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ANO 12
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dossiê
Depressão
a epidemia silenciosa do século 21 O debate entre a psiquiatria e a psicanálise
entrevista
Andrew Keen
Para o anticristo da internet , a era digital está criando as bases para uma tirania das massas
Os 150 anos de Henri Bergson Principal especialista no autor, Frédéric Worms fala da retomada da filosofia do tempo
Descubra a paixao pela arte.
www.andalucia.org www.spain.info ESCRITÓRIO ESPANHOL DE TURISMO Rua Zequinha de Abreu, 78 Cep 01250-050 SÃO PAULO - SP Telefone: 11 36752001 saopaulo@tourspain.es
editorial
Diretora e editora resp. – Daysi M. Bregantini Diretor de redação – Marcos Fonseca Editor – Eduardo Socha Editor-assistente – Wilker Sousa Repórter – Julia Alquéres Site – Carolina Rossini Revisora – Kiel Pimenta Imagem de capa – Toulouse-Lautrec, À Montrouge Rosa La Rouge 1886-1887 Editor de arte – Fábio Guerreiro Assistente de arte – Nícolas Godoy Tradutor – Abilio Godoy Departamento financeiro – Ana Lúcia P. Silva e-mail: financeiro@editorabregantini.com.br Departamento administrativo – Dejair Bregantino Atendimento ao leitor, assinaturas e números atrasados Herik Krajewski e-mail: assinecult@editorabregantini.com.br Tel.: (11) 3385-3385 Assessoria de imprensa – Andréa Simões e-mail: andrea@attachee.com.br Publicidade em São Paulo: Gilberto Rala (executivo de negócios) e-mail: gilberto@editorabregantini.com.br Júlia Farina (executiva de negócios) e-mail: juliafarina@editorabregantini.com.br Tel.: (11) 3385-3385 Publicidade em Brasília: Front Comunicação – Pedro Abelha e-mail: pedroabelha@terra.com.br Tel.: (61) 3321-9100 Gráfica – Parma Distribuição exclusiva no Brasil (bancas) – Fernando Chinaglia CuLT – REVISTA BRASILEIRA DE CuLTuRA é uma publicação mensal da Editora Bregantini Praça Santo Agostinho, 70 – 10º andar Paraíso – São Paulo – SP – CEP 01533-070 Tel.: (11) 3385-3385 – Fax: (11) 3385-3386 CuLT ON-LINE www.revistacult.com.br www.twitter.com/revistacult Visite nossa comunidade no Orkut Matérias e sugestões de pauta: redacao@revistacult.com.br Espaço Revista CuLT espacocult@revistacult.com.br Cartas cartas@revistacult.com.br
ISSN 1414707-6 – Nº 140 – OUTUBRO/2009 – ANO 12
a dor de eXistir Estudos da Organização Mundial da Saúde divulgados neste ano indicam que, em 2030, a depressão será a principal causa de incapacitação. A estatística atual estima que 121 milhões de pessoas sofram da doença. Desinformação e ausência de políticas públicas preventivas só agravam a situação. Uma doença que causa tanto sofrimento e pode levar à morte deveria ter a colaboração de programas de esclarecimento. O Ministério da Saúde, segundo os profissionais entrevistados, precisa criar políticas de apoio à prevenção e tratamentos efetivos. A reportagem, comandada pelo jovem jornalista Wilker Sousa, ouviu dezenas de profissionais e revela dados impressionantes: o preço dos tratamentos, que são caros; a fartura de remédios oferecidos pela indústria farmacêutica – que faturou 842 milhões de reais, em 2008, com a venda de antidepressivos no Brasil –; a má formação dos profissionais de saúde; e o serviço oferecido pelo SUS, que deve ser repensado. A depressão é uma doença que não escolhe gênero nem faixa etária, e é particularmente devastadora nas classes economicamente menos favorecidas, que são vítimas do descaso social e submetidas a uma vida estressante. A revista CULT teve o cuidado de ouvir profissionais da maior competência e publicar artigos escritos por psiquiatras e psicanalistas reconhecidos nacionalmente. Esperamos que o Dossiê – desenvolvido em parceria com tantas cabeças brilhantes – contribua para o esclarecimento da depressão, diminua o preconceito e sirva de alerta às autoridades. Afinal, a revista CULT é lida por pessoas articuladas, especialistas em várias disciplinas do pensamento, profissionais sensíveis e estudantes de universidades – o que forma um contingente com poder para tentar mudar a ordem das coisas. Mesmo que essas coisas sejam, a princípio, dolorosas e inexplicáveis. Escreva para nós e envie sugestões. Boa leitura! Daysi Bregantini daysi@revistacult.com.br
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do leitor
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cultura eM MoViMento Viva Villa! • Espetáculo sobre a vida e a obra de Ana Cristina Cesar • Bienal do Livro de Pernambuco • 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo • Outras Notas Musicais
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entreVista
MÚsica clássica norMan LeBrechT Num piscar de olhos na história da cultura, a Cidade dos Anjos abrigou o futuro da música erudita
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resenha – MÚsica
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MÚsica PoPular
Em A Música Desperta o Tempo, o regente Daniel Barenboim fala sobre como a música pode ser um espelho para a vida, ou melhor, para a sociedade
entreVista Para o jornalista Andrew Keen, o fim da “ditadura dos especialistas” poderá dar lugar, na era digital, à “tirania das massas”
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Creative Commons/Anne Helmond
Imagens: Acervo Museu Villa-Lobos
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cultura eM MoViMento
peDro aLeXanDre sanches Com nomes como Céu, Tiê, Ana Cañas, Maria Gadú, o ano de 2009 se notabiliza por uma avalanche de mulheres compositoras
resenha – literatura Em seu segundo romance, Paulo Rodrigues desestabiliza as bases do realismo
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literatura – entreVista
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Entrevista com Frédéric Worms, considerado o maior especialista na obra de Bergson
Jovem expoente da literatura francesa, Emmanuel Tugny fala de sua trajetória entre a diplomacia, a música e a literatura
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resenha – cineMa Nova edição do livro de Paulo Emílio Salles Gomes discute a obra do mestre do cinema poético Jean Vigo
hoMenaGeM – berGson
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resenha – filosofia Ensaios do filósofo italiano Giorgio Agamben apresentam as noções de dispositivo, de amizade e de contemporâneo
Reprodução
colaboradores desta edição Heitor Ferraz, poeta e professor da Faculdade Cásper Líbero. É autor de Um a Menos (7Letras, 2009), Coisas Imediatas (7Letras, 2004) e Hoje como Ontem ao Meio-dia (7Letras, 2002) Cléber Eduardo, professor e curador. É diretor, roteirista e montador dos curtas Almas Passantes (2008) e Rosa e Benjamin (2009), realizados em parceria com Ilana Feldman
Norman Lebrecht, escritor e crítico musical britânico. Apresenta o programa lebrecht.live, na rádio BBC. É colunista da revista CULT e autor de Maestro, Obras-primas & Loucura (Record, 2008)
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dossiê
Filosofia Marcia Tiburi
Viver a morte dos outros é o que nos resta quando o caráter macabro do capitalismo se revela entre nós
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Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista, professor livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. É autor de Lacan e a Clínica da Interpretação (Hacker/ Cespuc 1996) Decio Gurfinkel, professor dos cursos de psicanálise e de psicossomática no Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo. É autor dos livros Sonhar, Dormir e Psicanalisar: Viagens ao Informe (Escuta, 2008), Do Sonho ao Trauma: Psicossoma e Adicções (Casa do Psicólogo, 2001)
Táki Cordás, médico psiquiatra e professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina da USP. É autor de Depressão – Da Bílis Negra aos Neurotransmissores (Lemos Editorial, 2002), entre outros Marcia Tiburi, filósofa e escritora. É colunista da revista CULT e autora de Mulher de Costas (Bertrand Brasil, 2006) e Filosofia em Comum (Record, 2008), entre outros Camila Frésca, jornalista, pesquisado-
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Depressão Epidemia do desencanto por Wilker Sousa
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Custos e história de uma doença por Táki Cordás
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Do patológico ao humano universal por Decio Gurfinkel
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O urso-polar e a baleia por Christian Ingo Lenz Dunker
ra musical e mestre em musicologia pela USP. É autora de Música nas Montanhas: 40 Anos do Festival de Inverno de Campos do Jordão (Santa Marcelina Cultura, 2009)
Francisco Bosco, ensaísta e escritor. É colunista da revista CULT e autor de Banalogias (Objetiva, 2007), entre outros Gunter Axt, professor visitante de história na USP e da Universidade de Paris7-Diderot. É coorganizador de Brasil Contemporâneo: Crônicas de um País Incógnito (Artes e Ofícios, 2006) Pedro Alexandre Sanches, crítico musical e jornalista. É autor dos livros Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba (Boitempo, 2000) e Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004) Claudio Oliveira, professor de filoso-
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Ensaio
Francisco Bosco Antes de sair de casa, peça a bênção a Patricia Poeta
fia da Universidade Federal Fluminense (UFF). É autor de artigos publicados em coletâneas, como A Filosofia Após Freud (Humanitas) e Nove Abraços no Inapreensível: Filosofia e Arte em Giorgio Agamben (Azougue)
Débora Cristina Morato Pinto, professora adjunta do departamento
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oficina literária
de filosofia da Universidade Federal de São Carlos, SP. Escreveu capítulos para os livros Bergson (Vozes, 2008) e Atualidade de Bergson (Autêntica, 2007)
Imagens: Acervo Museu Villa-Lobos
cultura
EM MOVIMENTO
Viva Villa!
