Revista CULT (parcial) - edição 139

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ANO 12

R$ 9,90

www.revistacult.com.br

música Mulheres que ousaram ser compositoras de MPB

resenha

Lançamentos contam a história do design

entrevista O filósofo francês

Jacques

Rancière Não há crescimento da direita, mas sim um desencanto da esquerda

dossiê

QUAL É O SENTIDO DO TRABALHO?

O que a sociologia, a filosofia e a psicologia têm a dizer sobre o trabalho hoje

literatura

filosofia

Livro de Modesto Carone explora a obra de Kafka

Obra-prima de Adorno recebe primeira tradução no Brasil


eDitorial

a orGaniZaÇÃo Do traBalho É uma construÇÃo humana. Deve ser QuestionaDa

No mundo contemporâneo, as relações de trabalho tornamse cada vez mais complexas. As organizações estimulam a competitividade inclusive internamente, entre seus profissionais. O resultado é um mundo individualizado, do “cada um por si” – e a empresa pelos lucros. O psiquiatra francês Christophe Dejours, uma das maiores autoridades mundiais em psicologia do trabalho, escreve no Dossiê deste mês: “Gostaria de sublinhar que as novas formas de organização do trabalho podem e devem ser questionadas. Elas não têm nada a ver com a consequência inevitável de um destino. Toda organização do trabalho é uma construção humana”. E a filósofa gaúcha Suzana Albornoz observa: “Será o trabalho o único modo justo e digno de prover a sobrevivência? Será o modo principal de dar sentido à vida? Será o único ou o melhor meio de alguém se fazer reconhecer como cidadão e como pessoa de bem?”. São essas as questões abordadas nesta edição de CULT. Como sempre, pela palavra de especialistas criteriosamente convidados, com formação acadêmica e muita base para emitir opinião sobre o assunto. Outra filósofa gaúcha, Marcia Tiburi, nossa colunista, presenteia o leitor com um texto magnífico sobre a correspondência entre a insatisfação e a dissimulação nossa de cada dia. É o que ela batiza de neobovarismo. Marcia é uma jovem pensadora, preparada, estudiosa e de uma lealdade comovente. Uma sorte para nós tê-la como colaboradora. O francês Jacques Rancière, professor emérito de estética e política na Universidade Paris 8, tem uma ligação antiga com o Brasil. Sua esposa, Danielle Ancier, lecionou na USP em 1968 e foi aqui que se conheceram, quando Rancière esteve no país para uma conferência. Autor de obras importantes, como A partilha do sensível e O mestre ignorante, entre muitas outras, o filósofo concedeu uma entrevista exclusiva à revista. É mais um destaque desta edição de CULT.

Diretora e editora resp. – Daysi M. Bregantini Diretor de redação – Marcos Fonseca Editor – Eduardo Socha Editor-assistente – Wilker Sousa Repórter – Julia Alquéres Site – Carolina Rossini Revisora – Kiel Pimenta Imagem de capa – Nienke Terpsma Editor de arte – Fábio Guerreiro Assistente de arte – Nícolas Godoy Tradutor – Abilio Godoy Departamento financeiro – Ana Lúcia P. Silva e-mail: financeiro@editorabregantini.com.br Departamento administrativo – Dejair Bregantino Atendimento ao leitor e assinaturas – Herik Krajewski e-mail: assinecult@editorabregantini.com.br Tel.: (11) 3385-3385 Assessoria de imprensa – Andréa Simões e-mail: andrea@attachee.com.br Publicidade em São Paulo: Gilberto Rala (executivo de negócios) e-mail: gilberto@editorabregantini.com.br Júlia Farina (executiva de negócios) e-mail: juliafarina@editorabregantini.com.br Tel.: (11) 3385-3385 Publicidade em Brasília: Front Comunicação – Pedro Abelha e-mail: pedroabelha@terra.com.br Tel.: (61) 3321-9100 Gráfica – Parma Distribuição exclusiva no Brasil (Bancas) – Fernando Chinaglia CULT – REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA é uma publicação mensal da Editora Bregantini Praça Santo Agostinho, 70 – 10º andar Paraíso – São Paulo – SP – CEP 01533-070 Tel.: (11) 3385-3385 – Fax: (11) 3385-3386

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ISSN 1414707-6 – Nº 139 – SETEMBRO/2009 – ANO 12



The State Russian Museum 2009

colaBoraDores Desta eDiÇÃo Suzana Albornoz, professora aposentada de filosofia da FURG (Universidade Federal do Rio Grande). É autora do livro O que é o trabalho (Brasiliense, 1994), entre outros

Gabriela Longman, jornalista e pós-graduanda em história da cultura na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. É colaboradora dos jornais Folha de S.Paulo e Valor Econômico, entre outros Christophe Dejours, psiquiatra e membro do Laboratório de Psicologia do Trabalho do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios de Paris. É autor de A loucura do trabalho (Cortez 2003), entre outros

Marco Aurélio Santana, professor de sociologia da UFRJ. É autor de Sociologia do trabalho no mundo contemporâneo (Mauad, 2006) e organizador de Além da fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social (Boitempo, 2003), entre outros Diego Viana, jornalista e economista. É pós-graduando em filosofia política e estética na Universidade de Nanterre, França

Josélia Aguiar, jornalista e mestre em história cultural pela Universidade de São Paulo. Editou a revista EntreLivros, foi repórter, redatora e correspondente em Londres do jornal Folha de S.Paulo

Norman Lebrecht, escritor e crítico musical britânico. Apresenta o programa lebrecht.live, na rádio BBC. É colunista da revista CULT e autor de Maestro, obras-primas & loucura (Record, 2008)

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cultura em movimento

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Do leitor

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cultura em movimento

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entrevista

Marcia Tiburi, filósofa e escritora. É colunista da revista CULT e autora de Mulher de costas (Bertrand Brasil, 2006) e Filosofia em comum (Record, 2008), entre outros

Vanguarda russa • Cinco peças fundamentais para Newton Moreno • Cartier-Bresson • Tertúlia tradutores • Sonatas de Mozart

Ricardo Antunes, professor da Unicamp. É autor de Adeus ao trabalho? (Cortez, 2009), Os sentidos do trabalho (Boitempo, 2000) e O caracol e sua concha (Boitempo, 2005), entre outros

A associação entre arte e política segundo o filósofo Jacques Rancière

Francisco Bosco, ensaísta e escritor. É colunista da revista CULT e autor de Banalogias (Objetiva, 2007), entre outros Ruy Braga, professor de sociologia da USP e diretor do Cenedic/ USP. Autor de A restauração do capital: um estudo sobre a crise contemporânea (Xamã, 1996), entre outros

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A presença física do livro e o debate sobre qual será sua feição na era digital estão em duas obras que contam a história do design gráfico

Ivan Marques, professor de literatura brasileira da USP. É organizador de Histórias do modernismo (Scipione, 2008) e O espelho e outros contos machadianos (Scipione, 2008)

Pedro Alexandre Sanches, crítico musical e jornalista. É autor dos livros Tropicalismo – decadência bonita do samba (Boitempo, 2000) e Como dois e dois são cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004)

resenha

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literatura – crÍtica Em A teoria do jardim, Dora Ribeiro faz da poesia o reforço de sua identidade


Creative Commons

Ilana Lichtenstein

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entrevista

literatura – lanÇamento

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Livro reúne ensaios escritos por Modesto Carone ao longo de quase três décadas dedicadas ao estudo da obra de Franz Kafka

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mÚsica clÁssica noRMan leBRecHT

A questão judaica na música clássica nos exemplos de Mendelssohn e Mahler

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resenha Uma das obras mais importantes do século 20, Dialética negativa, de Theodor W. Adorno, é publicada no Brasil ensaio Livro de Edward W. Said descreve o “estilo tardio” como o gesto paradoxal de recusa à maturidade e à complacência estética FilosoFia

mÚsica PoPular

PeDRo aleXanDRe sancHes

A trajetória de mulheres que, num ambiente governado por homens, ousaram ser compositoras de MPB

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DossiÊ Qual É o sentiDo Do traBalho?

