Revista CULT (parcial) - edição 142

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aNO 12

r$ 9,90

www.revistacult.com.br

inédito

Resenha do novo livro de Umberto Eco

reportagem

As dificuldades de uma biblioteca na periferia de São Paulo

entrevista

Fábio Barreto, diretor de Lula, o Filho do Brasil: Minha ideologia é a exposição

dossiê

Samuel

Beckett

A obra plural que ultrapassou as fronteiras artísticas no século 20


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DO lEItOr

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cultura EM MOVIMENtO

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Os 50 anos do neoconcretismo • Filosofia e educação em videoaulas • A cultura do fim • O haicai na lírica brasileira • Pela ordem

ENtrEVIsta Fábio Barreto, diretor da maior produção da história do cinema brasileiro, projeta imagem de um Lula sem defeitos

lItEratura – rEsENHa Vidas Novas, romance de Ingo Schulze, expõe a complexa realidade vivida pelos alemães no período da queda do Muro

divulgação

divulgação

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ENtrEVIsta

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PErFIl

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laNÇaMENtOs – lItEratura

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rEPOrtaGEM

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PErFIl – uMBErtO EcO

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ENsaIO

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HOMENaGEM – clauDE lÉVI-strauss

Biblioteca Becei, de Paraisópolis, passa por dificuldades, mas se mantém de pé

Intelectual plural, Umberto Eco transita com desenvoltura em variados campos do pensamento

FranciSco boSco A metafísica, a fadiga e a erística na vida a dois

lItEratura – clarIcE Biografia escrita pelo crítico norte-americano Benjamin Moser revela episódio marcante na história de Clarice Lispector

Quando Lévi-Strauss ouviu Chopin em Mato Grosso


Divulgação/Martins Fontes

cOlaBOraDOrEs DEsta EDIÇÃO

Cláudia Vasconcellos, dramaturga e doutora em letras pela USP. É autora de A Mulher no Escuro (Ateliê Editorial, 2007)

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Welington Andrade, doutor em literatura brasileira pela USP e professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

DOssIÊ

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laNÇaMENtOs – cIÊNcIas HuMaNas

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FIlOsOFIa

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Marcia tiburi Geyse Arruda: a vida nua da jovem mulher vestida de rosa pink

DOssIÊ

Fábio de Souza Andrade, professor de teoria literária da USP e tradutor. É autor de Samuel Beckett – O Silêncio Possível (Ateliê Editorial, 2001) e tradutor de Esperando Godot (2005) e Fim de Partida (2001), ambos publicados pela Cosac Naify

Plínio Prado Jr., filósofo e professor do departamento de filosofia da Universidade de Paris 8, Vincennes/Saint-Denis. É autor de Le Principe d’Université (Éditions Lignes, 2009)

Annita Costa Malufe, poeta e doutora em teoria literária pela Unicamp. É autora de Como se Caísse Devagar (Editora 34/PAC, 2008), Nesta Cidade e Abaixo de Teus Olhos (7Letras, 2007), Fundos para Dias de Chuva (7Letras, 2004)

SaMuel becKett

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A importância de Beckett para a modernidade por Fábio de Souza Andrade

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O intrateatro e o anti-ilusionismo por Cláudia Vasconcellos

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Formas breves e evanescência por Welington Andrade

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A obra em prosa por Ana Helena Souza

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O evento Beckett por Plínio Prado Jr.

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OFIcINa lItErÁrIa

Ana Helena Souza, doutora em teoria literária e literatura comparada pela USP e tradutora. Traduziu Molloy (Globo, 2007), O Inominável (Globo, 2009) e Como É (Iluminuras, 2003).

Helga Dressel, mestre em ciências teatrais e letras pela Universidade Livre de Berlim

Gabriela Longman, jornalista e pós-graduanda em história da cultura na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. É colaboradora dos jornais Folha de S.Paulo e Valor Econômico, entre outros


cultura

EM MOVIMENTO

Os 50 anos do neoconcretismo J. Egberto

Ferreira Gullar: “O neoconcretismo encaminha a arte para a participação do espectador”

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o fim dos anos 1950, em face do acentuado racionalismo defendido pelo concretismo, movimento capitaneado pelos irmãos Campos e por Décio Pignatari, jovens artistas manifestaram sua rejeição. O poeta Ferreira Gullar e os artistas plásticos Lygia Clark, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis assinaram o “Manifesto Neoconcreto”, publicado em 1959 no suplemento dominical do Jornal do Brasil. Contrário ao exacerbado mecanicismo da arte, o neoconcretismo propunha a prevalência da obra sobre a teoria, a valorização da subjetividade e da experiência sensível do observador. “[O concretismo] não estava preocupado em expressar nada que fosse símbolo, sentimento ou emoção; era quase como um experimento científico, ótico. O movimento neoconcreto caracteriza-se certamente por, ao romper com isso, encaminhar a arte para o terreno da participação do espectador”, explica

à CULT Ferreira Gullar. Para celebrar os 50 anos do movimento, pesquisadores, críticos, professores de arte, artistas, além de Ferreira Gullar, discutem os desdobramentos do movimento, bem como suas contribuições para o pensamento estético brasileiro. Segundo a curadora do evento, Fabiana de Moraes, o intuito é discutir o neoconcretismo com base em questões contemporâneas: “Trata-se de olhar para trás e fazer um balanço, mas com base em elementos que coletamos no presente. Os temas são variados: história, conceituação do movimento, repercussões e desdobramentos, mas tendo como ponto de partida o olhar contemporâneo”. Marginais Heróis Onde CCBB, Rio de Janeiro (RJ) Quando 2, 9 e 16 de dezembro Quanto entrada franca

Filosofia e educação em videoaulas

U

ma coleção de oito DVDs visa apresentar a educadores importantes filósofos e suas reflexões a respeito da busca pelo conhecimento. Apresentados pelo professor da USP Antonio Joaquim Severino, os vídeos expõem diversas questões sobre a maneira de pensar a educação via filosofia. No material dedicado a Nietzsche, por exemplo, podemos encontrar uma explanação sobre a educação como busca da liberdade de espírito, além de uma proposta para a constituição de um homem superior. A coleção aborda ainda os desdobramentos da cultura grega na formação do pensamento da Idade Média, chegando ao iluminismo de Jean-Jacques Rousseau, René Descartes e Immanuel Kant. Os vídeos, que têm em média 25 minutos de duração, possuem uma linguagem acessível e objetiva, contendo também fotos e imagens. Servem como uma introdução à complexidade do pensamento dos filósofos abordados: Sócrates, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Descartes, Rousseau, Kant, Marx, Nietzsche e Gramsci.

