Revista CULT (parcial) - edição 141

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Ano 12

R$ 9,90

www.revistacult.com.br

literatura

Lançamentos de José Saramago e Dalton Trevisan

música

Villa-Lobos

50 anos após sua morte, o compositor ainda é pouco conhecido

história

Duas, uma, muitas Alemanhas: os 20 anos da queda do Muro de Berlim

Antonio Gramsci dossiê

A atualidade do pensador italiano nos debates nacionais sobre política, cultura e educação


06 08

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DO LEItOr

rogerio Ferrari

vilma Solomp

08

cuLtura EM MOVIMENtO

44

MurO DE

BErLIM

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PErFIL – BENEDItO NuNEs

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MÚsIca cLÁssIca

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HOMENaGEM – VILLa-LOBOs

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FILOsOFIa

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PscIcOLOGIa – rEsENHa

Ao 80 anos, o professor paraense Benedito nunes fala das relações entre poesia, filosofia e crítica literária

cuLtura EM MOVIMENtO Rodin no Masp • Wilfredo Lam • Pierre Verger • Poe, 200 anos • Escuro, peça de Leonardo Moreira • OSGEMEOS • Francis Hime

ENtrEVIsta Para o filósofo François Jullien, pensar a China significa sair do movimento pendular entre Atenas e Jerusalém, encarnado pela filosofia europeia

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LItEratura – rEsENHa

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LItEratura – rEsENHa

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ENsaIO

norMan leBrechT Quando o poder morre, a música pode fornecer outro tipo de orgulho, munida de um melhor senso de coletividade

nome de shopping e de praças no Brasil inteiro, VillaLobos ainda não foi musicalmente descoberto

Em seu novo romance, José Saramago cria herói em conflito contra o poder da palavra

Contos inéditos de Dalton Trevisan testemunham a degradação dos excluídos

Francisco Bosco A obra de nan Goldin revela-nos o caráter sagrado da repetição

Marcia TiBuri Alien – Para comemorar os 30 anos do monstro que nos faz pensar no futuro

Em Cadernos sobre o Mal, Joel Birman age como um historiador de pequenas causas, fazendo a anatomia de um novo tipo de mal


cOLaBOraDOrEs DEsta EDIÇÃO Creative Commons

Alvaro Bianchi, professor de ciência política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), secretário de redação da revista Outubro. É autor de O Laboratório de Gramsci: Filosofia, História e Política (Alameda, 2008).

Ruy Braga, professor de sociologia na USP, diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic/USP) e secretário de redação da revista Outubro. É autor de A Nostalgia do Fordismo (Xamã), Por uma Sociologia Pública (com Michael Burawoy, Alameda) e Infoproletários (coorganizado com Ricardo Antunes, Boitempo).

48 44

48

Lincoln Secco, professor de história contemporânea na USP. É autor dos livros Caio Prado Junior: O Sentido da Revolução (Boitempo), Gramsci e o Brasil (Cortez) e Gramsci e a Revolução (Alameda), entre outros.

DOssIÊ

ENsaIO – MurO DE BErLIM Vinte anos depois da queda do Muro, os debates sociais na Alemanha indicam uma tendência surpreendente: a crítica ao capitalismo foi redescoberta

DOssIÊ

anTonio GraMsci

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Realismo e política por Alvaro Bianchi

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Cultura para todos por Giorgio Baratta

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Gramsci na América por Ruy Braga

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Escola unitária por Rosemary Dore

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Por um novo marxismo por Lincoln Secco

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Gramsci e o Brasil Entrevista – Carlos Nelson Coutinho

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OFIcINa LItErÁrIa

Gunter Axt, professor visitante de história na USP e na Universidade de Paris 7-Diderot. É coorganizador de Brasil Contemporâneo: Crônicas de um País Incógnito (Artes e ofícios, 2006)

Camila Frésca, jornalista, pesquisadora musical e mestre em musicologia pela USP. É autora de Música nas Montanhas: 40 anos do Festival de Inverno de Campos do Jordão (Santa Marcelina Cultura, 2009)

débora cristina morato Pinto, professora adjunta do departamento de filosofia da Universidade Federal de São Carlos (SP). Escreveu capítulos para os livros Bergson (Vozes, 2008) e Atualidade de Bergson (Autêntica, 2007)

Giorgio Baratta, presidente da International Gramsci Society (Itália) e professor de filosofia moral na Università di Urbino (Itália). É encarregado de projetos culturais com a América Latina e autor de As Rosas e os Cadernos: O Pensamento Dialógico de Antonio Gramsci (DP&A) e Gramsci in Contrappunto (Carocci).

Rosemary Dore, professora de pedagogia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É autora de Gramsci, o Estado e a Escola (ed. Unijuí).

Monica Simas, professora de literatura portuguesa na USP. É autora de Margens do destino: Macau e a Literatura em Língua Portuguesa, (Yendis, 2007)

Sérgio Costa, professor titular de sociologia e diretor do Instituto de Estudos LatinoAmericanos da Freie Universität Berlin (Alemanha). É autor de Dois Atlânticos. Teoria Social, Antirracismo, Cosmopolitismo (UFMG).

Fabiano Calixto, poeta. É autor de Música possível (Cosac naify/7Letras, 2006) e Sanguínea (Editora 34, 2007), entre outros. É editor, juntamente com Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, da revista de poesia Modo de Usar & Co.

Christian Dunker, psicanalista, professor livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. É autor de Lacan e a Clínica da Interpretação (Hacker/Cespuc 1996)


cuLtura

EM MOVIMENtO Acervo Museu Rodin, Paris

rodin no Masp AS trÊS SomBrAS: escultura nunca antes exposta fora de Paris

m continuidade aos eventos que celebram o Ano da França no Brasil, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) apresenta a exposição Rodin: Do Ateliê ao Museu – Fotografias e Esculturas. Com curadoria de Hélène Pinet, responsável pelo setor de fotografia do Museu Rodin, o evento reúne 193 fotografias e 22 esculturas inéditas no Brasil. “não é apenas a obra de Rodin que apresentamos nesta exposição, mas a maneira pela qual os diferentes fotógrafos que estiveram bastante próximos do escultor observaram seu trabalho”, explica Hélène à CULT. Entre os anos de 1880 e 1910, Auguste Rodin (1840-1917) contratou fotógrafos para registrarem seu trabalho. A diversidade técnica e estética empregada por eles permite observar o processo criativo sob diversos prismas, o que enriquece a compreensão das obras: “O Pensador fotografado por Bodmer no ateliê é bastante diferente de O Pensador em gesso fotografado por Eugène Druet ou ainda por Stephen Haweis e Henry Coles”, comenta Hélène. Em meio às fotografias, destaque para o conjunto de 22 esculturas, entre elas a monumental As Três Sombras, nunca antes exposta fora de Paris.

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Acervo Museu Rodin, Paris

E

AUGUStE roDin: ao lado do monumento a victor Hugo, em 1898 rodin: do ateLiÊ ao museu FotoGraFias e escuLturas Quando 28 de outubro a 13 de dezembro onde Museu de Arte de São Paulo (Masp) Quanto R$ 15 (entrada franca para pessoas de

até 10 anos ou acima de 60 anos)


© Wilfredo Lam. Licenciado por AUTVIS, Brasil, 2009

Wilfredo Lam A

Caixa Cultural do Rio de Janeiro traz ao Brasil a primeira exposição individual do artista plástico cubano Wilfredo Lam (1902-1982), expoente do movimento surrealista. A mostra reúne 140 gravuras e quatro desenhos, que percorrem 40 anos da carreira do artista. Com o conhecimento adquirido por meio do contato que manteve com as vanguardas europeias e com a cultura africana, Lam voltou-se para Cuba, na tentativa de apreender expressões autênticas da ilha. Elementos da natureza tropical foram incorporados à sua obra de modo que estabelecessem um rico sincretismo com temas surrealistas e africanos, o que, para o curador do evento, Paulo Venancio Filho, aproxima Lam da cultura brasileira: “Aspectos tropicais, cultos afros, além de elementos indígenas, também estão presentes em nossa cultura. No meu entender, ele é um artista muito próximo do Brasil”, destaca. As obras presentes na exposição foram selecionadas no Acervo de Amigos de Wilfredo Lam, com a colaboração de Eskil Lam, filho do artista. Entre os destaques, estão as quatro gravuras realizadas para o livro Fata Morgana, do poeta surrealista André Breton, e a série de gravuras baseadas em sua obra A Selva, pertencente à coleção do MoMA, de Nova York.