VILLA-LOBOS: com o escritor Gilberto Amado; regendo o Concerto No 5 para Piano e Orquestra em Viena; ao lado de Getúlio Vargas
A
trajetória do maior compositor brasileiro contada com imagens, filmes e concertos ao ar livre. Essa é a proposta de Viva Villa!, exposição sobre a vida e a obra de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) que ocorre a partir de 12 de outubro no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Com parceria de instituições nacionais e estrangeiras, como o Museu Villa-Lobos, a Biblioteca do Congresso (Washington) e a Cinemateca de Praga (República Tcheca), a exposição reúne raros documentos audiovisuais, além de mais de 400 imagens, em sua maioria inéditas. O projeto é resultado de três anos de trabalho empreendidos na restauração do acervo audiovisual, na compilação dos documentos e na captação de recursos. Filmes de 8, 16 e 35 milímetros que estavam praticamente deteriorados no Museu Villa-Lobos foram
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digitalizados. “Essa recuperação levou muito tempo porque, além do material audiovisual, também havia livros de recordações, bilhetes, cartões, que foram todos digitalizados”, explica Fabiano Canosa, curador da exposição. Viva Villa! está dividida em três partes. A primeira delas, que compreende as primeiras décadas da vida do maestro, exibe cartazes, pinturas, capas de discos, partituras e objetos pessoais do artista. A reprodução de um trem – o Trenzinho Caipira – corresponde à segunda parte, na qual os visitantes percorrem os caminhos da música do maestro ao redor do mundo. Já o Espaço Papagaio de Moleque é inteiramente dedicado às crianças. Instrumentos musicais, computadores e materiais para a confecção de brinquedos artesanais convidam os pequenos a adentrar o universo musical de Villa-Lobos. Paralelamente,
no Auditório do Arquivo Nacional, são exibidos filmes como O Descobrimento do Brasil (1936), para o qual o maestro compôs a trilha. No pátio central, apresentações musicais gratuitas completam o evento. “Estou muito feliz porque Villa-Lobos tem sido uma obsessão minha por mais de 40 anos e realmente estamos fazendo algo que faz jus à memória dele”, completa Fabiano Canosa.
Viva Villa! Quando 12 de outubro a 5 de janeiro Onde Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (RJ) Quanto entrada franca
entrevista
Andrew Keen
O blasfemador da internet Para o jornalista Andrew Keen, o fim da “ditadura dos especialistas” poderá dar lugar, na era digital, à “tirania das massas” Eduardo Socha
Creative Commons/Anne Helmond
E
m meados da década de 1990, Andrew Keen era um feliz empreendedor da internet no Vale do Silício (Califórnia), o éden da nova e então promissora economia. Criou várias empresas, algumas não deram certo. Quando chegou o estouro da bolha das “empresas pontocom” em 2001, Keen estava em vias de se transformar no anjo caído do paraíso digital. Resolveu lançar, em 2007, um livro abertamente apocalíptico contra a internet (O Culto do Amador, publicado neste ano no Brasil). Polemista habilidoso, ganhou fama rápida na grande imprensa norte-americana como o “anticristo da internet”, epíteto que ele mesmo endossa, não sem um discreto sorriso no canto da boca. No livro, o jornalista britânico não economizou sua bem talhada virulência crítica para atacar a chamada web 2.0 – o conjunto de comunidades e serviços on-line que incentivam a participação dos usuários, ou seja, a nebulosa de codinomes (blogs, Facebook, Orkut, YouTube, Twitter, Wikipédia etc.) que aos poucos invade nosso cotidiano. Controverso e provavelmente oportunista, o subtítulo do livro deixa entrever um ranço à primeira vista conservador – Como Blogs, MySpace, YouTube e a Pirataria Digital Estão Destruindo Nossa Economia, Cultura e Valores. Afinal, não é exatamente o que pensam os adeptos do movimento da livre cultura, que hoje fazem circular termos como Creative Commons, software livre e copyleft, e prometem a revolução cultural por meio da democratização radical da informação. Para Keen, no entanto, as novas tecnologias da web 2.0 e o enfraquecimento da noção de propriedade intelectual representam um perigo devastador para instituições que protagonizaram a difusão da cultura no Ocidente. Cita como exemplo o colapso gradual dos grandes jornais nos EUA, das grandes editoras, das indústrias fonográfica e cinematográfica. Seria cômodo enquadrá-lo na figura do ressentido que resolveu investir no catastrofismo inconsequente e, claro, rentável. Mas o que parece incomodar no livro de Keen é o fato talvez de ele mesmo ser um insider e se declarar de esquerda. Ainda mora no Vale do Silício e está em contato permanente com os gurus da economia livre e da contracultura californiana. “Muitos dos meus amigos são empreendedores ali. Eu não era um jornalista que deu um passeio na região e chegou à conclusão de que as coisas iam mal”, confirma à CULT. Keen formou-se em história na London University (Inglaterra) e fez pós-graduação em ciência política na Universidade de Berkeley (Califórnia). De passagem pelo Brasil no mês passado, conversou com a CULT sobre as relações entre tecnologia, ideologia e política, a objetividade da imprensa e da informação, e os efeitos da internet na educação. 16
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CULT – Você não acha que há um excesso de alarmismo em sua crítica à cultura da internet, principalmente dos blogs e das redes sociais, como Orkut e Facebook? Afinal, se as novas tecnologias acenam para uma revolução cultural, pode ser que estejamos vivendo um período de adaptação, com distorções iniciais, mas que, a longo prazo, podem concretizar uma efetiva liberdade de expressão... Andrew Keen – Muito antes de ter escrito meu livro, estudei a história da Europa Oriental, em particular a Revolução Russa, o que me deixou um tanto cético em relação às revoluções. Sempre desconfio de ideias grandiosas e do otimismo das pessoas que defendem argumentos como o fim da história e a revolução democrática. Dito isso, escrevi o meu livro como uma “subversão da subversão”. Até então, tudo o que se falava e escrevia era sobre como a internet iria transformar a humanidade, tornando-nos todos livres, felizes e iguais. Não havia ninguém que questionasse essa ideia. Por isso meu livro foi projetado como uma polêmica e vigorosa reação a esse otimismo. Confesso que o tom talvez seja um pouco exagerado, mas algo polêmico é, por definição, algo exagerado. Se eu tivesse escrito um livro mais equilibrado que considerasse um a um todos os prós e contras, ninguém o teria lido. Logo depois que meu livro saiu, vários outros foram publicados contendo argumentos muito semelhantes. Não que eu tenha sido tão original nas minhas ideias, mas várias publicações que se seguiram repetiam as coisas que eu tinha dito. Por isso acredito que precisávamos de um debate amplo a respeito desse assunto. A grande sacada do meu livro é perceber que o novo modelo econômico, a tal “livre economia”, não funciona. Uma vez que você dispensa os mediadores e editores, uma vez que qualquer um pode criar conteúdo, o modelo econômico resultante não é viável. O fato de você conseguir colocar um vídeo seu no YouTube não significa que você vá se tornar um produtor profissional, porque ninguém vai