Filosofia e a Educação Antonio Joaquim Severino Paulus R$ 35 (cada DVD)

A cultura do fim

O

escritor e jornalista Zuenir Ventura estará no Sesc da Vila Mariana, em São Paulo, para falar sobre mais uma ameaça apocalíptica que ronda o universo das mídias. Se no começo da era moderna, lá pelos idos do século XIX, o apocalipse era preconizado para a pintura, em virtude da arte fotográfica, o século XXI trouxe à tona, com seus e-books e a possibilidade de informação ilimitada via internet, o fim do livro e dos jornais. Para Zuenir, no entanto, tudo não passa de uma espécie de histeria entre aqueles que têm medo de se reinventar. “Quando se trata de tecnologias da comunicação”, comenta, “acho que ocorre convergência e não antagonismo. Uma tecnologia nova exige o aperfeiçoamento da anterior, não sua extinção”. 10

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Sempre um Papo com Zuenir Ventura Quando 16 de dezembro Onde Sesc Vila Mariana, São Paulo (SP) Quanto entrada franca


Renato Parada

O haicai na lírica brasileira

Rodolfo Witzig Guttilla: “O haicai produzido no Brasil traz a marca da brevidade e do humor”

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studioso do haicai há 23 anos, o jornalista e antropólogo Rodolfo Witzig Guttilla organizou o livro Boa Companhia Haicai, antologia que reúne grandes nomes da poesia brasileira. Nesta entrevista, ele fala da recepção do haicai no Brasil e de como esse gênero se tornou “autônomo e abrasileirado”, para citar as palavras de Manuel Bandeira. CULT – O haicai está consolidado como forma literária? Rodolfo Guttilla – Sim, o haicai chegou ao século 21 como uma das mais populares formas poéticas. Em 1956, em seu Tratado de Metrificação em Língua Portuguesa, o poeta Manuel Bandeira reconhece o haicai como um gênero autônomo e abrasileirado. Segundo o poeta e crítico Carlos Felipe Moisés, há mais haicaístas hoje do que sonetistas no século 20. CULT – Existe um haicai tipicamente brasileiro? Quais as diferenças com aquele produzido no Japão? Guttilla – O haicai produzido no Brasil traz a marca da brevidade e do humor, estados de espírito necessários para sua composição. O haiku japonês, por sua vez, obedece o modelo estabelecido por Massaoka Shiki em 1892. Entre as principais regras, o poe-ma deveria ser breve, resumindo-se a 17 fonemas, ou sílabas; conter referência à

estação do ano (ou Kigô) e ao local de sua criação; ser rico em onomatopeias; e, por fim, explicitar o kireji, partícula expletiva que pode introduzir uma pausa, denotar a dúvida ou a emoção do poeta diante do acontecimento que inaugura ou encerra o poema – tal como a interjeição “ah!” na sintaxe ocidental. CULT – Quanto tempo pesquisou para organizar o livro? Guttilla – Pesquiso o haiku e sua aclimatação no Brasil há 23 anos. Passei os dois últimos relendo alguns livros e artigos. CULT – Você é um executivo de primeira linha, poeta e escritor. Existe conflito de tempo e de paixões tão diferentes? Guttilla – Eu tenho a sorte de trabalhar na Natura, uma empresa que exala poesia na forma como estabelece relacionamentos e se comunica. Como sou antropólogo de formação, identifico-me muito com essa perspectiva respeitosa e generosa. Tenho também a sorte de presidir o Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) e participar de diversas outras organizações de classe e da sociedade civil. Todas essas experiências têm sido de grande aprendizado. Antes de ser um problema, o tempo tem sido um grande aliado. “Time is on my side.” Pedras que rolam não criam limbo. Saturno é um grande chapa.

Haikais inéditos: Arthur Guttilla e Rodolfo Guttilla brisa de maio certamente mereço as moscas que atraio brisa de maio será que mereço as moças que atraio? quando leio Alice Ruiz minha alma raspa o prato chupa o dedo e pede bis nas tardes quentes as cigarras e o açude ficam mais eloquentes exclama o haijin: sem sílaba tônica! somente gim... Alice Ruiz e Rodolfo Guttilla um uísque antes um cigarro depois e o Jimmy Durante

Boa Companhia Haicai Org.: Rodolfo Witzig Guttilla Companhia das Letras 192 págs. R$ 32,50

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entrevista

Fábio Barreto

Divulgação

Barreto: “Fazer esse filme foi difícil porque adoro colocar prós e contras, considero uma obrigação deixar as pessoas julgarem como quiserem”

CULT – A ideia inicial era fazer um documentário com base na biografia de Denise Paraná. Como aconteceu essa passagem da ideia de um documentário para a realização de uma superprodução? Fábio Barreto – A ideia inicial era fazer um “docudrama”. Mas percebemos que ali estava uma grande história, com um manacial dramático muito rico, baseado, sobretudo, em uma história de mãe e filho. Relação entre mãe e filho já deu muito pano para manga em filmes. Esse seria mais um. Em segundo lugar, tinha essa família representando milhões de outras famílias que passaram pela mesma situação, aquela de um dos maiores movimentos migratórios internos da história da humanidade, que foi a migração nordestina para o sul do Brasil. E também a história de um brasileiro, como milhões de outros, sem oportunidade, sempre fadados a não conseguir nada na vida, que superou seu próprio destino com grande determinação e confiança, uma pessoa que acreditava em si mesma e conseguiu realizar seu sonho. É um exemplo, um vencedor. Então, essas três coisas nos motivaram a fazer um filme de ficção. CULT – O livro de Denise Paraná fala da mudança da cultura da pobreza para a cultura da transformação em Lula. O filme, porém, define a relação materna como núcleo narrativo. Como foi negociar isso com os roteiristas, a começar pela própria Denise? Barreto – Toda a parte do livro da Denise que não são os depoimentos, que são considerações da própria autora a respeito da família Silva, já fala muito da relação dele com a mãe e do sofrimento dessa família. As questões da fome, miséria, pau de arara, migração, acidente de trabalho, erro hospitalar, prisão política etc.