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O trabalho na balança dos valores por Suzana Albornoz

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Entre o desespero e a esperança: como reencantar o trabalho por Christophe Dejours

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Os dilemas do trabalho no limiar do século 21 por Ricardo Antunes

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De volta à condição proletária por Ruy Braga e Marco Aurélio Santana

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Um operário na academia Entrevista de Michael Burawoy a Ruy Braga

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MaRcia TiBuRi

Neobovarismo: a correspondência entre a insatisfação e a dissimulação nossa de cada dia

DossiÊ

ensaio

FRancisco Bosco

O Haiti (não) é aqui, Dubai também (não) é

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oFicina literÁria


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cultura em movimento

vanguarda

russa

Imagens: The State Russian Museum 2009

Obras de Wassily Kandinsky, Marc Chagall, Vladimir Tatlin, Kazimir Maliévitch e de outros expoentes da vanguarda russa estão em Virada russa – A vanguarda na coleção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, exposição que o Centro Cultural Banco do Brasil traz a São Paulo a partir de 15 de setembro

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om curadoria de Rodolfo Athayde e Ania Rodríguez em parceria com Yevgenia Petrova e Joseph Kiblitsky, do Museu de São Petersburgo, o evento reúne mais de cem obras de 52 artistas, entre telas, esculturas, cartazes e peças de vestuário. “O que nos levou a fazer essa exposição foi trazer uma mostra na qual o público descobrisse fontes de muitas das tendências predominantes na arte hoje”, explica Rodolfo Athayde, curador. A chamada vanguarda russa, ocorrida entre os anos de 1890 e 1930, revolucionou a arte daquele país em diversas manifestações culturais, tais como artes plásticas, literatura, cinema e teatro. O espírito transgressor e o experimentalismo dos modernistas resultaram no construtivismo de Vladimir Tatlin, no abstracionismo de Kandinsky, entre outros movimentos que influenciaram profundamente a arte contemporânea. O período também deixou suas marcas na arte brasileira. A incorporação dos materiais da vida cotidiana à própria obra de arte, característica do construtivismo, inspirou neoconcretistas e contemporâneos brasileiros. Segundo Rodolfo, “esse tipo de pensamento abriu caminho para artistas como Ernesto Neto, que trata seus materiais com um sentido de leveza e suspensão”. Entre os destaques da exposição estão a tela Passeio, de Chagall; o Contrarrelevo de Esquina, de Tatlin; e os quadros geométricos de Maliévitch. VIRADA RUSSA – A VANGUARDA NA COLEÇÃO DO MUSEU ESTATAL RUSSO DE SÃO PETERSBURGO ONDE CCBB São Paulo QUANDO 15 de setembro a 15 de novembro,

de terça a domingo As telas Passeio, de Chagall (alto) e São Jorge, de Kandinsky

ENTRADA FRANCA

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cultura em movimento

tertúlia tradutores

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Fotos: Divulgação

eleitar-se com as aventuras de Dom Quixote montado em seu cavalo Rocinante; conhecer as inquietudes e angústias dos heróis de Dostoiévski; encantar-se com o realismo fantástico de Gabriel García Márquez. A importância dos clássicos estrangeiros na construção do imaginário de leitores mundo afora deve-se, sobretudo, a uma figura por vezes esquecida: o tradutor. Na tentativa de trazer à tona o trabalho desse profissional, o Sesc Pompeia, em São Paulo, promove o encontro Tertúlia tradutores. “O objetivo é lançar luz sobre uma dimensão da literatura que é esquecida”, explica o escritor Tiago Novaes, idealizador do projeto. De setembro a dezembro, grandes nomes da tradução no Brasil falam de seu ofício e aprofundam-se nas obras por eles traduzidas. Boris Schnaiderman e Paulo Bezerra falam dos cânones russos Tolstói e Dostoiévski; Ivan Junqueira discute o mal-estar presente na poesia de Baudelaire; e Modesto Carone descortina o realismo peculiar da prosa de Kafka. Esses são apenas alguns dos convidados. Estarão presentes ainda os tradutores de Virginia Woolf (Leonardo Fróes), Cervantes (Sérgio Molina), García Márquez (Eric Nepomuceno), entre outros. A cada edição, dois atores fazem a leitura dramática de trechos das obras.

Leonardo Froés e Ivan Junqueira: tradutores de Virginia Woolf e Charles Baudelaire TERTÚLIA TRADUTORES ONDE Sesc Pompeia – SP QUANDO 13 de setembro a 13 de dezembro ENTRADA FRANCA

Confira a programação completa no site: www.sescsp.org.br

sonatas de mozart Divulgação

C Clara Sverner: O desejo de balancear a delicadeza de Mozart com a paixão e dramacidade

Mozart por Clara Sverner – Íntegra das Sonatas para Piano Caixa com 5 CDs Azul Music – R$ 89

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hega ao público uma caixa com cinco CDs que reúnem o ciclo integral das “Sonatas para piano”, de Wolfgang Amadeus Mozart (17561791), gravado pela pianista Clara Sverner. O quinto álbum é inédito e contém as quatro últimas sonatas feitas pelo compositor, que são também as mais complexas de todo o ciclo. A pianista, que já gravou Pixinguinha, Villa-Lobos e Chiquinha Gonzaga, é conhecida por dedicar-se não somente à música brasileira, como também aos compositores esquecidos no país, como Glauco Velásquez. Mas, desta vez, sentiu que estava preparada para aprofundar-se nas sonatas daquele que foi um dos maiores compositores da música erudita. “Desde jovem eu sempre tive uma afinidade muito grande com Mozart”, conta. A pianista conta que o trabalho foi longo, mas muito prazeroso. “Mozart na música é como Shakespeare na literatura”, diz. Foram quatro anos de estudo antes da gravação do primeiro CD, que reúne as primeiras sonatas do compositor. “Eu queria dar uma versão pessoal”, explica Clara Sverner. Nos tempos em que se dedicou aos estudos, surpreendeu-se ao conhecer um lado audacioso em Mozart. “Comecei a ver ressonâncias já na primeira sonata, coisa que não era comum naquela época”, conta. A partir de então, trabalhou na tentativa de “balancear a delicadeza de Mozart com a paixão, a dramaticidade e o romantismo dele”.


J a c q u e s R a n c i è R e entrevista

Partilha do sensível A associação entre arte e política segundo o filósofo Jacques Rancière g aBRiela l ongMan e D iego V iana F oTos : i lana l icHTensTein

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ara Jacques Rancière, política e arte têm uma origem comum. Em suas obras, o filósofo francês desenvolve uma teoria em torno da “partilha do sensível”, conceito que descreve a formação da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais. A política, para ele, é essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. Por isso, um regime político só pode ser democrático se incentivar a multiplicidade de manifestações dentro da comunidade. Recém-lançado na França, seu último livro, Le spectateur émancipé (O espectador emancipado – ainda inédito no Brasil), debate a recepção da arte e a importância – ética e política – da posição do espectador. O volume é uma compilação de conferências realizadas por ele nos últimos anos, uma delas no Sesc, em São Paulo. Em 2002, uma de suas principais obras, O mestre ignorante, foi traduzida e distribuída gratuitamente entre professores em formação no Rio de Janeiro. Trata-se da história de Joseph Jacotot, que, no século 19, ensinou a língua francesa a jovens holandeses da classe operária. Detalhe: nem mesmo o professor conhecia o idioma de Zola. Originalmente discípulo do filósofo marxista Louis Althusser e coautor de Ler O capital, de 1965, Rancière afastou-se do pensamento do mestre nos anos 1970. Rejeitou a ortodoxia marxista da época, mas jamais deixou de se considerar um homem de esquerda. Até se aposentar em 2000, foi professor da Universidade Paris 8, fundada para acolher formas de pensamento que não encotravam espaço no ambiente da Sorbonne. Sua ligação com o Brasil é antiga. Sua esposa, Danielle Ancier, era professora de filosofia na USP em 1968. Eles se conheceram quando ele esteve no país para uma conferência sobre Ler O capital. O filósofo nos recebeu em seu apartamento no nono arrondissement parisiense. Perto de completar 70 anos, afirma que “o presente não é muito alegre”, mas critica as visões saudosistas de parte da esquerda. Defensor do ativismo social, ele comenta a ascensão dos ecologistas e questiona a ideia de um mundo dominado por imagens. Convidado para um colóquio no Rio de Janeiro pelo Ano da França no Brasil, ele recusou em função de um conflito de agenda, mas concendeu a seguinte entrevista para a CULT.