pagar por seu trabalho. A mídia sem o papel do editor não é confiável. CULT – Você disse que a discussão sobre a web 2.0 não é mais tecnológica, e sim política e moral. O que o Google está fazendo hoje é semelhante ao que os monopólios industriais faziam no século 19. Qual a relação, nesse caso, entre tecnologia e ideologia? Keen – Tecnologia é ideologia. Não quero aqui entrar num debate sobre a definição acadêmica de ideologia. Quando falo em ideologia, estou pensando num conjunto de ideias, ou de ideais, sobre o mundo. Há um excelente livro chamado From Counterculture to Cyberspace [Da contracultura
O fato de você conseguir colocar um vídeo seu no YouTube não significa que você vá se tornar um produtor profissional. A mídia sem o papel do editor não é confiável ao ciberespaço], de Fred Turner, um brilhante professor e historiador da tecnologia. O argumento dele é o de que a internet foi criada a partir da inesperada fusão de duas construções ideológicas, dois movimentos ideológicos: o establishment militar, industrial e educacional que emergiu da Guerra Fria e a contracultura política dos hippies do norte da Califórnia, em especial aquela que surgiu em torno da figura de Stewart Brand. Não é coincidência que ambos os grupos tenham tendências libertárias. Muitos norte-americanos que viveram a Guerra Fria tornaram-se obcecados pela ideia de liberdade como oposição ao modelo soviético, ao passo que a cultura hippie defendia ideias semelhantes de questionamento da autoridade. Não surpreende, dessa forma, que a internet, que emergiu como ideologia do cruzamento dessas duas corren-
tes, seja um movimento sem centro, um movimento de arestas que, por definição, não aceita qualquer tipo de autoridade. Portanto, eu diria que existe uma relação muito íntima entre tecnologia e ideologia e que ela é muito mal compreendida. Muitas pessoas acreditam que acordamos um dia e lá estava a internet, como um inesperado presente de Natal. Para entender a tecnologia, é preciso entender as pessoas que a inventaram. Também não é coincidência o fato de muitos dos principais ideólogos dessa nova cultura serem “cristãos renascidos” [born again christians]. Acredito que existe uma forte ligação entre a cristandade dos renascidos e a internet. É só mais uma versão da velha mitologia cristã... CULT – Talvez por isso você seja o “anticristo da internet”... Keen – Sim, é por isso [risos]. Essa questão da ideologia é muito importante para mim. Ao contrário do que muitas pessoas acham, não sou um conservador. Considero-me politicamente de esquerda, mas não sou hippie e acredito que a esquerda deva repensar sua maneira de lidar com a autoridade. Simpatizo com algumas das ideias que surgiram nos anos 1960, entretanto, vejo como problemática essa tendência anarquista de contestar toda e qualquer forma de autoridade. É a velha discussão entre Marx e os anarquistas, e estou obviamente do lado de Marx. É necessário um partido, uma estrutura. Não sou nenhum Stalin: acredito que é possível acreditar na autoridade sem ser um Stalin. CULT – Já que você falou de política, quais os impactos mais visíveis da internet nesse campo? Recentemente, tivemos um debate no Brasil sobre a regulação da internet para as eleições do próximo ano. O que pensa a respeito da regulação? Keen – Não conheço a situação brasileira, mas acho que provavelmente seria contrário à propaganda política
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Resenha
L i t e r at u r a
Vozes do realismo Em seu segundo romance, Paulo Rodrigues desestabiliza as bases do realismo Heitor Ferraz
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Rodrigo Rosenthal
D
esde sua estreia com À Margem da Linha, de 2001, Paulo Rodrigues vem sendo considerado uma das boas revelações da literatura brasileira. Sem a pressa que costuma embotar as melhores intenções literárias, Rodrigues chega agora ao seu segundo romance, tendo lançado nesse meio-tempo apenas um livro de contos. Com As Visões do Sótão, seu novo romance, o escritor – que já foi elogiado por ninguém menos que o semirrecluso autor de Lavoura Arcaica, Raduan Nassar, mantém-se atrelado ao tenso universo familiar, que já havia marcado seu primeiro livro, mas dá uma volta dentro de seu trabalho, criando um personagem difícil de abarcar. Damiano, referência provável aos santos gêmeos Cosme e Damião, padroeiros dos médicos e farmacêuticos e, pela via popular, protetores das crianças, é uma espécie de “pobre coitado”, cuja vida é lançada, desde cedo, a um segundo plano. Caçula da casa, sofre humilhações vindas tanto do irmão mais velho como da mãe – suas sombras ao longo da narrativa. Tudo vai carreando no livro para um universo dolorido, que se fecha dentro da cabeça do personagem, gerando características que tocam a esquizofrenia. Para compor sua narrativa intrincada, dividida em duas partes que se espelham, Paulo Rodrigues lança mão dos cadernos de notas de Damiano. Ele as teria escrito para relatar sua vida. No entanto, essas notas são pontuadas por um comentário exterior, grafado ao longo do livro em itálico, e que seria de um narrador onisciente, que conhece
Paulo Rodrigues: temática fiel ao tenso universo familiar
essa história de ponta a ponta e pode, por isso mesmo, fazer sutis ajustes desabonadores ao que é dito pelo personagem. O artifício não é dos mais simples e pode gerar algumas dúvidas quanto à composição do romance como um todo. O leitor pode se perguntar por que esse narrador se insere e reconta o que foi dito logo antes ou logo depois, com pequenas alterações no relato dos fatos, que até então parecia ser objetivo.