Annonciation (1969): um dos destaques da exposição

Lam: Gravuras Quando 21 de outubro a 3 de janeiro Onde Caixa Cultural, Rio de Janeiro (RJ) Quanto entrada franca


ENtrEVIsta

François Jullien

redescobrir a china Para François Jullien, pensar a China significa sair do movimento pendular entre Atenas e Jerusalém, encarnado pela filosofia europeia GunTer aXT

Divulgação

F

rançois Jullien especializou-se em pensamento chinês e afirmou-se como um importante teórico do diálogo intercultural no contexto do mundo globalizado. Considerado um dos principais pensadores franceses da atualidade, é professor na Universidade Paris 7 – Diderot, onde dirige o Instituto do Pensamento Contemporâneo. É membro sênior do Instituto Universitário da França, já presidiu o Collège International de Philosophie e a Associação Francesa de Estudos Chineses. Atualmente, dirige a revista Agenda do Pensamento Contemporâneo, editada pela Flammarion. Desempenha também papel de consultor para empresas ocidentais que desejam se instalar na China. Seus livros estão traduzidos em mais de 20 países. O filósofo vem ao Brasil neste mês para palestras em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre e para o lançamento de seu livro O Diálogo entre Culturas – Do Universal ao Multiculturalismo (Jorge Zahar). Nesta entrevista concedida à CULT, em Paris, Jullien fala de seu interesse pela China e das diferenças entre alteridade e exterioridade, bem como entre universal, uniforme e comum, conceitos que considera fundamentais para a compreensão da dinâmica do diálogo entre as culturas. Aborda, ainda, temas como o papel do intelectual na atualidade, os limites dos direitos humanos, e defende a construção de um novo universalismo, baseado na diferença e refratário ao relativismo cultural.

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CULT – Por que fazer da China o tema de sua pesquisa? François Jullien – No início me interessei pelo pensamento grego, mas depois pela China porque ela possui uma exterioridade marcante em relação à cultura europeia. Exterioridade de língua, já que o chinês não pertence à grande tradição indo-europeia; de história, já que os contatos da Europa com a China se tornaram mais frequentes apenas a partir do século 16, na esteira das missões de evangelização, e ganharam intensidade na segunda metade do século 19, como desdobramento do processo colonial moderno. Apesar das diferenças, ambas, Europa e China, são comparáveis. Não se trata de buscar o exotismo da China, mas de evidenciar quanto ela é um caso particularmente tipificado e com forte exterioridade em relação à cultura europeia. Minha abordagem é filosófica. Trabalho sobre um pensamento constituído e explicitado, com o objetivo de reinterrogar o pensamento europeu a partir de fora. CULT – Qual é a diferença entre exterioridade e alteridade? Jullien – Sim, eu mencionei exterioridade e não alteridade, porque a exterioridade é algo dado pela geografia, pela língua, pela história: pode-se constatar. Por sua vez, a alteridade é uma construção cultural. A China está alhures; mas em que medida ela se constitui em um outro? É o que Foucault chamava literalmente, em As Palavras e as Coisas, de heterotopia da China, distinta da utopia. As utopias confortam, as heterotopias inquietam. Mais do que a diferença do pensamento extremo-oriental com relação ao europeu, há uma indiferença nutrida tradicionalmente entre esses termos. O primeiro desafio é sair da indiferença mútua, de maneira que um possa visualizar o outro, numa mudança de enfoque que suscite o pensar. CULT – Quais seriam os outros modos de inteligibilidade no mundo contemporâneo, paralelos à tradição judaico-cristã e ao racionalismo ocidental? Jullien – Contrariamente ao que pretende a história ocidental da filosofia, o Extremo Oriente não ficou em estado pré-filosófico. Ele inventou seus marcos de abstração, conheceu uma diversidade de escolas e ex-

plorou outras fontes de inteligibilidade. Há um benefício duplo nesse percurso intelectual da China. Além da descoberta de outra inteligibilidade, sonda-se até onde pode ir essa desterritorialização do pensamento. Mas o deslocamento implica também um retorno. Do ponto de vista da exterioridade, cabe retornar aos pressupostos a partir dos quais se desenvolve a razão europeia. São pressupostos ocultos, não explicitados, que o pensamento europeu veicula como uma evidência. O objetivo aqui é remontar ao impensado do pensamento, captando a razão europeia ao inverso, a partir de sua exterioridade. Pensar na China é justamente sair do grande movimento pendular entre Atenas e Jerusalém, encarnado pela filosofia europeia.

Contrariamente ao que pretende a história ocidental da filosofia, o Extremo Oriente não ficou em estado pré-filosófico CULT – Quais as consequências dessa compreensão para a percepção da China contemporânea? Jullien – Eu proponho a noção de “potencial de situação” para compreender a concepção chinesa de eficácia. Apanho-a dos estrategistas da Antiguidade, como Sun Zi e Sun Bin. Mais do que modelar uma fórmula ideal colocando-a como uma meta, o que implica forçar a impregnação dessa meta na realidade, aquilo que vem a ser eficácia na China se aplica a demarcar, a detectar os fatores favoráveis existentes no seio da situação abordada. A ideia é fazer evoluir continuamente a situação em função dos fatores que podem ser revelados, de maneira que da situação mesma decorra o efeito. Assim, se hoje não é favorável, é preferível esperar, mais do que se destroçar enfrentando uma situação adversa. É por isso que prefiro para a China o termo “eficiência”, mais do que “eficácia”. Eficiência permite compreender a continuidade de um desdobramento e, ao mesmo tempo, a arte de captar sua imanência, sem evidenciar a imposição de um projeto. Donde decorre uma segunda noção: a

de “transformação silenciosa”. Ora, diferentemente do herói europeu, que não apenas estabelece uma meta como age de maneira que propicia a forma ideal que traçou, um dos temas mais marcantes do pensamento chinês é o não agir, que não deve de forma alguma ser compreendido no sentido de passividade ou de ausência de engajamento. Se o estrategista não age, ele transforma, faz lentamente evoluir a situação no sentido desejado, por influência. Enfim, a transformação manifesta-se como o contrário da ação. Enquanto esta é local, momentânea e ligada a um sujeito específico, a outra é global e progressiva. Nós não a vemos, mas ela acontece. Como o envelhecimento de uma pessoa, que percebemos quando a comparamos com uma fotografia de 20 anos atrás. O pensamento chinês dissolve a individualidade do evento no processo. CULT – Mas de que maneira essa “transformação silenciosa” se realiza hoje na China? Jullien – A China, ainda hoje, não me parece estar projetando um plano sobre o devir, perseguindo um fim dado ou divisado, mesmo imperialista, mas sim parece estar explorando da melhor maneira possível, dia após dia, seu potencial de situação. Quer dizer, tirar partido dos fatores favoráveis, seja no domínio econômico, no político, no internacional, e em qualquer ocasião. É apenas agora que começamos, um tanto estupefatos, a constatar os resultados: em alguns decênios, ela converteu-se na usina do mundo e nos próximos anos seu potencial crescerá inelutavelmente. E isso sem um grande evento ou ruptura. Deng Xiaoping, o “pequeno timoneiro”, foi o grande transformador silencioso da China. Ele empurrou gradualmente a sociedade chinesa, alternando liberalização e repressão, do regime socialista ao hipercapitalismo, sem jamais ter declarado uma ruptura franca entre os dois. Vejamos, por exemplo, a imigração chinesa na França. Ela estende-se de um bairro a outro, com cada recém-chegado trazendo, um após o outro, todos os seus primos. As celebrações chinesas ganham ano a ano mais importância. Mas essa transição é tão contínua que nós não a percebemos, e não a barramos. São necessárias ferramentas teóricas específicas para compreender a China con-