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Quer dizer, é uma família que passou por todas as mais difíceis provações da história do Brasil nos últimos 50 anos. A Denise concordou de pronto. Pediu a mim e ao Daniel Tendler [corroteirista do filme] que fôssemos pinçando do livro os fatos mais importantes que resultariam numa narrativa dramática. Então, fizemos um primeiro roteiro e daí fomos dilapidando, compilando, secando, até chegar um momento em que precisamos chamar o Fernando Bonassi para arrematar. CULT – Por que chamar o Fernando Bonassi? Barreto – O Fernando nasceu e foi criado no ABC paulista, assim como o Bráulio Mantovani, talvez nossos melhores roteiristas hoje. São oriundos do coração industrial da América Latina. Além disso, o Fernando foi um dos primeiros integrantes do PT, participou de campanhas do Lula, conhecia a fundo tudo isso, inclusive o movimento sindical propriamente dito. Então, foi a pessoa certa para dar a arrematada nos detalhes, em termos de verossimilhança, situações, diálogo, linguagem. A colaboração dele foi muito importante. Resultou numa realização dramática de ritmo apurado, que atende à pretensão de um longa-metragem que busca o mainstream e o grande público. CULT – Você disse que evitou a construção mítica do Lula, mas ele é apresentado como virtuoso. Existe apenas uma passagem em que Lula diz ter herdado a bondade da mãe e a maldade do pai. O espectador não sabe exatamente que maldade é essa. Assim como a biografia de Denise Paraná foi “autorizada”, você se preocupou em criar algo “autorizado” ? Barreto – Não. Nem a família nem o Lula interferiram. Pelo


contrário, fizeram questão de se manter a distância para nos deixar com a maior liberdade possível. Li passagens para o Frei Chico [irmão de Lula] e para o Lula para tirar algumas dúvidas, mais no sentido de saber e averiguar alguns relatos. Tive apenas um encontro com Lula, três dias antes de filmar. Fiz algumas perguntas, li algumas cenas para tirar dúvidas. Inclusive ele pediu um DVD para ver o filme depois de pronto, mas a gente não fez DVD. O Ministério da Justiça nos recomendou não fazer cópias. Então, até o momento [novembro], Lula não viu ainda. Eu prefiro que ele assista ao filme em tela grande. É um filme de espetáculo, exige uma sala grande. CULT – Sobre a distribuição nacional do filme, qual a estratégia adotada em um país em que 90% das cidades não têm cinema? Barreto – A gente tem 400 cópias do filme. Em primeiro lugar, existe um público específico, filiado aos sindicatos. Então, fizemos acordos com as centrais sindicais no sentido de facilitar o acesso ao filme, com preços razoáveis para esse público. Existe um esquema montado também com telas itinerantes para rodar o Brasil, mas isso é mais a longo prazo, e vai colocar uma parcela muito grande da população em contato com o filme. No futuro próximo, poderá ser explorado também quando o Vale-Cultura estiver em vigor. Esse filme quer contribuir para o desenvolvimento de uma indústria de cinema no Brasil. Ele está sendo direcionado a um público que não costuma ir a salas de cinema.

CULT – E quanto à distribuição internacional? Barreto – O filme tem claramente uma ambição internacional, dada a qualidade técnica e a popularidade de Lula no mundo. Nós nem lançamos ainda e já dei entrevistas para jornais, revistas e televisões do mundo inteiro: LA Times, NYTimes, Le Figaro, El País, Clarín, para as TVs canadense, francesa, alemã etc. A demanda e a expectativa pelo filme são muito grandes. Montamos um esquema de distribuição que pretende servir de modelo para a América Latina. Já temos certa experiência, por exemplo, com o Dona Flor e Seus Dois Maridos, e queremos dar continuidade a isso. Dona Flor, por exemplo, foi o filme estrangeiro mais visto na história da Argentina, mais do que qualquer blockbuster norteamericano. Pelo que representa o Lula hoje no mundo, esse filme vai despertar muita curiosidade. CULT – Qual sua opinião sobre a atuação política de Lula? Barreto – Posso dizer, muito sinteticamente, que Lula representa uma revolução no curso da sociedade brasileira, porque está mexendo profundamente numa coisa grave que sempre existiu no Brasil chamada complexo de inferioridade. Nossa elite – e essa é a diferença de Lula – sempre teve uma enorme relação de culpa com a população pobre e miserável, na medida em que sempre esteve no poder. Então, o governante sempre precisava dizer que estava fazendo de tudo para melhorar a vida da população etc. O Lula não tem esse sentimento de culpa porque veio de lá, sofreu na carne o que a população sofreu. E você também não pode


Literatura R e s e n h a

Vidas cindidas Romance de Ingo Schulze expõe a complexa realidade vivida pelos alemães no período da queda do Muro H e l g a D r e ss e l

Jim Rakete

Ingo Schulze: autor de uma sofisticada técnica narrativa aplicada em seu romance

A

história de Vidas Novas seria simples, não fosse a sofisticada estratégia narrativa: um romance epistolográfico, camuflado como edição crítica e comentada de uma coletânea de cartas, complementada por alguns manuscritos literários e organizada por um tal Ingo Schulze. À primeira vista, o leitor pode achar óbvio, pois na capa do livro consta o nome daquele escritor alemão de quem talvez já tenha lido algum romance. Porém, o editor das cartas não corresponde ao escritor da capa. Trata-se de um personagem com o mesmo nome, ou seja, o escritor Ingo Schulze serve-se do editor fictício Ingo Schulze. Aí está a magnífica solução para manter a polifonia e a 20