Estrutura
O romance é dividido em duas partes e composto principalmente pelas anotações de Damiano. Sabemos por uma espécie de prólogo que o Damiano que escreve já não é mais moço e traz um baú de memórias afetivas para lá de esgarçado e doente. “Neste caso, em que a narrativa se
apoia nas lembranças de uma mente envelhecida, para depois ser comparada ao conteúdo de uma caixa onde está misturado o pó de várias ossadas, convenhamos, que veracidade se ganha com esse tipo de rigor formal?”, diz, logo de saída e de forma desabusada. O próprio narrador-personagem avisa ao leitor que ele está num campo movediço, onde a verdade se move sem se fixar. Na primeira parte do livro, ele narra sua infância e o momento em que começou a ouvir uma voz, “que me desviou para o caminho do ódio, trilha por mim desconhecida e que só palmilhei após um violento conflito interior”. É nessa passagem que a vida de Damiano se divide entre a que ele vive e aquela que a voz o faz viver, criando um duplo dele mesmo, cuja função parece ser a de defendêlo do mundo exterior – e cria-se uma
fantasia heroica para um total anti-herói. Sua vida sem perspectivas o leva a ser alfaiate e a se casar com Nena, jovem fogosa que aparentemente o trai. A traição é o nó do romance. Ele se sente incapaz de se vingar, seja do irmão, que o arreliou na infância; seja da mãe, objeto de intenso amor, mas que sempre o humilhou preferindo o primogênito; seja da Nena. No entanto, sem afirmar nada, vamos notando que a vingança deve ter sido trágica, um trágico que ele não conta, que ele oculta sob o manto protetor de uma linguagem objetiva. Na segunda parte, vamos encontrar Damiano em Montevidéu, no Uruguai. Uma fuga para a cidade onde sua mãe sempre lhe dizia ter sido imensamente feliz. Lá, ele passa a se chamar Guido, e é assim que ele mesmo se trata, em suas anotações. E, curiosamente, mesmo sendo já um homem mais velho, ocultado por esse duplo, sua vida como que se repete,
com um novo casamento também estranho, agora com uma dançarina de cabaré com o alegórico nome de Maruja. Ele consegue por um momento viver sem a voz, ou seja, sem ameaças, até que se casa. E a voz terá de reaparecer para soprar a poeira do sótão de sua memória. Os fatos relatados são rearranjados pelo narrador onisciente, marcado em itálico, aqui e ali. É como se ele ajustasse os acontecimentos à verdade, que sempre escapa. No entanto, ficamos sem saber quem é esse segundo narrador, se ele não seria a própria voz, já autônoma de tudo, se inserindo e recontando a história. Esse nó intrincado criado pelo romancista gera uma narrativa tensa, pela qual o leitor se move inicialmente como se diante de um romance realista tradicional, com o fio da história se desenredando, mas, ao mesmo tempo, a duplicação das vozes cria um ruído em relação à notação realista, levando-nos
a perguntar: de onde veio esse caderno? De onde vêm esses ajustes em itálico? Os fatos passam a interessar menos, e ganham vulto esses raios de um surto esquizofrênico a corroer toda e qualquer segurança. É como se Paulo Rodrigues, de maneira notável, nos colocasse dentro da cabeça de Damiano, um personagem que junta as facetas do homem bonzinho e vítima do mundo com as do homem violento, com sede de vingança. Um “sótão” com poeiras infinitas a desestabilizar, de forma angustiante, o lado confortável dos romances realistas de hoje. As Vozes do Sótão Paulo Rodrigues Cosac Naify 144 págs. R$ 40
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Música clássica N o r m a n L e b r e c h t
Gênios no paraíso Num piscar de olhos na história da cultura, a Cidade dos Anjos abrigou o futuro da música erudita
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uma manhã de setembro de 1940, um músico recém-chegado da Europa fez uma visita ao maestro Otto Klemperer, em Los Angeles, e o encontrou discutindo Gustav Mahler com seu companheiro de exílio Bruno Walter. O visitante foi almoçar na nova residência de Thomas Mann, em Pacific Palisades, onde trabalhou algumas peças de música de câmara com Michael, filho de Mann e violista. À noite, visitou, em Hollywood, Igor Stravinsky, que estava ensaiando seu concerto para violino. Por um único breve momento, um piscar de olhos na história da cultura, a Cidade dos Anjos abrigou o futuro da música erudita. Klemperer, um pioneiro da ópera modernista em Berlim, trabalhava como diretor musical da Filarmônica de Los Angeles, expandindo os horizontes com ousadas comissões a compositores vivos. Stravinsky, um quarto de século depois de sua escandalosa notoriedade com A Sagração da Primavera, estava no auge de sua fase neoclássica. Seguindo pela Sunset Boulevard, na North Rockingham Avenue, vivia Arnold Schönberg, o homem que tinha permitido à música escapar da camisa de força tonal. Assim, dois dos três revolucionários musicais Creative Commons
do século acabaram se refugiando na mesma cidade. O terceiro, Béla Bartók, vivia em Nova York. Durante a Segunda Guerra Mundial, Los Angeles estava na vanguarda da criação musical. Como as fronteiras de uma arte elitista e seletiva se deslocaram para um lugar dominado pelo sol, pelo surfe e pelo cinema superficial é o tema de A Windfall of Musicians [Músicos que caíram do céu, inédito no Brasil], um cativante estudo de Dorothy Lamb Crawford baseado em arquivos documentais e entrevistas com remanescentes da época. Esse influxo foi provocado por Adolf Hitler, cuja ascensão ao poder, em 30 de janeiro de 1933, fez com que a arte moderna e os músicos judeus fossem banidos da vida pública alemã. Hollywood ofereceu a autores exilados uma oportunidade de trabalho, atraindo os irmãos Thomas e Heinrich Mann, Bertolt Brecht, Vicki Baum, o romancista que escreveu o best-seller Grand Hotel, e Erich Maria Remarque, autor do clássico da Primeira Guerra Nada de Novo no Front (LP&M Editores). Já os músicos abrigaram-se primeiro na Costa Leste, onde havia orquestras sinfônicas veneráveis e universidades de prestígio. Porém, decepcionados com o profundo conservadorismo ali encontrado, migraram em seguida para o oeste. Los Angeles, mesmo com toda a badalação da vida ao ar livre, não era nenhum paraíso. Schönberg podia até ser parceiro de tênis de Charles Chaplin e George Gershwin, mas tinha de aturar alunos “superficiais e autômatos” que se preocupavam mais com os créditos que tinham de cumprir na faculdade do que com o desafio representado pela arte. Consternado com a ubiquidade do comercialismo, ele diria ao artista Oskar Kokoschka que estava vivendo num “mundo em que quase morro de desgosto”. Lotte Lehmann, uma serena cantora de lieder, escreveu um romance chamado Of Heaven, Hell and Hollywood [Sobre o céu, o inferno e Hollywood], deixando clara sua opinião sobre o reino infernal que habitava.