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entrevista

François Jullien

e promover, com elas, uma inteligência comum – coisa que não tem nada a ver, bem entendido, com uma cultura única. Voltemos, como exemplo, aos direitos humanos. Como conceito, como abstração separada da sua cultura de origem, eles podem ser comunicados aos outros povos. Como abstração, os conceitos podem ser manejáveis, identificáveis e transferíveis, tornando-se um instrumento privilegiado de diálogo. A radicalidade conceitual dos direitos humanos está em se apropriar do humano em seu estágio fundamental, como recém-nascido. Essa concepção é transversal e emerge em outras culturas. O filósofo chinês Mêncio estabelece a consciência da “piedade” como essencial ao humano. Qual homem assiste indiferente à cena na qual uma fera arranca dos braços da mãe uma criança de colo? Na piedade, um indivíduo identifica-se com o seu semelhante. Aqui, em vez de intersubjetividade, existe transindividualidade, no sentido de que todos os indivíduos estão ligados a uma essência. Para todo homem, portanto, existe alguma coisa que ele não faz e que ele não pode suportar que aconteça aos outros. Conhecer o outro é humanizar e ampliar a moral, restabelecendo a possibilidade de sua refundação e permitindo buscar uma moral que admita a crítica da suspeita. Assim, como ferramenta de protesto, como instrumento insurrecional, os direitos humanos alcançam uma utilidade mais ampla, abrindo brechas numa totalidade satisfeita, acendendo ou reacendendo nela uma aspiração, dimensão que pode gozar grande utilidade para todas as culturas. Por essa razão, valeria a pena abrir mão da pretensão universal dada em benefício de uma perspectiva universalizante, que sinaliza para a ideia de que o universal está em curso e pode operar como agente promotor, adaptando-se às especificidades culturais. Assim, se deslocaria a questão do teórico para o prático, da verdade para o recurso. Enfim, um humano desviado por suas diferenças e estabelecido na autorreflexão não corre, ao contrário do que se poderia imaginar, riscos de se decompor. Pois se permitirá a emergência de um universal liberado dos universalismos instalados aos quais costumamos nos render, destravado das totalidades dadas, desfeito de seus revesti-

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mentos ideológicos. Um universal que não cessará de desimpedir renovadamente as condições de possibilidade de um comum sempre ameaçado pelo estreitamento. E, assim, o senso de humano não conhecerá mais limites para crescer e se desenvolver. CULT – Como se processa esse diálogo intercultural? Jullien – É sobre o plano cultural, mesmo entre os Estados-nação, que se jogam a partir de agora os principais confrontos. A pretensão do Ocidente à universalidade o leva cada vez mais a entrar em conflito com outras civilizações, em particular o Islã e a China. O diálogo emerge aqui como opção e em oposição ao choque. Não se trata, portanto, de afirmar a noção de “identidade cultural” fundada sobre a diferença e, sobretudo, sobre uma concepção simplista e reducionista que caracteriza as culturas com base em seus traços mais óbvios, o que é inevitável fonte de antagonismos, mas de reconhecer a fecundidade dos distanciamentos e das diferenciações culturais como fonte a ser explorada.

Talvez o Brasil seja um país que não apenas faz permanentemente um diálogo intercultural com o exterior, como ainda efetua um diálogo intercultural interno Samuel Huntington vale-se, assim, de instrumentos rudimentares de determinismo cultural para alcançar conclusões reacionárias. Por que fundar, por exemplo, a pretensão de uma tradição europeia sobre o cristianismo e não, também, sobre o ateísmo? Ao contrário, o pensamento contemporâneo está precisamente engajado num dispositivo de autorreflexão do humano. O humano reflete-se – no sentido de se visualizar e de se meditar – quando confrontado ao diverso. Ele descobre-se por meio das facetas iluminadas e desdobradas pelas múltiplas culturas, na tradução de sentidos entre uma língua de partida e uma língua

de chegada, na descategorização e na recategorização de tradições de pensamento. O diálogo é uma estrutura eficiente e operante que obriga cada uma das partes a reelaborar suas concepções. Mas em qual língua se daria esse diálogo? Digo, sem temer o paradoxo: cada um dialoga na sua língua de origem, mas traduzindo à outra. A tradução obriga a reelaborar conceitos do outro no seio de sua própria língua, portanto a reconsiderar seus próprios implícitos, para torná-los disponíveis à eventualidade de um sentido alternativo. Longe de ser uma deficiência, como obstáculo e fonte de opacidade, é a necessidade de traduzir que faz trabalhar as culturas entre elas mesmas. A tradução, a meu ver, é a única ética possível do mundo global que vem aí. É por isso que penso serem os tradutores profissionais a chave no mundo que estamos construindo. CULT – Uma sociedade pode erguer-se a partir da espinha da interculturalidade? Jullien – Talvez o Brasil seja um país que não apenas faz permanentemente um diálogo intercultural com o exterior, como ainda efetua um diálogo intercultural interno. Aí, as fronteiras entre a cultura popular e a cultura erudita parecem ser tênues. Da mesma forma, o país parece estabelecer pouca resistência às influências culturais exógenas, o que não implica uma descaracterização local ou uma vassalagem. Estímulos internos e externos parecem estar em permanente estado de fusão. CULT – Qual a função do intelectual na sociedade contemporânea? Jullien – Na era da mundialização, o engajamento do intelectual não é mais o posicionamento extremado, em busca de uma radicalidade de princípios, que conduz ao antagonismo de posições. Consiste em revelar por quais vias aquilo que parece ruim, ou mau, aquilo que conforma a alteridade encerra fontes inexploradas ou invisíveis para a descoberta de uma fecundidade possível e cooperativa. E, ainda, num movimento inverso e complementar, em incentivar a diferenciação do pensamento, rearranjando as possibilidades do dissenso de forma que trabalhe ao encontro do consenso, no qual o pensamento, quando não inquirido, está sempre ameaçado de adormecer e de se estiolar.


RINO

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LItEratura

resenha

O cortiço de nossos dias Contos inéditos de Dalton Trevisan testemunham a degradação dos excluídos FaBiano caliXTo

O

lha, bem, ele tá vivo... Vejam até mexendo a cabeça! Tá vivo! Me inclino e – oh, não – afogo um engulho: ali um ratão negro pinicando a orelha do meu querido irmão. Por isso balançava de leve a cabeça.” Essa é uma das fortes cenas de “A Desgraça de Zeno”, um dos contos de Violetas e Pavões, nova coletânea de Dalton Trevisan. O livro é composto de 22 contos nos quais o autor esmiúça a vida marginal (aquela à margem) e sua fauna, e, talvez como contrapeso, também compõe momentos de extremo lirismo e erotismo. Ao mesmo tempo em que há malandros, prostitutas, psicopatas e gente sem perspectiva em geral, também há a mulher que sonha imensos orgasmos com outra, sem que essa exista de fato; a névoa que veste os sonhos é o leito onde o ato de amor ocorre (“Lábios Vermelhos de Paixão”). Os contos, por meio da famosa lavoura elíptica do autor, tecem uma sequência binária, as violetas e os pavões (que ecoam a todo momento a ideia de “putas” e “cafetões”, que por sua vez guarda o sentido de hierarquia entre o opressor e o oprimido), as personae masculina e feminina, a violência e o lirismo, que vão se revezando em sua cruzada à perene vertigem da experiência humana. Um livro habitado pelos fantasmas que, talvez, mais assombrem o nosso tempo: o medo e a solidão. Um dos contos mais interessantes é “Mocinha Perdida de Amor”, que abre a coletânea. A narradora descreve o encantamento de sua colega Denise com a sensação de ser a musa de um poeta, um gentleman, mas incompetente na arte de compor versos. Com algum 22

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conhecimento de causa, a narradora descreve o tal “poeta”: “Muito fino, muito culto, muito cavalheiro. Mas, ai de mim, muito mau poeta. E isso – aprendi com o senhor aqui citado – não merece perdão”. O “senhor” ali citado é outro poeta, este, sim, talentoso, cuja musa é ninguém mais senão a narradora que, entre o esnobismo e o orgulho, confere desprezo ao poeta “da outra”, que jamais poderia chegar ao êxtase. Já em “Elas Cantam Só para Mim”, outro bom momento do conjunto, são descritas as desventuras de um jovem fotógrafo que só queria “um fuminho pra relaxar” e entra em uma enrascada com a guarda municipal. Quando finalmente escapa, é pego pelo mesmo motivo, desta vez pela polícia militar. “Toda essa confusão por quê? Um simples fininho.” Ali é mostrado o abuso de poder e a corrupção na corporação – quando o primeiro investigador chega e vê uma correntinha de ouro no pescoço do fotógrafo: “– É de ouro”, e quando a resposta é sim: “Só tem um acerto. Ela... ou o micro”. O conto movimenta-se nessa direção – o pobre personagem e seu azar duplo, ao ser enquadrado duas vezes pelo mesmo motivo: relaxar do inferno do dia a dia. Aqui e ali, sob a camada grossa do tema, situações hilárias e até certo lirismo, que fazem desse conto um dos melhores do livro.

