella Geiger (artista nascida em 1933 e residente no Rio de Janeiro), o ensaio Livro de Carne, de Artur Barrio (Porto, 1946), a série O que Sobra, de Anna Maria Maiolino (Scalea, Itália, 1942) ou a técnica de pintar com esperma e fezes, do alemão Martin von Ostrowski (Bonn, Alemanha, 1958). Os anos 1970, sobretudo, foram o período das mais impressionantes experimentações. Entre trabalhos mais recentes, temos a performance intitulada Belle – Pour Être Plus Beau et Efficient; pour Être Plus Belle et Efficiente [Bela – Para ser mais belo e eficiente; para ser mais bela e eficiente], realizada pelos artistas brasileiros Priscilla Davanzo e Freak Garcia. Trata-se de um trabalho de interatividade com o espaço do Parque do Ibirapuera, feito em setembro de 2005: flores colhidas no parque são suturadas nos corpos dos artistas, que, em seguida, passeiam entre as pessoas, tomam sorvete, vivem, em suma, com sua nova condição, o espaço do parque. Diante dessas experiências estéticas, somos postos diante de questões muito instigantes. O discurso que lida com limites entre “normalidade” e “perversão” parece caducar. Por que suturar flores no próprio corpo seria uma extrapolação das fronteiras do normal? O leitor ficará ainda mais impressionado se vir os belos desenhos feitos por Priscilla Davanzo com o sangue fresco obtido de incisões em corpos humanos. Há um documentário no YouTube para registrar seu fazer artístico, intitulado d.n.a. reimpressão. Priscilla insiste na ausência de liberdade na arte. Boa questão: pode o artista não viver o sentimento do belo e dar-lhe vazão segundo as formas que esse sentimento lhe inspira?
58
n°144
Fotos: Patrícia Cecatti
Arte e perversão
Priscila Davanzo também é mestre em artes plásticas e visuais pela Unesp/SP. Consultada sobre o tema da perversão, ela respondeu à CULT: “A arte não trata da perversão. A arte não quer saber da perversão. A arte é a busca do ser humano pelo belo. Existe uma necessidade do belo e é com a arte que o ser humano supre essa necessidade. A síntese é a maneira moderna de fazer arte – e também de fazer ciência, tecnologia e progresso –, ou deveria ser. Não existe nenhuma liberdade da parte do artista ao fazer arte, assim como não existe liberdade para os cientistas que fazem ciência. O objetivo é muito claro e, para realizá-lo, só existe uma maneira: a síntese. Somente um desenvolvimento dialético e sintético leva a uma arte moderna. Não existe espaço para as particularidades individuais de um artista, de uma cultura ou de uma época. A necessidade do belo é um conflito geral, sem nenhuma particularidade individual, e só pode ser resolvida dessa maneira. Somente essa maneira pode resolver a questão do belo. Não existe perversão na arte. Não existe perversão na arte de Marcel Duchamp. Em Rrose Sélavy (1921), em Tonsure (1919) ou mesmo em La Fontaine (1919), não existe perversão. Não existe perversão na arte de Andy Warhol. Em Little Eletric Chair (1964-1965), em Self-Portrait in Drag (1981) ou no painel JFK Assassination (1968). A arte moderna deve ser olhada por olhos vivos e modernos. A arte moderna não pode se perder na crítica confusa dos pós-modernos, psicólogos e mortos. Não há psicologismos na arte. Não há perversão na arte”.
n°144
59