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multiperspectividade da narrativa. O editor fictício I.S. fica fascinado por Enrico (“Heinrich”) Türmer, cidadão da República Democrática Alemã, jornalista acidental e magnata de súbita carreira pós-queda do Muro que, após a falência de seu império empresarial, nunca mais foi visto. I.S. resolve reunir a correspondência esparsa desse homem e descobre até manuscritos literários que revelam inclusive uma despercebida ambição literária de Enrico, ambição esta, no entanto, fracassada. As cartas datam do primeiro semestre de 1990, isto é, do período entre a queda do Muro e a reunificação, ou, para ser mais preciso, época da introdução da moeda ocidental forte

na ainda RDA em meados de 1990. São três os destinatários: à irmã Vera, emigrada para o lado ocidental, comenta da vida pessoal e profissional; ao colega de colégio Johann, pastor formado e ex-militante do movimento dos cidadãos, conta as precipitações do desenvolvimento econômico; a Nicoletta, fotógrafa ocidental e inatingível caso amoroso, formula sua confissão: uma retrospectiva de sua gênese alemã-oriental. Enrico é a não ação em pessoa. Sonha de olhos abertos, e nesses sonhos projeta-se a si mesmo como autor dissidente, proibido no lado de cá do Muro, publicado no outro, e famoso em ambos. Deseja a fama, mas não faz nada para conquistá-la. Como


observador literário, fala de si próprio, mas, ao fazê-lo, manipula do modo como melhor lhe convém. Depois, porém, deixa-se seduzir pelo charme mefistofélico do Barão de Barrista, que surge como introdutor ao sistema ocidental e capitalista. Feito um manipulador de títeres onipoderoso, o Barão coordena os ritos de iniciação à nova ordem. Nessa parte da narrativa, no período pós-queda, o romance serve-se do modelo romântico: a narrativa volta e meia torna-se fantasmagórica, entre sonho e pesadelo, contos de fadas e história de horror. Ocorre que nesse tempo entre os tempos, entre pré e pós-queda, tudo parece possível. E, seguindo o exemplo faustiano, Enrico não conhece escrúpulos. Deixando de lado as muitas alusões intertextuais, mencionemos apenas esta: Enrico é versão italiana do nome alemão Heinrich, nome pelo qual Margarida conhece, e no final já não reconhece, o seu Fausto, quando grita: “Enrique, tenho pavor de ti”.

A eclosão de um novo mundo

Como nomear os acontecimentos de 1989? Na Alemanha, várias denominações concorrem até hoje: no contexto político, histórico, acadêmico e entre os ex-militantes da oposição fala-se em “revolução pacífica”, compreendendo a queda do Muro como consequência de um movimento engajado, corajoso e persistente. No linguajar cotidiano, porém, permanece corriqueira a expressão “a virada” (die Wende), demonstrando uma percepção da queda do Muro como feitio de destino ou força. A virada de 1989-1990 marca uma mudança de eras. Em entrevistas, Ingo Schulze não cansa de chamar atenção para o fato de que não foi somente a RDA que sumiu do mapa, mas também a antiga República Federal da Alemanha (RFA). O que temos hoje é algo terceiro. Ninguém estava contando com isso, nem o movimento de oposição da RDA e menos ainda os cidadãos da antiga RFA, tomados de

surpresa. De um mundo manejável por estar bem arrumado entre leste e oeste, comunismo e capitalismo, surge um novo mundo, desordenado e transbordante, de uma globalização sem fim. É grande mérito do romance conseguir manter a complexidade dessa vivência e os muitos desafios que o cidadão oriental teve de enfrentar. Detalhes supostamente óbvios para quem está por dentro, mas inexistentes para quem olha de fora. O romance consegue traduzir, para quem quiser saber, a realidade daqueles mundos extintos.

Vidas Novas Ingo Schulze Trad.: Marcelo Backes Cosac Naify 752 págs. R$ 89

TEMPORADA INTERNACIONAL CONCERTOS NA SALA SÃO PAULO

Vadim Repin Violino Itamar Golan Piano

Anna Caterina Antonacci Donald Sulzen Piano

Orquestra Filarmônica de Dresden Rafael Frübeck de Burgos Regência Johannes Moser Violoncelo

Hong Kong Sinfonietta Yip Wing-Sie Regência Coleen Lee Ka-ling Piano

Nelson Goerner

Musica Angelica Carolyn Sampson Soprano Daniel Taylor Contratenor

13 e 14 de abril

3 e 4 de maio

Piano

18 e 19 de maio

Datas e programação sujeitas a alterações.

Orquestra de Câmara de Basel Sol Gabetta Violoncelo 31 de maio e 1º de junho

Yo-Yo Ma Violoncelo Kathryn Stott Piano Renovação de assinaturas em dezembro e janeiro. Novas assinaturas à venda a partir de fevereiro. Maiores informações: (11) 3258 3344 www.culturaartistica.com.br

15 e 16 de junho

20 e 22 de julho

14 e 16 de agosto

20 e 22 de setembro

Orquestra Filarmônica da Radio France Myung-Whun Chung Regência Sergio Tiempo Piano 19 e 20 de outubro

Itzhak Perlman

Violino

22 e 23 de novembro PATROCINADORES DA TEMPORADA 2009

Soprano


reportagem

Crises cíclicas Biblioteca Becei, de Paraisópolis, passa por dificuldades, mas se mantém de pé edUardo Fonseca Fotos: alessandra Perrechil

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e tempos em tempos, a história se repete: a Biblioteca Escola Crescimento Infantil (Becei) de Paraisópolis, bairro carente da zona sul de São Paulo, enfrenta uma de suas crises cíclicas em que patrocínios e apoios tornam-se escassos. Durante esses períodos, as contas são postergadas, assim como o conserto das infiltrações nas paredes fica para mais tarde. “Ultimamente, não temos verba para nada”, comenta Claudemir Cabral, 29 anos, que há 14 fundou na sala de sua casa uma biblioteca improvisada que hoje conta com 11 mil títulos – uma quantidade que poderia ser muito maior, caso o espaço físico fosse mais adequado, “pois doação de livro é o que não falta”.

