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Filosofia Francesa Contemporânea
Gilles Deleuze Michel Foucault Jacques Derrida
Sumário Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 Gilles Deleuze . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8
Deleuze e nós
A utopia imanente
Uma geografia da diferença
Diálogos
Luiz B. L. Orlandi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 Peter Pál Pelbart . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Roberto Machado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 Silvio Ferraz e Annita Costa Malufe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Michel Foucault . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
Foucault no século 21
Um filósofo que pratica histórias
O direito na política moderna
A herança foucaultiana de Agamben
André Duarte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 Salma Tannus Muchail . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 Sérgio Adorno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 Cláudio Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
Jacques Derrida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
Derrida e a defesa da honra da razão
Entre o perigo e a chance
Derrida e a psicanálise
A diferença sem voz
Juvenal Savian Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 Leyla Perrone-Moisés . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Joel Birman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 Vladimir Safatle . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Colaboradores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
Filosofia Francesa Contemporânea Gilles Deleuze Michel Foucault Jacques Derrida Organização Eduardo Socha
Colaboradores
Luiz B. L. Orlandi Peter Pál Pelbart Roberto Machado Silvio Ferraz Annita Costa Malufe André Duarte Salma Tannus Muchail Sérgio Adorno Cláudio Oliveira Juvenal Savian Filho Leyla Perrone-Moisés Joel Birman Vladimir Safatle
Editora e diretora responsável – Daysi Bregantini Editor de arte – Fábio Guerreiro Assistente de arte – Nícolas Godoy Revisão – Kiel Pimenta
ISBN 85-89882-12-8 – janeiro/2010 – ano 13
2010 – São Paulo Editora Bregantini – Praça Santo Agostinho, 70 – 10º andar Paraíso – São Paulo – SP - CEP 01533-070 – Tel.: 11/3385-3385 www.revistacult.com.br
Introdução
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stamos habituados a perceber as coisas não em sua singularidade, mas nas classificações e etiquetas conceituais a elas aderidas, objetivando sempre alguma utilidade efetiva ou potencial. Por meio de grelhas conceituais, extraímos das coisas apenas sua face útil, enxergamos apenas o uso que delas podemos eventualmente fazer em nossa experiência. Se esse reconhecimento parcial e limitado do mundo é imprescindível para nos situarmos nele – mais do que isso, para garantir mesmo nossa própria sobrevivência –, suas consequências no plano do conhecimento remetem à imprecisão e ao encobrimento das diferenças e das sinuosidades que caracterizam, por fim, a própria realidade do mundo. O pensamento conceitual desperta a ilusão de apreender a realidade, quando esta, de fato, não cessa de escoar por meio de suas redes categoriais. É esse o sentido da observação do filósofo Henri Bergson (1859-1941) ao tentar resumir a atividade do pensamento e da percepção habituais: “Pensar consiste, ordinariamente, em ir dos conceitos às coisas, e não das coisas aos conceitos”. As obras dos três autores que integram este Dossiê convergem também para uma expressão conceitual conveniente. Pois estamos habituados a classificar o pensamento de Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida sob o signo do pós-estruturalismo, expressão que cobriria boa parte da filosofia francesa da segunda metade do século 20. Corresponde, em princípio, a um gesto de contraposição teórica à cena dos anos 1960, então influenciada pelo estruturalismo, que articulava as ideias de Lévi-Strauss, Freud, Marx e Saussure para uma constituição intrarrelacional das ciências humanas.