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Rancière – Não definimos a obra de arte como “obra”. O que eu digo, no fundo, é que uma forma de arte é sempre ligada à dignidade dos temas. O romance torna-se grande arte quando a vida de qualquer um se tranforma em arte. A fotografia no cinema não é só uma forma de mostrar o visível, mas mostra que uma cena de rua ou a vida de qualquer pessoa tem direito de ser citada na arte. A partir do momento em que tudo é representável, não há mais especificidade. A especificidade não será dada, enfim, pela técnica em particular, mas pelos códigos de apresentação. Mais uma vez, não creio que haja uma radicalidade nova. Há algumas décadas, as análises de Arthur Danto vieram dizer que somente a instituição é quem faz a obra de arte. De certa maneira, isso sempre foi verdadeiro. A “representação da representação” ligada a certo tipo de procedimento ou de instituição sempre foi necessária para identificar uma coisa como pertencente ao universo da arte. CULT – Mas, hoje, mesmo uma grande parte do público questiona o fato de estar vendo “arte”. Não há uma maior distância entre a apresentação e a recepção? Rancière – Vivemos hoje em dia a contradição máxima, qualquer coisa pode entrar na esfera da arte. Mais do que nunca, a arte, hoje, se constitui como uma esfera à parte, com as pessoas que a produzem, com as instituições que a fazem circular, seus críticos. Numa época em que os afrescos de uma igreja eram o que se considerava arte, essa questão simplesmente não se colocava, porque a arte não existia como instituição. É a contradição constitutiva do regime estético. CULT – A última Bienal de São Paulo tinha um andar inteiramente vazio, simbolizando o vazio na arte. Como podemos interpretar esse vazio? O senhor fala do fim da arte utópica. O vazio seria a arte “atópica”? Rancière – Podemos fazer o vazio significar várias coisas. Há artistas que organizam retrospectivas de suas obras, e o que vemos? Nada. Há apenas guias que falam. Há muitas possibilidades. Podemos conceber uma exposição sobre o tema do vazio no modernismo duro. Ou então imaginar uma exposição pós-moderna desencantada “mostrando o vazio porque a arte contemporânea é vazia”. Ou ainda criar uma exposição em termos concei-

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entrevista J a c q u e s R a n c i è r e tuais, em que efetivamente substituímos as obras pelo discurso sobre as obras, e assim por diante. Mas a verdade é que eu nunca estou muito interessado por esse tipo de estratégia. Se partimos da ideia de que não há nada, é preciso mostrar que não há nada, e mostrar que o que há não vale nada, e assim por diante. São estratégias eficazes, mas não tão interessantes. Quando não sabemos muito bem como qualificar algo, sempre podemos fazer uso do “vazio”. Eu me lembro da Bienal de Veneza de dois anos atrás, em que havia uma multiplicidade de obras neo-naïf, neoexpressionistas, como iconografia provocante. Há multiplas estratégias. CULT – O senhor critica muitas vezes a separação a priori entre atividade e passividade. Nesse contexto, como analisa as tecnologias colaborativas que estão surgindo na atividade artística? Rancière – O que digo não é especialmente ligado à arte colaborativa. Em primeiro lugar, toda atividade comporta também uma posição de espectador. Agimos sempre, também, como espectadores do mundo. Em segundo lugar, toda posição de espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que desvia o sentido do espetáculo. É minha tese global, que não está ligada só a uma arte interativa. Todas as obras que se propõem como interativas, de certa maneira, definem as regras do jogo. Então, esse tipo de obra pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está diante do espectador e com a qual ele pode fazer o que bem entender. Podemos dizer, então, que as obras estão no museu, na galeria, na internet, e o espectador é convidado a colaborar. Mas isso é só mais uma forma de participação, e não necessariamente a mais interessante. CULT – O senhor recupera o lado político da literatura, graças a seu poder de reconfigurar os modos de existência, e evoca a passagem de Aristóteles em que ele diz que o ser humano é político porque possui o logos, ou seja, é capaz de fazer discursos. Hoje, os meios de publicação tradicionais, jornais, editoras etc. estão ameaçados por formas como blogs e redes sociais. Que tipo de mudanças podemos esperar na vida política com essas novas formas? Rancière – Isso depende de até que ponto a internet define uma escritura específica. Para mim, na

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verdade, a internet define essencialmente apenas um modo específico de circulação da informação, que não nega as formas anteriores da escrita. Dá para consultar, numa infinidade de sites, as obras clássicas da literatura e da filosofia, ao mesmo tempo em que existe a linguagem SMS. Tudo circula, cada vez mais rápido e com mais facilidade: da linguagem minimalista dos SMS aos livros todos, digitalizados pelas grandes bibliotecas. Muitas vezes, recuperam-se livros que não podem mais ser encontrados no papel. Desconfio sempre desse discurso de que o Google vai matar o livro. Não há motivo, porque podemos ler livros no Google. Para pensar essa questão da política e da literatura na era da internet, precisamos primeiro pensar nas relações entre tipos de mensagem. A internet é, para mim, um suporte que não vem associado a um tipo de mensagem particular. Portanto, não deve causar grandes mudanças. É diferente do que aconteceu com a chegada do cinema, por exemplo. Podemos constatar que a literatura não tem hoje o papel que tinha no século 19. Apesar do número enorme de romances publicados, poucos são os que remodelam a imagem do indivíduo e da comunidade. Esse papel foi


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L i t e r at u r a

Lições de Modesto Carone Livro reúne ensaios escritos ao longo de quase três décadas dedicadas ao estudo da obra de Franz Kafka Wilker Sousa

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Divulgação/Adriana Vichi

ensaio intitulado “Franz Kafka e o mundo invisível”, escrito por Otto Maria Carpeaux em 1942, é considerado o marco inicial da recepção crítica da obra do escritor tcheco no Brasil. Passados dez anos, em 1952, coube a Sérgio Buarque de Holanda ampliar os horizontes críticos por meio do ensaio “Kafkiana”, publicado nas páginas do Diário Carioca. A abordagem mais voltada propriamente à técnica de composição viria anos depois, na década de 1960, com Anatol Rosenfeld. Para Modesto Carone, tradutor brasileiro da obra de Kafka, esses são os momentos centrais da fortuna crítica do autor no Brasil, a qual considera insuficiente, se comparada à de outros países. “Até onde eu enxergo, a fortuna crítica de Kafka no Brasil é pequena. É claro que várias pessoas analisaram aspectos parcelados, pequenos. Antonio Candido, por

Modesto Carone: “O melhor que o tradutor tem a fazer é ficar próximo à letra, sem, no entanto, se deixar iludir pelo comodismo da liberdade”