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Se o acervo que começou com apenas 15 livros hoje se encontra em seu limite, o mesmo se pode dizer da estrutura física da biblioteca que, desde sua fundação, em 1995, já recebeu mais de 600 mil visitantes devidamente registrados. Porém, desde que foi encerrado o convênio com uma empresa belga no ano passado, que lhe garantia certa quantia todo mês para honrar os compromissos financeiros, a Becei anda mal das pernas. Hoje, está com a internet e o telefone cortados – “A Telefônica não ajuda em nada!” –, sendo que um dos computadores que permitia acesso gratuito à internet está à venda. A biblioteca possui, sim, muitos colaboradores, de voluntários, que ministram cursos semanais de reforço escolar e espanhol, a empresas, como a Casas Bahia, que doou diversos móveis, e a Sabesp, que cobra uma taxa simbólica de água, “algo que a Telefônica também poderia fazer, mas não faz”. Por sorte, a Telefônica é uma exceção, pois normalmente quem conhece o espaço logo quer ajudar. Foi o caso de Lily Marinho, viúva de Roberto Marinho, fundador do império de comunicação Globo, que esteve pessoalmente no local depois de ler sobre a iniciativa nos jornais. O problema, conforme aponta Cabral, é que a ajuda normalmente é esporádica, o que faz com que a biblioteca viva sem poder planejar muito seu futuro. “É sempre assim, as crises vão e vêm de acordo com a periodicidade em que a gente sai na mídia”, revela. Conclusão: só boa vontade não basta para manter em boas condições um local que rendeu, e ainda rende, diversos dividendos à população.

Papel fundamental

Andando pelas ruelas movimentadas de Paraisópolis, é fácil constatar que a Becei possui dois papéis fundamentais para a região. O primeiro é o de ser uma ilha dedicada à reflexão em meio a um lugar dos mais agitados, com gente lotando as ruas praticamente 24 horas por dia e com casinhas espremidas umas nas outras que estatisticamente refletem uma das maiores densidades populacionais da cidade de São Paulo.

CAbral: “Quando se realiza algo para o bem público, todos querem ajudar”

Diante de tanta inquietude, a sala de leitura da Becei é uma calmaria. Abriga pessoas como Jussara Carvalho, uma moça de 24 anos, atualmente desempregada, cujo último trabalho foi como operadora de telemarketing. Sentada na sala de leitura, ela tem a seu lado três versões de As Mil e Uma Noites, além de uma edição de Vale Tudo, versão impressa de uma notória novela global dos anos 1980 que, além do famoso assassinato de Odete Roitman, traz ainda mais três possíveis finais que não foram ao ar. Jussara utiliza as dependências tranquilas da Becei por um motivo comum aos frequentadores de lá: “Não dá para ler em casa, sempre é muito movimento, muito barulho”, ela conta. Sua diversão, então, é ir para a biblioteca e pesquisar temas para depois transformá-los em histórias ou poemas que, posteriormente, ela publica em seu blog, o www.euescrevolivros.zip.net. O segundo papel fundamental que a Becei exerce na região é o de ser um catalisador de boas intenções. Nesse sentido, ela atua para abrandar o estereótipo cultivado pelas classes mais abastadas de que os bairros mais humildes são redutos marginais. É precisamente esse segundo aspecto que volta e meia resolve os problemas financeiros

e estruturais da instituição, uma vez que faz com que a biblioteca ganhe visibilidade, atraindo o olhar da mídia. Mas, se existem crises cíclicas, podemos dizer que há também contribuições que chegam na hora exata. Assim, Cabral, com a ajuda da Associação de Alunos da Escola Graduada, há dez anos, conseguiu ampliar a biblioteca que estava “entulhando” a sala de estar da casa de sua mãe, dona Gessi. Com o apoio, foi erguida uma casa nova, fazendo com que a casa de madeira que antes ocupava o terreno, viesse abaixo para dar lugar a uma edificação de concreto. “Agora a biblioteca fica embaixo e a casa de minha mãe em cima”, conta orgulhoso. Como se fosse uma corrente, uma ajuda sempre vem entrelaçada a outra. No período da construção, Cabral e sua família tiveram de ficar um ano inteiro sem casa própria, o que também não foi problema, pois uma ex-patroa de sua mãe lhes cedeu um apartamento vazio que tinha no bairro do Morumbi. Assim, por um ano, Cabral, que nasceu no interior pernambucano e chegou a São Paulo aos 4 anos de idade, indo parar direto em Paraisópolis, viveu numa das áreas mais valorizadas da capital paulista. n°142

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Perfil U m b e r t o E c o

Um homem que circula Intelectual plural, Umberto Eco transita com desenvoltura em variados campos do pensamento Gabriela Longman

U

mberto Eco percorre, com naturalidade, a semiótica, a estética, a linguística, a história da literatura e a cultura de massas. Seu pensamento mora em algum lugar entre São Tomás de Aquino e Pierce; Abelardo e Karl Popper. Salta do texto à imagem; da Idade Média às redes informáticas. Se cai nos abismos da controvérsia, sabe como sair deles. Autor de cinco romances, ganhou fama mundial ao publicar, em 1980, O Nome da Rosa, thriller com páginas inteiras em latim, reflexões sobre a escolástica e a lógica e uma imersão na atmosfera monástica do medievo europeu. Hoje, aos 77 anos, o intelectual italiano afirma que fica entediado se não faz muitas coisas ao mesmo tempo. Tradutor de textos ingleses e franceses do século 19, é autor de mais de 200 prefácios e um notório especialista em James Joyce (“Economizar em Cima de Joyce” é um dos principais ensaios de seu livro Os Limites da Interpretação). Atualmente assina a curadoria de um projeto artístico no Museu do Louvre, em Paris, juntando arte, história e música. A programação inclui um olhar “contemporâneo” sobre as coleções clássicas do museu e uma série de espetáculos que dialogam com seu trabalho. Graças ao convite, Eco passa os meses de novembro e dezembro na capital francesa, onde presidiu um colóquio sobre a vanguarda italiana dos anos 1960 – afinal, foi baseado no contato com artistas como Lucio Fontana, Alberto Burri e Piero Manzoni que elaborou o conceito de “obra aberta” (1962), seu modelo teórico para explicar a arte 32

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contemporânea. Convidou o compositor e DJ francês Laurent Garnier para o encerramento do evento, no dia 13 de dezembro, num concerto-projeção que pretende misturar John Lee Hooker, Charles Trenet, música eletrônica, música concreta. Finalmente, lotou a livraria do museu nas duas sessões de autógrafos de seu novo livro, Vertige de la Liste, que percorre a história da arte e da literatura com base na ideia da lista, da enumeração (leia resenha na pág. 35).