Entre o céu e o inferno
Arnold Schönberg dando em aula em Los Angeles: “Talvez tenha precisado trabalhar quatro vezes mais para sobreviver, mas não fiz nenhuma concessão ao mercado” 30
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Stravinsky, que bebia pesadamente, integrou-se à colônia dos escritores, fazendo amizade com os ingleses Christopher Isherwood e W.H. Auden. Outros compositores escreviam música de baixa qualidade para “filmes B”. Hanns Eisler, um compositor radical de canções, desenvolveu uma teoria sobre a integração entre colorido musical e emoção cinematográfica. Friedrich Hollaender, um dos compositores
de cabaré mais espirituosos de Berlim, continuou escrevendo canções satíricas até que sua esposa foi pega tentando roubar comida. Depois disso, ele desandou a compor 175 trilhas sonoras. Billy Wilder, ele mesmo um exilado do nazismo, foi o único diretor a permitir que Hollaender escrevesse uma canção cinematográfica original. Poucos chamaram aquilo de paraíso. Até Erich Wolfgang Korngold, o paradigma do compositor de cinema milionário, era constantemente diminuído por seu pai vienense por não conseguir que suas peças fossem tocadas nas salas de concerto. Schönberg livrou-se com magnífica perversidade satírica de um encontro lucrativo com o magnata do cinema Irving Thalberg e adorou quando Jascha Heifetz declarou que seu concerto para violino era impossível de tocar. “Talvez tenha precisado trabalhar quatro vezes mais para sobreviver”, disse Schönberg, “mas não fiz nenhuma concessão ao mercado”. Apesar de todas as incongruências, os modernistas de Los Angeles deixaram sua marca. O aluno John Cage, ridicularizado por Schönberg em sala da aula, adorava seu professor “como um deus” e viria a desenvolver iconoclasmos musicais de caráter tipicamente norte-americano. A Filarmônica de Los Angeles passou a tocar o ano todo e tornou-se uma das melhores dos EUA. A música cinematográfica ganhou várias camadas de sutileza e inúmeros jovens músicos alcançaram grandes feitos graças ao contato
com os gênios estrangeiros. Resmungando, Stravinsky ainda viveu ali por 20 anos depois do fim da guerra, como última relíquia de uma efêmera era dourada. Crawford, a autora do livro, passou boa parte de sua vida ativa ensinando e fazendo música no sul da Califórnia e descreve o encontro com o novo continente com uma familiaridade física a sua narrativa e um olho atento aos detalhes surpreendentes, ao choque com a novidade. Ela cita a primeira impressão de Vicki Baum: “Estive embriagada por semanas com esse sol, com esse ar e com a beleza das colinas”. Crawford exagera a importância de figuras menores como Ernst Toch e talvez subestime Kurt Weill, cujas incursões em Hollywood exigem pesquisa mais aprofundada. Não obstante, A Windfall of Musicians é uma obra valiosa por investigar como o oeste tornou-se uma força cultural nos EUA, um ascendente contrapeso à tradição engessada do leste. O que, aliás, durou só até certo ponto. Em 1997, os encarregados da Universidade do Sul da Califórnia decidiram esvaziar o prédio do Instituto Arnold Schönberg e mudar seu nome para o de um recente doador. Viena resgatou os arquivos do compositor, suas partituras, suas cartas e suas pinturas, acomodando-as num Centro Arnold Schönberg, construído a propósito. Com esse enorme desrespeito à história, Los Angeles foi expurgada de seu acidente, ou melhor, sua aberração modernista.
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Informações: (11) 3258 3344
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Parceria inédita entre a CPFL Energia e Cultura Artística, promovendo uma série de concertos desfilando as inúmeras possibilidades da música contemporânea no mais novo teatro da cidade. Coordenação geral João Marcos Coelho Outubro
INTERFACES Curadoria Leonardo Martinelli
6 de outubro às 20h30 Conexões Latinas Música de Capiba, Leo Brouwer e Astor Piazzolla para violão, flauta e voz.
20 de outubro às 20h30 Corda Vocale O canto das cordas em obras de Bartók, Villa-Lobos e Martinu interpretadas pelo Ensemble SP.
13 de outubro às 20h30 Cine-Concerto: Brecht e Beckett no chiaroscuro Os filmes Mistérios de uma barbearia, Film e Assalto, com acompanhamento musical ao vivo.
27 de outubro às 20h30 Esta música que me envolve Obras para o instrumento primordial, a voz humana, interpretadas pela soprano Martha Herr.
ENTRADA GRATUITA Sempre às terças-feiras às 20h30 no Cultura Artística – Itaim Ingressos distribuídos a partir das 19h. Disponibilidade sujeita à lotação do teatro.
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Resenha
Música
Passagem inevitável do tempo Em A Música Desperta o Tempo, o regente Daniel Barenboim fala sobre como a música pode ser um espelho para a vida, ou melhor, para a sociedade Camila Frésca
O
argentino-israelense Daniel Barenboim é uma das mais influentes figuras do mundo da música na atualidade. Exímio pianista que ainda dá recitais solo e pratica a música de câmara, regente dos mais prestigiados – atualmente é diretor da Orquestra Staatkskapelle Berlin –, é ainda criador, ao lado do intelectual norte-americano de origem palestina Edward Said, da Orquestra West-Eastern Divan, que congrega jovens músicos de Israel e de países árabes. Dele, acaba de sair A Música Desperta o Tempo [Music Quickens Time]. A ideia central que permeia os ensaios que compõem o livro é a de como a música pode ser um espelho para a vida – ou melhor, para a sociedade. Nessa arte que possui uma linguagem tão particular, poder-se-ia observar como se dá a interação entre sujeitos e elementos diversos, num equilíbrio em que somente a soma de cada parte produz um resultado satisfatório, orgânico, coerente. Como fazer, então, para que a música contribua de fato para melhorar a sociedade?
Música e vida
Barenboim cita alguns exemplos concretos nos três primeiros ensaios, que de certa forma formam a primeira parte do livro – mesmo não estando formalmente dividido dessa maneira, acredito que haja três grandes eixos a estruturar a obra. Existiria uma relação entre o som e o silêncio muito similar à que há entre a vida e a morte, por exemplo. Da mesma forma, cada uma das notas musicais dentro de uma peça seria um protótipo do papel do indivíduo na coletividade: 32
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“As notas, que seguem umas às outras, operam claramente dentro da passagem inevitável do tempo. Na música, a expressividade é dada pela relação entre as notas (...) Isso determina que não se pode permitir que as notas desenvolvam o seu eu natural, tornando-se tão importantes a ponto de ofuscar a anterior. Cada nota deve ser consciente de si mesma e também de seus próprios limites; as regras que se aplicam aos indivíduos na sociedade aplicam-se igualmente a elas, na música. Quando se executam cinco notas que estão ligadas, cada uma delas luta contra o poder do silêncio que quer lhes tomar a vida, e, por isso, posicionam-se em relação à nota anterior e à seguinte. Nenhuma delas pode ser altiva, querendo ser mais forte que aquela que a antecedeu (...) Esse fato tão simples me ensinou a relação entre o indivíduo e o grupo. É necessário ao ser humano contribuir para a sociedade de um modo muito individual; isso torna o todo muito maior que a soma das partes. A individualidade e o coletivismo não devem ser mutuamente exclusivos; na verdade, juntos eles são capazes de melhorar a existência humana”. O estabelecimento de tais relações, obviamente, pressupõe um conhecimento musical razoável. Tal conhecimento, no entanto, anda cada dia mais escasso no mundo, já que a música foi abolida da maioria das escolas. “Nenhuma escola eliminaria o estudo de idioma, matemática ou história de seu currículo, no entanto, o estudo da música, que abrange tantos aspectos dessas áreas do conhecimento e pode até contribuir para uma melhor compreensão deles, muitas
vezes é totalmente ignorado”, afirma Barenboim logo na introdução. A ausência da música como matéria escolar certamente tem algo a ver com sociedade atual, que valoriza muito mais a visão do que a audição, outro aspecto por ele abordado. Andamos cada vez mais insensíveis às informações recebidas pelo ouvido, sendo estimulados, desde a infância, a perceber os fenômenos pela visão, o que causaria uma espécie de atrofia no potencial auditivo da maioria das pessoas. Essa falta de educação e de atenção para a música possibilita um desvirtuamento de sua função, tornando-a descritiva ou permitindo falsas associações: “a Quinta Sinfonia de Beethoven certamente não foi criada para nos fazer pensar em chocolates, como uma fábrica norte-americana gostaria que acreditássemos”. Por outro lado, também não escapam de suas críticas escolas de música e conservatórios, onde o ensino praticado é altamente especializado e desligado do sentido global da música. Ou seja, Daniel Barenboim reivindica para essa arte o papel de instrumento essencial no desenvolvimento integral do ser humano. A educação musical deve ser introduzida desde cedo, para que a música se torne tão orgânica quanto a linguagem falada.