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exemplo, escreveu um livro chamado Quatro esperas (1990), mas não é uma avaliação de conjunto”, explica à CULT. Ante essa lacuna, e após quase 30 anos dedicados à tradução e à análise da obra kafkiana, Modesto Carone decidiu reunir ensaios, prefácios, textos produzidos para conferências, além de outros inéditos, e publicá-los em livro. Com texto fluido e envolvente, Lição de Kafka esmiúça as particularidades da poética kafkiana, além de presentear o leitor com reflexões acerca dos desafios impostos pelo ofício da tradução. Realismo às avessas Ao visitar uma exposição de pintores cubistas em Praga no início do século passado, o jovem poeta tcheco Gustav Janouch comentou com seu mentor Kafka que Picasso distorcia deliberadamente as formas. Em resposta ao amigo, Kafka disse que o pintor espanhol apenas registrava “as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”. A análise perspicaz preconizava um aspecto hoje comum à arte: a superação das formas tradicionais, em busca de um novo realismo. Tal raciocínio foi incorporado à sua literatura, de modo que em sua prosa “as deformações são precisas”, como analisou Walter Benjamin. Ao contrário daqueles que inserem o autor de O processo na chamada literatura fantástica, Modesto Carone o associa ao realismo, porém não àquele praticado no século 19, cujo narrador onisciente sabe de tudo o que se passa à sua volta. “Para mim, Kafka é um autor realista, mas um realista não convencional. Ele criou uma nova forma para dar conta de uma nova realidade, pois o mundo havia se tornado tão obscuro, tão insolúvel, que ele deveria fazer uma construção literária para dar conta literariamente daquilo. Então ele inventou um narrador que não sabe, e esse narrador somos nós”. Por meio de uma prosa límpida, oriunda da linguagem de protocolo, Kafka narrou o insólito, como a terrível metamorfose sofrida por Gregor


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Kafka: um realista não convencional

Samsa. “Esta é uma característica definitiva em sua obra: a colisão entre a clareza absoluta da linguagem e o assunto opaco.” Um programa a ser seguido Em meados dos 1960, quando ingressou no curso de letras da USP, Modesto Carone planejava estudar literatura anglo-americana. Contudo, as aulas ministradas por um professor berlinense fizeramno mudar de planos e dedicar-se aos estudos de língua e literatura alemãs. Em vez de ensinar a gramática de modo convencional, o professor utilizava textos literários, acessíveis do ponto de vista formal, o que despertava maior interesse por parte dos alunos. Em uma das aulas, o texto analisado foi a parábola Diante da lei, de Kafka. As orações incisivas e a narrativa protocolar aliadas à inventividade do escritor tcheco encantaram o jovem

aluno. Era o convite ao universo kafkiano. Tempos depois, Modesto partiu para a Áustria, onde estudou no Instituto de Tradutores e Intérpretes da Universidade de Viena, aprofundando-se nos estudos da língua alemã. Nos anos 1980, já de volta ao Brasil, decidiu embrenhar-se na tradução da ficção de Kafka. Por ocasião do centenário de nascimento do escritor, em 1983, Modesto foi convidado pelo jornal Folha de S.Paulo a escrever um ensaio que viria acompanhado de algumas traduções. Aqueles primeiros textos tornaram-se o embrião de seu vigoroso projeto. As traduções até então disponíveis no mercado brasileiro, além de não serem feitas diretamente do idioma original, continham erros crassos. “Recordo-me que, em uma das edições, em vez de ‘bando de gralhas’, publicaram ‘enxame de urubus’, algo inacreditável”, comenta. Ciente de que toda tradução, por mais escrupulosa que seja, é sujeita a perdas inevitáveis, Modesto Carone pormenoriza alguns dos desafios enfrentados por ele ao longo dos anos dedicados à obra kafkiana. No ensaio “Alguns comentários pessoais sobre a tradução literária”, Modesto cita o início de A metamorfose, no qual três expressões negativas prefiguram o clima ruim da novela (unruhig, ungeheuer e Ungeziefer, todas com a partícula negativa “un”). Em português, porém, só foi possível traduzir literalmente a primeira, resultando em “intranquilo”. As demais (ungeheuer e Ungeziefer, que significam “monstruoso” e “inseto daninho que ataca pessoas”) não encontram paralelo de negação em língua portuguesa. As perdas são significativas, na medida em que, etimologicamente, tais expressões remetem às noções de “não familiar” e “animal inadequado, que não se presta ao sacrifício”, aspectos intimamente ligados à trajetória do protagonista, Gregor Samsa. Enfrentar tais desafios requer acuidade e, sobretudo, paciência. Questionado sobre a razão de estudar exclusivamente o mestre tcheco ao longo de tantos anos, Modesto Carone é objetivo e, a exemplo do narrador kafkiano, desconhece os porquês: “É um mistério que não consigo desvendar”. Lição de Kafka Modesto Carone Companhia das Letras 144 págs. R$ 29,50

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Ensaios

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Testamentos de um exílio enigmático Livro de Edward W. Said descreve o “estilo tardio” como o gesto paradoxal de recusa à maturidade e à complacência estética Eduardo Socha

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apatia quase protocolar de boa parte dos intelectuais contemporâneos em relação à música de vanguarda é compreensível até certo ponto. Razões internas à própria história da música, como o encapsulamento formal da linguagem em torno de si própria (ocorrido principalmente a partir da atonalidade) e a cooptação da música popular pela indústria do entretenimento explicam apenas de maneira parcial essa indiferença. Afinal, no cinema, no teatro, na literatura ou na pintura, o século 20 também testemunhou uma espinhosa e difícil evolução em seus respectivos modos de expressão. Entretanto, ao contrário do que acontece com a música, a apatia (ou o desconforto) aqui tende a não existir. Se nomes como Godard, Beckett, Joyce e Pollock transitam livremente pela vida letrada como notórias figuras de transgressão em seus domínios, esse trânsito parece bloqueado para artistas igualmente fundamentais da cultura ocidental como Alban Berg e György Ligeti. No contexto nacional, Gilberto Mendes detectou o fenômeno com bastante precisão: “Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são seus artistas preferidos, ele responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Bergman, Glauber Rocha... e Caetano Veloso, Chico Buarque. Nem mesmo Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso tempo não existe para a classe culta brasileira”. Tal indiferença generalizada, diga-se de passagem, não se restringe ao caso brasileiro. Adorno já procurava expor as razões estruturais para o divórcio entre a

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Divulgação

O crítico palestino Edward W. Said: “estilo tardio” como forma de exílio do artista

produção da vanguarda musical e sua recepção no sistema da cultura. Para o elitismo renitente e corrosivo de Adorno, todavia, seriam precisamente o interesse e as análises de obras musicais que forneceriam o estofo a reflexões filosóficas consistentes, de modo que a música, em vez de ser reduzida ao mero divertissement, converte-se em solo fértil de conhecimento. Se a franqueza perturbadora e quase obscena, o refinamento acalorado, as frases desconcertantes e o alcance crítico da escrita de Adorno não encontraram precedentes na história da filosofia, isso se deve em boa parte à sua relação com a música. Evasão do tempo A coleção de ensaios, lançada agora no Brasil, do crítico de origem palestina Edward W. Said (19352003) apenas confirma a centralidade da reflexão musical adorniana para além do domínio exclusivamente musical; a começar já pela expressão que dá título ao livro – “estilo tardio” é um conceito desenvolvido por Adorno no pequeno ensaio sobre as obras do terceiro período de Beethoven (as cinco últimas sonatas para piano, os seis últimos quartetos, a Missa solemnis e a Nona sinfonia). Said, que foi professor de literatura comparada em Columbia (Nova York) e pianista competente, tornou-se conhecido pelo engajamento a favor da causa palestina e pelo livro Orientalismos, no qual discutia a imagem caricatural do Oriente forjada secularmente pela cultura ocidental. Em Estilo tardio, porém, a referência política aparece de maneira transversal – na realidade, aparece com feições episódicas no ensaio sobre o escritor francês Jean Genet, em que se apresenta a relação com o Oriente Médio e a política árabe. Publicado originalmente em 2006, três anos depois da morte de Said, o livro de sete longos ensaios examina o caráter de obras tardias de artistas tão diferentes como Thomas Mann, Jean Genet, Konstantinos Kaváfis, Glenn Gould, Luchino Visconti, além do próprio Adorno, o interlocutor “saturado de cultura” que permanece implícito ao longo do livro.