“O problema da Itália não é Berlusconi, são os italianos como um todo” Da Wikipédia a Berlusconi

Nascido em Alexandria – não a do Egito, fundada em homenagem a Alexandre, o Grande, mas a do Piemonte, às margens do Rio Pó, fundada em homenagem ao papa Alexandre III –, Eco passou boa parte de sua vida na Universidade de Bolonha, a mais antiga da Europa, fundada em 1088. Titular e professor de honra da cadeira de semiótica (aposentado), é hoje diretor da Escola de Ciências Humanas da mesma universidade. Ensinou temporariamente em Yale, na Universidade Columbia, em Harvard e no Collège de France. Sua vida desenvolve-se, então, numa alternância constante entre as atividades na academia, a carreira literária e a imprensa – é colunista da revista semanal italiana L’Espresso, na qual

escreve, entre uma infinidade de temas, sobre Berlusconi e Wikipédia. A Wikipédia ele aprova com ressalvas e garante que corrige, pessoalmente, as imperfeições que encontra no verbete a seu respeito. “A Wikipédia confirma as teorias do filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce, de uma comunidade (científica) que através de um tipo de homeostase elimina os erros e legitima novas descobertas, continuando assim a carregar o que ele chamou de tocha da verdade (...) Quando eu uso a Wikipédia, emprego as técnicas utilizadas pelos acadêmicos profissionais: leio sobre um determinado tópico e depois comparo a informação com material encontrado em três ou quatro outros sites.” Quanto a Berlusconi, ele reprova, também com ressalvas: “O problema da Itália não é Berlusconi, são os italianos como um todo”, escreveu o escritor num artigo recente em que convidava a intelectualidade italiana a se posicionar. “Em 1931, o fascismo impôs aos professores universitários – 1.200 na época – um juramento de fidelidade ao regime. Apenas 12 recusaram e perderam seus empregos. Talvez os 1.188 que ficaram tivessem razões nobres. Mas os 12 que disseram não salvaram a honra da universidade e, definitivamente, a honra do país.” Eco diz ter conhecido Berlusconi no tempo em que este era ainda um homem jovem que fazia negócios no setor da construção, mas que cogitava passar às mídias de massa e, para sondar o terreno, marcou um almoço com intelectuais. O escritor esteve presente junto com um amigo. “Encontramos este tipo que não diz praticamente


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Divulgação


Homenagem c l a U d e l é v i -s t r a U s s pascal pavani/AFp/Getty images

o antropólogo Claude lévi-strauss (1908-2009) em paris, 2005 38

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Quando Lévi-Strauss ouviu Chopin em Mato Grosso Para o “astrônomo das constelações humanas”, ao ouvirmos música, “atingimos uma espécie de imortalidade” Eduardo Socha

O

telefone tocou às 9 da manhã num domingo de outono. A voz fria e irresoluta de Célestin Bouglé exigia uma resposta rápida: “Você ainda quer fazer etnografia?”. Bouglé, filósofo e diretor da Escola Normal de Paris, explicava que havia uma vaga para professor de sociologia na recém-criada Universidade de São Paulo. Os arredores da região, garantia, estariam repletos de índios. Era necessário dar uma resposta definitiva antes do meiodia. Do outro lado, o professor de filosofia de 26 anos não precisou de muito tempo para dizer “sem dúvida”. Foi assim – relataria Claude Lévi-Strauss em Tristes Trópicos – que sua carreira havia finalmente se decidido. Era a oportunidade esperada para abandonar de vez o trabalho como professor de filosofia, disciplina institucionalizada que à época lhe parecia o palco de piruetas especulativas, sempre pronta a substituir o gosto pela verdade por acrobacias conceituais que, se por um lado fortaleciam a inteligência, por outro “ressecavam o espírito”. A etnografia seria a “tábua de salvação” para aquele jovem insatisfeito com os protocolos de um saber esquemático no interior do quadro acadêmico francês. Os índios de São Paulo seriam, para ele, a promessa de reconciliação entre sua curiosidade intelectual apurada e uma variedade praticamente inesgotável de temas para o estudo das relações entre homem, civilização e natureza. Mais do que isso, indicariam o caminho para a compreensão do vínculo entre o inteligível e o sensível na experiência humana, o elo entre pensamento e espírito que, segundo ele, havia se perdido na disciplina filosófica. Em 1935, poucos meses depois daquele telefonema, tomou o navio de Marselha para Santos. Descobriu logo que, ao contrário do que imaginava Bouglé, não havia índios na região de São Paulo, apenas indômitos “grã-finos” que rechaçavam qualquer referência aos indígenas, como se estes fossem a encarnação de um passado incômodo para as pretensões de uma elite cosmopolita em gestação. De fato, os índios estavam um pouco mais longe, a 3 mil quilômetros de distância da então crescente metrópole paulista.

Vocação autêntica

“Como a matemática e a música, a etnografia é uma das

raras vocações autênticas. Podemos descobri-la em nós, ainda que não nos tenha sido ensinada por ninguém.” Passagens como essa, de Tristes Trópicos, testemunham o impulso que conduziu Lévi-Strauss em direção ao centro do Brasil. Mas elas trazem o risco de ocultar as hesitações do iniciante antropólogo que recusou a filosofia. Abandonar uma estável carreira universitária não tinha sido uma decisão tola? As expedições brasileiras realmente lhe dariam a certeza quanto à vocação da etnografia? Como descobrir, afinal, essa vocação autêntica? É preciso, de início, sublinhar a sutil referência à música na passagem acima. Pois estamos diante de um aspecto pouco explorado e até certo ponto revelador na trajetória daquele rapaz taciturno que ficaria conhecido como o “astrônomo das constelações humanas”. Nos livros de LéviStrauss, a música frequentemente irrompe com a força de uma epifania, seja ela originada pelo súbito desvelamento de sua própria interioridade, seja ela a cristalização da descoberta inovadora de um método. Dois exemplos claros nesse sentido, um descrito em Tristes Trópicos, outro em O Cru e o Cozido, comprovam o lugar marcante da arte musical em sua vida e em sua obra.