A miséria humana

As violetas e os pavões fazem parte do cenário cotidiano de Curitiba e, aqui, funcionam como uma metáfora repleta de significados nefastos. Objetos líricos que testemunham a fatídica e inevitável miséria do ser humano numa capital do país. Por meio dessa imagem, Trevisan foca a degradação da classe pobre, dos miseráveis cada vez mais miseráveis e

cada vez mais conformados e adaptados a essa danação. Sujeitos para quem o sentido de lei ou justiça terrena não tem a menor serventia. Somente a crença na providência divina (numa chave de total despolitização) pode acalentar a alma dessas pessoas, já que, claro como está há décadas, essa imensa parcela da população é completamente esquecida pelos órgãos que deveriam zelar pela manutenção da justiça e do progresso de todos, mas só o fazem para poucos. O personagem principal desses contos é, portanto, “a sensação de cortiço” que impregna o corpo, a mente e a alma dos esquecidos; esses pobres-diabos cuja existência serve apenas como base de uma estrutura cujo cume é formado pelos poderosos e endinheirados que, para que seu banquete diário nunca falte, fazem a manutenção intensiva e extensiva da miséria. Aquela ambientação que servia de moldura ao clássico de Aluísio Azevedo O Cortiço (1890), cuja influência sobre a prosa brasileira posterior é gigantesca, habita também este livro. Só que, aqui, é relida com uma prosa cujo hiper-realismo é corrosivo e não mediador. Não há esperança concreta. O cortiço destes contos é mais assolador, pois é o cortiço da alma também e, mesmo que o local das ações seja Curitiba, em nossos dias o cortiço é em todo lugar. violetas e Pavões Dalton Trevisan Record 128 págs. R$ 32,90


Arquivo pessoal

O QuE EstOu LENDO

A

cabo de ler Armagedon em Retrospecto (L&PM, 2009), de Kurt Vonnegut. Vonnegut é influência direta no que escrevo, nesse nojo humanista pela civilização. o livro traz histórias de guerra, mais especificamente do fim da Segunda Guerra Mundial. o autor estava em Dresden quando os aliados destruiram a cidade “mais linda do mundo”, segundo o próprio Vonnegut, numa espécie de ataque punitivo. o livro mostra que os maus – Hitler, os nazistas etc. – são maus e que os bons – os norte-americanos – também são maus; que um monstro como Hitler dá a oportunidade aos bonzinhos de cometer todo tipo de selvageria em nome da “civilização”. Kurt Vonnegut é o mestre do humor triste. André Sant’Anna, escritor. É autor de Inverdades (7Letras, 2009) e O Paraíso É Bem Bacana (Companhia das Letras, 2006), entre outros

A

Divulgação

cabei de ler um livro de que gostei muito, chamado A Fazenda Africana (Cosac naify, 2005), de Karen Blixen – uma baronesa dinamarquesa que, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, morou em uma fazenda na África, na região do Kilimanjaro. De maneira muito sensível, ela conta sua história nessa fazenda, descrevendo com muita simpatia as várias etnias existentes, somalis, tutsis – muitas delas citadas ultimamente por causa dessas guerras que existem por lá. É interessante o livro, pois conhecemos muito pouco a África e o relato tem uma frescura no olhar que acho muito generosa para aquela época de muito preconceito. A autora possui também uma maneira rara de descrever as coisas, que alia graça com realidade. o filme Entre Dois Amores (Out of Africa), de Sydney Pollack, foi baseado nesta obra.

Daiane Souza

Ruth Rocha, escritora. É autora de Marcelo, Marmelo, Martelo (Salamandra, 1999), O Barba Azul (FTD, 1996), Este Admirável Mundo Louco (Salamandra, 2003), entre outros

L

eio A História Química de uma Vela – As Forças da Matéria (Contraponto, 2003), de Michael Faraday – livro importante para a física e para os estudos contemporâneos alicerçados na transdisciplinaridade. Faraday explica para uma plateia de jovens estudantes, em 12 conferências, leis fundamentais, tais como atração e repulsão, expostas de maneira simples, mas com vigoroso saber científico. Talvez a melhor explicação da Lei de newton da força gravitacional esteja nas conferências 1 e 2 do capítulo “Forças da Matéria”. Há um comentário de Einstein na contracapa que indica a importância da obra de Faraday: “A maior modificação nos fundamentos axiomáticos da física e em nossa concepção da estrutura do real, depois do estabelecimento da física teórica de newton, foi provocada pelas pesquisas de Faraday e de Maxwell sobre os fenômenos eletromagnéticos”. Ricardo Araújo, professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília. É autor de Edgar Allan Poe: Um Homem em Sua Sombra (Ateliê, 2002), entre outros

E

Arquivo pessoal

stou lendo Ce que l’Homme Fait à l’Homme. Essai sur le Mal Politique (Flammarion, 1999 – sem tradução no Brasil), de Myriam Revault d’Allonnes, filósofa política francesa e professora da Universidade de Rouen. o segundo ensaio do livro, “Kant e a Ideia do Mal Radical”, é aquele que mais me interessa. nele, em vez de aceitar a oposição que a fórmula arendtiana da “banalidade do mal” havia proposto à fórmula kantiana, a autora tenta resgatar a ideia de mal radical, baseada menos nos textos morais de Kant do que em seus textos sobre religião e história, a fim de enfrentar a difícil, se não mesmo paradoxal e aporética, questão de por que fazemos o mal. Virginia de Araújo Figueiredo, professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais

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FICÇÃO ESTRANGEIRA

LItEratura

lançaMenTos

refrão da Fome J.M.G. Le Clézio Trad.: Leonardo Fróes Cosac naify 248 págs. – R$ 49

A

exemplo do que fizera em O Africano, ao remontar a seu universo familiar, o francês Jean-Marie Gustave Le Clézio inspirou-se na trajetória de sua mãe para escrever Refrão da Fome. Dos antecedentes da Segunda Guerra à ocupação alemã em Paris, a menina Ethel sofre as agruras sociais de seu tempo. A ruína familiar aliada à miséria e à fome perfaz a trajetória da protagonista, de modo que mimetiza as ruínas de um mundo assolado pela guerra. Realidade e ficção fundem-se na escrita de Le Clézio, homem cuja identidade se dá, sobretudo, na escrita: “Sinto necessidade de estar ligado a uma identidade e, para mim, isso acontece apenas na linguagem escrita”, afirmou certa vez ao Le Monde.

A

o contrário de seus compatriotas ilustres, nikolai Leskov (1831-1895) não obteve o mesmo reconhecimento internacional. Acurado retratista dos costumes da sociedade russa do século 19, Leskov é tido como um mestre da narrativa curta. Em “Lady Macbeth no Distrito de Mtzensk”, novela publicada em 1865 na revista Epokha, editada por Dostoiévski, Leskov narra a trajetória de Catierina Lvovna, jovem esposa de um velho comerciante que se torna uma assassina. Fria e calculista, Catierina não mostra arrependimento em relação às suas atrocidades. Considerada a obraprima do autor, a novela inspirou a ópera homônima de Dmitri Shostakóvitch.

FICÇÃO NACIONAL

a minha alma É irmã de deus Raimundo Carrero Record 176 págs. – R$ 34,90

E

m A Minha Alma É Irmã de Deus, Camila é uma jovem perdida numa vida errante e sem destino. Assim, Raimundo Carrero a coloca inserida num universo fantasioso, moldado por situações, personagens e diálogos absurdos, para falar da crise de uma geração que precisa sobreviver, mas não encontra alicerces firmes. Com uma narrativa fragmentada, o escritor pernambucano passa a ideia de que nada é muito firme, nem na história e nem mesmo no campo dos desejos. De consistente, somente a linha tênue que separa a salvação da perdição. o livro é o último de uma tetralogia que inclui também as obras Maçã Agreste, Somos Pedras que se Consomem e O Amor Não Tem Bons Sentimentos.