O “Divã Ocidental-Oriental”
Tanto Paralelos e Paradoxos – seu livro anterior, na verdade um grande diálogo registrado entre Barenboim e Said sobre música e sociedade – como A Música Desperta o Tempo são dedicados aos músicos da West-Eastern Divan, projeto que em 2009 completa 10 anos. É dele que Barenboim trata
Divulgação
Daniel Barenboim: a música como espelho da sociedade
na segunda e mais instigante parte do livro. A orquestra nasceu em 1999 em Weimar, ano em que a cidade foi escolhida como “capital europeia da cultura”. O nome remete a um conjunto de poemas que Goethe escreveu inspirado pela obra do poeta persa Hafiz e que focaliza a ideia do outro. Seu princípio, segundo Barenboim, era bastante simples: “Uma vez que os jovens músicos concordassem em tocar apenas uma nota em conjunto, eles não seriam capazes de olhar uns para os outros da mesma forma novamente. Se na música eles foram capazes de seguir com um diálogo, tocando simultaneamente, então, um diálogo verbal comum, em que cada um espera até que o outro se cale, se tornaria consideravelmente mais fácil”. Barenboim afirmou diversas vezes que o objetivo da orquestra é humanista e não político, mas fica impossível separar as coisas. A WestEastern Divan é um projeto político na medida em que concebe a política como atividade passível de ser desempenhada por qualquer cidadão envolvido com questões públicas relevantes de sua época, e interferindo de forma
ativa nessa realidade. Explicando conceitos e convicções que estão por trás do projeto, ao mesmo tempo em que revela os mais importantes fatos que sucederam ao grupo de 2004 para cá, Daniel Barenboim acaba por nos mostrar como ele mesmo se utiliza das ferramentas aprendidas na música para interferir na vida/sociedade. Numa das várias metáforas que propõe, afirma que o diálogo israelopalestino deveria ser como uma fuga, com vozes contrapontísticas: nela, sujeito e contrassujeito têm igual importância, já que não há sentido em um sem o outro, e cada voz tem seu próprio discurso ao mesmo tempo em que é intimamente ligada à outra. Para ele, “a Orquestra WestEastern Divan é, obviamente, incapaz de trazer a paz, mas pode criar condições para o entendimento mútuo, sem o qual é impossível até mesmo falar de paz. Ela tem o potencial de despertar a curiosidade de cada indivíduo para ouvir a narrativa dos outros e de inspirar a coragem necessária para ouvir o que, às vezes, se prefere não dizer”.
O músico
Os apêndices que compõem a última parte do livro – com entrevistas, depoimentos e artigos anteriormente publicados – nos permitem enxergar o músico em seu artesanato diário, ou explorar sua formação e idiossincrasias. A importância de Bach e Mozart em sua carreira, suas críticas ao movimento da interpretação musical historicamente orientada e seu envolvimento com a música contemporânea estão entre os temas abordados. Em mais de uma passagem ele revela sua opinião sobre as “interpretações históricas”: “Tenho dois problemas com o assim chamado movimento sonoro original. Primeiro, incomoda-me o fato de que se trate de um movimento, portanto, de uma ideologia, uma visão de mundo que coloca menos perguntas do que deveria (...) Em segundo lugar – e digo isso agora sem qualquer ironia –, essa ideologia conseguiu venderse como progressista”. “Na verdade, o meu problema maior é com alguém
que tenta imitar o som de uma outra época”, resume. No sentido oposto, a música contemporânea sempre recebeu de Barenboim atenção especial. Sua longa colaboração com Pierre Boulez é destrinchada num artigo dedicado ao compositor e no qual ele revela uma opinião compartilhada por ambos: “Frequentemente, o problema com a música atual é que os trabalhos não são repetidos o suficiente. Em consequência, não é possível adquirir a familiaridade necessária – em primeiro lugar, para a orquestra. Por tocar uma nova peça apenas uma vez, mesmo depois de prepará-la muito bem e nunca mais repetir essa apresentação, a orquestra não pode chegar à familiaridade da qual necessita para tocá-la com maior liberdade. E, naturalmente, nem o público”. Criança prodígio e pianista de carreira brilhante, Daniel Barenboim desfruta hoje da posição de um dos maestros mais importantes do mundo. Aos 67 anos e após quase 60 de carreira, tudo isso não poderia parecer, por um lado, um pouco entediante e carente de desafios? O que parece claro, no entanto, é que a West-Eastern Divan fez com que o músico se reposicionasse nesse cenário, buscando na arte um papel muito mais amplo e transformador da sociedade. Na leitura reveladora de A Música Desperta o Tempo, essa e muitas outras questões são exploradas de forma instigante e apaixonada.
A Música Desperta o Tempo Daniel Barenboim Trad.: Irene Aron e Eni Rodrigues Martins Editora 168 págs. – R$ 34,90 n°140
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homenagem B e r g s o n , 150
anos
A vida, o tempo e o nosso tempo Os 150 anos de nascimento de Henri Bergson marcam a centralidade de seu pensamento no debate filosófico contemporâneo D é b o r a C r i s t i n a M o r at o P i n t o
C Henri Bergson (1859-1941): o tempo compreendido como o objeto fundamental da metafísica
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omo poderíamos apontar, na filosofia de Henri Bergson, o aspecto que justifica a retomada contemporânea de seu pensamento? Sabemos que, desde o fim da década de 1990, o meio acadêmico francês deu ensejo a um movimento de recuperação do filósofo, cuja obra conheceu um ostracismo de difícil explicação ao longo dos anos 1970 e 1980. Em todo caso, é evidente, nos últimos 15 anos, o ressurgimento de estudos notáveis sobre o filósofo, incluindo novas hipóteses de leitura sistemática de sua obra, que derivam em interpretações originais e profundas sobre o seu sentido total, assim como o estabelecimento de confrontações frutíferas com a tradição fenomenológica. Também cabe mencionar o trabalho minucioso e extremamente relevante de retorno às fontes científicas da reflexão bergsoniana, trazendo como consequência intrínseca a recuperação de sua importância para o debate científico contemporâneo. Tal movimento, conforme as direções dadas ao saber e à cultura num mundo globalizado, é notoriamente marcado pela internacionalização. Se as teses e publicações na França dão o tom das releituras e mesmo da redescoberta da filosofia bergsoniana, elas o fazem em contato permanente com o movimento de expansão de pesquisas, artigos e eventos que envolve países tão distantes como o Brasil e o Japão, incluindo inserções na Coreia do Sul, na Inglaterra, na Bélgica e na Itália. No Brasil, a renovação dos estudos bergsonianos ocorre e ganha força depois do trabalho irretocável de dois filósofos que, solitários, responderam pela formação dos estudiosos durante aproximadamente 25 anos: Bento Prado Júnior e Franklin Leopoldo e Silva. Levando em consideração todo esse movimento, e analisando, sobretudo, o teor da maior parte das publicações recentes, podemos arriscar uma resposta à questão colocada no início. O ponto de convergência entre os mais diversos estudos reside na importância que o pensamento da duração sempre exerceu, ainda que não se lhe reconhecesse o valor, sobre o século 20 e as diversas filosofias que nele se praticaram.