Seria necessário esclarecer aquilo que, para Said, não é o “estilo tardio” desses pensadores e artistas: não é o coroamento resignado de uma vida de produção intensa destinada a finalmente encarar a proximidade da morte, não é a consequência madura de um pensamento satisfeito consigo próprio, nem o acordo subjetivo com as normas sociais e estéticas estabelecidas de sua época. Ao contrário, é antes um tipo de postura criativa que, afastada das tradições e intolerante ao “tom afável ou oficial” de época, abandona o preceito da expressividade e inibe toda possibilidade de síntese. As obras tardias, contraditórias e não reconciliadas com as obras anteriores “constituem uma forma de exílio”, como defende Said, um exílio radical que obriga à evasão do tempo. Mas, se artistas como Strauss, Gould e Lampedusa “transitam na contramão dos grandes códigos totalizantes da cultural ocidental e da difusão cultural”, isso não significa dizer que o estilo tardio corresponda a uma rebeldia cega contra todas as convenções. Pois há casos, como os de Beethoven e Strauss, em que o estilo tardio é justamente perturbador por sua adesão quase primitiva às convenções: convenções e fórmulas prontas transformam-se nesses casos em “representação nua delas mesmas”. Como se estivessem livres do controle do compositor, como se o compositor abandonasse a obra pela metade e deixasse o clichê falar por si, a mais vulgar retórica musical emerge de forma arbitrária. Said exemplifica com o tema inicial da Sonata nº 31 opus 111, uma das últimas de Beethoven. O tema, apresentado de maneira “desajeitada”, de escrita imperfeita, recebe um acompanhamento insistente e “rasgadamente primitivo”, e portanto incompreensível na pena rigorosa de Beethoven. Dando a impressão de ser um “material não processado”, contrastava com a força do desenvolvimento temático e a clareza irresoluta do compositor da Quinta sinfonia.

O desvelo crítico de Said procura mapear as diferentes formas de exílio do estilo tardio, mas não se propõe a fazer disso uma “teoria geral”. A ópera Ariadne auf Naxos, de Richard Strauss, a releitura das Variações Goldberg por Glenn Gould, o poema A cidade, de Kaváfis, o romance O leopardo, de Lampedusa, são obras que possuem o denominador comum da intransigência; no entanto, o conceito mesmo de intransigência padece de um contínuo deslocamento semântico, que Said não hesita em acompanhar com erudição e coloquialidade. Em que pesem os ensaios sobre Genet, Kaváfis, Lampedusa e Visconti (na capa da edição feita pela Companhia das Letras aparece estranhamente também “Samuel Beckett”, nem sequer mencionado nos ensaios do livro!), o centro de gravidade da obra está mesmo na música (a julgar pelas considerações exaustivas a respeito de Mozart, Beethoven, Britten, Strauss e Gould). Também pelo veio da música (em especial a de Arnold Schoenberg), surgem as páginas, provavelmente as melhores do livro, dedicadas à prosa e ao estilo da ensaística de Adorno. Nelas, encontramos as coordenadas necessárias para entender o incômodo que ainda hoje sentimos ao ler Adorno, não apenas por seu estilo exigente (cuja dificuldade é popularmente exagarada), nem pelo “diletantismo inspirado” que pressupõe os privilégios de uma sólida formação cultural, mas, sobretudo, pelo “pendor miniaturista para o detalhe cruel: ele procura e acha a última mácula, a ser contemplada com um risinho de satisfação pedante”, independentemente do assunto a ser tratado. Adorno, profundo conhecedor de palavras e sons, não realizava concessões didáticas nem permitia que questões técnicas travassem seu argumento. Nisso residia talvez o maior protesto de seu estilo tardio: diante das esperanças ilusórias de uma sociedade crecentemente administrada, resta a solenidade intransigente como característica do pensamento autêntico.

O elitismo de Adorno Seria esse “descuido” o sintoma de uma intervenção psicológica provocada pela iminência da morte? Não, pois a morte, no estilo tardio assim como na arte, aparece apenas “como refração, como ironia” ou alegoria – a obra em si nunca morre. O estilo tardio não é grito de morte, não é o distanciamento desesperado do mundo, o protesto de um não que seria reiterado na história da arte. Se fosse apenas isso, o estilo tardio não passaria de uma obviedade desinteressante. Há algo de construtivo e inédito no gesto tardio que permanece em aberto, como um enigma para a posteridade.

Estilo tardio Edward W. Said Trad.: Samuel Titan Jr. Companhia das Letras 194 págs. R$ 59

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Filosofia

Marcia Tiburi

Neobovarismo A correspondência entre a insatisfação e a dissimulação nossa de cada dia

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virtual sem ser visto no real que carrega por trás. A afirmação do real não vem ao caso no jogo da internet. Afinal, in-lusio significa entrar em jogo.O avatar entre nós promete essa mágica. E quem não gostaria de dominá-la? Dissimulação Crianças são incentivadas a criar seu avatar – corpos, cabelos, cor da pele, cor dos olhos, roupas, moradias, profissões, gostos, objetos de uso pessoal... –, fazendo dele o outro que o si mesmo almeja ser: o idealizado, o “pertencente a uma tribo” ou o mero sinal, o design, o ícone. O bonequinho – como um botão que substitui o ego – que permite “interagir”. Está em jogo também o destino do que um dia se chamou de “representação”. A internet não é mais o lugar de “representações”, uma categoria que servia para explicar tanto a política quanto a estética. Ela é o lugar de “simulações”. Podemos dizer que por trás de toda representação há um irrepresentado, algo que não se contempla, que escapa, que fica de fora no esforço de exposição e de demarcação daquilo que se tem a dizer por meio da representação. Essa sobra é o real. Pode haver enganação na representação, quando al-

Divulgação

ovarismo” é a expressão criada por Jules de Gaultier para explicar a insatisfação com a própria vida característica de Madame Bovary, heroína do romance de Flaubert que aprendeu nos livros a se iludir sobre a possibilidade de ser outra. O fim de Emma Bovary foi o suicídio, em explícita fuga do real. Bovarismo é, desde então, a postura daquele que, se negando a viver a própria vida, sonha com outra. O bovarista viveria como se fosse o protagonista de um romance. Antes da morte, para Emma, havia o livro, a única mídia sobre a qual Flaubert podia instaurar sua história em que a questão da função da ficção na vida estava em jogo. Desde as ilusões de Emma podemos tentar compreender nossa cultura em que o livro é esquecido dando espaço ao cinema e à televisão. Perguntar qual teria sido o destino da moça sonhadora em nossos tempos hiperpublicitários, em que toda insatisfação é resolvida com o tapa-furo existencial da mercadoria, não é absurdo. O que ela faria nestes tempos do prestígio da internet como domínio fantasmático? Para além da literatura, do lado de cá da ficção que chamamos ainda por convenção de “real”, devemos dizer que os integrados a esta cultura hipertecnológica são avatares de Emma Bovary. O termo “avatar” provém do hinduísmo e significa uma encarnação de um deus em forma humana ou animal. Em sânscrito é a descida do Céu à Terra. É tão curioso quanto lógico que o termo tenha feito carreira no universo do entretenimento tecnológico. Chamam-se Avatar um desenho animado de televisão e um jogo de videogame. São a representação gráfica de um usuário no contexto da realidade virtual. O avatar é uma espécie de selo. Alguém que queira usar jogos ou brincadeiras ou simplesmente se expressar por meio de um ícone na internet deve necessariamente criar seu avatar. Alguns sites falam em “alter ego virtual”, outros apenas incentivam o usuário a trocar a própria foto em contextos como chats, MSN, Facebook, Orkut, Twitter, nos quais alguém precise se apresentar. Avatar é algo que apresenta e, em seu caráter de máscara, fala, de certo modo, por quem se apresenta. Vale como brincadeira. O paradoxo do avatar é o seu próprio prazer, que por meio dele alguém se apresente sem se apresentar. Como máscara virtual, o avatar permite entrar no