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inferno August Strindberg Trad.: Ismael Cardim Editora 34 232 págs. – R$ 36

Lady macbeth no distrito de mtzensk Nikolai Leskov Trad.: Paulo Bezerra Editora 34 96 págs. – R$ 28

E

m Inferno, o escritor e dramaturgo sueco August Strindberg (1894-1912) mergulha em seu conturbado universo psíquico. Ensaio, diário e ficção fundemse em uma narrativa que apresenta a submissão da vontade individual às forças do inconsciente. Escrito originalmente em francês, entre os anos de 1896 e 1897, o livro revela os tormentos de um indivíduo marcado pela desmedida mania de perseguição, permanente solidão e religiosidade supersticiosa. Dada a intensidade da obra, Pier Paolo Pasolini, que assina o prefácio da edição, concluiu que: “o Inferno de Strindberg não é um livro, não é vivido pelo leitor como um livro, mas sim como uma experiência”.

Paranoia Roberto Piva e Wesley Duke Lee IMS 208 págs. – R$ 60

miguel e os demônios Lourenço Mutarelli Companhia das Letras 120 págs. – R$ 34

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m seu quinto romance, o escritor e quadrinista Loureço Mutarelli narra a vertiginosa descida aos infernos do policial Miguel. o livro nasceu de uma encomenda para o cinema, o que explica a estrutura de roteiro, permeada por diálogos enxutos e desconcertantes. Com doeses de humor negro, o romance é repleto de fatos escabrosos. A manicure Sueli, namorada do protagonista Miguel, é mãe de uma menina que rói as quinas da parede. o ex-marido de Sueli é um pedófilo que cometeu um terrível crime. Por fim, Miguel apaixona-se pela transexual Cibelle, o que acentua os conflitos vividos pelo personagem.

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ublicado originalmente em 1963, Paranoia revelou o ímpeto transgressivo da poesia de Roberto Piva. o espírito contestador e o individualismo anárquico presentes nos 19 poemas de Piva e nas fotografias do artista plástico Wesley Duke Lee confrontaram a vanguarda literária vigente e incomodaram os críticos mais conservadores. Para Davi Arrigucci Jr., autor do prefácio desta edição: “o que primeiro chama atenção na poesia de Roberto Piva (...) é seu ímpeto para a provocação. Com efeito, o poeta entregava ao delírio sistemático a condução do lirismo, fazendo de seu comportamento desregrado também o modo de ser de sua linguagem”.


E

m Festa sob as Bombas e Sobre a Morte, a vida do escritor Elias Canetti (19051994) é vista sob prismas distintos. o primeiro traz os depoimentos do escritor acerca da década que viveu na Inglaterra. A despeito do contexto desfavorável, em plena Segunda Guerra, Canetti considerou os anos ingleses os melhores de sua vida. os textos estão permeados por bom humor e irreverência. Em Sobre a Morte, Canetti reflete sobre esse tema tão presente em sua literatura. o livro reúne trechos extraídos de suas obras, além de breves anotações esparsas. Em uma das passagens, o autor revela o medo da morte, fruto do desconhecido: “os mortos têm medo dos vivos. os vivos, porém, desconhecendo o fato, temem os mortos”.

o Lobo Joseph Smith Trad.: Aldalgisa Campos Silva Editora Alfaguara 136 págs – R$ 29,90

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omem e lobo possuem uma afinidade que vem de tempos imemoriais. Uma relação que tanto nos remete ao clássico literário O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, quanto a lendas difundidas mundo afora, como aquela do fundador de Roma, Rômulo, e de seu irmão gêmeo, Remo (ambos criados por uma loba). Enveredando por esse universo, Joseph Smith busca sustento nessa mística milenar e concede aspectos humanos a um lobo solitário. Esse se vê em busca de comida em meio a um rigoroso inverno. A sina desse lobo humanizado, os desafios enfrentados por ele, seus pensamentos conflitantes e sua inevitável forma de predador, que o leva a invariavelmente matar para sobreviver, são os pontos altos do livro.

contos de arthur azevedo Loyola e Puc-Rio org.: Mauro Rosso 280 págs. – R$ 42

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m dos expoentes da comédia de costumes no Brasil, Arthur Azevedo (18551908) não negava que sua escrita estava longe da elite verborrágica e afirmava que preferia, em vez do glamour dos salões, atingir “a cidade inteira”. Um pouco desse seu ar cosmopolita e abrangente está reunido em Contos de Arthur Azevedo: Os ‘Efêmeros’ e Inéditos. nele, encontramos os famosos Contos Efêmeros, publicados em 1897, além de textos impressos em periódicos da época e contos inéditos do escritor maranhense. A publicação traz ainda análises que explicam e contextualizam Azevedo, “um reformista em franca e deliberada contraposição à escrita beletrista”, conforme aponta Mauro Rosso, organizador da obra.

o romance – vol. 1 A Cultura do Romance org.: Franco Moretti Trad.: Denise Bottmann Cosac naify 1.120 págs. – R$ 150

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coleção O Romance é um ambicioso estudo desenvolvido e organizado pelo professor e crítico literário Franco Moretti acerca desse gênero tão importante para a história da literatura. Para tal, Moretti contou com a participação de 178 colaboradores, entre renomados escritores e críticos literários, tais como o crítico norte-americano Fredric Jameson e o romancista italiano Umberto Eco, além dos brasileiros Luiz Costa Lima e Roberto Schwarz. A Cultura do Romance, primeiro dos cinco volumes da coleção, chega ao mercado brasileiro com tradução de Denise Bottmann. Dividido em quatro partes, o livro reúne ensaios sobre a história do gênero e seu lugar no mundo contemporâneo.

euclidiana – ensaios sobre euclides da cunha Walnice Nogueira Galvão Companhia das Letras 328 págs. – R$ 52

a Guerra está em nós Marques Rebelo José olympio 562 págs. – R$ 54

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ublicado originalmente em 1968, A Guerra Está em Nós, de Marques Rebelo, relata a vida no Rio de Janeiro durante a Segunda Guerra Mundial. Distante da zona de combate, o escritor nos mostra, numa prosa ligeira, uma cidade efervescente e cheia de especulação em relação aos desdobramentos do conflito. nesse ambiente, uma informação que surge é logo comentada nos botecos, livrarias, praças e cafés, tornando-se matéria-prima para o autor exibir as diversas figuras do universo citadino. Carioca, Rebelo encontra-se no cerne de um movimento romanesco que instaurou a crônica urbana brasileira posterior a Machado de Assis e Lima Barreto.

A

utoridade nos estudos euclidianos, Walnice nogueira Galvão analisa em Euclidiana o percurso literário e biográfico do autor de Os Sertões. As influências de Castro Alves, Victor Hugo e da Bíblia; a temática do sertão – presente na vida do autor desde a adolescência – e a conturbada biografia estão entre os temas contemplados nos ensaios. Dadas as particularidades do percurso de Euclides, Walnice aponta que, para estudá-lo, não basta ater-se à sua obra literária: “Editar Euclides da Cunha, ao que parece, não se restringe a Os Sertões, nem apenas a sua obra; e dadas as características peculiares de sua trajetória, terminaria por envolver também sua própria vida e a vida de outras pessoas – sem falar a minha”, assinala no prefácio da edição.