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O estruturalismo ambicionava um método seguro para a compreensão dos “sistemas de diferenças”, mediante um jogo de oposições binárias no interior de estruturas (econômicas, históricas, políticas, estéticas), perfazendo, assim, o vasto quadro combinatório das diversas esferas sociais de atuação humana. Partidários desse gesto de contraposição teórica ao estruturalismo, Deleuze, Foucault e Derrida recusaram a supremacia estabilizante do modelo tomado de empréstimo da linguística e que foi alargado aos demais campos do saber. O pós-estruturalismo deslocaria o foco da estrutura (suposto fundamento das ciências humanas) para a propulsão ontológica da diferença. A consequência imediata seria a renúncia de um saber previamente fundamentado e garantido pela aplicação do método estrutural em nome do reconhecimento de uma abertura contínua da teoria. Essa abertura era exigida em razão do próprio jorro de diferença que permeia a realidade. Daí a necessidade de permanente reavaliação crítica dos discursos e dos métodos de apreensão da realidade. Na contracorrente do estruturalismo, o pós-estruturalismo objetivou desestabilizar os significados das estruturas. Mas o termo pós-estruturalismo comporta, quando se toma a diversidade das produções filosóficas, um teor de imprecisão e generalização arriscado, que pode inibir a compreensão de suas sinuosidades internas. A observação de Bergson ressoa aqui como advertência. Pois ir de um conceito genérico – “pósestruturalismo” – para o corpo teórico específico de cada autor envolve igualmente o risco de imaginar um solo comum capaz de acolher e entrelaçar
programas teóricos distintos, como a proposta de uma “ontologia da diferença” (Deleuze), o trabalho de “genealogia e arqueologia do conhecimento” (Foucault) e o projeto da “desconstrução” (Derrida). Unificar a totalidade dessas produções sob a chave pós-estruturalismo seria, no limite, corromper suas intenções teóricas mais íntimas. Que fiquem enfatizadas, portanto, tanto a conveniência prática, histórica, da etiqueta conceitual “pós-estruturalismo” – ou “filosofia francesa contemporânea” – quanto sua insuficiência para dar conta da extensão de programas filosóficos tão distintos entre si. Este Dossiê (que reúne textos publicados em edições anteriores da revista CULT) não propõe uma síntese, não aspira à composição de um quadro geral do pensamento francês de época. Pretende somente confirmar a pluralidade discursiva das tendências de pensamento de três dos maiores filósofos contemporâneos do século 20. Os 12 artigos e ensaios aqui reunidos foram escritos por grandes especialistas brasileiros. Na primeira seção, dedicada a Deleuze, Luiz B. L. Orlandi traz o esboço de oito itinerários para uma travessia pelos escritos deleuzianos; Peter Pál Pelbart expõe as razões pelas quais Deleuze (ao contrário de Foucault e Derrida) teria sido posto à margem do debate pósmoderno e especifica o caráter de sua renovação da prática filosófica; Roberto Machado localiza o papel específico destinado à atividade filosófica (“produção de conceitos”) e mostra as bases para uma filosofia da diferença; já o compositor Silvio Ferraz e a poeta Annita Costa Malufe destacam os modos pelos quais filosofia e arte se conjugam no pensamento deleuziano.
Na segunda seção, voltada a Foucault, André Duarte introduz alguns dos conceitos mais notáveis do percurso intelectual do filósofo nascido em Poitiers; Salma Tannus Muchail descreve a atualidade e a mobilidade do pensamento foucaultiano, que se propôs a fazer uma filosofia transformativa investigando a história das ideias; Sérgio Adorno analisa as relações entre direito e poder pela via do “biopoder”; Cláudio Oliveira indica a influência de Foucault no trabalho do italiano Giorgio Agamben, um dos mais proeminentes filósofos da atualidade. Na última seção, Juvenal Savian Filho escreve sobre o “personagem” Derrida, que entrou para a história do pensamento como o “filósofo da desconstrução”; Leyla Perrone-Moisés apresenta as propostas teóricas da desconstrução, sempre colocadas sob a chave ambígua do “perigo” e da “chance”; Joel Birman aponta as tensões éticas e políticas que surgiram das incursões de Derrida pela psicanálise; Vladimir Safatle examina, por fim, a peculiaridade da desconstrução na batalha contra o estruturalismo. Relativizando a univocidade conceitual e enfatizando o pensamento da diferença, esses três autores empenharam-se na reversão da marcha habitual do pensamento, preconizada naquela observação de Bergson. Descobriram, assim, a necessidade de partir das coisas em direção aos conceitos. Para além de afinidades geográficas e históricas, havia então não um solo, mas um horizonte em comum: Deleuze, Foucault e Derrida redescobriram na filosofia o lugar para uma autêntica instauração discursiva sobre a diferença, para a renovação dos nossos modos de pensar, para o espanto conceitual diante do mundo.