Emma Bovary: A personagem foi interpretada no cinema por Jennifer Jones, em 1949 40

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guĂŠm tenta representar aquilo que nĂŁo ĂŠ. A simulação pode ser um modo de fazer arte de computador, mas quando ela chega Ă vida concreta as coisas podem se complicar. Simular ĂŠ recriar o real sem que se esteja a representĂĄ-lo. Se o real comparece na representação como uma alusĂŁo, na simulação ele ĂŠ a novidade. No entanto, se ao representarmos nos referimos ao real como algo que foi imitado ou alterado, na simulação o real ĂŠ desconsiderado como o que em nada surpreende. Por trĂĄs da simulação hĂĄ, portanto, o que se dissimula, mas nĂŁo saber disso faz parte do jogo. Quando escondemos algo, deixamos de impor abertamente, manifestamos tĂŁo somente, como que por viĂŠs, aquilo que nĂŁo pode ser dito no “olho no olhoâ€?. Dissimular ĂŠ um desvalor em um contexto que valoriza a verdade, mas se simular tornouse Ăłbvio ĂŠ porque algo como a “verdadeâ€? jĂĄ nĂŁo importa. Capturar a dissimulação em pessoas com quem convivemos ĂŠ muito difĂ­cil, mais ainda no discurso de quem conhecemos sĂł pela internet. No começo da modernidade, Torquato Accetto defendeu a ideia de uma “dissimulação honestaâ€? como a necessidade, prĂłpria do carĂĄter precĂĄrio da condição humana, de adiamento da verdade na esfera pĂşblica. NĂŁo seria necessariamente a sustentação da mentira, mas um jeito de sobreviver em um mundo de paixĂľes. Um mundo que deseja a honestidade, mas ao mesmo tempo a teme e, portanto, se especializa em contatos indiretos com ela. Caillois defendeu o mascaramento como uma prĂĄtica lĂşdica prĂłpria da vida humana e animal. Sem moralismo, enquanto simular ĂŠ mostrar o que nĂŁo estĂĄ presente, dissimular ĂŠ nĂŁo deixar aparecer aquilo que estĂĄ presente. O dissimulado disfarça, mas o que pode ver? Para alĂŠm do prazer de usar mĂĄscaras, ou de fingir, ou de atuar, ĂŠ, para muitas pessoas, a Ăşnica chance de viver uma vida menos insatisfatĂłria. O neobovarismo seria a chance de ser a expressĂŁo do que nĂŁo se ĂŠ. Seria tambĂŠm a inexpressĂŁo pessoal que encontra um jeito de nĂŁo aparecer? Mutilação existencial A hipervalorização da vida privada como algo passĂ­vel de “apariçãoâ€? (blogs, fotologs,

videologs, culto Ă s celebridades ou a si mesmo) corresponde ao extermĂ­nio do espaço pĂşblico que se sustenta em caricaturizaçþes da polĂ­tica, da arte e do prĂłprio conhecimento. Essa hipervalorização resulta de uma espĂŠcie de mutilação existencial. A privação de biografia leva Ă caricaturização da vida privada. A experiĂŞncia pessoal nĂŁo aparece na parafernĂĄlia impressa ou virtual senĂŁo como fantasmagoria. A biografia da qual somos privados ressurge em sua versĂŁo larval nesses meios como promessa de identidade, de inserção, de contemplação por parte do outro. O outro ĂŠ alguĂŠm a ser enganado fundamentando a minha esperteza. Afinal, sou “avatarâ€?, tenho uma encarnação virtual com a qual ataco e me protejo. Cada um estĂĄ facilmente desincumbido de ser ele mesmo atĂŠ quando faz guerrilha psĂ­quica. Ao mesmo tempo em que avança a caricaturização da privacidade por suas representaçþes nos meios de comunicação e atĂŠ pelas artes que incorporaram o princĂ­pio do reality show (vide as obras confessionais de Catherine M., de Sophie Calle – atualmente no Sesc Pompeia, de SĂŁo Paulo – e de seu ex-namorado GrĂŠgoire Bouiller), vemos crescer o aumento da clandestinidade na polĂ­tica (vide os “atos secretosâ€? perpetrados pelo Senado brasileiro em estado de putrefação neste ano de 2009). Enquanto Catherine M. confessa todas as suas aventuras amorosas, as traz a pĂşblico, os polĂ­ticos escondem o que seria direito de todos saber. Saberemos de algumas coisas, mas apenas enquanto forem capturadas e mais ou menos espetacularizadas pelos meios de comunicação. Enquanto isso, neobovaristas, nem artistas, nem polĂ­ticos, criamos nossos avatares. Bem mais fĂĄcil do que reiventar a vida real. É a contemplação de si mesmo que estĂĄ em jogo quando entra em cena a mĂĄscara que barra qualquer relação com o espelho. Sua falta ĂŠ a Ăşnica certeza real. Bovaristas na internet, temos o sonho inteiro Ă nossa disposição, enquanto o real apodrece sem que o computador nos deixe sentir seu cheiro.

DIFĂ?CIL ESCOLHER QUAL LER PRIMEIRO. AINDA BEM QUE A DĂšVIDA NUNCA FOI PROBLEMA PARA QUEM GOSTA DE FILOSOFIA.

SÉRIE INTRODUĂ‡ĂƒO Os maiores especialistas mundiais nos mestres da filosofia apresentam as ideias principais e as grandes contribuiçþes de Kant, Descartes e AristĂłteles. VocĂŞ pode escolher um sĂł, mas os pensadores concordariam: levar a sĂŠrie ĂŠ uma sĂĄbia decisĂŁo.

marcia.tiburi@terra.com.br

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WWW ARTMED COM BR s


Dossiê Desprezado e enaltecido no plano moral, o trabalho passou por transformações conceituais cuja história, da Antiguidade ao mundo pósindustrial, ainda está longe de ter um fim s uzana a lbornoz

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ENTRE O DESESPERO E A ESPERANÇA: COMO REENCANTAR O TRABALHO?

Para a psicologia social, o reconhecimento é o fator que permite transformar o sofrimento em prazer; resta saber como e por que as formas atuais de organização precisam ser alteradas para que isso ocorra c hristophe d ejours

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OS DILEMAS DO TRABALHO NO LIMIAR DO SÉCULO 21

Do subemprego à exploração infantil, a situação contemporânea do trabalho exige uma reflexão à altura daquela relacionada ao meio ambiente r icardo a ntunes

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DE VOLTA À CONDIÇÃO PROLETÁRIA

Apesar de seu obscurecimento no espaço público, a questão operária continua central para os estudos sociológicos do trabalho r uY b raga

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e

m arco a urélio s antana

UM OPERÁRIO NA ACADEMIA

Michael Burawoy, sociólogo da Universidade de Berkeley, conta sua experiência de 20 anos como operário e mostra como ela permitiu sua posterior revisão do marxismo

Creative Commons/Lewis Hine

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O TRABALHO NA BALANÇA DOS VALORES