Nesse âmbito, articulam-se as duas vertentes de seu projeto filosófico: a vertente negativa, concretizada numa potente crítica da tradição filosófica e que aponta a dualidade (instituída, sobretudo, com o cartesianismo) entre sujeito e objeto, ou, antes, entre consciência e natureza, como um dos principais problemas a resolver. Ou seja, trata-se da dimensão de sua reflexão que, ao constatar os limites do pensamento clássico e sua onipresença no campo da ciência, responde pela intuição original do filósofo – o tempo real escapa às matemáticas. A segunda vertente, de caráter propositivo, impõe uma nova definição de objeto e de método ao fazer filosófico: se a tradição racionalista seguiu os hábitos da inteligência e da linguagem, o tournant necessário a uma filosofia que possa se reaproximar da vida e da experiência humanas exige ultrapassar a distância instituída pela ação, origem da forma espacial, e desse modo desvelar o real sob o véu das ideias para reencontrar o contato imediato com o tempo, a temporalidade ou a duração. Meditação sobre o tempo A filosofia de Bergson é, portanto, uma meditação sobre o tempo, a verdadeira natureza do real que é durée: continuidade e diferença articuladas num meio que é o solo comum da consciência e da vida. O filósofo francês virou do avesso a relação entre multiplicidade e unidade, mostrando, na multiplicidade virtual de momentos heterogêneos, a unidade da duração. O trajeto de Bergson consistiu em descobrir essa unidade múltipla na interioridade subjetiva e ampliá-la para a materialidade sobre a qual recortamos objetos e fixamos campos de ação. Em seguida, conseguiu encontrar o alcance propriamente biológico dessa unidade, expresso no movimento de transformação das espécies vivas para, finalmente, alçá-la à origem do movimento cosmológico, por meio da famosa imagem do “elã vital”. Renovou a metafísica com análises dissociativas e em termos de tendências, em vez de balizar seu pensamento pelas “coisas”, a objetividade determinada das ciências e do racionalismo, inclusive e principalmente o kantiano. Sabemos que, por sua remodelação da teoria das multiplicidades, exerceu uma enorme influência sobre Deleuze e, por sua renovação ontológica que tomou o dualismo como problema filosófico privilegiado – a ele dedicando uma obra capital, Matéria e Memória –, antecipou passos e problemas próprios à fenomenologia francesa. Toda a sua reflexão se constrói, em certa medida, em torno da contraposição entre noções complementares, entre as diferenças convergentes, o que levou Deleuze a apontar, em sua obra canônica Bergsonismo, o “gosto pelos dualismos” como uma das chaves para a compreensão de sua metafísica. Na obra A Evolução Criadora, Bergson nos apresenta sua cosmologia fundada na hipótese do elã vital, cuja efetividade cria os entes do mundo pela realização de tendências que, originariamente interpenetradas, se separam por seu próprio querer ser. Esse é o segredo do tempo, sua multiplicidade
Cronologia 1859 › Nasce no dia 18 de outubro, em Paris, de família judia 1877 › Recebe prêmio em matemática ao resolver um complexo problema de Pascal, mas em seguida opta pela formação em humanidades. Seu antigo professor diz: “Você poderia ser um grande matemático, mas será apenas um filósofo” 1881 › Começa a dar aulas em escolas e universidades no interior da França 1889 › Aos 30 anos, publica o Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência, no qual formula suas noções de duração e de liberdade 1892 › Casa-se com Louise Neuberger, prima do escritor Marcel Proust 1896 › Publica seu segundo livro, Matéria e Memória, sobre a relação entre corpo e espírito 1898 › Torna-se professor na École Normale Superieure 1900 › Publica O Riso, sobre os efeitos da comicidade. Passa a dar cursos no Collége de France 1907 › Publica A Evolução Criadora, obra em que articula a noção de duração com as teorias evolucionistas e critica a tradição filosófica 1911 › Bergson torna-se celebridade filosófica. Início da “querela do bergsonismo”: Bertrand Russel, Jean-Paul Sartre e Simone Weil contestam suas teses; Merleau-Ponty, Vladimir Jankélevitch e Jean Hyppolite reconhecem sua influência. Chama a atenção de uma nova geração de filósofos e também de poetas como T.S. Eliot e Antonio Machado 1917 › Em missão diplomática pela França, viaja aos EUA e solicita ao presidente Thomas W. Wilson a intervenção militar norteamericana na Primeira Guerra Mundial 1918 › É eleito membro da Academia Francesa 1920 › É lançado Duração e Simultaneidade, livro que contesta a noção de tempo na teoria da relatividade 1922 › Participa de um debate com Einstein (esse debate foi analisado pelo filósofo Maurice Merleau-Ponty, anos depois, no artigo “A Crise da Razão”). Trabalhando na Liga das Nações, entidade que deu origem à ONU, ajuda a criar e se torna o primeiro presidente da Comissão Internacional de Cooperação Intelectual, atual Unesco 1927 › Recebe o Prêmio Nobel de Literatura 1932 › Publica As Duas Fontes da Moral e da Religião 1940 › Em época de forte antissemitismo imposto pelo “regime de Vichy”, o filósofo judeu recusa qualquer privilégio material ou simbólico por sua condição (como a dispensa do uso obrigatório da estrela amarela ou o título de “ariano de honra”) 1941 › Morre em 3 de janeiro, em função de problemas pulmonares. Suas últimas palavras: “São cinco horas, senhores. A aula terminou”. [Fonte: Bergson – Biographie, Paris, PUF, 2002]
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Dossiê
Depressão a epidemia silenciosa do século 21
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relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre saúde mental, publicado no mês passado, indica que a depressão já é uma das doenças mais comuns do mundo e que será a principal causa de incapacitação no trabalho em 2030, à frente do câncer e das doenças cardiovasculares. Hoje, cerca de 121 milhões de pessoas sofrem da doença. A falta de consenso semântico entre os especialistas e, consequentemente, de métodos adequados de tratamento para cada caso exige a discussão urgente e aprofundada sobre o assunto. Neste Dossiê, optamos por um recorte temático apontando para as visões conflitantes entre as duas principais disciplinas práticas que tratam do tema: a psiquiatria e a psicanálise. O jornalista Wilker Sousa conversou com especialistas nas duas áreas e apresenta em sua reportagem os principais focos de divergência entre elas. Táki Cordás, renomado especialista em depressão no âmbito da psiquiatria, explica o fenômeno sob a perspectiva da medicina. Decio Gurfinkel, por outro lado, introduz a visão da psicanálise partindo da compreensão de Freud sobre a melancolia e encontrando paradoxalmente um valor positivo para a depressão. Já Christian Dunker expõe a tensão entre as duas áreas e defende antes a mutualidade do que o conflito no esclarecimento da doença, relativizando a ação dos medicamentos, sem, no entanto, demonizá-los. Ao final, uma bibliografia selecionada encaminha o leitor interessado em saber mais sobre aquela que já é considerada a epidemia silenciosa do século 21.