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Perfil biográfico Gilles Deleuze (1925-1995)
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e férias na Normandia, Deleuze, então com 15 anos, foi pego de surpresa pela ocupação nazista em Paris. Precisou ficar em Deauville durante um ano inteiro. Nesse período, entrou em contato com grandes autores que o despertaram para a vida acadêmica, entre eles André Gide e Baudelaire. Voltando a Paris, estudou no Lycée Carnot e, em seguida, no colégio Henry VI, onde foi selecionado para o kâgne – um ano de estudos para alunos excepcionais. Entre os anos de 1944 e 1948, estudou filosofia na Sorbonne. Entre seus professores estavam Ferdinand Alquié (especialista em Descartes), Georges Canguilhem (supervisor de Foucault) e Jean Hyppolite (especialista em Hegel). Após concluir a graduação, Deleuze lecionou por diversas escolas de Paris e publicou seu primeiro livro em 1953. Batizada de Empirismo e Subjetividade (1953), a obra dissertava sobre David Hume. Em 1956, ele se casou com Denise Paul “Fanny” Grandjouan, uma tradutora especializada em D. H. Lawrence. A partir de 1957, começou sua carreira de professor na Sorbonne, sendo que entre os anos de 1960 e 1964 foi pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique. Antes, porém, publicou Nietzsche e a Filosofia (1962). Durante esse mesmo período, iniciou uma duradoura amizade com Michel Foucault, que lhe foi apresentado na casa de Jules Vuillemin, filósofo que sucedeu Maurice MerleauPonty no Collège de France. Durante os cinco anos
em que lecionou na Universidade de Lyon, Deleuze preparou dois livros, frutos de sua tese de doutorado: Espinosa e os Problemas da Expressão (1970) e Diferença e Repetição (1968). Neste último, o filósofo francês causou o primeiro de muitos distúrbios nas tradições canônicas da filosofia ao refletir sobre a natureza do pensamento, da identidade e do tempo. Ainda em 1968, sofreu a primeira crise pulmonar, doença que o afligiria pelo resto de sua vida. Deleuze foi também um dos primeiros pensadores a refletir sobre as manifestações estudantis de maio de 1968. Suas posições a respeito dos conflitos o tornaram uma das referências filosóficas dessa geração. Em 1969, assumiu uma cadeira na recémcriada Universidade de Paris 8 – Vincennes, onde continuou até 1987, ano de sua aposentadoria. Lá, conheceu Félix Guattari, com quem fez importante parceria em diversas de suas obras, muitas delas consideradas entre as mais influentes, como o AntiÉdipo (1972) e Mil Platôs (1980). Ativo politicamente, fazendo questão de se manifestar sobre diversos temas, Deleuze morreu ao cair da janela do hospital em que estava internado por questões respiratórias, no dia 4 de novembro de 1995. Alguns dizem que foi suicídio, outros, que ele perdeu o equilíbrio por causa de seu estado debilitado. Seja como for, vale lembrar uma de suas frases mais conhecidas: “São os organismos que morrem, não a vida”.