Para onde vai o mundo do

trabalho? E

stamos habituados a compreender o conceito de trabalho humano simplesmente como atividade econômica. A centralidade desse conceito, tomado nessa dimensão, é hoje tão debatida nas instituições empresariais, sindicais, acadêmicas e governamentais que aquilo que poderíamos chamar de “essência do trabalho” acaba sendo deixado em segundo plano. Para o filósofo alemão Herbert Marcuse, entretanto, a colonização da teoria econômica sobre a totalidade desse conceito nos faz perder o significado geral, mais abrangente, do que representa o trabalho no âmbito da existência humana. Pois, como Marcuse e muitos autores sustentam, existe uma definição de trabalho que é anterior à acepção comum, ligada à produtividade; uma definição que não vê o trabalho apenas como atividade econômica, mas como categoria histórica de um “acontecer” fundamental à nossa presença no mundo. A busca por essa definição nunca esteve tão atual. Por um lado, a recente crise financeira nos exorta a uma reavaliação das condições reais do trabalho, deterioradas nos últimos anos. Por outro, exige de nós a compreensão teórica dos rumos do trabalho no século 21. O dossiê CULT procura apresentar sumariamente esses dois aspectos. Suzana Albornoz resume, no primeiro ensaio, o desenvolvimento da ideia de trabalho na história da filosofia, chamando atenção para alguns momentos relevantes da trajetória desse conceito. O psicanalista francês Christophe Dejours, hoje um dos maiores especialistas em psicologia do trabalho no mundo, analisa os modos contemporâneos da organização do trabalho e as doenças vinculadas a esses modos, encontrando no reconhecimento a chave para a verdadeira satisfação psíquica. Ricardo Antunes enumera os impasses do emprego no Brasil e no mundo, como a redução das garantias sociais e a degradação das condições de trabalho. Ruy Braga e Marco Aurélio Santana apresentam a situação atual do sindicalismo e apontam para formação de um novo proletariado, o infoproletariado, cuja imagem simbólica seria a do operador de telemarketing. Por fim, Ruy Braga entrevista o sociólogo britânico Michael Burawoy, professor da Universidade de Berkeley (EUA), que fala de sua experiência como operário por mais de 20 anos em países como a Zâmbia, os EUA e a Rússia, e de como ela reorientou sua visão teórica sobre o trabalho.

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Dossiê

Qual

é o sentido do trabalho?

O trabalho na balança dos valores Desprezado e enaltecido no plano moral, o trabalho passou por transformações conceituais decisivas cuja história, da Antiguidade ao mundo pós-industrial, ainda está longe de ter um fim S uzana A lbornoz

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eria ilusão imaginar que o conceito de trabalho na história do pensamento ocidental evoluiu por uma linha coerente, apenas modificada neste ou naquele ponto da transformação socioeconômica, política ou religiosa. A experiência do trabalho como esforço para prover a sobrevivência e enfrentar os desafios cotidianos tem acompanhado a humanidade desde seu aparecimento, e nas mais diversas culturas teceram-se modos de sentir e pensar sobre o trabalho. Na encruzilhada de culturas que conviveram em torno do Mediterrâneo e do Atlântico, do século de ouro da Grécia até o começo do 21, o conceito apresentou um movimento que neste texto será indicado apenas de passagem. Os preconceitos gregos encontraram alguma expressão no texto dos filósofos, como na teoria da atividade criadora de Aristóteles: o artesão é causa motriz da produção, sendo causa material a matéria sobre a qual opera, e causa formal e final o modelo ou finalidade que inspira a criação e aparece na obra acabada. Porém, embora na Antiguidade se encontrem pensamentos sobre a atividade criadora e o tema comece a tomar importância na modernidade entre reformadores e humanistas, o trabalho só se afirmaria como objeto da filosofia na época industrial, quando novas situações políticas, econômicas e sociais mudam a relação com a tradição.

Da dialética senhor-escravo à condição humana

No século 19, o trabalho estava subentendido nas especulações de Hegel sobre a dialética do senhor e do escravo, como também nas imaginações dos primeiros socialistas. Tornou-se centro das análises de Marx sobre a alienação do trabalho industrial na economia capitalista. Continuou a se desenvolver no século 20 entre discípulos e interlocutores do marxismo, como Marcuse, que complementou a análise do trabalho alienado com a do caráter alienante da produção e do consumo no capitalismo tardio, e Hannah Arendt, que, com suas reflexões sobre a vita activa face à vita contemplativa, remete o leitor à cultura clássica, para repensar a condição do homem moderno.

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Em A condição humana, Arendt retoma a distinção grega das três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo do homem pela sobrevivência, com o fim de manutenção e reprodução da vida. O modelo é o do camponês sobre o arado, o trabalho na terra. Ressalta a passividade dessa forma de atividade humana submissa aos ritmos da natureza, às estações, à intempérie, às forças incontroláveis. O produto desse esforço é perecível, embora dele dependa a vida de quem trabalha, por isso não é um trabalho livre. A condição humana do labor é a vida. Por outro lado, o trabalho propriamente dito, que corresponde à poiesis grega, significa fazer, fabricação, criação de um produto por técnica ou arte, e corresponde ao artificialismo da existência humana. Poiesis é a obra da mão humana e dos instrumentos que a imitam. O modelo é o do escultor; por seu resultado concreto, o fazer do artista adquire a qualidade da permanência e torna-se presença no mundo, para além da vida de seu produtor. A mundanidade é a condição humana do trabalho. Por sua vez, a ação ou práxis se exerce diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas nem da matéria. Não apresenta um produto concreto, portanto, não possui a permanência da fabricação. É o domínio da atividade em que o instrumento é o discurso, a voz e a palavra do homem. Corresponde à condição humana da pluralidade e realiza a liberdade. Arendt também analisa a marca da cultura judaica e cristã na concepção ocidental da condição humana, em cujos entrelaçamentos se manteviveram a primazia da teoria sobre a atividade e o menosprezo do trabalho manual. Na tradição judaica, o trabalho se apresentava como castigo, meio de expiação do pecado original, labuta penosa à qual o homem foi condenado. Nos primeiros tempos do cristianismo, o trabalho continuou a ser visto como punição, embora servindo à saúde do corpo e da alma. Nos mosteiros medievais, devia ser alternado com a oração e limitar-se à satisfação das necessidades básicas da comunidade.


Creative Commons

Weber e Marx

Com a ampliação das fronteiras geográficas pelas navegações e a nova percepção do universo pelas descobertas científicas, no Renascimento começaria uma inversão de valores sobre a vida contemplativa e a vida ativa. A inversão moderna tomou, de um lado, integrado ao ressurgimento da cultura antiga, um sentido humanista, em que o trabalho passou a ser visto como expressão da força do homem. De outro, tomou significação religiosa, situando-se no âmago da Reforma Protestante, na qual a moral do trabalho se constrói sobre a convicção de que a dedicação profissional dignifica o homem, dando assim uma nova iluminação à moral cristã. Sobre a relação entre a ética protestante e a ideologia do trabalho no capitalismo, é preciosa a interpretação de Max Weber, oposta à de Marx quanto à relação entre economia e religião. A análise crítica do trabalho no mundo industrial feita por Karl Marx, no entanto, permanece válida e definitiva como denúncia da exploração e da alienação do trabalho no século 19. Marx não só fez a análise exaustiva das relações de trabalho na sociedade capitalista, com acréscimo de conceitos novos como trabalho concreto e abstrato, trabalho morto, trabalho vivo, mas em muitos textos deixa transparecer uma teoria antropológica do trabalho. Como para Hegel, em Marx o trabalho é o fator que faz a mediação entre o homem e a natureza. Os homens definem-se pelo que fazem, e a natureza dos indivíduos depende das condições materiais que determinam sua atividade produtiva. No processo

Labor: segundo Hannah Arendt, o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico voltado à sobrevivência. Está submissa aos ritmos da natureza, por isso não é trabalho livre

de trabalho, participam o homem e a natureza; nele o homem inicia, controla e regula as relações materiais entre si e a natureza; e pelo trabalho se altera a relação do homem com a natureza. O trabalho é “o esforço do homem para regular seu metabolismo com a natureza” e assim, por meio de do trabalho, o homem se transforma a si mesmo. Hannah Arendt criticou a forma de Marx encarar o trabalho, basicamente pelo fato de a análise marxista priorizar a produção em detrimento da ação, o econômico antes do político, o que reforçaria a tendência do mundo industrial à transformação de toda atividade em labor e à diluição do político no social. A tensão permanente em toda a reflexão sobre o trabalho, que ainda aparece na polarização atual entre as interpretações de Marx e Arendt, é a da valoração relativa do trabalho e do ócio como ocasião de realização do homem, criador e livre.