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CRÍTICA LITERÁRIA

Festa sob as Bombas/ sobre a morte Elias Cannetti Trad.: Markus Lasch/ Rita Rios Estação Liberdade R$ 46/R$ 35


Arquivo pessoal

PERFIL B e n e d i t o N u n e s

Benedito Nunes com Michel Foucault: em Belém, 1976

jornais e, com isso, perdem sua autoridade fora do cerco universitário. “Sem espaço para a crítica, criou-se uma espécie de não literatura dentro da literatura. Há muito lixo. E quem vai selecionar isso? Quem se interessa em editar isso? A voz do crítico perdeu ressonância. O papel dele era refletir sobre o texto e levá-lo ao conhecimento dos outros, gerando discussão. Agora, não há mais ninguém para ordenar esse diálogo.” Existe, porém, uma convergência que o filósofo paraense vê como uma espécie de marca distintiva de grande parte da produção literária contemporânea, principalmente a feita em prosa: o conflito. E, uma vez que “o romance espelha as vicissitudes do seu tempo”, a incapacidade deste em transmitir uma experiência comum e primogênita é o resultado mais visível desse processo. Em um mundo em que a cultura está cada vez mais “aglutinada”, os conflitos de qualquer natureza (sociológicos, psicológicos etc.) que derivam daí estabelecem a base da literatura produzida hoje, seja no Pará, seja no Rio Grande do Sul, independentemente do cenário ou da trama. “Vivemos numa sociedade fragmentada, em que não temos a quem nos reportar. O que nos resta é o conflito que, por sua vez, se 30

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diversifica conforme as circunstâncias. A princípio, pode parecer uma questão contingencial, mas, no fundo, é existencial também”, pondera Nunes.

“Criou-se hoje uma espécie de não literatura dentro da literatura. Há muito lixo. E quem vai selecionar isso?”, indaga o professor Lembranças remotas

Não é de estranhar que hoje esse senhor calmo e solícito valorize tanto seu microcosmo. Seguro numa espécie de oásis no meio da selva urbana de Belém, que chama carinhosamente de sua “concha existencial”, Nunes resguarda do mundo conflitivo as coisas que mais ama: seus livros, sua mulher, seu gato, seu cachorro, suas samambaias, seu conforto. Sua concha lhe permite idealizar aquilo que é tido por muitos como um martírio: a velhice. “Ainda tenho os benefícios da idade ideal que eu mesmo forjo na minha cabeça”, diz, de maneira espirituosa. Tática que o ajuda a lidar com a vida cotidiana, fazendo

com que ele possa ignorar, “enquanto há saúde”, a carga do tempo. “É interessante, mas o tempo não me angustia, afinal, vivemos no dia a dia e é esse dia a dia que absorve a gente.” Embora tenha criado o atual departamento da UFPA, Nunes não se formou em filosofia. Graduou-se em direito no Pará, mas a vida jurídica nunca passou por sua cabeça. Dessa época, sua maior conquista foi mesmo Maria Sylvia, esposa e companheira que está a seu lado desde 1953. Da mesma forma que dispensou a vida nos tribunais, Nunes dispensa também as honras de qualquer tipo de academia, pois, desde os 14 anos de idade, já faz parte de uma. E, “uma vez imortal, não se pode sê-lo duas vezes”, diz. Sobre essa instituição da qual é sócio-fundador, ele fala com gosto. Aos 80 anos, parece que a lembrança ganha autoridade. Ele, então, nos pede um instante, vai até outro recinto e retorna trazendo nas mãos um texto com as memórias desse tempo, no longínquo ano de 1943, quando ele e mais um grupo de amigos tiveram a oportunidade de ter em mãos o anuário da Academia Brasileira de Letras: “Nosso padrão associativo ideal”, conta, rindo. Fascinados com tanta soberba, os garotos resolveram criar sua própria agremiação. “Era muito engraçado. Chamava-se ‘Academia dos Novos’. A sede era a casa da minha tia, uma casa bonita, com móveis antigos. Cada membro sentava-se na sua cadeira austríaca. Éramos apóstolos do parnasianismo e contra a desagregação modernista!”. Hoje, além de escrever algumas memórias pessoais, como essa citada acima, ele se dedica a fazer um apanhado de sua produção, lendo e modificando, quando necessário, alguns textos antigos. Também leciona num curso livre e gratuito de filosofia no Centro de Cultura e Formação Cristã, em Ananindeua, cidade da região metropolitana de Belém. Para aqueles que moram na região, é uma oportunidade única de ver e ouvir, fora de sua concha, um dos maiores pensadores brasileiros da atualidade.


Reencontrando Clarice Quarenta anos depois, Benedito Nunes responde novamente a duas perguntas feitas por Clarice Lispector

N

este mês, chega às livrarias uma belíssima compilação de ensaios de Benedito Nunes batizada de A Clave do Poético. Separados por temas (“Pensando Literatura”, “Teoria Literária”, “Crítica de Autores”, entre outros), o material destaca textos produzidos em épocas distintas, que fornecem um recorte abrangente do pensamento do filósofo e crítico paraense. Entre os ensaios, há uma entrevista concedida a Clarice Lispector no fim da década de 1960. Aproveitamos a ocasião para forjar um reencontro da escritora com o autor de O Mundo de Clarice Lispector, primeiro livro dedicado inteiramente à obra dela, lançado em 1966. Repetimos, 40 anos depois, as duas primeiras perguntas da entrevista: CULT – O que está acontecendo com a literatura brasileira, hoje? Benedito Nunes – Acredito que até hoje a literatura brasileira ainda não colheu os frutos da vida universitária. Encontra-se segregada dos polos produtivos. E isso é lamentável. Se antes a própria cidade gerava um ambiente em que se fomentavam polêmicas sobre obras que estavam sendo feitas, esse ambiente não se repetiu e não tem mais como se repetir no mesmo espaço.

Era um ambiente em que a crítica tinha um papel fundamental. Mas, banida da vida na cidade, a crítica deveria ter se voltado para as universidades. Para mim, a universidade deve ocupar o espaço que um dia foi do centro da cidade. Hoje, o jeito como as cidades são constituídas freia muito o desenvolvimento humano e social. Por outro lado, há também um conformismo muito grande na universidade. Ela estabilizou-se, passando a alimentar certo conformismo oficial em que cada um tem seu lugar garantido e se isola em seu ninho. E mesmo esse gigantismo das universidades, onde tudo funciona em massa, contribui para essa situação. É muito difícil conduzir a massa. Encontramos, então, uma multidão comprimida em sala de aula e pouco participativa. Some-se a isso o meio de leitura, que mudou. Hoje, ocorre uma diversificação real da leitura, cada um está lendo algo diferente, falta foco, falta discussão aprofundada. Devido a essa lacuna, há o predomínio de textos mais diretos, de caráter informativo, voltados para as multidões, de resenhas em vez de críticas. CULT – O que tem a ver o modernismo com a cultura brasileira? Benedito – Do ponto de vista atual, houve

um confinamento muito grande do modernismo. Quando falamos em modernismo, nos referimos normalmente ao modernismo de São Paulo. Mas houve grandes análogos em outros estados, e isso ainda não foi explorado. A universidade poderia convergir suas atividades para esse ponto, de apurar a contribuição do modernismo em outros estados, pois não se fez o estudo das outras províncias. Tenho a impressão de que carecemos desse tipo de informação. Por outro lado, o modernismo não existe mais na atual geração, só nos livros de história. Na produção cultural, o movimento não existe. O modernismo não fez uma tradição forte que tenha se firmado. Hoje, ele se resume a um fato histórico, não a uma tradição, pois não se integrou à experiência das atuais gerações do país. Seu grande valor foi deixar essa mensagem de revolta literária, de revide a uma situação determinada.

A Clave do Poético Benedito Nunes Org.: Victor Sales Pinheiro 440 págs. R$ 66

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ensaio M u r o

de

Berlim

Alemanha(s): duas, uma, muitas Vinte anos depois da queda do Muro, os debates sociais na Alemanha indicam uma tendência surpreendente: a crítica ao capitalismo foi redescoberta S é r g i o C o s ta Fotos: Rogerio Ferrari

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esmo muito antes da Revolução Francesa, as primeiras reflexões sistemáticas sobre o funcionamento das sociedades já haviam mostrado que a boa vida em comum requer a combinação, em proporções adequadas, de três ingredientes básicos: igualdade, liberdade e solidariedade. Pouca gente duvida, hoje, da imprescindibilidade desses três ingredientes. Apesar disso, as duras disputas em torno da definição do que significa cada um desses termos e, sobretudo, em que proporção cada um deles deve ser incorporado à vida comum marcam a história e a política desde muitos séculos. Com a divisão da Alemanha no pós-guerra, formas radicalmente distintas de resolver a equação entre igualdade, liberdade e fraternidade passaram a conviver numa proximidade geográfica desconcertante. O Muro de Berlim materializava, precisamente, as tensões que essa proximidade comportava. Agora, 20 anos depois de seu desaparecimento, ocorrido em 9 de novembro de 1989,

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cabe indagar o que aconteceu com as interpretações antes opostas. Em que medida a adesão à democracia liberal mudou ou mesmo silenciou a crítica ao capitalismo? O que aconteceu desde então?