Bamberger Helene
Deleuze
filosofia francesa contemporânea
Deleuze e nós Se há um nós no meio de certo filósofo é porque seu pensamento conceitual continua capaz de atrair interferências L u i z B. L. O r l a n d i
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ste título é plágio da fórmula “Espinosa e nós”, presente em um pequeno texto escrito por Gilles Deleuze (1925-1995) em 1978, retomado em 1981, no final de seu Espinosa – Filosofia Prática. A fórmula era assim entendida: “Nós no meio de Espinosa”. E se há um nós no meio de certo filósofo, no meio das vagas e labaredas de suas obras, é porque seu pensamento conceitual continua capaz de atrair nossas interferências, justamente por força de tudo que acontece em seu meio. Evidentemente, esse nós não sugere unanimidade intelectual ou de sentimentos. No mínimo, é um plural de convergências e divergências dos mais diversos matizes. E cada um desse nós, aventurando-se como pode, retoma a pergunta: que acontece no meio de Deleuze? Acontecem afetos afirmativos, sente-se no rosto um novo frescor e novos ardores, nova maneira de termos encontros até inocentes com o pensamento, sem o cultivo da morte da metafísica ou do fim da filosofia. Nesse meio, evitamos o hábito do obituário e a presunção dos transcendentes. Por que esse meio de Deleuze nos livra disso e mantém viva uma interessante possibilidade do pensamento filosófico? Não só pela perspicácia, pelo humor e até beleza de muitos dos seus textos, e nem apenas pelo aspecto saboroso de alianças que ele estabelece ao longo de uma quebradiça história da filosofia. Sim, história quebradiça, porque, em vez de condenada a blocos da monotonia cronológica, essa história pode ser aberta a viagens plenas de vigor, tão rigorosas quanto intensas. E quando ela se abre assim nesse meio? Quando o pensar se sente tomado por uma dramaturgia de ideias, por um problemático jogo de
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forças desterritorializantes, forças que se exercem como seleção e recriação de horizontes conceituais que pulsam nos grandes ou pequenos sistemas filosóficos. Sente-se isso no meio de Deleuze, seja por leve inspiração indireta, seja quando o acompanhamos diretamente em suas curtas ou longas estadas obrigando-o a pensar. É que, em vez de pensar sobre isto ou aquilo, esse meio deleuziano nos faz experimentar a necessidade de pensar com, postura que leva o conceito não à presunção de comandar, mas à tarefa de se determinar com aquilo que ele determina, postura que vai esculpindo as condições necessárias para que as ideias se sintam bem a serviço da expressividade do caso, do acontecimento, das questões, dos problemas, das frases alheias, desta ou daquela singularidade. É o que se pode notar até mesmo em um breve esboço dos grupos de escritos aí encontrados. 1. Com efeito, nesse meio, a escrita nos leva a passear com novos olhos por paisagens conceituais que julgávamos fixadas em estudos certamente relevantes, mas não únicos. E eis que ganhamos um novo Hume com Empirismo e Subjetividade (1953), livro que nos remete à ideia de um empirismo superior, graças a relações exteriores aos termos relacionados. Ganhamos um novo Proust com Proust e os Signos (1964; 1970), no qual, em vez do apego ao passado empírico, o que se enreda em mundos de signos a serem desvendados é o aprendizado de um homem de letras. 2. E mais: ao lermos Nietzsche e a Filosofia (1962), e até o pequeno Nietzsche (1965), além do decisivo Espinosa e o Problema da Expressão (1968), assim como a retomada do pequeno Espinosa (1970) em Espinosa – Filosofia Prática (1981), o
Gilles Deleuze