Por um novo conceito de criatividade

A balança dos valores de ócio e trabalho, que assim como era na Antiguidade seria invertida entre os modernos, encontra um ponto de questionamento interessante no manifesto de Paul Lafargue – O direito à preguiça –, no qual, de acordo com as tradições da filosofia e do humanismo, o fundador do Partido Socialista francês faz a crítica da ideologia do trabalho predominante na sociedade burguesa mesmo entre os trabalhadores, instigando à luta pela diminuição da jornada de trabalho. Quando a automação toma formas antes nunca

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Dossiê

Qual

é o sentido do trabalho?

imaginadas, com a revolução cibernética e as novas tecnologias de comunicação, impõem-se hoje perguntas que a história do conceito não responde e estão dadas como tarefas para o futuro, ante os desafios do mundo do trabalho pós-industrial: Será o trabalho o único modo justo e digno de prover a sobrevivência? Será o modo principal de dar sentido à vida? Será o único ou o melhor meio de alguém se fazer reconhecer como cidadão e como pessoa de bem? Ou poderiam ser mais

valorizados a dedicação à família e aos amigos, a criatividade no âmbito do convívio e do lazer, a arte pela arte, o esporte, a participação em atividades comunitárias, os serviços voluntários, a política, a vida do espírito? Quando se perceber que o homem trabalhador é mais do que seu trabalho, será possível construir um novo conceito de criatividade humana apto a dar respostas para as novas situações deste tempo em que o fantasma do desemprego assombra a juventude.

Imagens: Creative Commons

Algumas concepções clássicas de trabalho

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Na Política, Aristóteles afirma que o trabalho é incompatível com a vida livre e defende o ócio, diferenciando-o da preguiça. Segundo ele, “exaltar a inércia mais do que a ação não corresponde à verdade, porque a felicidade é atividade”. É no ócio que o homem encontra a virtude, qualidade relacionada à prática. Para a Antiguidade Clássica, os cidadãos não deveriam ser artesãos, mercantes ou camponeses, pois não restaria tempo para as atividades política, filosófica e artística.

Para Santo Agostinho, o trabalho era um preceito religioso. Trabalhar e rezar deveriam ser as atividades gloriosas de todos os cristãos. Ele considerava a agricultura a principal atividade humana, verdadeiro ato religioso. O labor era, portanto, uma forma de impedir que o ócio conduzisse o homem aos vícios. No livro Sobre o trabalho dos monges, ele apresenta a doutrina do trabalho manual, dissolvendo os argumentos que existiam na época contra esse tipo de labor.

O trabalho como garantia de salvação eterna: essa é uma das ideias presentes da teologia protestante. Para Max Weber, o enaltecimento do trabalho foi decisivo para o desenvolvimento do capitalismo industrial. O sociólogo explica que, para o protestantismo de João Calvino, as habilidades do trabalho devem ser incentivadas, na medida em que são ofertas divinas. A teoria da predestinação afirma que um dos sinais de salvação é justamente a riqueza acumulada. Incerto seu destino, o fiel buscaria, incessantemente, o trabalho e o lucro.

A ideia de Hegel, de que o trabalho é a mediação entre o ser humano e o mundo, está presente no livro Lições de Jena (18031804). Ele afirmava que o trabalho era uma atividade espiritual e que o homem só podia ser realmente homem se fosse capaz de satisfazer suas necessidades por meio do trabalho. Segundo Hegel, que formulou a primeira teoria filosófica do trabalho, a atividade faz com que o egoísmo seja substituído pela realização das necessidades de todos. A liberdade em sociedade também seria fruto do trabalho.

A crítica do trabalho no mundo industrial feita por Karl Marx permanece definitiva como denúncia da exploração do trabalho no século 19. Marx fez a análise das relações de trabalho trazendo conceitos novos como trabalho concreto e abstrato, trabalho morto, trabalho vivo. Como para Hegel, em Marx o trabalho faz a mediação entre homem e natureza. Os homens definem-se pelo que fazem, e a natureza individual depende das condições materiais que determinam sua atividade produtiva. Pelo trabalho se altera a relação do homem com a natureza.

Em A condição humana, Hannah Arendt retoma a distinção grega das três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor corresponde ao processo biológico do corpo do homem pela sobrevivência. O trabalho propriamente dito, que corresponde à poiesis, significa fazer, fabricação, criação de um produto por técnica ou arte; corresponde ao artificialismo da existência humana. A ação, por sua vez, se exerce diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas nem da matéria. É o domínio da atividade em que o instrumento é o discurso, a voz e a palavra.

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Entre o desespero e a esperança: como reencantar o trabalho? Para a psicologia social, reconhecimento é o fator que permite transformar o sofrimento em prazer; resta saber como e por que as formas atuais de organização precisam ser alteradas para que isso ocorra C hristophe D ejours

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os dias de hoje, quando se fala do trabalho, é de bom-tom considerá-lo a priori como uma fatalidade. Uma fatalidade socialmente gerada. E, de fato, é preciso reconhecer que a evolução do mundo do trabalho é bastante preocupante para os médicos, para os trabalhadores, para as pessoas comuns apreensivas com as condições que serão deixadas a seus filhos em um mundo de trabalho desencantado. E, no entanto, no mesmo momento em que devemos denunciar os desgastes psíquicos causados pelo trabalho contemporâneo, devemos dizer que ele também pode ser usado como instrumento terapêutico essencial para pessoas que sofrem de problemas psicopatológicos crônicos. No que concerne à visão negativa, é preciso distinguir o sofrimento que o trabalho impõe àqueles que têm um emprego do sofrimento daqueles homens e mulheres que foram demitidos ou que se encontram privados de qualquer possibilidade de um dia ter um emprego. Há, portanto, situações de contraste. Surge inevitavelmente a questão de saber se é possível compreender as diversas contradições que se observam na psicodinâmica e na psicopatologia do trabalho. Isso só é possível se defendermos a tese da “centralidade do trabalho”. Essa tese se desdobra em quatro domínios: • no domínio individual, o trabalho é central para a formação da identidade e para a saúde mental, • no domínio das relações entre homens e mulheres, o trabalho permite superar a desigualdade nas relações de “gênero”. Esclareço que aqui não se deve entender trabalho apenas como trabalho assalariado, mas também como trabalho doméstico, o que repercute na economia do amor, inclusive na economia erótica,

• no domínio político, é possível mostrar que o trabalho desempenha um papel central no que concerne à totalidade da evolução política de uma sociedade, • no domínio da teoria do conhecimento, o trabalho, afinal, possibilita a produção de novos conhecimentos. Isso não é óbvio. O estatuto do conhecimento, supostamente elevado acima das contingências do mundo dos mortais, deve ser revisto profundamente quando se considera o processo de produção do conhecimento e não apenas o conhecimento. É o que se chama de “centralidade epistemológica” do trabalho. Levando-se em conta o objetivo deste texto, examinarei aqui somente a primeira dimensão, a da centralidade do trabalho no que concerne à formação da identidade e à saúde mental.

Formas de organização do trabalho

As novas formas de patologia mental relacionadas ao trabalho (ver quadro na página 53) dão uma ideia inicial da importância dos problemas descobertos pela prática clínica, mas vale a pena apresentar as razões e os processos que provocam degradações desse porte. Insisto, portanto, nos resultados recentes das pesquisas etiológicas sobre as novas patologias: a deterioração da saúde mental no trabalho está intrinsecamente ligada à evolução da organização do trabalho e, em particular, à introdução de novas estratégias, entre as quais se destacam: • a avaliação individualizada dos desempenhos; • a busca da “qualidade total”; • a terceirização em escala e o uso crescente de trabalhadores free-lancers em vez do trabalho assalariado. A evolução dos métodos de organização do

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