As duas Alemanhas

A República Democrática Alemã (RDA), ou Alemanha Oriental, em seus 51 anos de existência (1949-1990), apostou numa concepção substantiva de igualdade que implicava condições materiais de vida similares para todos os cidadãos. Em um sentido correlato, a liberdade era definida como liberdade da necessidade. Ou seja, ninguém deveria estar submetido a privações ou constrangimentos materiais que o impedissem de gozar a vida plenamente. A liberdade individual, como se conhece no liberalismo, não era prioridade e se encontrava, antes, submetida aos interesses coletivos. A solidariedade, por sua vez, ganhou a forma da solidariedade estatizada, de sorte que toda a vida


homogeneização e supressão da liberdade individual em nome do povo ou do Estado foi evitado e condenado. O Estado de bem-estar organizou a solidariedade distributiva no âmbito de programas de tributação dos ricos e benefícios sociais para os pobres, compensando, de alguma forma, o agravamento das desigualdades sociais que o capitalismo sempre produz. Contudo, a solidariedade social, em seu sentido amplo, isto é, como redes de cooperação e associação entre os diferentes grupos da sociedade, era atividade livre de qualquer controle e intervenção do Estado. Isso permitiu o florescimento de uma sociedade civil vibrante e dinâmica, capaz de produzir inovações e transformações sociais de enorme importância. Mencione-se, a título de exemplo, o vigoroso movimento de mulheres, o movimento ambientalista ou o desafio da heteronormalidade por meio da legitimação de formas múltiplas e diversas de sexualidade e de vida em família.

A Alemanha reunificada

associativa, fosse nos clubes de jovens, fosse num clube de caça, era intermediada e regulada pelo Estado. Independentemente dos erros e acertos pessoais de seus diversos governantes e das condições políticas que cercavam sua existência (o peso do stalinismo, a Guerra Fria etc.), a RDA, ao estatizar todas as esferas da vida, minou as bases da vitalidade e da criatividade sociais. A vida comum, fora dos pouquíssimos espaços não controlados pelo Estado ou vigiados pelos “espiões informais” do governo, era um enorme teatro burocrático. O trabalho, a política, o lazer, a visita ao médico ou à escola, a vida de vizinhança ou o baile de formatura eram todos eles parte de um enredo burocrático único. A circulação de informações nesse sistema totalizante fazia, por exemplo, com que a escolha dos amigos com quem se sentava à mesa do bar no fim de semana ou com quem se compartilhava o drama de um amor malsucedido pudesse ter consequências imediatas para a obtenção de uma promoção na fábrica coletiva ou uma vaga na universidade pública para o filho. A República Federal da Alemanha (RFA), ou Alemanha Ocidental, por sua vez, fez do desejo de superar o passado nazista sua razão de ser como Estado-nação. Assim, tanto os laços simbólicos aos quais se recorreu para criar a comunidade nacional imaginada quanto as próprias instituições do Estado de direito buscaram proteger o país de uma nova ameaça totalitária. Nesse contexto, a igualdade buscada era a igualdade no direito à liberdade, a liberdade para a vivência plena da própria diferença. Tudo que lembrasse

Do ponto de vista do direito internacional, a reunificação das Alemanhas representou uma anexação da RDA pela RFA. A anexação foi consentida tanto pela própria RDA quanto pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos, Inglaterra, França e União Soviética. A anexação implicou a extensão da área territorial de vigência da constituição da RFA para o território da RDA e a transformação dos estados e municípios da RDA em novos estados e municípios da RFA. A unificação levou não só a economia da RDA, baseada em fazendas coletivas pouco produtivas e plantas industriais da década de 1930, à desgraça. Também muitas biografias pessoais e familiares moldadas para atender às necessidades de uma economia e uma sociedade que já não existiam mais se viram privadas de sua razão de ser. A perda de referências produziu reações regressivas, como a xenofobia, mas também bem-humoradas, como a Ostalgie. A palavra, que junta leste (Ost) com nostalgia (Nostalgie), nomeia a atitude autoirônica de cultuar e colecionar os produtos e as lembranças da RDA. Ainda hoje lojas descoladas de Berlin-Mitte oferecem esses ícones do passado a preço de ouro como parte de um estilo que tem o seu charme. A anexação da RDA pela RFA, contudo, não levou as ideias de igualdade, liberdade e solidariedade vigentes na RFA a se estender, imediatamente, por todo o território unificado. Tampouco implica que tenham se mantido inalteradas desde então. Na verdade, essas concepções são, ainda hoje, objeto de negociações permanentes no âmbito da política e do cotidiano no país, refletindo, naturalmente, mudanças observadas fora da Alemanha, como a intensificação da globalização ou a integração europeia. Menciono, a seguir, alguns temas discutidos com enorme interesse na Alemanha hoje, que exemplificam como distintas interpretações da vida comum se apresentam e n°141

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Dossiê REALISMO E POLÍTICA

Inspirado em Maquiavel e Marx, Gramsci identificou a íntima relação entre o ser e o dever ser da política A lvA r o B i A n c h i

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CULTURA PARA TODOS

A renovação aportada por Gramsci ao conceito de cultura atesta a vitalidade não adormecida de seu pensamento G i o r G i o B A r At tA

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GRAMSCI NA AMÉRICA

O americanismo, para Gramsci, apareceu como resposta ao ciclo revolucionário europeu ruy BrAGA

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ESCOLA UNITÁRIA

A educação torna-se dimensão estratégica na luta pela transformação social r o s e m A ry D o r e

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POR UM NOVO MARXISMO

Em sua filosofia da práxis, Gramsci avançou em uma nova seara do marxismo lincoln secco

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ENTREVISTA COM CARLOS NELSON COUTINHO n°141

Reprodução

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AnTOniO GRAMSCi Reflexões do cárcere

Para o jornalista Otto Maria Carpeaux, Antonio Gramsci (1891-1937) “foi um mártir e quase um santo”. Nascido na ilha da Sardenha, região pobre da Itália, Gramsci estudou profundamente a realidade social de seu país e foi um dos fundadores do Partido Comunista italiano, permanecendo em luta contínua contra o nacionalismo conservador e posteriormente contra o fascismo de Mussolini. Engajado na divulgação de um novo ideário socialista, ajudou a criar também dois jornais importantes, o Ordine Nuovo e o L’Unità. O ímpeto totalitário não demorou a lhe dar uma resposta. Gramsci foi preso pelo regime em 1926 e solto três dias antes de sua morte, em 1937, devido a uma tuberculose em estágio avançado. Em janeiro de 1929, recebeu uma autorização para escrever na cela. Desse período, resultaram os Cadernos do Cárcere, sua obra principal: um conjunto impressionante de escritos sobre política, história, cultura e filosofia. Hoje, os conceitos criados por Gramsci circulam tanto em artigos acadêmicos especializados quanto nas páginas dos cadernos de política e cultura da imprensa diária. “Estado contra sociedade civil”, “intelectual orgânico”, “hegemonia” são expressões que pertencem ao léxico contemporâneo da teoria política. Mas, por isso mesmo, os escritos de Gramsci não ficam isentos dos reducionismos que toda obra de grande divulgação, principalmente aquela voltada à prática política, geralmente enfrenta. Procurando desfazer os mitos em torno de suas ideias, o Dossiê desta edição busca esclarecer os pontos centrais do pensamento de Gramsci, decisivos para entender inclusive o atual jogo de forças políticas. Nesse sentido, Alvaro Bianchi apresenta a influência de Marx e Maquiavel na concepção política de Gramsci; Giorgio Baratta, presidente da Sociedade Internacional Gramtsci, na Itália, fala sobre as consequências da noção de cultura; Ruy Braga descreve a originalidade da reflexão sobre o American way of life; Rosemary Dore analisa o projeto gramsciano para a educação; Lincoln Secco traz a interpretação daquilo que deveria significar a filosofia da práxis segundo Gramsci; e, por fim, Carlos Nelson Coutinho resume, em entrevista, como se deu a recepção das ideias do autor italiano no Brasil. Retomando Otto Maria Carpeaux, “a recordação de Gramsci deve ser igualmente cara a todos os que reivindicam a verdadeira democracia, contra as hipocrisias do elitismo. Sua obra de grande intelectual – um dos maiores do século 20 – inspira respeito até aos adversários do seu credo”. Afinal, a vida e a obra do marxista sardo converteram-se nos símbolos de uma “resistência inquebrantável nos cárceres mais escuros” de toda e qualquer tirania.