que vemos conceitualmente justificado é a junção Nietzsche-Espinosa como guerreiros afirmativos, desses que combatem por uma vida eticamente valorizada e não moralmente depreciada. E não seria abuso juntarmos a essa dupla o nome de outro guerreiro, François Châtelet, a quem Deleuze, em Péricles e Verdi – A Filosofia de François Châtelet (1988) presta uma digna homenagem ao ativar o conceito de combate na imanência. 3. Os incorporais dos estoicos ganham efervescente operatoriedade em Lógica do Sentido (1969), dimensionam a ideia de acontecimento nesse livro, que também nos reanima quanto a Epicuro, a Lucrécio. Compreende-se a coloração bergsoniana desse meio com a leitura das linhas de diferenciação já armadas em Bergsonismo (1966). E como que aplicando uma crítica de Bergson a mistos mal compostos, encontramos importante desmontagem do misto denominado sadomasoquismo em SacherMasoch: O Frio e o Cruel (1967). 4. Em outro cruzamento de latitudes e longitudes desse meio deleuziano, uma nova explicitação conceitual da dobra barroca nos surpreende em A Dobra – Leibniz e o Barroco (1988). E boa surpresa reaparece nessa mesma obra, por força da ideia de acontecimento: reencontramo-nos com o conceito de ocasião atual, de Whitehead. Há toda uma variação de perspectivas que se acumulam nesse cruzamento. Com efeito, pouco antes, Deleuze publicara seu benquisto e conhecido Foucault (1986). Nesse cruzamento de atenções, está em pauta a questão das combinações das forças atuantes no homem e das forças do fora. Se, com Leibniz, nossas forças se combinam com aquelas de elevação ao infinito sob a forma-Deus, o problema que agora se coloca
já não é esse, e nem mesmo aquele que consiste em submeter à forma-Homem as relações entre nossas forças e as que configuram nossa finitude na vida, no trabalho e na linguagem. O problema que se impõe a ambos é o da dissolução da forma-Homem por efeito de outra composição: as forças atuantes no homem combinam-se com forças de ilimitação do finito, aquelas que potencializam a produção de combinações praticamente ilimitadas de conglomerados finitos de componentes. É fácil notar uma das linhas favorecidas por essa combinação: a linha de proliferação dos controles na sociedade. 5. Mas nossas viagens por esse meio não param aí. Encontramos inovações na maneira pela qual, em Superposições (1979), são conceitualmente pensadas as operações com que Carmelo Bene cria seu teatro menor. Em O Esgotado (1992), por sua vez, é com Samuel Beckett que nos encontramos, um Beckett que obriga Deleuze a distinguir conceitualmente o esgotado (que desliza por disjunções inclusivas) do fatigado (que pratica o jogo das disjunções exclusivas): enquanto o esgotado só esgotou a realização e já nada pode realizar, o fatigado esgota todo o possível e nada mais pode possibilitar, coisa que lhe ocorre de várias maneiras. Há uma intensidade no esgotamento, assim como, na pintura de Francis Bacon, há intensidade na dissipação da imagem. Essa pintura é acompanhada em Francis Bacon – Lógica da Sensação (1984), obra que tematiza a passagem da matéria-forma à matéria-força. 6. Visitamos também o cinema e a literatura. Mas não para falar sobre este ou aquele filme, sobre este ou aquele romance. Com o socorro de filmes, de estudos dessa arte, dos que pensam a respeito de seu trabalho cinematográfico, trata-se de elaborar
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conceitos do cinema, isto é, de discriminar seus signos e de pensar relações constitutivas dessa arte em suas variações decisivas. É o que lemos em Cinema 1: A Imagem-movimento (1983) e em Cinema 2: A Imagem-tempo (1985). Além do cinema, há muita literatura conceitualmente pensada nesse meio deleuziano. É o que ocorre no livro escrito por Deleuze em companhia de Félix Guattari Kafka – Por uma Literatura Menor (1975). Nesse livro, certas noções ganham duradoura consistência, como a de agenciamento, a de devir imperceptível, de máquina social etc. E nele também aprendemos que fazer fugir é muito mais que criticar. Essa autoexigência deleuziana é praticada justamente em Crítica e Clínica (1993), uma vasta reunião de textos, muitos dedicados à escrita literária: crítica, como traçado do plano de consistência da obra, e clínica, como traçado de linhas sobre esse plano; o delineamento do bebê como combate, o de uma lógica extrema sem racionalidade, o da avaliação imanente, o dos cristais do inconsciente etc. 7. Esse meio ainda se abre à prodigiosa multiplicidade de outros recantos, como aqueles em que se reúnem os mais variados textos e entrevistas: Diálogos (1996), escrito com Claire Parnet; Conversações (1990), A Ilha Deserta (2002); e Dois Regimes de Loucos (2003), coletâneas extremamente importantes para quem se interessa pelas múltiplas facetas teóricas e práticas dos debates culturais e políticos contemporâneos. 8. Não apontamos ainda outros acontecimentos que duram nesse meio deleuziano graças à colaboração havida entre Deleuze e Guattari: uma nova teoria do desejo em O Anti-Édipo (1972), desejo não mais marcado pela falta, mas por uma