A Tristesse de Chopin

Em 1938, Lévi-Strauss encontrava-se nos confins de Mato Grosso, em Campos Novos, aguardando o resto da expedição que ficara 80 quilômetros atrás por causa de uma epidemia que provocava cegueira temporária e que havia atingido inclusive sua mulher. O cenário era dantesco. No calor insuportável do planalto, pessoas morriam de malária e de fome, e os índios que passavam por ali não eram nada amigáveis. As semanas anteriores também não tinham sido as melhores. O antropólogo recorda que em seu espírito emergia um devaneio sereno e melancólico: perguntava-se qual o sentido de tudo aquilo, o que estava fazendo ali, que esperança, que finalidade almejava encontrar, afinal. Iria fazer cinco anos que abandonara a carreira universitária. Seus amigos agora eram bem-sucedidos na carreira, alguns já eram deputados, em breve seriam ministros. “Quanto a mim”, confessava, “eu corria os desertos perseguindo n°142

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Dossiê samuel beckett

O profeta do silêncio

A

rtista que implodiu as fronteiras artísticas, o irlandês Samuel Beckett (1906-1989) ocupa lugar central na arte do século 20. Prolífico, escreveu peças para teatro, rádio e televisão, romances, poemas, além de textos que escapam da moldura canônica dos gêneros literários. Beckett trouxe para o centro de sua obra “a expressão de que não há nada a expressar, nada com que se expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar”, como escreveu nos Três Diálogos com Duthuit, em 1949. O impasse, portanto, antes de ser assunto, é tratado sob o viés da linguagem, como forma. Passados 20 anos de sua morte, CULT convidou renomados estudiosos para participar deste Dossiê, dedicado àquele que, obcecado pelo essencial, conduziu sua arte a caminho do silêncio. No texto inicial, Fábio de Souza Andrade – uma das mais reconhecidas autoridades na obra beckettiana – faz um balanço da importância de Beckett para a modernidade, autor cuja obra configurou um percurso de continuidade e adensamento exemplares. Cláudia Vasconcellos analisa como as primeiras peças focam a teatralidade, a despeito da fábula – fenômeno que criou uma nova categoria de estranhamento. Ao longo do texto, o leitor pode ainda conferir os depoimentos dos diretores Gerald Thomas e Rubens Rusche, cujas carreiras estão intimamente ligadas ao universo beckettiano. A segunda fase da dramaturgia está contemplada no texto de Welington Andrade. Após a tríade de obras-primas, composta de Esperando Godot, Fim de Partida e Dias Felizes, Beckett compôs as chamadas shorter plays – peças curtas tão importantes para o teatro do século 20 quanto as três já citadas. Concisas ao extremo, as shorter plays cotejam o silêncio e impõem desafios ao espectador. Junto ao texto, está a entrevista com Sérgio Brito, consagrado ator do teatro brasileiro que interpreta Beckett desde os anos 1970. Tão implosiva quanto seu teatro, a prosa de Beckett desempenha papel importante na literatura do século 20. Tal vertente de sua obra é analisada no artigo de Ana Helena Souza. A adoção do francês como língua literária, segundo Ana, permitiu ao autor “encontrar uma voz inconfundivelmente sua”, o que propiciou a ele escrever as obras-primas Molloy, Malone Morre e O Inominável. Por fim, Plínio Prado Jr. discorre sobre o conflito vivido por Beckett entre a insípida glória literária institucional e o real papel da escrita em sua obra. Para tal, Plínio traça paralelos e contrastes com autores como Jean-Paul Sartre e Clarice Lispector. Esperamos oferecer ao leitor um panorama do universo plural de Samuel Beckett, universo este habitado por vagabundos, seres dilacerados, vozes silentes e inomináveis a mimetizar limitações e impasses da alma do homem moderno.


Divulgação/Martins Fontes

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A importância de Beckett para a modernidade

Desconcertante e plural, a obra de Samuel Beckett foi decisiva para a reinvenção da arte moderna Fábio

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de

Souza Andrade

O intrateatro e o anti-ilusionismo

Como as primeiras peças de Beckett preterem a fábula em favor da teatralidade e criam uma nova categoria de estranhamento C l á u d i a V a sc o n c e l l o s

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Formas breves e evanescência

Ao privilegiar o silêncio e a imobilidade, Beckett triunfa sobre as limitações do teatro Welington Andrade

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A obra em prosa

Em face dos limites impostos pela linguagem, a prosa beckettiana é marcada pela redução de recursos Ana Helena Souza

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O evento Beckett

Avesso à falsa glória, Beckett buscou a “fidelidade ao fracasso” Plínio Prado Jr.


Dossiê Samuel Beckett

O intrateatro e o anti-ilusionismo Como as primeiras peças de Beckett preterem a fábula em favor da teatralidade e criam uma nova categoria de estranhamento C l á u d i a V a sc o n c e l l o s

Sasha Gusov

Esperando Godot: Ian McKellen (Estragon), Ronald Pickup (Lucky), Patrick Stewart (Vladimir) e Simon Callow (Pozzo), Londres, 2009

A

s cinco primeiras peças teatrais de Beckett (não contando as peças radiofônicas nem as pantomimas) – Esperando Godot, Fim de Partida, A Última Fita de Krapp, Dias Felizes e Peça – são verdadeiras investigações sobre os elementos intrateatrais que as constituem. Intrateatral é um termo que proponho como alternativa ao termo metateatral. Metateatro entende-se como teatro dentro do teatro, ou teatro que discorre sobre teatro. Intrateatro, prática beckettiana, quererá indicar o jogo dramático que se mostra como tal, como que liberto de um enredo, e expondo seu próprio enervamento. Assim, Esperando Godot, mais do que uma peça de conversação – como advogou o crítico e ensaísta Peter Szondi –, aparece como um ensaio sobre os índices irredutíveis do drama: o espaço e o tempo. Com a ressalva, contudo, de que não há uma discussão sobre espaço e tempo, mas uma ampliação formal de sua função teatral. 52