Dossiê Antonio Gramsci Creative Commons/Clinton Hurton/Cortesia de Annie Paul

Divulgação

cultural, mas político, no sentido de que os cultural studies consentem uma modalidade-movimento de reapropriação (por parte dos intelectuais “orgânicos”, ainda que sem partido ou grupo social de referência) dos processos que por outro lado restam apanágio de estudos separados, isto é, acadêmicos e elitistas, ou sociológicos e populistas, e assim por diante.

Contraponto

Stuart Hall e Edward Said: sentimento da formação de uma cultura “concretamente mundial”

muito amplo, que vai da primeira obra que estuda os “povos primitivos”, no sentido mesmo que embrionário da moderna antropologia, isto é, desde Primitive Culture, de Tylor (escrito em 1871), e chega às populações, grupos sociais e indivíduos, objeto hoje dos subaltern studies, dos quais o trabalho levado a cabo pelo historiador Ranajit Guha na Índia a partir de 1982 é expressão orgânica e madura. O pensamento de Gramsci ocupa um ponto central nesse arco. Citamos Guha, que faz explícita referência a Gramsci, mas antes mesmo dele deveríamos fazer referência a Stuart Hall e Edward Said (1935-2003): um, jamaicano negro naturalizado inglês, fundador do Centro de Cultura de Birmingham e da Universidade Aberta de Milton Keynes, ainda produtivamente ativo; outro, palestinoamericano, docente de literatura comparada, acadêmico de fama mundial da Universidade Columbia, falecido em 2003. Tanto Hall como Said sentiram na própria pele a formação, por enquanto germinal, de uma cultura “concretamente mundial”, para usar as palavras de Gramsci. Ambos, grandes intelectuais, deram em suas próprias obras um grande espaço ao “pensamento popular”, mas também criticando, em última análise dissolvendo aquilo que Gramsci denominava de “mumificada cultura popular”. 54

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Os cultural studies

Estamos em presença de uma das maiores “contradições produtivas” do pensamento gramsciano, mas também de Hall e de Said. O ponto é recolher, analisar, combater as dicotomias inerentes ao conceito de cultura, na consciência de que os polos de cada uma dessas dicotomias assumem ou assumirão um sentido diverso – uma tradução – na perspectiva da superação dessas mesmas dicotomias. A fase que Hall e Said expressam talvez possa ser denominada de uma transição bloqueada. Entre as duas possibilidades existentes na mundialização-massificação-tecnificação da cultura, pressagiada como vimos por Benjamin e Gramsci, os pratos da balança parecem pender hoje para o lado totalitário-fascista mais do que para o democrático-revolucionário. Uma simples consideração parece agora oportuna a propósito do conceito de cultura na interpretação de Hall e Said. Os cultural studies, como são compreendidos por Hall, representam uma etapa ulterior com relação a Gramsci de desterritorialização ou colocação extradisciplinar ou adisciplinar da “cultura”. Cultura, para Hall, não é tanto um objeto de estudo quanto um modo para estudar fenômenos que possam ser especificamente “culturais”, sejam imediatamente sociais, políticos, econômicos etc. O escopo não é puramente

Said, por sua vez, conjuga cultura com “contraponto”. Retomando a terminologia do sociólogo estadunidense William Graham Sumner (1840-1910), se poderia dizer que Said estuda estruturalmente e comparativamente a conexão dinâmica, constitutiva da realidade, entre “nós” e os “outros”. Said escreve um século depois de Sumner, quando a tradicional relação entre centro e periferia entrou em crise e as periferias tornaram-se ou aspiram tornar-se centros. Os “outros” estão postos como “nós” (lógica pós-colonial) em múltiplos modos, frequentemente imitando a pior face dos originais “nós”. Mas o processo é, enfim, definitivamente encaminhado, ainda que continue a dominar a dimensão ocidental do “nós” (imperialismo). A grandeza de Said está em assumir na metodologia científica todos os lados – velhos e novos; pacíficos e conflituosos; históricos e geográficos; disciplinares, interdisciplinares e adisciplinares – do “contraponto” entre nós e os outros. Ranajit Guha escreveu que o singular destino da obra de Gramsci é o de encontrar interpretações e usos criativos “fora de casa”, e mesmo muito longe de casa, ou seja, da Itália e da Europa. O que existe de verdade nessa afirmação é atestado pela vitalidade não adormecida desse pensamento. Creio que seja propriamente a América Latina, e particularmente o Brasil – onde Gramsci tem, pelo menos no contexto político da esquerda, estimulado tendências críticas e democráticas –, a região na qual seja possível medir essa vitalidade. A renovação aportada por Gramsci ao conceito de cultura não é pouca coisa nesse processo.


Gramsci na América O americanismo, para Gramsci, apareceu como resposta ao ciclo revolucionário europeu R u y B r aga

O

crise. Em agosto deste ano, a taxa de desemprego estadunidense atingiu 9,7%, a mais alta desde 1983, e o déficit orçamentário passou de 8,6 para 10,3% do PIB. Após nove meses à frente do governo, Barack Obama vê sua popularidade, em meio à desgastante batalha pela aprovação da reforma do sistema de saúde, despencar quase 20 pontos: passou de 70% para cerca de 51%. De realidade marcadamente econômica, a crise estadunidense já ameaça a saída política encontrada para dirimi-la: numa semana, Obama é obrigado a reconhecer em Pittsburgh a proeminência do G20 sobre o G8 para, na semana seguinte, assistir à derrota da candidatura olímpica de sua cidade natal, Chicago, para o Rio de Janeiro. Diante da ofensiva

dos setores conservadores contra sua proposta de reforma do sistema de saúde, o anúncio da láurea do Nobel da Paz soa como um inusual prêmio de consolação. Sabemos que não se trata da primeira vez que o poderio estadunidense claudica perante o mundo. Lembremos da derrota no Vietnã seguida pela recessão econômica de meados dos anos 1970 e pela emergência do Japão como potência industrial e financeira.

Americanismo

Contudo, uma crise dessa envergadura só encontra paralelo no ano de 1929. O início dos anos de 1930 também foi marcado por uma inédita crise econômica, a “Grande Depressão”, que se transformou em uma exuberante Creative Commons/Elizabeth Cromwell

nome de Antonio Gramsci está indelevelmente associado à luta contra o fascismo na Itália. Refinado intérprete da cultura italiana, além de arguto analista da história e da vida política da “Bota”, poucos se lembram que Gramsci foi também um influente estudioso dos Estados Unidos e da crise de 1929. Em seus Cadernos do Cárcere, conjunto de 29 cadernos de tipo escolar escritos por Gramsci entre 1929 e 1935, em uma prisão fascista, o filósofo marxista refletiu de forma pioneira, especialmente no Caderno 22, acerca do modo de vida estadunidense e sua nova condição operária engendrada pela organização fordista do trabalho e da produção. Sem dúvida, a atualidade do pensamento gramsciano encontrase associada aos dilemas estadunidenses de ontem e de hoje.

A atualidade do pensamento gramsciano encontra-se associada aos dilemas estadunidenses de ontem e de hoje E o que diria o marxista sardo a respeito da atual crise dos Estados Unidos? Afinal, apesar dos sinais de relativa recuperação econômica emitidos pelos países em desenvolvimento – a China anunciou recentemente um crescimento da ordem de 7% neste ano, enquanto o governo brasileiro já celebra um possível aumento de 1% do PIB para 2009 –, a principal economia do globo segue enredada em profunda

Obama: o anúncio do Nobel da Paz soa como prêmio de consolação à crise estadounidense

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