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produtividade coextensiva ao meio natural-social-histórico; um vasto e complexo inconsciente espinosano distribuído em planos intensivos em Mil Platôs (1980); e nova concepção do que seja ou deva ser a própria filosofia. Sim, o meio deleuziano é um convite para que estejamos atentos a relações de ressonâncias com outros domínios, relações não hierárquicas entre filosofias, ciências e artes, a respeito da ética e dos combates na imanência pela dignificação do viver... É claro que esses oito itinerários pelo meio Deleuze poderiam ser multiplicados. O que nos obriga a perguntar: seria esse meio o de uma dispersão de temas meramente justapostos ou, ao contrário, submetidos a um modelo interpretativo? Nada disso. Nele, qualquer coisa pode forçar o pensamento filosófico a cumprir sua única tarefa: a de sentir e pensar conceitualmente o jogo problemático constitutivo da coisa em seus encontros, o jogo que envolve a diferença e o problema em pauta a cada caso. Tarefa difícil e tematizada de modo exemplar em Diferença e Repetição (1968). É que, a cada instante, o pensamento recai em um jogo antigo, o jogado entre quatro paredes da representação: a identidade do conceito, a analogia do juízo, a oposição dos predicados e a semelhança do percebido. Como subverter esse jogo a cada instante? Tarefa difícil, para a qual o meio deleuziano conta com uma proposição ontológica irredutível a receituários metodológicos: na experiência real dos encontros, todo e qualquer ente se diz univocamente como correspondências problemáticas entre diferenciações virtuais e diferenciações atuais. Assim, a problemática da diferença ganha uma nova imagem do pensamento filosófico.
Gilles Deleuze
A utopia imanente Deleuze foi posto à margem do debate pós-moderno, contudo, inventou suas peças, outras regras, um novo jogo P e t e r P á l P e lb a r t
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pensamento de Gilles Deleuze deu impulso a vários dos termos que circularam na cena filosófica das últimas décadas, tais como diferença, multiplicidade, intensidade, fluxos, virtual, até mesmo simulacro... No entanto, chama atenção a ausência quase absoluta de qualquer menção ao filósofo na bibliografia sobre a pós-modernidade. De Habermas a Jameson, a omissão é tão generalizada que somos obrigados a reconhecer que, diferentemente de Lyotard, por razões óbvias, mas também de Foucault ou Derrida, Deleuze foi posto inteiramente à margem do debate sobre o pós-moderno. Longe de mim deplorar essa situação, muito menos corrigi-la. É preciso partir dessa constatação: Deleuze parece ser carta fora do baralho pós-moderno. Tal situação deve-se ao fato de que ele inventou suas peças, outras regras, um novo jogo. Em vez do xadrez (jogo imperial, guerra institucionalizada), o go chinês: mais próximo da guerrilha, sem afrontamento, no limite, sem batalha. Seria preciso ler seus conceitos como peças de go espalhadas no tabuleiro contemporâneo, movendose de modo intempestivo, em sua alegria própria. Pois em Deleuze não se ouvirão lamúrias ou profecias sobre o fim do sujeito ou da história, da metafísica ou da filosofia, da totalidade ou das metanarrativas, do social, do político, do real ou mesmo das artes. Em Conversações, declarou: “Jamais me preocupou a superação da Metafísica ou a morte da Filosofia, e quanto à renúncia ao Todo, ao Uno, ao sujeito, nunca fiz disso um drama”. Cada um dos conceitos de que a teorização contemporânea faz o luto pomposo, uma vez lançados no plano que Deleuze ajudou a criar, rodopiam, alegremente, em favor daquilo que pedia passagem e que cabe à filosofia experimentar, com base nas forças do presente.