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O espaço, por exemplo, é trabalhado na figura do confinamento. Os protagonistas aparecem como que presos a um mesmo lugar, que denominam “país da merda”. Ainda que tente escapar da cena e fugir da alarmante vacuidade de seu dia, Estragon bate na parede de fundo do palco, retorna de uma tentativa de evasão pelas coxias e, apavorado, recua do fosso da orquestra (ou da plateia), pontuando os limites de seu território. Território que Vladimir compreende muito bem: “Estamos sobre um platô”, afirma. Lembre-se que, em francês, plateau, além de uma espécie de planalto, é também bandeja, prato e – o que interessa – o próprio palco. Os personagens sabem-se confinados ao palco, seu espaço por excelência. O tempo, por sua vez, é trabalhado na figura da circularidade. Se tentam escapar quando a noite cai, os personagens estarão de volta no outro dia, pois a “noite” coincide com o intervalo da própria apresentação teatral, e “o outro


dia” será o próximo ato, ou as próximas apresentações, repetidas quantas vezes demandar a temporada. No teatro (ao menos naquele apoiado por um texto ou roteiro), o tempo será retorno do mesmo. Mas há no registro da fábula (se é que se pode assim chamar o não enredo de Esperando Godot) uma explicação possível para a clausura espaço-temporal dos personagens. Eles estarão sempre nesse mesmo sítio e renovando sempre a esperança de que o (in)certo Godot os virá salvar por hábito. É o hábito que os enreda e os paralisa. “O hábito é uma grande surdina”, reflete Vladimir. Se, no palco, os personagens aguardam angustiadamente pelo abscôndito Godot, na plateia, o público espera do mesmo modo por um desfecho. Que não virá. O cair do pano por certo libertará o público da peça, mas o que é que o libertará do hábito de aguardar desenlaces, de esperar pelo apaziguamento de toda a tensão (dramática), de aguardar desfechos restituidores de sentido? É essa pergunta não formulada, mas encenada, que ecoará como estranhamento nos espectadores. Pois não se pode pensar o estatuto do drama em sua época sem incluir aí um pensamento sobre aqueles que, vendo-o, o legitimam.

O estranhamento em Fim de Partida

Fim de Partida também é máquina de estranhamento. A começar pelo título, que anuncia uma peça que pretende começar quando já terminou. “Está acabado” é sua primeira frase. Em certo nível semântico, a peça significa o fim dessa partida ou jogo, que se mantém como arremedo do teatro passado e vislumbra, na devastação que lhe circunda (pois os personagens atuam em um bunker fora do qual não há mais nada), formas fantasmáticas para um teatro futuro. Nessa partida, ou jogo teatral, as regras dramáticas mantêm-se no seu mínimo viger: há um início, uma duração, um final, e a possibilidade de repetição de todo o processo em dias sequentes. Se no início está o fim, se a duração arrasta instantes inúteis, se o final só remata pelo cair do pano, deixando a história sem desfecho, não importa: as regras do jogo impõem-se, e os personagens submetem-se a elas como ao destino. No interior sem mobílias, que a rubrica prescreve de entrada, repousam cinco “panos”, que substituem a vetusta cortina do teatro. Clov, contrarregra e personagem, recolhe quatro deles, remedos de cortina. Hamm, logo em seguida, recolherá o último, este, sim, reformador. Tratase de um trapo (stancher, em inglês – trapo usado para estancar o sangue) que lhe cobre o rosto e lhe represa as palavras – ao que parece pelo tempo entre uma apresentação e outra. Reduzida a tapa-bocas, a cortina revela a natureza do palco, pois, puxado o pano (ou trapo), o palco se assume como lugar da palavra. Mas de qual palavra? Não, certamente, da palavra clássica, porta-voz da vontade de sujeitos livres, cujo confronto era o próprio motor da peça. Não desta palavra cujo sentido é inequívoco: o futuro desfecho. Não. O palco, em Fim de Partida, dá lugar

Gerald Thomas, diretor de teatro e ator CULT – Qual a importância de Beckett para a modernidade? Gerald Thomas – Beckett é o mais importante dramaturgo do século 20. Não há ninguém que chegue perto. É um tremendo erro categorizá-lo de “teatro do absurdo” (como fez Martin Esslin). Não há ninguém que tenha criado uma marca própria, com personagens, linguagens e estilos próprios, como Beckett. CULT – Quais as principais dificuldades de encenar Beckett? Gerald – Na verdade, não há nada mais fácil. Beckett reduziu a linguagem ao essencial, tão essencial que todos os níveis do corpo entendem. Ele escreve sobre as nossas perplexidades, mas as coloca na boca de palhaços e insere esses palhaços em situações de estresse e limite. Então, se alguém acha isso difícil, recomendo que não saia mais da frente da televisão. CULT – O crítico norte-americano Harold Bloom acredita que Fim de Jogo é a obra-prima de Beckett. Na sua opinião, que obra aglutina as principais marcas da dramaturgia beckettiana? Gerald – Fim de Jogo, sem dúvida, é uma delas, mas não troco Esperando Godot por nada. Porém, é na prosa adaptada para o palco que me encontrei como encenador. Textos como All Strange Away, Compania, The Lost Ones são aqueles que chamamos de “extremamente” beckettianos, pois uma voz narrativa nos conduz, e “essa voz, de costas, sozinha, no escuro” é puro Beckett. É o homem e seu tamanho mínimo diante de tudo, diante da história, diante de Deus, diante da imensidão do universo escuro. CULT – Que lembranças pessoais você guarda de Samuel Beckett? Gerald – Um ser humano tão frágil e engraçado quanto seu monólogo Rockaby (Cadeira de Balanço). Já velho e capaz de lidar com as mãos artríticas e com a dificuldade de atravessar o Boulevard Saint-Jacques, ele ainda tinha aquele “comentariozinho” irônico a respeito de si mesmo e de sua própria condição, assim como em Godot: “A bota. Não entra. Não sei se ela diminuiu durante a noite ou se foi o pé que cresceu”.

a outra palavra – que não serve ao duelo –, dá lugar à palavra conformada, aquela que pressupõe desigualdade de poder entre personagens e, assim, submissão de um ao outro. Fim de Partida encena o conflito inconciliável entre devir dramático – o qual pressupõe palavras fomentadoras de futuro – e impotência verbal. A obra assim compósita – “um discurso estéril, conformado, incapaz de mover um drama”, mas amalgamado à “forma dramática” – expõe o mesmo paradoxo encontrado em Dias Felizes. n°142

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