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EPIDEMIA DO DESENCANTO
Estudada sob diversos prismas, a depressão ganha status de epidemia W ilker s ousa
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CUSTOS E HISTÓRIA DE UMA DOENÇA
Para a psiquiatria, a depressão é compreendida como patologia de base primordialmente orgânica T Áki C orDÁs
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DO PATOLÓGICO AO HUMANO UNIVERSAL
A principal contribuição da psicanálise para o estudo da depressão foi tirá-la do âmbito exclusivamente patológico D eCio G urFiNkel
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O URSO-POLAR E A BALEIA
As divergências entre a psicanálise e a psiquiatria estão mal focadas C HrisTiaN i NGo l eNZ D uNker
Dossiê Depressão
Epidemia do desencanto Estudada sob diversos prismas, a depressão ganha status de epidemia Wilker Sousa
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direcionou seus estudos para o que chamou de psicose maníaco-depressiva, caracterizada por quadros de acessos maníacos e depressivos. A partir desse período, a psiquiatria passou a usar preferencialmente a palavra depressão em substituição à melancolia. Contemporâneo de Kraepelin, o neurologista George Beard (1839-1883) cunhou o termo neurastenia, que considerava ser “a doença da modernidade”. Condições de vida extenuantes advindas do crescente desenvolvimento
O estudo dos desencantos e males da mente perpassa a história da humanidade. Da Antiguidade ao século 21, muitas são as designações e os embates conceituais. Segundo a teoria de Hipócrates (460-370 a.C.), a vida humana era regida por quatro humores: a bílis negra, a amarela, o sangue e a pituíta. Do desequilíbrio dessas quatro substâncias advinham as doenças,
entre elas a melancolia. Uma vez alterada a quantidade de bílis negra, o indivíduo era acometido pelo quadro melancólico, cujos sintomas eram o medo e a tristeza. Aristóteles (384-322 a.C.), por sua vez, em seu tratado sobre a melancolia, acreditava ser esta uma característica natural do homem, associando-a inclusive ao etos de artistas e pensadores. Nos séculos subsequentes, passando pela Idade Média e pela Renascença, as visões patológica e romântica foram preponderantes. A teoria de Hipócrates só foi posta em xeque no classicismo, quando a causalidade da melancolia não mais se referia às substâncias, mas sim às qualidades do homem, ou seja, dirigida a fatores como amargura, solidão e tristeza. Na segunda metade do século 18, coube ao médico francês Philippe Pinel (1745-1826) a primeira tentativa médica de explicação do fenômeno. A análise de Pinel detinha-se, sobretudo, no estudo dos sintomas. Posteriormente, no século 19, o termo melancolia perdeu força. O psiquiatra Emil Kraepelin (1856-1926)
Maria Silvia Bolguese, psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
CULT – O que é a depressão? Maria Silvia Bolguese – Em relação à psicanálise, quero destacar que a depressão pode ser compreendida considerando-se um espectro que vai desde os estados depressivos considerados normais, ou seja, reações de recolhimento do sujeito frente a dificuldades da vida, por um lado, ou angústias e desequilíbrios advindos de instabilidades internas, até as manifestações melancólicas graves, que impedem, inibem as possibilidades do existir.
CULT – Por que a depressão pode ser considerada um sintoma social? Maria Silvia – Sujeitos deprimidos e medicados são os sujeitos conformados à lógica dominante, que visam apenas a partir de si mesmos corrigir seu mal-estar. A passividade contemporânea em relação às condições sociais e políticas é decorrência dessa ideologia da culpabilização e responsabilização dos sujeitos. Claro está que os estados depressivos graves e melancólicos devem ser tratados pelo
Arquivo pessoal
Histórico de complexidades
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studos recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que, em 2030, a depressão será a principal causa de incapacitação, à frente inclusive das doenças cardiovasculares. Atualmente, estimase que 121 milhões de pessoas sofram da doença, segundo a OMS. As estatísticas são alarmantes e apontam para um problema de saúde pública. Enfrentá-lo, porém, é desafiador dada a complexidade conceitual e, por que não dizer, a banalização e a falta de esclarecimento acerca da depressão. Diversas são as hipóteses que buscam explicá-la: desde causas estritamente biológicas até fatores psicossociais.
George Beard: para o neurologista, a neurastenia era a doença da modernidade
Definição, um desafio
Philippe Pinel: Primeira análise médica voltada aos estudos dos sintomas da melancolia
industrial resultavam em um cansaço generalizado, representado na figura do operariado. A visão de Beard opunha-se àquela essencialmente ligada a fatores orgânicos, pois, segundo ele, fatores sociais eram considerados fontes de adoecimento. No fim do século 19, Freud (1856-1939) estudou o assunto sob a luz da psicanálise. Nas cartas trocadas com o amigo Wilhelm Fliess, Freud faz menção a 12 termos relacionados à angústia e ao sofrimento, entre eles depressão, depressão melancólica, melancolia e melancolia cíclica. Nota-se, portanto, uma dificuldade em cunhar um único termo para designar um quadro tão plural. O viés adotado por Freud centrava-se, sobretudo, na fonte social que produzem de sofrimento a seus portadores, mas não se pode deixar de considerar em nenhum caso as condições de vida a que esses mesmos sujeitos estão submetidos. CULT – Em quais casos é necessário o uso de medicamentos? Maria Silvia – Estados depressivos graves e persistentes, que inviabilizam a vida por muito tempo, dificilmente podem ser explicados diretamente pelos sujeitos. Será preciso um longo e lento
Em face desse histórico complexo, definir a depressão é uma tarefa árdua. Permanece o binômio psiquiatria e psicanálise, ainda que eventualmente
Atualmente, estima-se que 121 milhões de pessoas sofram da doença, segundo a OMS haja alguns pontos de encontro. Para o psiquiatra Ricardo Moreno, coordenador do Programa de Transtornos Afetivos do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPQ), “depressão é uma doença que tem como base uma disfunção química do cérebro, ou seja, os sistemas de neurotransmissão são comprometidos. São vários sinais e sintomas que caracterizam o quadro clínico, como tristeza, angústia, melancolia e diminuição do prazer”. trabalho de aprofundamento para que o sujeito, acompanhado por um psicanalista, possa compreender e elaborar o seu mal-estar. Nesses casos, um período de medicação é importante, para que o sujeito se coloque, inclusive, em condições de se tratar. Em outras palavras, o medicamento deve ser colocado a serviço do tratamento mais global e não ser em si mesmo a finalidade última do tratamento. CULT – Qual a sua opinião sobre o uso
Outro fator apontado pelo psiquiatra é a herança genética. Ricardo Moreno afirma que “40% dos pacientes com depressão têm fator genético envolvido”. Os fatores sociais não são considerados causas, mas sim desencadeadores: “Sabe-se que os indivíduos com vulnerabilidade genética, quando submetidos a estresse, físico ou psicológico, podem ou não desenvolver a doença”, explica. Opinião semelhante tem Valentim Gentil, professor titular do Departamento de Psiquiatria da USP: “Não adianta ficar procurando qual é a situação ambiental, a frustração, a perda, porque o que aparece é Creative Commons
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do sofrimento. Visão diametralmente oposta era a do psicólogo e médico francês Pierre Janet (1859-1947), que enfatizava o aspecto orgânico e inato da depressão. Tais linhas de pensamento passaram a nortear os estudos posteriores: de um lado a psicanálise, que se atém ao estudo etiológico dos casos, de outro a psiquiatria, sob o ponto de vista biológico da doença mental.
Freud: Estudos das fontes sociais do sofrimento
da eletroconvulsoterapia no tratamento da depressão? Maria Silvia – Mesmo que se argumente que a eletroconvulsoterapia se vale de correntes mínimas de eletricidade, apenas com fins de estimulação das regiões cerebrais, não se pode deixar de criticar essa prática, fundada que é em princípios claramente violentos contra a subjetividade, além de não possuir as condições ideais de controle total dos riscos envolvidos na utilização dessa técnica.
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