Assim, seu pensamento produziu uma sonoridade filosófica pouco sintônica com a música enlutada do pós-moderno, ou com algumas de suas fontes. Nenhum pathos em relação à origem ou ao destino (do ser, do pensamento, da história, do Ocidente), nenhum ódio ou desprezo pelo mundo, nenhum ressentimento ou culto da negatividade, mas tampouco complacência alguma em relação à baixeza do presente – sobretudo uma abertura extrema ao improvável, à multiplicidade contemporânea e aos processos que ela libera. A tarefa da filosofia consiste, para Deleuze, em elaborar um material de pensamento capaz de captar a miríade de forças em jogo e fazer do próprio pensamento uma força do cosmos. Uma tal prática filosófica tem todos os riscos de ser mal-entendida, sobretudo para quem está habituado a um ponto de vista histórico-filosófico, com base em uma exterioridade crítica ou reflexiva, mas também para aqueles que, ao contrário, contentam-se em descrever com deleite, em um misto de melancolia e volúpia, o niilismo contemporâneo. O exercício imanente em Deleuze traça uma linha transversal na atualidade, nem de exterioridade nem de adesão, recusando a um só tempo o catastrofismo e a complacência, bem como seus efeitos de paralisia ou cinismo. Capitalismo e imanência Mas o que isso significa, nas condições concretas do capitalismo contemporâneo, com o qual a filosofia moderna entretém relações tão necessárias e ambíguas quanto a filosofia antiga com a cidade grega? A resposta mais contundente está no último livro conjunto de Deleuze e Guattari, intitulado justamente O que É a Filosofia?: “A Filosofia leva ao absoluto a desterritorialização relativa do capital, ela o faz passar sobre o plano de imanência como movimento do infinito e
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Perfil biográfico Paul-Michel Foucault (1926-1984)
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celebridade que envolve um autor tão versátil e difícil (assim como o sequestro de sua imagem por generalizações grosseiras) talvez seja o procedimento mais eficaz para ocultar o potencial de suas obras e ideias. Percebendo-se refém de sua celebridade, Michel Foucault afirmou certa vez: “Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo”. A noção de biografia, que tende a cristalizar uma vida e fixar retrospectivamente um destino, era suspeita para o filósofo nascido em Poitiers que, segundo o próprio biógrafo Didier Eribon, no fundo “resiste à experiência biográfica”. O famoso parágrafo final de As Palavras e as Coisas lembrava que as ideias de “homem” e de “sujeito” um dia se desvaneceriam, assim “como, na orla do mar, um rosto de areia”. Com isso, a ideia de biografia também se desvanece. Poderíamos afirmar que a personalidade a um só tempo múltipla e coesa de Foucault reflete a diversidade de seus escritos. Foi aluno na École Normale Supérieure, onde teve aulas com Jean Hyppolite, um dos introdutores do pensamento de Hegel na França. Formou-se em filosofia na Sorbonne e em psicologia. Atuou como professor de psicologia em Lille (França), de filosofia no Collège de France, como professor visitante no Japão e nos Estados Unidos, foi conselheiro cultural em Upssala (Suécia) e Varsóvia (Polônia), fundou o grupo ativista GIP (Grupo de
Informação sobre as Prisões). No Brasil, esteve pela primeira vez em 1965, a convite do professor de filosofia da USP Gérard Lebrun, que havia sido seu aluno no Collège de France. Voltou diversas vezes ao país, onde proferiu conferências que mais tarde se tornariam fundamentais em sua trajetória, como o ciclo “A Verdade e as Formas Jurídicas”, ocorrido na PUC-Rio, em 1973, durante o período dos “anos de chumbo” do governo Médici. Quanto à originalidade de sua obra, poderíamos resumi-la na formação de novos objetos e métodos para o saber filosófico, como a história da sexualidade e da loucura, a crítica genealógica aos poderes institucionais. Sobre sua recepção, poderíamos dizer que ela se manifesta de maneira atuante nos estudos literários e artísticos, na filosofia, na sociologia e no direito, na epistemologia, nas disciplinas “psi” (psicologia, psiquiatria, psicanálise), mas também nas diversas práticas coletivas de contestação, mobilizadas pelo exemplo singular de seu engajamento. Podemos finalmente nos contentar em dizer apenas que todos os campos disciplinares das ciências humanas encontraram na obra de Foucault uma referência incontornável para a compreensão de nosso presente histórico. O arqueólogo que deliberadamente resistiu à “experiência biográfica” acabou por fornecer, em contrapartida, um novo e radical conceito de homem.
Reprodução
Foucault
Perfil biográfico Jacques Derrida (1930-2004)
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ascido numa família judia em El-Biar, na Argélia, Jacques Derrida só se mudou para a França em 1949, quando já tinha 22 anos. Três anos depois, após duas tentativas frustradas, conseguiu iniciar seus estudos na École Normale Supérieure, em Paris (1952), concentrando-se na fenomenologia de Edmund Husserl. A partir de então, deixou de lado a carreira de esportista (já havia participado de inúmeras competições como jogador de futebol). Antes de se mudar para a França, sofreu bastante com a discriminação dos movimentos antissemitas no país africano, chegando a ficar um ano sem estudar por causa da redução da cota, de 14% para 7%, para judeus nas escolas locais, um preconceito que influenciaria muitos de seus escritos futuros. A progressão de seus estudos culminou em trabalhos associados ao pós-estruturalismo: textos que tinham como base seu interesse pela palavra escrita, pelas diversas modalidades do discurso e por sua “desconstrução”. Na primeira metade da década de 1960, Derrida lecionou na Sorbonne, escrevendo diversos artigos sobre a natureza e a história da escrita que, posteriormente, foram publicados no Critique, jornal parisiense. Esses artigos serviram de base para seu influente trabalho chamado Gramatologia (1967). A partir da segunda metade da década de 1960, Derrida dividiu suas atividades entre a École Normale Supérieure e universidades dos Estados Unidos, como as de Yale, Harvard e da Califórnia. Nessa mesma época, aproveitou para
aprofundar o conceito de “desconstrução”, entendendo a linguagem como algo aberto, impuro, que desafia a noção de identidade. Graças a sua popularidade, o conceito de “desconstrução” frequentemente ainda dá margem a controvérsias. Derrida lamentou o destino que o termo recebeu. Mas, como lembra Juvenal Savian Filho em seu artigo neste Dossiê, “desconstrução não significa destruição, mas um modo de desfazer uma estrutura para fazer aparecer seu esqueleto. Em outras palavras, ela equivaleria ao ‘refazer’ algo, no sentido em que se fala, comumente, de ‘refazer’ um caminho”. Até sua morte em Paris, em 2004, Derrida manteve forte atuação política, lutando em favor dos direitos de imigrantes argelinos na França e contra o apartheid, além de fundar a casa Jan Hus, em 1981, para auxiliar dissidentes intelectuais da Tchecoslováquia. Neste mesmo país, foi preso após um seminário clandestino e solto graças à intervenção de François Mitterrand. Buscou sempre consistência entre sua luta política e seus escritos filosóficos. Seus trabalhos são frequentemente citados no âmbito acadêmico, particularmente nas áreas de crítica literária, teoria política e filosofia. Derrida esteve no Brasil três vezes: em 1995, 2001 e 2004. Nesta última oportunidade, pouco antes de falecer, realizou uma conferência intitulada “O Perdão, a Verdade, a Conciliação: Qual Gênero?”, publicada no livro Jacques Derrida: Pensar a Desconstrução (Estação Liberdade).
Jacques Derrida
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